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EuPTHUAp2182-74352014000100001

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National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN2182-7435
Year2014
Issue0001
Article number00001

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Trabalho, precariedade e rebeliões sociais INTRODUÇÃO Trabalho, precariedade e rebeliões sociais

Elísio Estanque* e Hermes Augusto Costa** Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal elisio.estanque@gmail.com hermes@fe.uc.pt

Como é sabido, o projeto da modernidade ocidental assentou, desde os seus primórdios, na estreita relação entre o trabalho assalariado e o sistema social mais geral. Ao longo de perto de três séculos as principais transformações históricas e conquistas civilizacionais partiram do mundo do trabalho, pelo que os avanços alcançados na economia, nas instituições e na construção do Estado de direito tiveram como principal fundamento e força transformadora as relações sociais sediadas na produção e o conflito capital/ trabalho. É necessário lembrar todo esse legado histórico para desenvolver uma abordagem atualizada e crítica do mundo do trabalho, identificando as suas contradições, novas e velhas, caracterizando os atuais contornos que vêm emergindo no mundo laboral, apontando os avanços e retrocessos no plano dos direitos e, com tudo isso, tentando compreender as tendências mais recentes que vêm ocorrendo nesta relação ' que permanece tensa e contraditória ' entre economia e sociedade, entre a esfera do trabalho e o sistema social e sociopolítico no seu conjunto.

É justamente à luz dessas preocupações que o presente volume daRevista Crítica de Ciências Sociaispretende lançar um olhar sociológico sobre o panorama atual das relações de trabalho e o mais recente ciclo de movimento sociais no contexto global, com especial atenção ao caso de Portugal e da região mediterrânica, de um lado, e ao caso do Brasil, de outro lado, procurando analisar as conexões entre coesão social e fragmentação das relações de trabalho. Os mais recentes processos de flexibilização e precarização das condições de trabalho, em especial na Europa, são interpretados como fatores que potenciaram o desencadear de revoltas e rebeliões sociais, embora estas, de um modo geral, transcendam a esfera específica do mundo do trabalho. Os textos reunidos neste número dão testemunho de diversos focos de tensão nos mercados de trabalho, evidenciam teórica e empiricamente formas de precariedade e conflitualidade laboral e abrem espaço para o entendimento da rebelião social como estratégia de reação social mais ampla.

Em primeiro lugar, trata-se de recordar algumas das teses opostas quanto ao lugar/ à centralidade do trabalho na sociedade, que estiveram na ordem do dia ao longo da última década (Toni, 2003; Costa, 2008; Estanque e Costa, 2012a; 2012b). Na linha de trabalhos anteriores, entendemos que foram precipitadas as análise que defenderam a tese do fim do trabalho ou mesmo o diagnóstico da fragmentação geral da sociedade salarial numa não classe de não trabalhadores/ as (André Gorz); isto, apesar de se reconhecer a menor importância do trabalho na definição da estruturação da identidade individual e a sua crescente dificuldade em fixar os laços sociais (Claus Offe; Jeremy Rifkin; Ulrich Beck; Dominique Méda; Richard Sennett). É verdade que o trabalho se tornou um bem cada vez mais escasso, mas isso não não lhe retirou importância, como até realçou o seu papel enquanto fator de afirmação da dignidade do trabalhador e da defesa dos direitos humanos. Mesmo considerando as virtualidades da sociedade informacional (Manuel Castells), torna-se necessário enfatizar, na linha da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o trabalho não é uma mercadoria e que não alternativa à civilização do trabalho, ainda que as suas formas se revelem cada vez mais instáveis e multifacetadas. Mas como vários académicos têm chamado a atenção, o trabalho permanece no centro dos combates sociais e da luta política atual. Importa por isso redescobrir e reforçar o seu papel enquanto cimento da sociedade, isto é, como espaço decisivo na defesa da coesão social e do exercício da cidadania, revitalizando os mecanismos de diálogo e os consensos por meio de um novo contrato social que consolide a democracia (Castel, 1998; Santos, 1998; Estanque e Costa, 2013).

Mas a ideia de precariedade enraizou-se fortemente, quer no discurso e nos estudos académicos, quer na vivência de práticas concretas ativistas dos atores do mercado de trabalho. É, pois, um facto inquestionável que o trabalho assalariado se tornou palco de individualismo negativo e de precariedade e que vem perdendo consistência, estabilidade e até dignidade. Ao longo da primeira década do século xxi as novas formas de trabalho converteram-se cada vez mais em rotas de sentido precarizante, quer em Portugal e na Europa, quer à escala global: recibos verdes (ou melhor, falsos recibos verdes), contratos a prazo, trabalho temporário, trabalho a tempo parcial, subcontratação, economia informal são apenas algumas das modalidades das novas morfologias do trabalho (Antunes, 2013) que, não raras vezes, desaguam no fenómeno do desemprego. É claro que os sistemas de relações laborais (as condições de trabalho, a legislação laboral, a contratação coletiva, etc.) não são uniformes entre os países da União Europeia (UE), mas em diversos países são identificáveis tendências de degradação que atingem com maior intensidade os segmentos mais pobres e vulneráveis, em particular os jovens e as mulheres. Por exemplo, no campo dos rendimentos do trabalho, os cortes entre os/as funcionários/as públicos/as das economias mais fragilizadas (Grécia, Irlanda, Portugal são alguns dos exemplos mais referidos no quadro da UE), associados a todo um pacote de medidas de liberalização e ajustamento em benefício do capital (e contra o trabalho), constituem um enorme recuo no campo dos direitos laborais e sociais (Estanque e Costa, 2012a; 2012b; Costa, 2012), intensificando-se a transferência de rendimentos do trabalho para o capital (Leiteet al., 2013).

Em face destas formas de degradação do trabalho assalariado, a contestação social manifesta-se nos dias de hoje sob uma diversidade de formas de ação coletiva presente em distintos quadrantes geográficos. No contexto europeu, é quase uma inevitabilidade associar o protesto coletivo às políticas de austeridade que têm produzido impactos desestruturantes sobre os mercados de trabalho e reforçado assimetrias nas relações laborais, aumentando a precariedade e a dependência de quem trabalha (e de quem não consegue um emprego). Mas também no contexto do Norte de África (por exemplo no Egito) e da América Latina (designadamente no Brasil) emergiram autênticos focos de rebelião social, clamando por direitos sociais, liberdade, transparência nas instituições e mais autenticidade na democracia política e social. Em todos esses enquadramentos estamos diante de um ciclo de protestos globais onde acaba por sobressair um retorno ao materialismo (Estanque, Costa e Soeiro, 2013), quer olhemos para os números elevados do desemprego, para os cortes nos salários e benefícios sociais, para o enfraquecimento das funções sociais do Estado, para o aumento do precariado ou para as ameaças à classe média (emergente ou em declínio).

É, justamente, sobre o precariado que se debruçam os dois contributos que abrem este número temático. Por um lado, Guy Standing, após uma classificação e tipificação do precariado enquanto classe em construção, advoga que a mesma incorpore um verdadeiro potencial transformador, o que implica uma luta pela redistribuição do acesso aos bens ou ativos fundamentais para uma vida boa numa sociedade assente na segurança socioeconómica, no controlo sobre o tempo, no usufruto de espaços de qualidade, conhecimento (ou instrução), saber financeiro e capital financeiro. Por outro lado, Ruy Braga considera o precariado como sinónimo de proletariadoprecarizado, que incorpora a fração da classe trabalhadora desqualificada ou semiqualificada e submetida a altas taxas de rotatividade no trabalho. Em concreto, analisa a formação do precariado pós- fordista na indústria docall centerno Brasil (por sinal o setor que mais criou postos formais de trabalho nos anos 2000), dando conta da relação entre a automobilização dos trabalhadores, a ação dos sindicatos e as políticas públicas federais Num segundo momento, os textos de Elísio Estanque, Iside Gjergji e de Roberto Véras acentuam a componente de rebelião social associada ao mundo do trabalho.

Elísio Estanque, desde logo, discute a relação entre precariedade e movimentos sociais em Portugal e no Brasil no período compreendido entre 2011 e 2013, elucidando tendências, similitudes e contrastes entre essas duas realidades.

Num registo ensaístico, argumenta-se que na base desses movimentos prevalece um radicalismo ou uma pulsão de classe média. Discute-se e clarifica-se o conceito de classe média ' que aqui é concebido sob uma nova perspetiva ' e apontam-se as segmentações internas desta categoria e o potencial dos segmentos emergentes na contestação do atualstatu quoou na denúncia dos programas de austeridade que vêm barrando as expectativas e ambições das camadas emergentes de uma juventude escolarizada, como vínculos claros à classe média.

Por outro lado, Iside Gjergji procura destacar o papel dos protestos de natureza laboral (ou, se quisermos, as raízes socioeconómicas da revolta egípcia de 2011), que normalmente é secundarizado por parte dos estudiosos da primavera árabe, que tendem a designar a revolução egípcia como uma revolução-Facebook, quer dizer, um fenómeno sociopolítico instigado (sobretudo através das redes sociais) essencialmente por jovens da classe média e com um nível elevado de instrução. Argumenta-se, no entanto, que no cerne da revolta egípcia estão fatores socioeconómicos, pelo que se torna crucial identificar alguns passos fundamentais no sentido de se considerar que o crescente movimento operário egípcio é um elemento primacial do processo revolucionário a longo prazo. Por outro lado ainda, Roberto Véras de Oliveira, tomando como referência o contexto brasileiro, analisa os conflitos e as negociações envolvendo trabalhadores, sindicatos, empresários, governo, justiça, Ministério Público do Trabalho, entre outros atores, estabelecidos durante a construção das Usinas Hidroelétricas de Jirau e Santo Antônio, situadas no Norte do país.

Ao identificar as posições dos referidos atores, propõe um conjunto de reflexões sobre as potencialidades e os limites da atividade sindical.

A fechar este número temático, as duas contribuições finais associam a ideia do protesto às políticas de austeridade, uma realidade muito presente no contexto europeu. Por um lado, Maria da Paz Campos Lima e Antonio Martin Artiles começam por fornecer um enquadramento da literatura sobre novíssimos movimentos sociaisversusabordagens sobre as relações laborais e sindicalismo, quer identificando os seus (des)encontros e as suas diferentes lógicas, quer chamando a atenção para a criação de condições (no âmbito dos ciclos de protesto europeus) para uma articulação entre preocupações materialistas e reivindicações metapolíticas. A par com esta análise macrossociológica centrada na ação coletiva, os autores analisam, no plano micro, a participação dos indivíduos nas manifestações de protesto, com base no Inquérito Social Europeu de 2012. Ao fazê-lo, destacam tendências, perfis, motivações e fatores explicativos dessa participação individual, de modo a aferirem em que medida existe um paralelismo com as condições e motivações associadas às formas de ação coletiva. Por outro lado, Hermes Augusto Costa, Hugo Dias e José Soeiro analisam o fenómeno da greve em contexto de austeridade. Além de proporem olhares sociológicos sobre a greve, relacionados com as noções de democracia e regulação sociojurídica, com a(s) ideologia(s) e tensões entre ação coletiva e individual, com as escalas e controvérsias ou ainda com as temporalidades e os resultados, assinalam a expressão quantitativa das greves em Portugal. O estudo de caso que analisam retrata uma greve ousada em contexto de austeridade reforçada, num setor específico e precário ' trabalhadores da Linha Saúde 24 ', o que lhes permite avaliar quer os desafios que se colocam à ação sindical, quer as novas formas de organização do conflito social.


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