Punk, ação e contradição em Portugal: Uma aproximação às culturas juvenis
contemporâneas
Passados quase 40 anos sobre a sua entrada no cenário musical, importa
questionar a atualidade do punk enquanto subcultura juvenil, movimento social e
manifestação artística da contemporaneidade. A aceleração e a abrangência das
mudanças artísticas, culturais, tecnológicas e económicas das últimas décadas
são de tal forma intensas que, aparentemente, restaria pouco espaço para falar
do punk no presente. No entanto, as manifestações punkna sociedade portuguesa
atual revestem-se de um conjunto de traços que fazem delas, de forma que apenas
aparentemente é paradoxal e inesperada, um objeto de análise sociológica de
enorme relevo.
Com efeito, ao lado do escasso conhecimento até hoje disponível entre nós sobre
este fenómeno, são múltiplas as razões que justificam que sobre ele se
desenvolva um olhar atualizado e sistemático: pelo hibridismo e bricolage
característicos desta (sub)cultura e pela sua notável inscrição no cerne dos
processos estéticos, artísticos e culturais contemporâneos pós-modernos; pela
manifestação musical e simbólica ainda omnipresente do punk e a sua imbricação
com as paisagens culturais underground de uma série de cidades, como o Porto,
Coimbra, Lisboa, Castelo Branco, Aveiro, Leiria, etc.; pelo ethos e a
fundamentação ideológica-simbólica do punke a sua associação à crítica e à
contestação social; pela reivindicação e revivificação de um modus operandi Do-
It-Yourself, tão importante na determinação dos novos movimentos sociais; pelo
facto de o punkter sido a porta de entrada para o desenvolvimento das
(sub)culturas populares urbanas cosmopolitas na sociedade portuguesa; enfim,
por existirem demasiadas ligações entre as afirmações identitárias da transição
para a vida adulta e do ser jovem hoje e o que esse movimento, cena ou
(sub)cultura tem reivindicado para si ao longo das décadas, numa perspetiva
simultânea de globalização e localização, fragmento e coerência.
O presente artigo1 procura justamente questionar a atualidade do punk nessa sua
abrangência e multiplicidade significante, tomando como referência o caso
português. Com base em resultados de uma investigação alargada de recorte
diacrónico e sincrónico acerca do punk em Portugal, que privilegia uma
abordagem qualitativa e a auscultação direta dos vários tipos de atores
envolvidos na cena punk, o artigo explora os significados culturais, sociais e
simbólicos que se constituem em torno dessa forma de expressão estética que,
afigurando-se em simultâneo como um ethos e um modo de estar na vida, revela um
enorme potencial heurístico para a compreensão dos processos identitários e
societais que atualmente se estabelecem em torno das cenas musicais.
1. Um olhar com três focos, duas dimensões e uma abordagem
O punk teve que morrer para poder viver, diz Dylan Clark (2003: 223). Ora, é
precisamente nesta linha que situamos o nosso primeiro foco de abordagem ao
punkem Portugal e à discussão das formas de (sub)culturas juvenis que engendrou
e continua a engendrar no nosso quotidiano. Assim, consideramos que o punk se
demarca das subculturas clássicas que se opunham ao mainstream e à
mercadorização, na exata medida em que tem sido um referente de intensificação
mercantil, servindo de argamassa simbólica para a contínua, incessante e
diferenciadora produção de objetos no capitalismo avançado. Nas palavras de
Clark, tendo ostensivamente neutralizado o punk, a indústria cultural provou
ser capaz de comercializar qualquer subcultura juvenil. (2003: 227). Por isso,
convidamos aqui a compreender a complexidade do punk:2 trata-se de uma
(sub)cultura verdadeiramente contemporânea no sentido da contradição, da
dialética constante entre underground e mainstream, da possibilidade de uma
reinvenção incessante ' exemplo claro do hibridismo e bricolage da cultura
(O'Connor, 2002) e da hiperinflação dos códigos subculturais. Sabemos que a
história da pop music se repete a si própria com regularidade, reinventando
novas cenas underground como respostas à hegemonia mainstream (Azerrad, 2002).
É neste entendimento que traçaremos uma abordagem preliminar da emergência, da
vivência e da atualidade do punkem Portugal, considerando-o na atualidade
(sub)cultural da simultaneidade dos consumos, artefactos, discursos, práticas,
subgéneros musicais (Brake, 1980; Burke e Sunley, 1998; Cox, 2011) e na sua
heuristicidade de conceito aberto e plural, a redescobrir em função do contexto
histórico e social em que é vivido. Assim, neste artigo, usaremos o punk e a
sua penetração na sociedade portuguesa num contexto de mudança societal
acarretada pela Revolução de Abril, de permeabilidade do país às indústrias
culturais, da inauguração de novas componentes de consumo estético e musical,
de emergência das culturas urbanas e do consumo mais alargado do pop rock;
contexto particular de ilustração e discussão do punk sob o olhar das teorias
subculturais e pós-subculturais.
Sabemos a importância da localização das manifestações (sub)culturais num
território, num contexto. E este é o nosso segundo foco. Desta feita, trata-se
de uma primeira aproximação à reestruturação social e simbólica do punk nos
últimos 40 anos na sociedade portuguesa, seguindo um intento de contextualizar
este fenómeno global a uma escala nacional, onde os protagonismos, as
trajetórias e as configurações são necessariamente específicos e muito
diferentes dos ingleses ou americanos,3 na senda do que foi feito por Adams
(2008) ou Savage (2001), que contemplam características intrinsecamente anglo-
saxónicas no movimento punk. Partimos do pressuposto de que a criação da música
popular não é um assunto individual a ser entendido através de um foco na
música ou no músico, mas, em vez disso, um processo multifacetado que apenas
pode ser entendido no contexto do ambiente social em que é criado e apropriado,
transformado em banda sonora e corps fait de um posicionamento, de um modo de
vida. Com estes pilares, iremos, neste artigo, e privilegiando os discursos dos
indivíduos, apresentar uma descrição, uma avaliação e uma análise do contexto
em que o punk emerge e se desenvolve em Portugal, e simultaneamente, um
exercício de definição e uma apresentação das trajetórias de pertença ao
movimento, compreendendo que os indivíduos constroem significados particulares
e coletivos para a sua participação (Haenfler, 2004: 428-429).
Finalmente, colocamos um foco nas representações, nos sentidos do que é o punk
à escala portuguesa, atendendo às ideologias, crenças e práticas específicas
que fazem parte de uma subcultura e que a diferencia da cultura dominante
(Barret e Burleson, s.d.: 4). Este foco resgata a plasticidade das
autorrepresentações dos participantes na cena punk portuguesa sob diversos
papéis (músicos, editores, music lovers, seguidores, jornalistas) e das
mudanças e transformações de conteúdo em função das pertenças geográficas e
geracionais. É comummente aceite no estudo das culturas populares a relevância
da fidelidade proximal aos discursos dos seus elementos, assim como o
reconhecimento da mutabilidade do punk e da sua não apropriação hegemónica.
Esta defesa de uma ordem do discurso foi bem fundamentada por Matula (2007:
25), quando advogou que o espaço de oposição punk era criado fundamentalmente
através da própria produção musical e da construção ideológica de uma
narrativa. Na mesma ordem de razões de apologia de uma análise dos discursos, o
punk, como referem vários teóricos, foi uma cultura construída através de um
processo de colagem, um processo que agregou elementos da cultura dita de elite
e da cultura popular e que, como refere Adams (2008: 3-4), acabou por
indiscutivelmente colocar num local privilegiado as mesmas instituições que
procurava destruir. Por conseguinte, o punk pode ser estudado através da
análise das trajetórias narrativas dos músicos e fãs numa colagem de
sentimentos, pertenças, vínculos, afetividades e razões.
Mais: se atentarmos no conceito de fluxo narrativo contínuo, podemos ainda
mencionar que apesar de as memórias e experiências de um indivíduo sobre o
punk serem fragmentárias, o indivíduo cria uma narrativa coerente [ ] que
permanece consistente ao longo do tempo. (Albiez, 2003: 361). É então
inevitável a referência a duas dimensões de análise utilizadas neste artigo: os
discursos e os objetos (bandas e registos fonográficos). São dimensões quase
indissociáveis, em que os objetos são extensões do discurso. Thompson aponta a
este respeito as similitudes dos punks com o verdadeiro colecionador de
Walter Benjamin. O verdadeiro colecionador depunk,argumenta Thompson (2004:
124-125), desfruta de uma relação com os objetos que não enfatiza o seu valor
funcional, utilitário ' isto é, a sua utilidade ' mas estuda-os e ama-os tal
como à cena, ao palco do seu destino, sendo o destino o período, a região, a
perícia, o antigo dono todo o passado de um objeto [que] adiciona a uma
enciclopédia mágica.
Neste contexto, realizamos uma aproximação metodológica de caráter intensivo,
socorrendo-nos de observações etnográficas, mas também de entrevistas
semidiretivas e histórias de vida a mais de uma centena e meia de participantes
na cena punk portuguesa ao longo das diferentes décadas e dos diferentes
contextos. Este recurso insistente aos discursos também nos levou à procura de
objetos, tais como bandas e fonogramas, tidos como extensões e materializações
discursivas de relevo. A análise preliminar dos dados permitiu-nos traçar
tendências e significados representativos acerca do punk em Portugal, das suas
lógicas de estruturação e funcionamento enquanto cultura de pertença e
comunidade de interesse sociabilitário e musical que oferece imensas
possibilidades de discussão teórica em torno dos cultural studies e dos estudos
pós-subculturais.
2. Emergência de uma cena punk portuguesa
A Revolução de Abril de 1974 funcionou como um catalisador de vontades, de
reivindicações e de manifestações e, nesse âmbito, foi favorável ao eclodir das
primeiras manifestações punk em Portugal. Na cidade de Lisboa, existiam
pequenos grupos de jovens relacionados com os lugares cimeiros da hierarquia
social e artística, que mantinham contactos sistemáticos com as novidades
internacionais. Foi junto desses grupos que surgiu a vontade de ser punk,pondo
em causa a noção, comummente aceite, de que o movimento punksurgiu
espontaneamente da raiva da classe operária contra o sistema. Uma ideia já
defendida por Albiez (2004: 1), que advoga que o punk partiu de uma conceção
lentamente construída e desenvolvida por um grupo heterogéneo de radicais, de
estudantes de artes, de músicos tanto da classe operária como da classe média e
de jornalistas insatisfeitos com o que o rock se tinha tornado. Sendo um
movimento demasiado complexo para ser entendido através de explicações
unilaterais correspondentes às classes sociais num sentido tradicional, é
importante relativizar a sua associação exclusiva à classe operária, assim como
a uma filiação subcultural restrita, pois estas abordagens têm-se revelado
incapazes de dar conta da crescente complexidade do dinamismo cultural de uma
sociedade onde identidades individuais complexas estão sempre em transição e as
afiliações coletivas são parciais, seletivas e temporárias (Hodkinson, 2003:
285). Observamos isso no discurso dos entrevistados:
Todo esse movimento em Lisboa era um núcleo também muito restrito, de
100 pessoas. Rapidamente entrei e encontrei uma identificação. (Rui,
50 anos, Mestrado, Braga)
Quando a noção do movimento punk chegou a Portugal, nós já estávamos
cheios de punks. Essa é que é a realidade. A revolução tinha sido há
muito pouco tempo, vivia-se ainda aquela euforia toda. E havia muita
gente que sempre tinha calado o bico que de repente começou a
exprimir-se. Era como se o punk já existisse cá, mas sem estar
referenciado, sem ter código de barras. (Bernardo, 51 anos,
Licenciatura, Lisboa)
Nos anos 80, os punks eram da classe operária mas agora, com a
internet, a adesão a este tipo de movimento está muito mais
transversal, mas mesmo assim o underground ainda é restrito. Ainda me
aparecem pessoas que gostam de punk pelas letras e pela atitude. Eu
acho que por toda a Europa, as pessoas que estão ligadas aos
movimentos de vanguarda são sempre mais das elites. (Marco, 41 anos,
9.º ano de escolaridade, Porto)
Nestes primórdios do punk em Portugal, estava em causa não uma reivindicação
propriamente de resistência classista, mas a afirmação de uma mudança de
valores mais transversal, que envolvia uma abertura da juventude portuguesa a
novas músicas, a novas estéticas, a novas formas de sociabilidade ' no fundo,
ao apanhar de um ritmo da modernidade. Coloca-se, aqui, a necessidade de rever
o modelo subcultural desenvolvido pelos teóricos do Centre for Contemporary
Cultural Studies Birmingham (CCCS), pois os dados empíricos têm vindo a
demonstrar que a complexidade e fluidez das práticas culturais juvenis não mais
podem ser analisadas sob o prisma das subculturas como unidades homogéneas de
gostos e pertenças baseadas em classes sociais. Bennett (2001) demonstrou bem
isso quando referiu que as pertenças neotribais correspondem a uma grande
variedade de gostos em termos de géneros musicais, isto é, um mesmo indivíduo
pode ter filiações musicais diversas. As neotribos são, assim, uma configuração
grupal mais fluida, mais transitória e objeto de uma fugacidade por parte dos
seus membros, por contraposição às pertenças subculturais. Da mesma forma, a
conceção de que tanto a subcultura' como a cultura parental contra a qual é
definida são formações coerentes homogéneas que podem ser claramente
demarcadas é objeto de crítica: as culturas juvenis contemporâneas são
caracterizadas por uma cada vez maior complexidade ' especialmente num mundo
cada vez mais interligado, onde ideias, pessoas, músicas circulam numa escala e
velocidade sem precedentes ' que se afasta da dicotomia de mainstream
monolítico' ' subculturas resistentes' (Muggleton e Weinzierl, 2003: 7).
Verificamos, sobretudo a partir de finais dos anos 70 do século passado, uma
efervescência punk centrada na cidade de Lisboa, que resulta da crescente
abertura da sociedade portuguesa ao mundo, embalada pela aceleração da
globalização, pela constituição de um mercado juvenil, pela intensificação da
urbanização, pela mobilização cosmopolita e o avanço tímido das indústrias
culturais à escala portuguesa. De forma preliminar, em meados e finais dos anos
1970, formaram-se as primeiras bandas de punk rock em Portugal. Nessa altura,
surgiram nomes como os Aqui d'El Rock (Lisboa), Crise (Sintra), Faíscas
(Lisboa), Minas & Armadilhas(Lisboa), UHF (Almada), Xutos & Pontapés
(Lisboa), Tilt (Porto) ' bandas, na sua grande maioria, oriundas da Grande
Lisboa. A Área Metropolitana de Lisboa, e em especial a cidade de Lisboa,
exibiriam de resto um comportamento de maior dinamismo quanto ao número de
bandas surgidas até aos dias de hoje. Apesar de se ter assistido, sobretudo a
partir dos anos 1990, a uma proliferação de bandas pelo resto do país, nenhuma
cidade consegue acompanhar o dinamismo desta cidade. No entanto, o simples
facto de existirem bandas em locais menos centrais, e para lá do litoral e das
duas áreas metropolitanas, é revelador da importância do ethos Do-It-Yourself
(DIY) no punk nacional. Aí, nesses territórios mais empobrecidos, o ethos DIY
talvez se afirme de uma forma ainda mais autêntica. Provavelmente, os jovens
dessas bandas confrontaram-se com limitações que exigiram mais invenção e
improviso. Terão tido possivelmente de se movimentar mais para encontrar
instrumentos ' pois que, muitas vezes, não existem sequer lojas de venda de
instrumentos nos locais de residência ' ou até mesmo de improvisar esses
instrumentos, novas formas de tocar, novos estilos dentro do punk; terão tido
de se deslocar mais para arranjar locais para concertos ou até que organizar os
próprios concertos (necessitando para isso de arranjar o espaço, o equipamento
necessário para fazer a apresentação, etc.); terão tido de gravar as suas
músicas de uma forma mais arcaica ou procurar o contacto de alguém que o
fizesse ' opção que acaba muitas vezes por ser descartada dados os custos de
gravação, que não podem ser suportados devido às escassas oportunidades de
apresentação em público e, em consequência, às escassas oportunidades de ganhar
dinheiro.
De forma variável, o facto é que as bandas punk foram surgindo em vários locais
do território nacional. Nos anos 1980, para além do Grande Porto (onde, durante
a década de 1980, surgem nomes como Cães Vadios, Guru Paraplégico e os
Iconoclastas ou os Os Cães, a Morte e o Desejo) e da Grande Lisboa (Kú de
Judas, Grito Final, Condenação Pacífica, Peste & Sida, C.I.A.neto, Corrosão
Caótica, entre outros), surgem igualmente noutros locais projetos também
conhecidos do público: Aveiro (Cagalhões, Inkisição ou Mentes Podres); Coimbra
(Extrema Unção, Objetos Perdidos, É Mas Foi-se); Leiria (Alien Squad); Montijo
(Jardim do Enforcado); Portalegre (Avô Varejeira); Viseu (Bastardos do
Cardeal). Com a chegada dos anos 1990, a proliferação das bandas continua a
estender-se pelo território nacional, e ao punk rock juntar-se-ia um estilo
musical que a partir de então viria a angariar bastantes seguidores ' o
hardcore. Durante esta década, surgem bandas, por exemplo nos Açores
(Manifesto, Sangue ou Punk, Palha d'Aço), em Alcobaça (Us Forretas Ocultos),
Aljustrel (D.P.E.), Castelo Branco (Crime Loucura, Mind Yard), Faro (Pointing
Finger), Figueira da Foz (Deskarga Etílika), Penafiel (Fora de Serviço), Guarda
(Caos Social, Konflito Social, F.D.P.), Ovar (Cabeça de Martelo, Um Trinco no
Mamilo). Com o advento dos anos 2000, surgem bandas em Évora (I.A.C.), Fafe
(Jesus Cristas), Madeira (Raiva!!!), Mirandela (Má Sorte), Moimenta da Beira
(The Un-x-pected), Odemira (Abandalhados), Paredes (Veneno, Gregórios, Quebra-
Cabeças), Sabugal (Minoria Activa, Los K.O.Jones), Viana do Castelo (U.D.M.,
Fools Die, Mr. Miyagi), etc. A partir desta década, e sobretudo a partir da
década de 2010, as sonoridades parecem experimentar cada vez mais o lado mais
agressivo do punk, optando-se por tocar um hardcore mais sombrio ou por outras
sonoridades pouco usuais até então ' crust, d-beat.
Este rápido percurso pelas bandas e suas espacializações aponta para uma
significativa quantidade, diversidade e hibridismo. De forma recorrente, no
discurso dos entrevistados encontramos uma comparação com a realidade anglo-
saxónica de legitimidade inspiradora (e até mimética) hegemónica. Se, por um
lado, a nível internacional, os atores entrevistados associam a bandas como os
Ramones e os Sex Pistols o início do movimento, por outro o punk é visto como
algo que sempre existiu, seja enquanto atitude, seja ' numa leitura em que se
associa sempre, em certa medida, às raízes do rock n' roll a nível mundial '
enquanto música praticada nas garagens a partir de um exercício de mimetismo
dos discos que chegavam. Se é no dualismo entre EUA e Reino Unido e no
sincretismo cultural que está a origem do punk(Lentini, 2003: 153), o
punkportuguês é assim marcado pelo clima de abertura e transformação do pós-25
de Abril de 1974, e caracterizado por um mimetismo/uma reapropriação face às
realidades norte-americana e inglesa. Errickson (1999) dá precisamente conta
das especificidades sociohistóricas que estiveram na origem fundadora do
movimento nos EUA e no Reino Unido, mostrando essa sua plasticidade e
consequente adaptabilidade aos contextos de vivência, em sintonia com as teses
acerca da consolidação das cenas musicais (Bennett e Peterson, 2004). Temos, a
partir dos entrevistados, posicionamentos distintos de reapropriação vivencial
do punkem Portugal, inspirados numa matriz anglo-saxónica. Aqui, estamos
próximos de Lentini, quando assevera que o punk, em vez de ser visto apenas
como originário deste ou daquele país ou, como alguns referem, uma forma de
imperialismo, deve ser analisado como um movimento global agregando uma
diversidade de estilos, focos líricos e políticos (Lentini, 2003: 170), em
função dos contextos e das estruturas societais.
Não querendo esgotar aqui todo o conjunto de argumentos reveladores da génese e
consolidação da cena punk portuguesa, outro dado importante da sua
materialização decorre da existência de registos fonográficos. Até ao final dos
anos 1980, são raras as gravações sob a chancela de editoras. O modus operandi
da maior parte das bandas era a gravação caseira de registos ou a gravação de
concertos. Aqui assumem especial destaque os concertos no Rock Rendez-Vous
(RRV) (Crise Total, ao vivono RRV, 1985; Kú de Judas, ao vivono RRV, 1985). A
demo tape4 Condenados sem Julgamento dos Condenação Pacífica (1988) era, toda
ela, constituída por gravações do RRV. Os anos 1990 inauguram uma certa
consolidação da cena punk nacional pela efetivação de gravações de registos
associadas a editoras (sobretudo a Fast n' Loud). Acompanhando as
desigualdades e assimetrias de desenvolvimento do nosso país, não é, portanto,
de estranhar que, novamente, seja a Grande Lisboa a zona do país onde um maior
número de bandas tenha lançado registos fonográficos: por um lado, as bandas
tinham mais possibilidades de lançarem um registo fonográfico através de uma
editora, dada a maior proximidade relativamente a estas; por outro, tornava-se
também mais fácil conseguir as gravações caseiras dos concertos, perante o
maior número de espaços para realização de concertos com disponibilidade para
fornecerem às bandas as gravações.
Uma das formas de divulgação mais comuns e baratas que havia era a
disseminação, primeiro pelos amigos e daí de mão em mão, das
gravações de concertos que tivessem alguma qualidade. [ ] Dos dez
lançamentos importantes do punk português, pelo menos duas entradas
são gravações de concertos no Rock Rendez-Vous: Crise Totale Kú de
Judas. Para mim, esta gravação dos Crise é mais importante que o CD
saído 10 anos depois. Quase toda a gente a conhecia, de Norte a Sul
do país. (Renato, 43 anos, Licenciatura, Lisboa)
Contudo, também é possível encontrar registos fonográficos noutros territórios
do contexto português. Para esta proliferação, muito contribuíram as demos e a
maior importância das compilações. As demos e as compilações, sejam de
editoras, de espaços ou de publicações periódicas, auferem, na verdade, uma
importância que ainda hoje é bastante notória no panorama fonográfico punk,
revelando, por um lado, o caráter efémero destes projetos ' que não chegam a
durar tempo suficiente para atingir o patamar da gravação de álbuns ' e por
outro os fracos recursos económicos das bandas, que não possibilitam gravar
mais do que simples maquetas dos concertos e dos ensaios. Com a massificação da
internet e das redes sociais, a divulgação destas maquetas, outrora mão em
mão nos concertos, tornou-se mais fácil, assumindo apenas a forma digital. Por
último, as representações e os objetos aqui abordados revelam o punk enquanto
(des)ordem cultural, faceta da cultura popular juvenil plena de metamorfoses e
fragmentos, a exemplo do que acontece com outras tribos e cenas da cultura
juvenil urbana.
3. Significados e definições do punk
A propósito da configuração dopunk português, podemos constatar que entre a
formação de bandas e a realização de concertos tudo parece assumir uma forma
marcada pela atitude DIY,5 já que toda a estrutura é partilhada e posta em
funcionamento pelos próprios. Este é o primeiro significado e conteúdo do punk.
O DIY promove a criação de música e as iniciativas locais e surge, num primeiro
momento, como uma alternativa à música comercial e, num segundo momento, como
uma forma de os atores sociais revelarem a sua total oposição às grandes
produtoras de música, que se regem pelo lucro e que fizeram com que a
diversidade musical, assim como as maneiras de produzir e de falar sobre
música, fossem bem circunscritas (Mattson, 2001: 72-73).
O punk é atitude. Simplesmente, é atitude, é o Do-It-Yourself (DIY) '
fazeres tu mesmo, sempre fora da corrente. O punk para mim é uma
maneira de ver o mundo completamente sem ser como nós o estamos
habituados a ver. É uma forma de nos revoltarmos, protestar, ter uma
visão completamente diferente, ser contra as normas, sempre contra.
(David, 29 anos, Frequência Universitária, Penafiel)
O que me fez acreditar e dizer eu vou ser músico foi quando tomei
contacto com o punk rock e com o hardcore. Pensar que se pode
controlar o processo, é tudo muito mais despreocupado, com muito
menos intermediários e a própria atitude é qualquer um pode fazer
[ ]. O facto de descomplexar o acesso à música fez-me sentir bem
comigo próprio ou confiante o suficiente para decidir vou
experimentar. Foi só preciso uma vez, sentado em frente à bateria.
(José, 29 anos, Frequência Universitária, Lisboa)
Para lá do atomismo de uma atividade dinamizada por jovens e do sentido de
pertença que acompanha um período da vida, existe também uma expressão que
marca claramente a vida dos indivíduos e os acompanha sempre, desde o momento
do seu contacto. Ou seja, embora pareçam uma minoria, há um conjunto de
indivíduos que manifesta uma adesão total ao movimento, mantendo opções
estéticas mais claras e participando ainda de forma ativa ao nível da
dinamização e da produção musical, o que vai de encontro ao apontado por Andy
Bennett (2006). No nosso caso, podemos afirmar que, apesar das especificidades
inerentes à trajetória de cada um, todos se sentem punk. Os que têm bandas, os
que tiveram bandas, os que organizam concertos e eventos, os que nunca
organizaram, todos têm em relação ao punk o mesmo sentimento de pertença, numa
leitura que é comum: o punké mais que a música. É, para além da música, uma
atitude, uma ética, uma forma de estar que ultrapassa as fronteiras do género
musical, por muito underground que permaneça. Vamos assim ao encontro dos
resultados dos estudos recentes em torno da cena punk australiana desenvolvidos
por Bennett e Taylor (2012), que mostram que, apesar de revelarem uma visão
crítica da identidade punk enquanto jovens, os punks mais velhos continuam a
afirmar que os ideais punk mudaram completamente as suas vidas para melhor,
tendo-lhes incutido saberes de rua' (street-wise outlook) e um sentimento de
realismo.
Por outro lado, num exercício de comparação do caso português e noutros
contextos geográfico-culturais, encontramos, ao mesmo tempo, uma reiteração do
caráter mimético, presente principalmente ao nível das influências musicais,
uma avaliação que aponta para uma falta de infraestruturas e atividades de
apoio ao movimento (como punk houses e squats) que permitam alargar as suas
esferas de ação, uma capacidade de intervenção, organização e dinamismo e,
finalmente, um reconhecimento de que o movimento punk evolui e se constitui
numa estreita relação com as especificidades de cada contexto local e nacional
ao nível das mentalidades. Havendo diferenças em termos de vitalidade,
dimensão, estrutura e organização, mantém-se uma lógica fortemente ancorada em
princípios fundamentais do punk, que se prendem com o inconformismo: o DIY
feito habitus (Tucker, 2006) e feito ethos, refletindo uma transformação dos
agentes de consumidores em produtores culturais (Dunn, 2008: 198).
Reencontramos aqui os valores normativos da comunidade punk identificados por
Kieran James (2009: 128): a ética e estética DIY; a atitude de oposição ao
capitalismo e à alienação inerente a esse sistema de produção; a defesa de um
ponto de vista ao nível da rua ou de um espírito proletário emotivo.
Tem essa componente que é de luta contra o sistema tipo rebelião,
inconformismo, muito DIY, muitas fanzines, tudo muito pequeno, tudo
muito feito por cada um, sem nada de grandes custos uma coisa para
tentar divulgar. Qualquer banda que se diga minimamente punk evita
sempre músicas com conteúdo vazio, [ ] uma coisa mais generalista ou
que falem de amor (Hugo, 42 anos, Frequência Universitária, Lisboa)
A contenda entre o mainstream e o underground é ainda uma questão em aberto em
Portugal. Se encontramos indivíduos que veem com naturalidade o crescimento em
termos de público e a consequente maior aceitação de algumas bandas, outros
apresentam posições duais e críticas. Sem uma estrutura que albergue o
movimento e permita uma forma de vida alternativa, emergem dois polos: manter-
se no punk verdadeiro e underground e criar uma forma alternativa de
subsistência; ou fazer do punk a forma de subsistência e ora reformular o modo
de vida, ora ceder em certa medida às vicissitudes da indústria musical.
Sabemos que o punk é um conceito aberto à interpretação, objeto de ampla
disseminação em termos de autenticidade. Existe uma plêiade de disputas sobre o
que pode ser chamado de autêntico e essas discussões intermináveis abrangem,
para além das bandas/ dos artistas envolvidos, opiniões sobre o racismo, o
sexismo, a homofobia, o militarismo, a violência, o preconceito de idade, a
desigualdade económica, a arte, a moda e muitas outras questões sociais,
culturais e políticas (O'Hara, 1999). Entre estes dois polos situa-se um
posicionamento que se prende com uma leitura que parte do caráter rebelde e
mais político do punk e prevê a hipótese de as bandas poderem crescer, mantendo
os princípios, e fazerem chegar a sua mensagem a mais pessoas.
Vários autores advogam a morte do punk e, com esta, a morte das subculturas
clássicas (Clark, 2003; Cogan, 2010; Sabin, 1999). Estes grupos foram
importantes para a alteração da ordem social em várias partes do mundo, sendo
que sua a força provinha da capacidade de chocar, de desobedecer a normas
estabelecidas. No entanto, tudo isto mudou, pois, com o tempo, estas
transgressões à norma tornaram-se, por assim dizer, normais, ou seja, algo
expectável, tendo estas narrativas sido incorporadas pelo reportório
capitalista, que reconfigurou a imagem de rebelde num potencial consumidor.
Dylan Clark considera mesmo que o punk acabou capturado e colocado no zoo
subcultural, em exposição para todos verem (2003: 223). Isto levou a que o
punk alcançasse um ponto de não retorno, tendo travado uma batalha em toda a
frente contra o establishment; chegou-se inclusivamente ao ponto de certas
bandas valorizarem tudo o que era rejeitado pelo mainstream, desde violação até
campos de morte. Alguns aderiram mesmo ao fascismo (ibidem: 225). Com
Bloustien, percebemos que o discurso punk é marcado visceralmente por uma
mistura de humanismo liberal e de materialismo dialético, que apresenta o
indivíduo como radicalmente autónomo e resistente à uniformidade (2003: 51).
Entre os nossos entrevistados é possível encontrar marcas desta visão.
O punk é um movimento, para mim, acima de tudo de um grito contra as
desigualdades e por aí, tudo o que são as minorias, os mais
desfavorecidos, os mais recalcados, para esses são os punks que fazem
sentido. (Emanuel, 41 anos, 9.º ano de escolaridade, Lisboa)
É um modo de vida, mas de certa forma são conceções ao longo do
percurso de vida de um indivíduo. Há pessoas que mudaram radicalmente
com aquilo que foram e há pessoas que começaram a ver de uma forma
mais analítica os mercados, os jogos de poder que existem e uma
pessoa que foi formatada toda a vida para aceitar o sistema como ele
é e com as mudanças que tem a nível da sua vida pessoal, medidas
políticas e sociais que interferem na sua vida pessoal e não se
revolta?! Acho que quem tenha passado pelo punk pelo menos esteve em
contacto com uma cultura alternativa, com ideias alternativas, com
inconformismo e com uma realidade política. (Marcos, 37 anos, 12.º
ano de escolaridade, Lisboa)
Os indivíduos veem o punk como algo que lhes permite fazer parte de algo em que
partilham uma base comum, um espírito e uma atitude DIY, um sentimento de
pertença a uma comunidade que, para fazer uso da expressão mítica de António
Sérgio, se constrói na base do direito à diferença (Guerra, 2010, 2011). Moore
defende que o punk responde à condição de pós-modernidade de duas formas
aparentemente contraditórias. A primeira apropriou-se dos signos, símbolos e
estilos pós-modernos com o intuito de fazer paródia, chocar e perturbar a
sociedade. A segunda, ao invés, pretendia afastar-se da superficialidade da
cultura pós-moderna, envolvendo uma busca de autenticidade e de independência
face à indústria cultural, numa postura de total rejeição da cultura
dominante dos meios de comunicação, da imagem e do hipermercantilismo e de
completa defesa da ética DIY (Moore, 2004: 307). A primeira variação da
subcultura punk, que o autor apelida de cultura de desconstrução, foi mais
prevalecente durante a explosão inicial do punk nos anos 70, enquanto a segunda
(ou cultura de autenticidade') é mais característica das subculturas
hardcore' ou straight-edge' que emergiram durante os anos 80, especialmente
nos Estados Unidos (ibidem).
Assim, encontramos marcas de uma identidade de grupo, já que, por um lado, as
próprias relações pessoais dos indivíduos são marcadas pela sua trajetória no
movimento punke, por outro, a dinamização do movimento implica um forte
relacionamento entre os intervenientes, dado o seu papel dúplice enquanto
produtores e consumidores. Relativamente aos estilos, encontramos uma
heterogeneidade, tanto a nível musical como estético e estilístico, que parece
resultar da configuração plural que o próprio punk acarreta, evidente na sua
pluralidade de subgéneros.
Tendo em conta o autoposicionamento dos indivíduos enquanto diferentes da
norma, é importante remontar a Muggleton (2000: 145), quando este refere que
está em causa a celebração de um sentido de individualidade partilhada ' porque
a valorização da diferença não implica, nem deve implicar, uma construção de
identidades e atitudes individualistas. Esta individualidade partilhada implica
um elevado grau de comprometimento que é, no entanto, influenciado pela
trajetória individual e pelo tipo de relação mais ou menos ativa que os
indivíduos mantêm com o movimento. Por outro lado, está presente um sentimento
de pertença permanente. Ainda que a atividade e o contacto com as bandas, os
discos e os concertos abrandem, os entrevistados afirmam ainda um ser punk,
uma pertença a um movimento alicerçada naquilo que identificamos como o seu
substrato ideológico. Ao mesmo tempo, estes indivíduos ' descrentes face à
política, sobretudo como participação partidária ' assumem claramente posturas
de resistência política, que em alguns casos são conflituais com as trajetórias
de vida e obrigam a uma gestão dual de posicionamentos ideológicos e vida
profissional.
Ainda que o presente artigo não tenha o objetivo de descrever o funcionamento
interno do movimento, acreditamos ser possível encontrar no seu seio
ambiguidades e vicissitudes que podem enquadrar mecanismos de luta e de
distinção, que virão à luz a partir de uma análise profunda que confronte as
representações com as práticas dos indivíduos. Segundo Simon, os Sex Pistols
iniciaram uma transgressão quando desenvolveram uma série de comportamentos
chocantes em público, completamente inéditos no horário nobre da televisão. A
sua atitude era de confronto com a indústria musical e incitou uma crise e um
pânico moral subsequente, que os transformou aos olhos dos média, dos
políticos e dos moralistas no inimigo público número um (Simon, 1997: 155).
Apesar deste declínio da música punk, Simon verifica que foi criada com sucesso
uma verdadeira comunidade punk por oposição à sociedade dominante. Por este
motivo, a ideologia de um niilismo autodestrutivo foi destruída a partir do
interior da própria comunidade, por já não poder expressar os sentimentos por
ela partilhados.
Esta abordagem ao punk que valoriza a componente cultural e política lato sensu
e culturais, por contraste com a tradicional abordagem em torno da música, não
pretende reduzir a importância que esta última tem para as vidas dos indivíduos
e para a sua relação com o punk, mantendo-se assim sensível à chamada de
atenção de Phillipov (2006). Com DeNora (2000: 13), acreditamos que a música
pode ser lida enquanto recurso que permite compreender uma situação e que a
música atua como modo de expressão e elemento configurador dos signos
característicos da identidade (Megías e Rodriguez, 2001: 11). Assim, e embora
reconhecendo a importância e o impacto que o punk teve no quadro da música
popular, obrigando a reequacionar questões relacionadas com as audiências, a
mercadorização e os sentidos musicais, é importante frisar também que existem
muitos atores para os quais o punk é mais do que uma questão musical
(Phillipov, 2006: 384, 392).
Foi uma forma de uma maneira apartidária ter alguma ação política. Lá
voltamos ao mesmo de o punk não ser só música. O que não quer dizer
que não haja bandas niilistas como a Banda do Garrafão que tem aquela
vertente mais próxima do rock&roll. [ ] Há espaço para todos os
gostos, mas eu acho que faz falta, senão o punk passa a ser tão banal
como o heavy metal, o funk, o soul (Luís, 30 anos, Frequência
Universitária, Lisboa)
O punk o que costumava dizer quando era puto, era que o punk era
liberdade. E eu acho que é uma mistura de várias sensações, é tu
criares a nível musical, político, maneira de estar e ver as coisas.
[ ] Mas a parte musical há dias que não me apetece ouvir punk, mas é
acima de tudo criares mecanismos que te sentes bem e o punk é aquela
é uma palavra só, mas que te leva a chamar coisas, no aspeto visual,
na atitude perante as coisas e isso é que é um punk. (César, 29 anos,
Frequência Universitária, Lisboa)
O punk rock é uma música de gajos vadios, gajos que não paravam em
casa, gajos que não tinham paciência para aturar nem a mãe nem o pai,
nem estarem fechados. Quem se fechava em casa eram os gajos
intelectuais e pseudointelectuais que fizeram aquelas bandas mais
estranhas. Os vadios, os gandulos mesmo, os marginais andavam aí na
rua. [ ] Andas para aí, ou roubas ou pedes a uma miúda, engatas uma
miúda ou cravas isto e aquilo ou fazes uma banda e bebes de borla nos
concertos. (Miguel, 37 anos, 9.º ano de escolaridade, Lisboa)
O punk, subtraído ao domínio das aparências, deixa de ser um estilo para se
tornar numa identidade de grupo que se orienta em torno de um individualismo
radical (Bloustien, 2003; Muggleton, 2000). A pouca relevância apontada à
estética por estes indivíduos remete-nos para a não preponderância desta no
quadro das manifestações punk. Ao contrário da imagem presente nos conscientes
coletivos relativa ao modo como é um punk', imagem que é ainda adotada por
elementos do movimento, as opções estéticas dos nossos entrevistados são não só
diferentes entre si, mas também diferentes dessa representação global que se
faz do punk. Ou seja, a tónica da pertença ao punknão poderá estar presente
naquilo que não assume um caráter regular e normalizado. Ao inverso, a
regularidade que encontrámos prende-se exatamente com um enunciado substrato
ideológico, que estrutura e enquadra as diferentes componentes do movimento.
Neste contexto, este substrato ideológico, ao permitir a apropriação e
redefinição de culturas de resistência, constitui a garantia da manutenção da
coesão social (Dunn, 2008: 201).
Assim, e de novo segundo Dunn, a atratividade do punk como forma de expressão
pessoal e política reside na oferta de recursos para uma agência e um
empowermentvia desalienação, um ethos DIY e uma disposição anti-status quo
(2008: 206): uma disposição que constitui uma infração deliberadamente rude
das normas estéticas e sociais (James, 1989: 35). As perspetivas apresentadas
apontam para um papel social do punk de forma alargada e um papel mais
individual, que incide numa transformação dos indivíduos que contactam de forma
direta com ele. Por outro lado, há também uma perspetiva que, ao contrário, se
foca menos na questão grupal e de contexto e mais naquilo que Laing (1978)
apelida de táticas de choque, remetendo para um percurso de transformação
individual e para uma atitude de avaliação reflexiva desse mesmo papel.
4. Representações e vivências
Tipicamente, os jovens tornam-se membros de (sub)culturas juvenis, que podem
ser vistas como comunidades de significado e de identidade e que dão a um
indivíduo uma sensação de pertença, lhe providenciam um reconhecimento de si
próprio, uma sensação de empowerment e lhe suavizam as inquietações (Langman,
2008: 663). Verificamos também que a sua ligação a este tipo de (sub)culturas
tem como momento inicial o contacto com bandas, editoras e imprensa musical
(Cartledge, 1999: 145) ou com outros indivíduos que, por situação de vizinhança
ou contacto em contextos como a escola ou grupos alargados de amigos, surgiram
nas suas vidas.
Um gajo começou-se a vestir assim de forma esquisita quando tinha
Foi quando saiu na Música & Som, em 79 ou quê, apareceu um artigo
do António Sérgio, a dizer como é que um gajo se devia vestir,
pronto. [ ] No outro dia na escola estava tudo vestido daquilo que um
gajo pensava que era. Qual foi a solução, para já cortar o cabelo,
depois pedias à tua mãe os fatos velhos do teu pai, tu estavas quase
do tamanho do teu pai, e era assim, com um blazer que tinha sido do
meu pai. (André, 34 anos, Licenciatura, Porto)
Eu não acho que os punks vivam de forma diferente quando era puto
dava muito mais ênfase à estética. Claro que a partir do momento em
que a palavra punk seja tão deturpada que já não dê para usá-la,
então deixo de a usar. Um gajo já sabe que música punk há de ter
distorção, há de ser um bocado mais rápida, há de ser um bocado
primitiva e tribal. O punkpara mim é ter consciência das
desigualdades sociais. É fazer face a uma sociedade sem
oportunidades. [ ]. E era assim nos anos 80 quando ainda Portugal era
uma sociedade fechada, como é hoje quando Portugal está inerte com a
crise económica e o resgate da Troica. (Ricardo, 49 anos, 12.º ano de
escolaridade, Lisboa)
A subcultura clássica, segundo Clark, morreu quando se tornou objeto de
verificação social e atribuição nostálgica, quando se tornou convertível em
mercadoria (Clark, 2003: 224). Esta perspetiva enfrenta quanto a nós um
problema: o punk não pode ser visto como uma subcultura clássica como os mods
ou os rockers, por exemplo. Não obstante, a morte do punk, no seu sentido
clássico, dá-se não só aquando do enquadramento de bandas punk no circuito
mainstream, mas também quando a estética punk, quando o próprio punk se torna
um produto passível de ser comercializado em cadeias de lojas que vendem em
massa. O resultado disso parece ser o extravasar dos substratos do punk para
outras subculturas ' a transversalidade do DIY ao nível da música, atualmente
muito presente na música independente e alternativa, o relativo sucesso de
editoras independentes também ao nível destas manifestações musicais, etc.
Nesta ordem de ideias, é possível ler-se o punk a partir de um enquadramento
que faz o punk existir antes do punk, enquanto atitude que preexiste à nomeação
e o faz sobreviver à própria morte, mantendo-se a atitude com outros adereços.
Assim, descentralizado, anti-hierárquico, móvel e invisível, metastizou-se e
garantiu a sua continuidade sublimando-se, estando presente mas sem nome.
Seguindo a sugestão de Sean Albiez (2004), sem negar a validade de identificar
a subcultura punkcomo uma comunidade mais ou menos definida, é importante
considerar as suas diversas dinâmicas. As liberdades do punk são absolutas e é
colocado do lado do indivíduo a aceitação ou não das regras dos outros (Sinker,
1999: 129). No entanto, o espaço de total liberdade é ao mesmo tempo um espaço
marcado por incongruências e conflitos. Assim, encontramos indivíduos que, como
vimos, assumiram uma relação mais matricial com o movimento, ao lado de
indivíduos que tiveram atitudes mais centradas na questão da produção e consumo
de música. Isto aponta para que o sucesso das trajetórias dependa do grau e
da variedade da ação dos indivíduos. A permanência no punk enquanto membro
ativo e integrado, por oposição a uma permanência de cariz mais ideológico e
distanciado, está relacionada com o grau de dependência face ao outro, no
quadro das redes que constituem o movimento. Por outro lado, a questão
geracional, na linha do que defende Bennett (2006), dita também alterações no
sentido de uma vivência mais distanciada do movimento.
Não podemos deixar de referir que subjaz nas narrativas dos nossos
entrevistados uma espécie de renascimento subcultural relativizado. Não
obstante a mercantilização do punk, existe um sentimento de revolta e repúdio
em relação àquilo em que o movimento se tornou atualmente, reafirmando a tese
de Clark de que a morte das subculturas ajudou à criação de uma das mais
formidáveis subculturas: o punk (Clark, 2003: 224). O punk continua a
possibilitar a existência de uma comunicação contra-hegemónica, que faz frente
à mercantilização, apropriação e domesticação. São vários os meios usados nessa
resistência: desde as redes sociais informais e descentralizadas da internet e
das tours que permitem o fluxo de discos, fanzines, bandas, ideias e estilos;
passando pelas gravadoras e lojas independentes; até à ética DIY e às bandas
que gravam e lançam músicas por conta própria. A vivência do punk ensina que a
divisão entre cooptação e contra-hegemonia é muitas vezes um espaço obscuro
repleto de contradições (Dunn, 2008: 202-204).
5. Punk is not dead, long life to punk! Uma conclusão
Discutimos aqui a pertinência da abordagem das culturas juvenis dentro da
discussão ainda inacabada entre os cultural studies e as teorias pós-
estruturalistas, ou, dito de outra forma, entre a teoria subcultural e a teoria
pós-subcultural. O debate está longe do seu termo, mas consideramos que o punk
pode dar um forte contributo para o esclarecimento das posições no seu seio,
assim como para a resolução de antinomias teóricas que têm vindo a caracterizar
a sociologia e a antropologia neste dealbar do século xxi, no tocante às
culturas juvenis e à música. Consideramos o caso do punk português como
ilustrativo para a explanação e a discussão em torno das teorias anteriores.
Não existe, neste artigo, um imperativo de exaustividade de evidência empírica,
mas sim um intuito exemplificativo capaz de dar luz a questões teóricas em
torno das culturas juvenis com expressão notável na música como aconteceu e
acontece com o punk ' justamente apelidado por Clark como a última subcultura
(2003).
Uma das questões que podemos retirar da realidade portuguesa, e que serve de
mote primeiro à discussão da teoria subcultural, prende-se com a data da
chegada e o contexto histórico de emergência do punk no nosso país. Com efeito,
as manifestações punkocorrem em Portugal, como já se referiu sucintamente, sob
o efeito de abertura da sociedade portuguesa pós-25 de Abril e não como
corolário da existência de uma clara reivindicação identitária dos filhos da
classe operária, tal como aconteceu em Inglaterra. Um dado importante e de
singularidade do punk português prende-se com o facto de ele próprio ter sido a
face mais visível das ritualizações cosmopolitas e artísticas das culturas
juvenis em Portugal na primeira metade dos anos 1980, pelo consumo de bens
simbólicos e estéticos, mas também pela produção de uma atmosfera artística e
urbana que cruzou a noite, a moda, o cinema, o vídeo, a música, as artes
plásticas, etc. Nesta altura, e sobretudo em Lisboa, eram imensos os seus
cruzamentos com a new wave e o pós-punk. Mais tarde, e por efeito da entrada de
Portugal na Comunidade Europeia em 1986, da liberalização da televisão e
eclosão da televisão por cabo e da generalização do uso da internet, atingimos
um pleno das manifestações juvenis ligadas ao punk. Nesta medida é importante
constatar que ao contrário da abordagem seminal de Hebdige (1979), não existia
nos primeiros punks portugueses um espírito de resistência classista, nem uma
homologia cultural clara.
A evolução do punk em Portugal operou-se indubitavelmente pelo aumento do
número de bandas e de registos fonográficos, sempre numa lógica de diversidade
e hibridismo estilístico e lírico com cruzamentos evidentes com o pós-punk e a
new wave. Certo é que nos anos 1980 o número de bandas era escasso e confinava-
se a Lisboa e ao Porto, ao passo que, como já demonstrado, os anos 1990
assistiram a uma disseminação das cenas punkpor toda a faixa litoral, urbana e
atlântica do nosso país (Guerra, 2014). Nesta diacronia e espacialização das
bandas, as desigualdades estruturais mantêm-se, correspondendo às desigualdades
e assimetrias da produção e reprodução cultural no nosso país. Caso importante,
e que aproxima a realidade portuguesa das teorias subculturais, é a estrutural
e persistente oposição do punkportuguês ao mainstream e à comodificação
(Marcus, 1989). Neste ponto, existe uma aproximação à resistência subcultural
dos anos 1970, não obstante podermos arriscar que essa resistência se deve em
muito à inexistência de estruturas e canais de produção capazes de sustentar a
cena punk portuguesa. A singularidade da cena punk portuguesa é ainda hoje
dinamizada pela vivacidade e defesa do underground. Assim, são raras e objeto
de intensas críticas as bandas punk que têm uma posição estabelecida na cena
musical portuguesa; o punk português nunca conheceu processos de
comercialização de massas, e permanece, passadas quase quatro décadas, numa
reivindicação objetiva e subjetiva de luta contra o sistema.
Por seu turno, a cena punkportuguesa parece também ir de encontro aos avanços
da teoria pós-subcultural, designadamente por se tratar de um caso importante
de hibridismo cultural vacilante entre o mimetismo e a recriação: nesse
percurso mais irresoluto entre ambos os polos, não cedendo ao mimetismo, nem à
recriação, o país apresenta hoje uma cena importante de punkmarcada por
diversos subgéneros, que coexistem em diferentes espaços geográficos, marcada
por muita contingência e transitoriedade. Na atualidade, continuam a surgir
bandas apoiadas em cenas locais nas zonas urbanas do país, com uma existência
mais ou menos efémera, com a realização de ensaios, com a organização de
concertos e de festivais muito pouco formalizados e estruturados. Por isso, não
deixa de ser relevante considerar que o universo punk português movimenta um
conjunto de atores que desempenham em simultâneo vários papéis dentro da cena,
neste sentido policêntrica: são músicos, são promotores, são editores, são fãs,
fazem fanzines, são managers, etc.
Quando abordamos os sentidos e significados do punk, é incontornável o ethos
DIY. Este marca, como em todas as cenas punk, as atividades levadas a cabo
dentro deste universo efunciona com particular intensidade no acionamento de
redes de familiaridade fortes e de interconhecimento mútuo entre os punks
portugueses, o que é auxiliado pela pequena dimensão do país. É esse capital
relacional informal que proporciona condições de perpetuação do ethosDIY,
traduzido no fornecimento e empréstimo de instrumentos, nos meios de
transporte, nas logísticas de luz e de som, nas salas ou nos espaços de
espetáculo, etc. Aqui, vemos emergir uma comunidade de interesse, de relação,
de cumplicidade, que aproxima o punk português da teoria subcultural.
Outrossim, também a assunção do punk como modo de vida total, incluindo a
estética mas também a ética, aproxima a cena portuguesa das abordagens de
Hebdige em 1979.
Em suma, a nossa abordagem demonstra a atualidade do punkenquanto feixe de
valores e apropriações diversas, mas confluentes, contraditando as aceções
primeiras de Hebdige (1979) em torno de uma lógica subcultural punk, definida
num sentido muito estrito (Thornton, 1990). Aliás, o próprio Hebdige admite que
hoje a abordagem subcultural teria de ser feita de forma diferente, referindo
que essa análise terá de superar as dicotomias cultura autêntica
versuscomercial, rua versus mercado, resistência versus incorporação, facto
(event) versus representação dos média, etc. (2012: 409). Este balanço de
Hebdige vai ao encontro do nosso objetivo neste artigo: demonstrar a influência
do tempo e do espaço na abordagem das culturas juvenis com especial enfoque
para a mais chocante delas, o punk. E não só o punk, mas o punk em Portugal '
contexto absolutamente diferente do berço anglo-saxónico (Guerra e Bennett,
2014).