Consolidação da paz numa perspetiva crítica: O caso de Timor-Leste
Os processos de intervenção externa em contextos de violência e/ou pós-
violência têm sido analisados sob perspetivas diferenciadas. Em termos
teóricos, as abordagens mais tradicionais de resolução de conflitos, centradas
em modelos problem-solvinge com uma componente neoliberal e institucional
forte, assente em lógicas top-down, têm-se confrontado com as perspetivas mais
críticas, numa lógica mais interpretativa e de questionamento das bases do
modelo neoliberal, dando maior atenção às práticas locais numa lógica de
articulação e diferenciação entre o tradicional top-downe o menos consensual
bottom-up. A intervenção de organizações internacionais, como as Nações Unidas
(NU), ou mesmo organizações de caráter regional, que se associam ao modelo
onusiano, em que encontram legitimidade, tem permitido a perpetuação de um
modelo de intervenção muito centrado no desenvolvimento de projetos a nível
institucional, nem sempre dando a devida atenção a outras áreas de atuação.
Esta abordagem favorece a promoção de uma paz institucional', que não integra
muitas vezes como dimensões centrais da sua consolidação e sustentabilidade o
desenvolvimento de cultura e práticas políticas democráticas, por exemplo, em
contextos onde estas são muitas vezes inexistentes. Além do mais, esta
abordagem à paz descura em grande medida a articulação com o nível local,
limitando-a a contactos com as elites, que muitas vez traduzem a lógica do
mandato e acabam por contribuir para a reprodução de práticas sociais ao nível
dessas elites numa lógica imitativa, evitando desse modo o desenvolvimento de
dinâmicas integradas entre atores e práticas externas e contextos e agentes
locais, informadas por dinâmicas de inclusão e cariz emancipatório.
Partindo do debate sobre intervencionismo e em particular discutindo a
abordagem das Nações Unidas em termos de manutenção e construção da paz, este
artigo introdutório ao número especial sobre Consolidação da paz em Timor-
Leste' adota uma leitura crítica de ações e reações, discurso e prática, bem
como de terminologias adotadas e praticadas, sem consensualização quanto a
conteúdos. O artigo analisa em particular a intervenção das Nações Unidas em
Timor-Leste, procurando identificar os principais contributos e limites da
organização na promoção da paz, segurança e estabilidade no país como contexto
dos números que se seguem. O texto conclui com o entendimento de que é
necessário procurar equilíbrios na gestão destes processos complexos de
intervenção, partindo do reconhecimento do contributo que estas presenças
externas pode efetivamente significar em termos de consolidação da paz, embora
questionando abordagens, e sugerindo uma melhor articulação entre instrumentos
e práticas na operacionalização de mandatos.
Entendendo que a doutrina onusiana em matéria de intervenção evoluiu
consideravelmente nos últimos anos no sentido de incluir dimensões menos
tradicionais na agenda, como o reconhecimento de que práticas de consolidação
da paz devem acompanhar os instrumentos de manutenção da mesma numa lógica
integrada; de que o envolvimento da dimensão local nas suas diversas facetas
deve ser tido em especial consideração, evitando sentimentos de alienação e
promovendo corresponsabilização nos processos (ver Tschirgi, neste volume); e
de que apesar dos muitos instrumentos à disposição das NU nem sempre a sua
utilização revela uma dinâmica pragmática de resposta às necessidades efetivas,
este texto analisa o caso específico de Timor-Leste como ilustrativo de alguns
destes desajustes e de como, através de posturas de maior ou menor resistência
e acomodação, os contextos locais refletem esta necessidade de uma resposta
integrada para a construção de uma paz também ela integrada.
Intervenção externa: manutenção e construção da paz
Os debates em torno do intervencionismo global têm ganho novo dinamismo face
aos desafios crescentes que surgem resultantes de novos contextos, de novos
atores, e mesmo de novas práticas doutrinárias. Apesar da abrangência que estes
debates têm assumido, e não pretendendo uma identificação exaustiva dos mesmos,
assinalamos aqui três ordens de ideias que nos parecem fundamentais para esta
reflexão. Primeiro, em termos teóricos, e como referido acima, as abordagens
mais tradicionais de resolução de conflitos, assentes em pressupostos
neoliberais como a matriz dominante caraterizadora das intervenções e face à
qual os resultados devem ser mensurados, bem como prosseguindo pressupostos
teóricos do realismo onde as dinâmicas de poder dominam os debates (Doyle e
Sambanis, 2006), têm sido desafiadas por perspetivas mais críticas, assentes em
quadros de análise mais inclusivos e que interpretam lógicas de poder não
apenas numa ótica de soma nula e de ganhos relativos no posicionamento
internacional, mas nas suas implicações mais profundas ao nível das
configurações sociais e políticas em ambos os planos interno e externo (ver
Tschirgi, neste volume). Quadros de emancipação, políticas de equidade,
práticas inclusivas e abordagens estruturais às questões centrais são algumas
das linhas diferenciadoras destas abordagens. O distanciamento do quadro
neoliberal dominante é, deste modo, prosseguido, trazendo a discussão a
necessidade de reformulação de matrizes orientadoras dos processos de
intervenção, para que lógicas de dominação deem lugar a lógicas de inclusão, e
políticas de imposição deem lugar a políticas emancipatórias. Este quadro
normativo reflete-se no debate sobre estratégias marcadamente top-down, cujo
centro de atuação são os decisores e as elites políticas, e outras de natureza
bottom-up, incidindo essencialmente em atores locais e no seu contributo para
dinâmicas de construção da paz (Paris, 1997; Bellamy e Williams, 2004; Paris e
Sisk, 2009), entendendo estes como agentes por excelência destes processos dado
o historial associado à emergência da violência, às formas tradicionais de
lidar com esta e a um conhecimento mais profundo de procedimentos e práticas
relativos a especificidades locais em matéria diversa ' política, económica,
social e cultural ', que são cruciais a uma resposta mais adequada às
necessidades, bem como às expetativas.
Segundo, em termos concetuais, os debates têm apontado para o significado dos
rótulos' associados às intervenções, classificando-as, entre outros, como de
manutenção da paz, construção da paz, consolidação da paz, promoção da paz,
quanto aos seus objetivos; definindo esta paz como positiva ou negativa por
relação à forma como estes objetivos são operacionalizados; classificando os
contextos da intervenção como falhados ou frágeis; e medindo o sucesso das
intervenções através de métricas diferenciadas. O debate concetual é intenso,
havendo dissensão sobre rótulos' e mais ainda relativamente aos conteúdos
associados às diferentes rotulagens (Fortna e Howard, 2008; Cottey, 2008;
Woodhouse e Ramsbotham, 2005; O'Neill e Rees, 2005; Bures, 2007; e ainda
Tschirgi, neste volume). Esta falta de consensualização na linguagem utilizada,
quer nos meios académicos quer nos meios políticos, tem implicações sérias em
termos de aplicação prática no terreno e de como os meios devem ser
operacionalizados na busca dos fins definidos. As NU têm feito um esforço
crescente de definição concetual, visível em particular desde a publicação do
documento Uma agenda para a paz(Boutros-Ghali, 1992), de modo a clarificar a
terminologia usada, embora nem sempre seja fácil encontrar consensos a nível
político. De qualquer modo, por exemplo o Relatório Brahimi (NU, 2000)
estabelece de forma clara a necessidade de adaptação de mandatos de intervenção
externa para além dos alinhamentos políticos tradicionais, incluindo segurança
humana, medidas de consolidação de confiança, acordos de partilha de poder,
apoio eleitoral, fortalecimento do Estado de direito e desenvolvimento
económico e social (Ramsbotham et al., 2005; Doyle e Sambanis, 2006; Duffield e
Wadell, 2004). Estes princípios são consolidados com a Doutrina Capstone (NU,
2008). Apesar de uma agenda ainda muito centrada numa paz institucional, este
modelo de leitura mais inclusivo tem sido fundamental na readaptação
doutrinária e em termos de práticas das Nações Unidas. Documentos mais
recentes, como o relatório do Secretário-Geral sobre Peacebuilding in the
aftermath of conflict (NU, 2009) ou o relatório do Peacebuilding Support Office
sobre Operationalizing National Ownership (Machold e Donais, 2011), são
demonstrativos da mudança gradual que tem vindo a ser implementada. Além de
refletirem o quadro referencial de intervenção das Nações Unidas, estes
documentos assinalam a necessidade de reconhecer as especificidades dos
contextos locais de intervenção, a responsabilização e ownership dos processos
de intervenção a nível local e o diálogo inclusivo, como partes integrantes de
um todo complexo que resulta dos processos de intervenção externa.
E por fim, numa abordagem mais empírica, as políticas e motivações subjacentes
a todo o processo complexo de desenho e tomada de decisão, as burocracias
envolvidas, os interesses de determinados Estados ou partes interessadas, a
autonomia, a doutrina e a implementação no terreno de políticas e práticas têm
também sido objeto de estudo. A interligação entre a doutrina de intervenção e
a operacionalização da mesma em contextos diferenciados tem conferido às
análises mais teóricas e concetuais uma dimensão concreta de aplicação, que tem
contribuído para o enriquecimento dos debates (ver Bellamy, neste volume). A
própria evolução doutrinária no quadro das Nações Unidas reflete lições
aprendidas e procura incorporar a necessidade de políticas e práticas mais
estruturais nas suas abordagens. No entanto, e apesar desta evolução em matéria
doutrinária merecer destaque, não deve ser esquecido que da doutrina à prática
há ainda um longo caminho a percorrer, como o caso de Timor-Leste ajudará aqui
a demonstrar.
Os processos de construção e consolidação da paz são, assim, processos imbuídos
de grande complexidade, seja relativamente aos atores que envolvem, seja nos
objetivos que definem, seja quanto aos instrumentos usados, seja ainda na
interligação entre dinâmicas locais, nacionais e mesmo regionais ou
internacionais. Neste número especial os autores partilham de uma abordagem
crítica ao intervencionismo, questionando as formas mais tradicionais de
resolução de conflitos pela exclusão de dinâmicas associadas a discurso e
significado, que são aqui entendidas como fundamentais na compreensão das
dimensões mais profundas destes processos. Também é aqui claro que manutenção
da paz e construção da paz são conceitos interdependentes e mutuamente
constitutivos. Apesar de a manutenção da paz poder assumir contornos precisos
em termos do que um mandato possa definir, a inclusão de vetores associados à
construção da paz é cada vez mais presença na formulação dos mesmos, seguindo
um entendimento já refletido a nível doutrinal, de que são necessárias
respostas multidimensionais a problemas e desafios também eles com cariz
diverso.
Da teoria à prática: as Nações Unidas em Timor-Leste1
Esta secção analisa brevemente o período compreendido entre o Referendo de 1999
e a restauração da independência de Timor-Leste em 2002, e ainda entre esta e a
saída das Nações Unidas do país em dezembro de 2012, diminuindo
consideravelmente a sua presença a um gabinete político, com uma agenda
orientada para o desenvolvimento social e económico e discutindo o contexto
geral no âmbito do qual os diferentes contributos deste número especial se
inserem. Face aos debates e desafios acima expostos, pretende-se com este
mapeamento perceber as implicações da intervenção externa das Nações Unidas em
Timor-Leste, que tipo de paz foi promovido ao longo da presença das diferentes
missões e que lições podem ser retiradas de um processo de intervenção
complexo, mas lido genericamente como bem-sucedido.
O Referendo que decidiu o futuro de Timor-Leste após anos de ocupação teve
lugar em agosto de 1999. As Nações Unidas apoiaram a consulta popular através
da United Nations Mission in East Timor (UNAMET), cuja tarefa principal era
assegurar um contexto político favorável ao livre exercício de voto, de forma
participada, transparente e informada (NU 1999a, 1999b). De um total de 98% de
votos registados, 78,5% foram favoráveis à independência (Governo de Timor-
Leste, s/d). No entanto, o anúncio dos resultados gerou tensões que se
intensificaram, gerando violência liderada por grupos de milícias pró-Indonésia
que contestavam os resultados. A extensão do mandato da UNAMET até 30 de
novembro de 1999 e o reforço deste face à necessidade de resposta premente
perante a instabilidade crescente revelaram-se limitados e acabaram por forçar
a retirada da missão para a Austrália. A degradação das condições no território
era clara e a violência sobrepôs-se à agenda internacional de apoiar a
independência de Timor-Leste.
Como resposta à violência, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU)
aprovou o envio de uma força internacional liderada pela Austrália '
International Force for East Timor (INTERFET) ' que inicia a sua intervenção a
20 de setembro de 1999 (NU, 1999c). A atuação da INTERFET e a decisão da
Assembleia Consultiva na Indonésia de reconhecimento dos resultados do
referendo contribuíram para a gradual estabilização da situação. É neste
contexto de viragem que a United Nations Transitional Administration in East
Timor (UNTAET) chega ao território. Na bagagem, um mandato denso: criação das
instituições do Estado timorense e de condições para que este assuma a
responsabilidade de condução do território à independência. A UNTAET tem
mandato pleno em termos dos poderes executivo, legislativo e judicial na
administração do território, o que lhe confere uma enorme responsabilidade no
processo de consolidação de estabilidade e de construção do Estado.
A UNTAET promoveu a criação de instituições de governação centralizadas, a
serem legitimadas através da realização de eleições e de acordo com princípios
de Estado de direito e respeito por direitos e liberdades fundamentais, em
linha com o modelo neoliberal onusiano. Apesar da densidade das tarefas a
desenvolver, o mandato inicial da UNTAET foi estabelecido pelo período de um
ano apenas, acabando por ser estendido durante cerca de dois anos e meio. Neste
período, a estrutura política na base do atual Estado timorense foi criada
(UNTAET, 2002; ver também Tansey, 2009; DeShaw Rae, 2009; Smith, 2003;
Beauvais, 2001; e ainda Matsuno, neste volume). No processo, o envolvimento dos
timorenses deve ser sublinhado, bem como a dinâmica de timorização' que foi
ganhando espaço, e que visava a transferência gradual de competências para os
timorenses (entrevista a Ramos-Horta, 2012). O envolvimento local no desenho de
algumas estruturas políticas e na articulação com práticas informais a nível
judicial, por exemplo, revelou-se fundamental na gestão de equilíbrios por
vezes precários num contexto ainda frágil. Demonstrou ainda que a intervenção
não tem de ser absolutamente top-down, acautelando maior inclusão da dimensão
local na definição de processos estruturantes.
Entendendo este como um mandato difícil num contexto também ele difícil, é
bastante consensual o reconhecimento de que a UNTAET desempenhou um papel
fundamental na criação do Estado timorense (para mais informação sobre a
construção do Estado e da nação timorenses, ver Mendes, neste volume). A
coincidência das agendas das NU e dos governantes timorenses contribuiu para
este resultado positivo. No entanto, não deve deixar de ser referido o facto de
a atenção das NU estar essencialmente voltada para as necessidades do Estado na
sua dimensão institucional, promovendo uma paz como governação', ou seja, uma
paz essencialmente institucional e técnica. Aqui reside uma das críticas mais
importantes à atuação das NU ao descurar o desenvolvimento de uma paz
estrutural, significando uma paz multidimensional e inclusiva. Invisibilizar
dinâmicas locais pode levar a formas de resistência, que mesmo que controladas
em determinados contextos, podem a seu tempo revelar-se desestabilizadoras.
Assim tem acontecido em diferentes cenários de intervenção. Assim aconteceu
também em Timor-Leste, apesar de a apropriação de várias dimensões do processo
a nível local ter permitido uma excecionalidade especial neste caso em
particular.
A nova Constituição foi aprovada em março de 2002, o treino da nova polícia e
das Forças Armadas foi iniciado, os refugiados começaram a regressar às suas
casas e Xanana Gusmão foi eleito o primeiro Presidente da República de Timor-
Leste, a 14 de abril, abrindo assim caminho à independência formal ' e a
consequente passagem de poderes e competências das NU para as autoridades
timorenses ', no dia 20 de maio de 2002. A restauração da independência
significa um novo contexto onde a presença das NU vai ser ajustada, com
especial enfoque no processo de transição a nível da administração e das
instituições de segurança. A nova missão das NU que substitui a administração
transitória, a United Nations Mission of Support in East Timor (UNMISET),
acabou por se revelar limitada no exercício de capacitação local,
essencialmente ao nível da formação de recursos humanos. Uma leitura distante
da situação nas suas dimensões a nível estrutural, particularmente em termos
das dificuldades económicas e sociais sentidas e das tensões a nível político,
levou à decisão de alteração do formato da presença das NU em 2005, reduzindo-
a para o United Nations Office in East Timor (UNOTIL) (NU, 2005), que prossegue
este objetivo de capacitação como central. Contudo, os problemas de violência
que surgiram em finais de 2006, envolvendo forças de segurança e revelando
incapacidade de resolução de problemas estruturais de forma preventiva (ver
Matsuno, neste volume), forçaram uma intervenção conjunta de forças
australianas, portuguesas, malaias e neozelandesas. Após a estabilização da
situação, o então Primeiro-Ministro José Ramos-Horta solicita às NU o envio de
uma missão integrada (NU, 2006a), demonstrando o entendimento de que a situação
exigia uma resposta mais completa que ligasse efetivamente os vários elementos
da intervenção através de medidas coordenadas entre as agências das NU, com
outras representações externas e com as autoridades locais, e consolidadas na
forma de atuação, com linhas de prioridade claramente identificadas.
A United Nations Integrated Mission in Timor-Leste (UNMIT) inicia funções em
agosto de 2006 (NU, 2006b) e permanece no país até dezembro de 2012. As suas
atividades incluíam assegurar a ordem pública, reforçar o funcionamento das
instituições do Estado e treinar as Forças de Defesa e da Polícia Nacional. Com
a aproximação de eleições parlamentares em 2007, a questão eleitoral tornou-se
também central na agenda. Durante dois anos viveu-se um período político e
social conturbado que incluiu as tentativas de assassinato do então Primeiro-
Ministro José Ramos-Horta e do Presidente Xanana Gusmão. Mas gradualmente a
normalização retornou e o processo de consolidação institucional foi
prosseguido num contexto local estabilizado. As eleições de 2012, parlamentares
e presidenciais, decorreram de acordo com os padrões internacionalmente
definidos para estes processos, e desde o período de violência registado em
2008 não se verificaram novos incidentes de violência generalizada nem
localizada. A UNMIT concluiu o seu mandato em dezembro de 2012, e foi
substituída por uma presença política diminuída, com um enfoque claro em
questões económicas e de desenvolvimento. Estas foram identificadas como parte
das questões fundamentais a dar resposta para a consolidação da paz, que devem
ser enquadradas numa agenda mais inclusiva e de promoção de paz estrutural. De
facto, como afirma Carothers (apud Brown, 2011: 21), é extraordinariamente
reducionista, mesmo mecanicamente irrespirável' considerar que a comunidade
política de um estado ou nação podem ser simplesmente identificados como as
instituições-chave do governo, por mais importantes que estas sejam.
O modelo institucional de orientação neoliberal, seguindo uma lógica top-down,
onde as decisões são tomadas de acordo com linhas tecnicistas de governação e,
em muitos casos, de forma distanciada das realidades locais, contribuiu para os
limites identificados. As dinâmicas em Timor-Leste revelaram uma aplicação
diferenciada do modelo e mesmo uma apropriação local dos processos, revertendo
em alguns momentos a lógica top-down, e permitindo que esta assumisse uma
perspetiva bottom-up. Talvez um dos exemplos mais significativos tenha sido o
processo de adoção da Constituição e o envolvimento ativo dos timorenses no
mesmo através de consultas à população a nível distrital e de ajustes, mesmo
que limitados, ao texto constitucional decorrentes destas. Além do mais, o
sistema de governo inicialmente proposto pelas Nações Unidas, o modelo
presidencialista, acabou por ser redefinido no sentido de evitar que as
lideranças fortes herdadas do período da resistência se pudessem tornar em
elementos que obstaculizassem os processos democráticos. A proposta timorense,
que hoje vigora no país, foi a de um sistema semipresidencialista, acautelando
a gestão necessária de diferenciais em contextos de democracia governativa.
Apesar de dificuldades na operacionalização de uma abordagem mais inclusiva das
realidades locais e de maior partilha de responsabilidades, no caso de Timor-
Leste, a presença ativa dos timorenses ao longo do processo foi fundamental no
sentido de assegurar a inclusão de especificidades entendidas como essenciais à
articulação entre a presença externa e o desenvolvimento interno do próprio
Estado (Freire, no prelo).
Relativamente à paz técnica resultante do enfoque institucional subjacente à
atuação das Nações Unidas nas suas diversas missões, a UNMIT foi a missão que
melhor tentou responder a este desafio, incluindo na sua atuação elementos
claros de construção da paz. No entanto, ficou ainda aquém em termos dos
objetivos de capacitação de recursos humanos, em particular, o que constitui
nos dias de hoje um dos desafios centrais à consolidação do Estado. Este
enfoque nas instituições não permitiu uma abordagem estrutural à paz, incluindo
a dimensão humana como central a todos estes processos. Após a saída da UNMIT
em dezembro de 2012, a atual presença mais reduzida, mas também mais específica
nos seus objetivos, de um Coordenador Residente das Nações Unidas para assuntos
económicos e de desenvolvimento, é muito significativa neste contexto.
Demonstra o reconhecimento e a resposta aos pedidos de apoio por parte das
autoridades timorenses em matéria de capacitação humana e de infraestruturas de
base, muito necessárias ao desenvolvimento global do país. O legado da paz
técnica parece, deste modo, encontrar abertura para uma maior consolidação de
processos estruturais inclusivos, nomeadamente a inserção de dinâmicas locais
informais em lógicas formais institucionalizadas. Esta imersão permite que os
contornos de uma paz estrutural possam efetivamente ser delineados.
Relativamente à questão fundamental da sustentabilidade da paz, a
dimensionalidade da mesma assume centralidade, numa perspetiva institucional
que é necessária, mas inclusiva em termos de capacitação e respeito por
especificidades associadas à realidade local. De notar a questão temporal aqui
associada, e que de facto estas são dinâmicas que levam tempo a consolidar-se,
devendo ser realçado o percurso e as opções feitas como indicadores positivos
no sentido de promoção da paz e estabilidade em Timor-Leste.
Para além do modelo onusiano: modelos combinados ou híbridos
Esta reflexão permite-nos avançar para além do modelo onusiano de construção de
paz na busca de alternativas complementares e mais inclusivas. A manutenção e a
consolidação da paz em Timor-Leste resultante da presença das NU foram
fundamentais na estabilização da situação de segurança, diminuindo a violência
sistematizada, e na construção institucional do Estado, permitindo o
funcionamento do aparelho administrativo nas suas três competências
fundamentais. Mas como analisado, esta traduz-se numa paz técnica e
institucional que não consegue abarcar a multidimensionalidade dos desafios a
nível local. Neste quadro, e apesar dos esforços a nível doutrinário no sentido
de uma maior articulação entre intervenções e contextos internos, incluindo a
dimensão local na sua essência, isto é, tradições e costumes, surgiram
propostas de modelos combinados ou híbridos (Mac Ginty, 2010; Richmond, 2011;
Freire e Lopes, 2013) que procuram enfatizar a relevância das dinâmicas locais
nestes processos (ver neste volume os artigos de Brown; Silva; Pogodda). Estes
autores entendem que processos mais inclusivos poderão ajudar a diminuir
perceções de alienação e imposição externa e, dessa forma, reforçar lógicas de
legitimidade e reconhecimento.
A presença das NU em Timor-Leste permite refletir sobre dois pontos principais:
primeiro, tratou-se de uma presença diversa com alguma dificuldade de resposta
em momentos específicos, e uma capacidade de articulação com a liderança
timorense que se revelou positiva no processo, apesar de ter enfrentado muitos
desafios. Segundo, a questão da capacitação local que tem sido referida como
uma das grandes críticas à presença das NU, que nunca conseguiram responder
efetivamente a este desafio, permanece como linha de base para a formulação de
estratégias inclusivas, para a qual a concentração num modelo de paz técnica
aponta os limites, abrindo ao mesmo tempo novas perspetivas de interpretação da
paz e da sua consubstanciação em termos concetuais e no terreno. A retirada da
UNMIT permitiu uma alteração muito clara na linguagem e no discurso político
timorense, que se assume de forma muito explícita como Estado independente e
autónomo, estabilizado e com uma estratégia de crescimento e consolidação
voltada para o futuro. Esta imagem é importante em termos das dinâmicas de
integração regional e de afirmação de Timor-Leste no plano regional e
internacional, visível por exemplo na candidatura do país à Association of
Southeast Asian Nations(ASEAN), no assumir da presidência rotativa da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) no verão de 2014, ou mesmo no
seu estatuto simultâneo de Estado recetor e doador de ajuda pública ao
desenvolvimento ' relativamente à Guiné-Bissau e a São Tomé e Príncipe, por
exemplo. De notar o percurso que o Estado timorense fez em pouco mais de uma
década em termos da sua consolidação a nível interno e no plano externo, e para
a qual a presença das NU, em diferentes formatos e com capacidade de resposta
diferenciada, contribuiu, apesar das dificuldades e dos desafios. A articulação
de modelos de paz institucionais com modelos de paz centrados em elementos
estruturais onde o indivíduo enquanto agente é o ator central, permite o
desenvolvimento de uma paz inclusiva e estruturalmente enraizada. Esta
combinação alternativa de modelos de intervenção parece melhor contribuir para
a sustentabilidade da paz, recentrando a intervenção das NU numa agenda mais
inclusiva.
Organização do número temático
O presente número temático reflete sobre estas questões centrais à manutenção e
construção da paz, aos modelos que têm informado estes processos e a possíveis
respostas alternativas, abrindo novas vias de leitura ao nível de políticas e
práticas. Organizado numa lógica de especialização, parte de contributos que
analisam o intervencionismo em diferentes dimensões e formatos, para se centrar
nas NU e na sua atuação em matéria de intervenção, particularizando depois as
análises ao caso específico de Timor-Leste. Esta grelha de leitura permite uma
análise das políticas e práticas do intervencionismo nas suas várias dimensões,
questionando processos e avançando novas possibilidades em termos de atuação,
assim como de articulação e definição de políticas. Necla Tschirgi discute os
vários entendimentos e abordagens de construção da paz na bibliografia de
referência, onde o debate entre as dimensões interna e externa destes mesmos
entendimentos e abordagens se reflete nas práticas, ou seja, nos esforços que
são desenvolvidos como resposta a situações de pós-violência armada. Alex J.
Bellamy foca-se na resposta a crises no quadro do princípio da responsabilidade
de proteger como um mecanismo que tem permitido delinear as bases de um regime
de proteção internacional nestes contextos. Apesar das críticas ao princípio
que os casos da Líbia e da Síria sugeriram, o desenvolvimento de um regime de
proteção parece estar em curso. Este assenta em pressupostos jurídicos e
morais, em novas políticas e práticas de proteção que o Conselho de Segurança
tem vindo a definir e adotar, e numa postura crescentemente mais comprometida
do Conselho de Segurança com estas matérias, como analisado no artigo.
Nuno Canas Mendes faz uma genealogia do debate em torno da viabilidade do
Estado timorense, desde meados da década de 1970 até ao final da presença das
Nações Unidas em 2012. O texto contextualiza os debates no contexto histórico
específico em que estes se inserem, procurando identificar o posicionamento dos
diferentes atores, bem como as suas motivações na construção do Estado
timorense. Deste modo, o discurso que acompanha o processo de construção do
Estado e da nação é objeto de estudo, permitindo a discussão dos desafios e
oportunidades que lhe estão associados neste quadro temporal alargado,
contrapondo a agenda política do período da ocupação à agenda política dos
atores externos num quadro de intervenção, bem como à agenda interna pós-
restauração da independência de Timor-Leste. Aplicando um quadro de análise
centrado nos processos de construção democrática, o artigo de Akihisa Matsuno
centra-se no mandato da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-
Leste e de que modo a sua abordagem focada na consolidação institucional
permitiu brechas na construção social e política de Timor-Leste. Deste modo, a
análise do legado da missão na sua dimensão democrática e de promoção de
diálogo político e social é confrontada com a crise de 2006, onde os limites
desta dimensão na construção do Estado timorense se revelam amplos e contribuem
para a escalada de violência, dada a limitação em termos de mecanismos de
consensualização política para ultrapassar as tensões que emergiram.
Numa abordagem mais específica às problemáticas em estudo, M. Anne Brown remete
para a centralidade da dimensão local na construção do Estado timorense,
sublinhando a relevância do encontro entre processos de construção do Estado de
natureza liberal institucional com formas locais de organização. O artigo
investiga as lógicas diferenciadas que acabam por gerar desafios múltiplos
associados às relações entre membros de uma mesma comunidade, decisores e
instituições, refletindo espaços de partilha e de silêncio, bem como dinâmicas
visíveis e invisíveis de reforço de poder ou de contrapoder, que ora limitam,
ora contribuem para o desenvolvimento de processos mais inclusivos, assegurando
participação alargada. Kelly Silva centra o seu trabalho nos complexos locais
de governação na formação do Estado timorense, analisando práticas locais, como
o tara bandu, e dinâmicas de estruturação do poder local, no sentido de
perceber de que modo lógicas de reconhecimento, incorporação, pacificação e
monopolização se revelam fundamentais e estruturantes ao processo. E Sandra
Pogodda analisa de que modo as Nações Unidas procuraram incluir nos seus
programas de desenvolvimento aspetos culturais locais, identificando tensões
face à própria cultura das Nações Unidas e aos procedimentos burocratizados de
governação económica. O (des)ajustamento entre entendimentos face ao local e
seus significados e a definição das regras de envolvimento são objeto de
análise, como representando dois lados de uma questão de equilíbrios delicados.
Por fim, este volume integra ainda uma entrevista a Roque Rodrigues sobre o
processo de construção e consolidação da paz em Timor-Leste, incluindo os
desafios que permanecem na agenda e nas ações e refletindo sobre a contribuição
de Portugal para a sustentabilidade da paz em Timor-Leste.