A representação do migrante clandestino no cinema contemporâneo: Efeitos e
cenas de fronteira
Sabe-se que um certo cinema contemporâneo se tem apoderado da figura do
migrante clandestino nas sociedades ocidentais, a ponto de quase originar um
subgénero (Sotinel, 2009; Mandelbaum e Sotinel, 2011; Mandelbaum e Ridet,
2011). Qualquer que seja a sua origem, o migrante define-se neste cinema como
ser fronteiriço, subordinado a múltiplos efeitos de fronteiras. Como o veremos
mais à frente, estas não correspondem aos limites entre Estados ou às
fronteiras externas da União Europeia. A fronteira que surge nestes filmes não
está ligada a um contexto geográfico determinado por postes ou marcos, aparece
antes como delimitação entre o cidadão dotado de uma existência legal e o
sujeito desprovido de qualquer existência oficial. Este artigo trata justamente
da natureza da representação da fronteira em alguns filmes contemporâneos.1
Esta questão da representação leva-nos a refletir sobre a natureza do tipo de
análise utilizada. Se um filme de ficção, como um romance aliás, se inscreve
numa sociedade determinada, se é determinado, em parte, por esta sociedade,
seria errado considerá-lo um mero reflexo do social e analisá-lo
consequentemente como um documento igual a tantos outros. Não se trata de
estudar as configurações estéticas e de verificar posteriormente como estas
dizem o real, pelo contrário, trata-se de perceber como a configuração estética
se articula com uma questão social essencial, como, por exemplo, uma escala de
plano ou a escolha de um determinado tipo de máquina de filmar traduzem algo do
contexto social de referência.
É de relevo também, por um lado, a focalização quase exclusiva na figura do
migrante clandestino e, por outro lado, a opção pela ficção e não pelo
documentário. De facto, o migrante clandestino está longe de ser representativo
de todo o fenómeno migratório. Como aponta o Relatório de Desenvolvimento
Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) dedicado às
Migrações (2009), trata-se de um fenómeno complexo caracterizado pela
heterogeneidade, diversidade e dificuldade em agregar uma multiplicidade de
experiências sob o único conceito de migração. No mesmo relatório, a migração
clandestina constitui uma categoria entre várias, a par de outras como a
migração económica, a migração resultante de um conflito, etc. No entanto, como
evidencia o relatório em vários momentos, trata-se igualmente da migração de
mais difícil abordagem (a clandestinidade da atividade explica a falta de dados
fiáveis, a dificuldade de acesso às vítimas, assim como a dificuldade em
distinguir certos atos voluntários de outros forçados) (PNUD, 2009: 23, 73-
75).2 É justamente por causa destas características que os guionistas dos
filmes sobre clandestinos optaram pela ficção e não pelo documentário, a
primeira sendo mais apta a preencher os vazios e os silêncios, mais apta também
a traduzir o sofrimento em personagens e assim comover, o que significa, neste
preciso contexto, implicar o recetor.
Porém, a denominação de ficção coloca outro problema, pois o que caracteriza
igualmente esta produção é a diversidade de abordagens estéticas, desde o
cinema da ilusão, com uma estrutura narrativa clássica (e.g. Welcome, The
Visitor) até à prática de um cinema da alusão e da ousadia narrativa (e.g. Le
silence de Lorna, Promised Land, Transe), o que ajuda a explicar, em parte, o
menor impacto dos segundos junto do público. Talvez o êxito dos filmes do
primeiro grupo também se deva à introdução no guião da figura de um cidadão
ocidental em crise que vê a sua vida perturbada pela intrusão do migrante
clandestino. Analisarei mais à frente os contornos desta figura recorrente.
O migrante ilegal na ficção: sujeito fronteiriço
Será preciso num primeiro momento tentar definir o que se tem tornado um
conceito heuristicamente estimulante no campo das ciências sociais e humanas.
Veremos a seguir que os percursos de algumas personagens de migrantes ilegais
significam antes de mais pelo que experimentam na fronteira. Naturalmente, não
se trata aqui de examinar em pormenor a complexidade do fenómeno fronteiriço,
mas de evidenciar algumas das suas características, de esclarecer o caminho que
levou do uso literal ao uso metafórico e de ver em que medida o conceito em
questão pode ser útil numa análise fílmica.
Ultimamente, as ciências sociais e humanas têm revelado muito interesse pela
fronteira, ou antes, pelo fenómeno fronteiriço (esta expressão tendo a vantagem
de evidenciar o lado dinâmico e plural das relações na fronteira), numa
perspetiva global. Com a desterritorialização de partes inteiras de atividades
socioeconómicas, com a delegação de poder e de soberania do nível nacional para
o nível europeu, tanto o conceito de fronteira como a fronteira enquanto
fenómeno têm vindo a evoluir, ou, para ser mais preciso, a fronteira tem-se
deslocado ' dos marcos e dos postos fronteiriços aos centros fechados e outras
zonas de trânsito para migrantes ilegais ', tem-se reconfigurado, ao mesmo
tempo que tem penalizado cada vez mais a circulação de certos indivíduos
(Makaremi, 2008; Sassen, 2002).
Em primeiro lugar, a fronteira, mesmo quando se quer e se afirma como estanque
(penso aqui nos diversos muros em construção, desde os Estados Unidos e o
México ao que Israel está a edificar na Cisjordânia), permanece um lugar de
passagem, de contacto, um lugar onde paradoxalmente existe a possibilidade de
uma ponte entre sujeitos, práticas sociais ou económicas, etc. É o que os
organizadores afirmam na abertura de um número deCultures & Conflits,
dedicado às fronteiras:
Certamente não será novidade considerar que as fronteiras fazem o
mundo e que, nestas bordas dos Estados, se organizam lugares muito
paradoxais, pois parecem negar a própria possibilidade da fronteira,
criando pontes e continuidades onde frequentemente a política
desejaria rutura e limite, socialmente estéreis, do exercício de uma
soberania. (Bennafla e Peraldi, 2008)3
O que a maior parte dos estudos de tipo antropológico e sociológico deste
número corroboram é, por um lado, o carácter global do fenómeno fronteiriço e,
por outro lado, a transformação do papel da fronteira, nomeadamente no Norte.
De facto, independentemente do contexto local, a fronteira contemporânea entra
em hiato com os discursos oficiais tidos sobre ela (controlo, impermeabilidade,
vigilância permanente), ou seja, não existe uma situação de fronteiras
apreensível de modo simples, mas antes situações cuja complexidade as torna ao
mesmo tempo de difícil acesso e estimulantes do ponto de vista teórico
(Bennafla e Peraldi, 2008).
Por outro lado, houve no Norte uma transformação radical do papel da fronteira,
que passou da marcação/afirmação da soberania nacional, com um forte cunho
militar (origem etimológica da palavra), a um lugar de controlo, de contenção e
de rejeição dos imigrantes clandestinos, com um forte cunho policial. O
processo de unificação europeia e o seu corolário de abolição interna das
fronteiras, ou melhor, da sua deslocação para leste e para sul, acelerou ainda
mais este fenómeno. Trata-se de uma deslocação que foi acompanhada por um
reforço tecnológico do controlo dos novos limites com o objetivo de construir
uma separação absoluta (ibidem).
Independentemente do contexto, os discursos oficiais visam de facto construir a
representação de uma fronteira estanque, controlada por meios de alta
tecnologia, separação perfeita entre nós e os outros, estes sempre conotados de
modo negativo (o imigrante ilegal, o bandido, a prostituta, etc.). No entanto,
vários estudos apontam para a discrepância entre o discurso e as práticas
observadas in loco. Esta situação manifestava-se claramente na fronteira entre
a Áustria e a República Checa até 2007 (data da entrada deste último Estado no
espaço Schengen), onde a primeira afirmava, nos seus discursos oficiais,
controlar os fluxos da imigração ilegal graças à presença do Exército, assim
como de aparelhos de alta tecnologia. Porém, um estudo empírico da fronteira
como fenómeno revelou práticas onde o aleatório, o acaso e o contexto
desempenhavam um papel central (Darley, 2008). Os controlos eram efetuados de
maneira mais ou menos estrita em função do momento (de dia ou de noite), da
nacionalidade da pessoa controlada, do seu género, etc., ou seja, em função de
uma série de elementos que tornavam a fronteira um lugar menos estanque do que
afirmava o discurso oficial, levando a autora do estudo a concluir: Parece que
a situação geográfica à margem dos espaços fronteiriços autoriza os seus
autores a distanciar-se das representações centrais da fronteira como lugar de
controlo mecânico e fixo [ ]. (ibidem).
Portanto, mesmo alvo de uma transformação física (a edificação de muros e de
miradouros) e sujeita a sistemas panópticos de vigia, a fronteira continua um
lugar dinâmico onde se desenvolvem práticas intrínsecas à sua condição de
limite (limites entre Estados, mas também entre o legal e o ilegal, o lícito e
o ilícito). O seguinte exemplo mostra que a fronteira é muito mais do que a
simples demarcação oficial entre dois Estados: é um lugar instável, de
contornos imprecisos, uma espécie de geografia íntima marcada pelos
deslocamentos de seres humanos e mercadorias. Um dos paradigmas possíveis desta
situação são os atores do narcotráfico na fronteira entre Ciudad Juarez
(México) e El Paso (Estados-Unidos) (Guez, 2008), duas cidades que, vistas com
a distância que permite o programa Google Earth, formam uma gigantesca
conurbação separada pela famosa barreira entre ambos os Estados. Os sujeitos
entrevistados por Guez estão envolvidos em diferentes graus no comércio ilícito
de estupefacientes e vivem todos da/na fronteira, uma fronteira que a autora
tenta pensar tendo em conta as suas interações com os territórios, as pessoas,
os projetos que liga e põe em rede. Se o controlo da fronteira é essencial para
as organizações criminosas (pois a simples passagem inflaciona diretamente o
preço da mercadoria), ela também se transformou numa meta para os pequenos
transportadores de droga, a promessa de uma vida diferente, um símbolo de
esperança, o que significa que para eles a fronteira existe antes de ser
avistada. De facto, a partir do momento em que decidiram levar droga em direção
à fronteira, esses pequenos transportadores já transgrediram a fronteira
entre o legal e o ilegal, que a fronteira com o seu arame farpado, os seus
agentes da autoridade, a sua violência legal parece reificar. O que sobressai
das entrevistas levadas a cabo por Guez é justamente a relação complexa,
particular, quase íntima, que os sujeitos têm com a(s) fronteira(s) que
precisam de transpor para viver:
O traçado desta fronteira está em movimento: parece mais uma gradação
fluída entre o que se faz e o que não se faz, indissociável do
contexto sociohistórico do momento em causa. Os estupefacientes a
caminho dos mercados do Norte carregam marcas de todas estas
passagens, e as marcas do seu comércio e da sua interdição estão
presentes numa infinidade de lugares e de práticas na fronteira.
(Guez, 2008)4
O que este exemplo, além de muitos outros, revela é certamente um fenómeno
complexo, um fenómeno cuja descrição pode funcionar de forma heurística para um
pensamento metafórico da fronteira. Contudo, o que este exemplo revela
igualmente é a fronteira como fonte de tensão e de violência. Dito por outras
palavras, se, de facto, a fronteira pode ser pensada como lugar de
inventividade, de resistência aos obstáculos colocados pela autoridade estatal,
como potencial de atividades económicas alternativas e de oportunidades
diversas, é devido ao seu carácter intrinsecamente dúbio, ao mesmo tempo lugar
de expectativa e de desilusão, de bem-estar (para alguns) e de sofrimento (para
muitos). Qualquer possibilidade de um pensamento da/na fronteira só o pode
ser se tiver em conta este aspeto. Para ser mais preciso, não posso recorrer à
fronteira como metáfora sem ter em conta a ambivalência do referente, ou
ainda recuperar somente os seus aspetos positivos para contribuir para o esboço
de um pensamento na e da fronteira.
O conceito de fronteira será útil para interpretar os filmes do corpus, mas
apenas se tivermos consciência de que, em determinados contextos, este conceito
não tem qualquer conotação positiva. Gostaria de ilustrar este ponto fulcral
com uma curta sequência do filme Transe (Villaverde, 2006) durante a qual um
guarda fronteiriço alemão interroga um comerciante russo pelo intermédio de um
tradutor (00:18:38 ' 00:20:05). Claramente influenciada pela estética do
documentário, a sequência é filmada através da janela suja de uma cabine na
fronteira. A legibilidade da situação é absoluta, pois o local sugere uma
espécie de gaiola de vidro onde nada escapa ao observador; tanto o espetador no
espaço da ficção como o viajante no espaço referencial têm a possibilidade de
presenciar este tipo de situação.
Nem a fronteira, nem a tradução aliás (outra noção utilizada de maneira
metafórica pelas ciências sociais e humanas) podem ser aqui encaradas de
maneira positiva. A fronteira é agora a fronteira externa da União Europeia,
onde o que vem do Leste é visto com desconfiança. Ali, não se traduz para ir ao
encontro do outro, mas porque se desconfia dele. Neste entre-lugar, pouco
importa a identidade do indivíduo em questão, este nem chega ao estatuto de
personagem (não desempenha papel nenhum na estrutura geral do filme). Talvez,
no seu anonimato, seja ele a metáfora do que se vive diariamente naquela
fronteira. Em contrapartida, a realizadora mostra como, para as máfias, as
fronteiras oficiais não constituem obstáculo nenhum, passam-nas à vontade,
fluem de um país para o outro com seres humanos transformados em mercadoria.
Noutra sequência (01:02:40 ' 01:05:30), Sonia é vendida pelo seu raptor russo a
um proxeneta italiano. Este observa-a como os compradores observavam os
escravos nas colónias. Neste contexto, a tradução nem é necessária: o pidgin
English serve perfeitamente e revela-se uma metáfora desta passagem de Sonia
de um dono ao outro (o inglês é necessário como é necessária a mercadoria
humana).
O que começa a emergir neste ponto é a ambiguidade e a ambivalência da noção de
fronteira, o que explica, em parte, o seu êxito junto de ensaístas
contemporâneos como Ribeiro (2001) ou Santos (2000). Existe claramente um uso
metafórico aqui mas que no entanto, em função dos objetivos de cada um, remete
para uma pluralidade de significados que às vezes se sobrepõem, e às vezes não.
Apesar das diferenças, os dois autores encaram a fronteira como um lugar
simbólico, uma espécie de heterotopia, ou seja, uma deslocação dentro da
própria cultura do centro para as margens, a partir da qual é possível olhar de
outra maneira a experiência humana, assim como as suas representações. Se
Ribeiro pensa a fronteira a partir de representações literárias, ensaísticas,
filosóficas, Santos, por sua vez, vê sobretudo a fronteira ' na sua
articulação com o Barroco e o Sul ', como um lugar favorecendo a emancipação
individual.
Resumidamente, na sua procura de caminhos que levem à consolidação do paradigma
emergente, Santos depara-se com um problema importante: se o paradigma em
questão ainda não vigora, não é por ser incompleto ou atravessado por tensões
(isto o sociólogo aceita e até defende), mas por a subjetividade vigente ter
dificuldade não só em entender mas, mais grave, em desejar a emergência de um
paradigma diferente do conhecido ou do que se julga conhecer. Daí a necessidade
de pensar uma subjetividade outra, ela própria emergente, e, por enquanto,
sediada numa utopia.
De facto, num momento de transição tão complicado onde só se conhece bem o
paradigma vigente e onde o paradigma emergente está ainda por dar a
(re)conhecer, é preciso uma subjetividade suficientemente apta para
compreender e querer a transição paradigmática, uma subjetividade que
transforme o medo, a inquietação perante o futuro em energia emancipatória
(Santos, 2000: 321). Esta subjetividade é tanto mais difícil de desenvolver por
implicar um sentido ético diferente (deve prestar uma atenção constante às
consequências dos seus atos para a sociedade e o seu futuro) e por não se poder
socorrer das experiências e dos discursos do passado, ou então das experiências
e dos discursos que foram silenciados pela memória oficial. Esta situação
pressupõe um distanciamento (o que implica também uma deslocação epistemológica
do centro para as margens) relativamente ao cânone em torno do qual se
fundamentou, e cristalizou, a nossa modernidade (ibidem).
Esta rápida contextualização permite apreender mais facilmente o papel da
fronteira na reflexão de Santos sobre a subjetividade emergente. Na
perspetiva utopista que caracteriza parte do seu percurso teórico, imagina a
subjetividade em questão fundamentada em três topoi, outras tantas metáforas,
entre os quais o da fronteira.
Santos começa por conotar a fronteira de maneira positiva e entende
enriquecer o leque das suas conotações, ou para dizê-lo por outras palavras,
elaborar a sua própria metáfora de fronteira, socorrendo-se do que julga ser
um dos paradigmas possíveis da vida na fronteira: a fronteira do Oeste nos
Estados-Unidos. De uma obra de historiadores americanos que descreve o fenómeno
fronteiriço em questão retém o seu potencial heurístico, ou seja, seleciona
algumas das características descritas em função do seu objetivo: construir o
tipo-ideal de sociabilidade de fronteira. Voltará a este ponto mais à frente
ao dizer que o que interessa é a fenomenologia geral da vida de fronteira,
uma vida antes de mais marcada pela instabilidade, a transitoriedade e
precariedade da vida social (ibidem: 325).
Ora, um dos problemas que acarreta o uso metafórico de um conceito ' neste caso
a elaboração metafórica seria mais apropriada ' é que dificilmente se pode
fazer tábula rasa do(s) sentido(s) próprios do significante e das conotações,
positivas como negativas, associadas ao referente. Ribeiro sublinhou justamente
que o conceito concebido como utopia traz problemas, pois, como resultado de
uma construção social, a fronteira tanto pode ser o lugar da hibridação, de
uma nova identidade, como um lugar de sofrimento e de exclusão. É um dos
problemas que coloca um conceito flutuante, polissémico: por um lado é
estimulante, aberto, por outro, produz ambiguidades e contradições (Ribeiro,
2001: 471-473).
Se, por um lado, o pensamento de/na fronteira se revela muito útil para ler e
interpretar os filmes em estudo, a referência à frontier land como lugar para
pensar a subjetividade emergente não deixa de colocar reservas. Entre os
autores que mais pensaram as fronteiras induzidas pela globalização
hegemónica, gostaria de destacar Zygmunt Bauman (2004, 2007) por este fazer
críticas acérrimas à vida na fronteira, bem como por ser um intelectual que,
à semelhança de Chomsky, radica o seu pensamento numa recusa da teoria pura.
Como é sabido, no âmago do seu pensamento reside a ideia de que, durante
séculos, o Norte conseguiu despejar o seu lixo humano em territórios alheios.
Com as independências sucessivas das colónias e a subjugação desses territórios
à modernidade (no sentido de construção de ordens sociopolíticas e de progresso
económico), esse mesmo Norte não só teve de lidar com o lixo doméstico como
com o lixo importado das ex-colónias.
Os desempregados, os novos pobres, os refugiados, filhos de imigrantes da
segunda e até da terceira geração, entre outros, amontoam-se nas cidades do
Norte e este, como modo de proteção, abdicou da reciclagem para edificar
barreiras e fronteiras. Os novos guetos são locais para onde são enviados os
sem função, os redundantes, aqueles para quem a sociedade não encontra uso
económico ou político. Com o desmantelamento do Estado-Providência, os guetos
deixaram de funcionar como tampão de proteção para os excluídos, perderam
qualquer aspeto positivo para se tornarem simplesmente maquinaria da social
relegation, ou seja, uma espécie de lixeira onde se coloca o que é
considerado perigoso e inútil. Em cidades como Paris, existem bairros que
começam a ser tratados como autênticas prisões (dificuldade de acesso por meios
de transporte público, postos de controlo, rusgas), ao passo que a própria
prisão evolui em sentido análogo: já não pretende reeducar nem ressocializar,
mas manter o controlo sobre o perigo que representa o human waste. Ainda
segundo Bauman, há assim uma clara correlação entre, por um lado, a renúncia do
Estado a exercer a sua função reguladora social e económica e, por outro, a
promoção de uma política securitária, o que tem como principal consequência a
criminalização de muitos problemas sociais e a segregação dos redundantes em
espaços mais ou menos estanques (bairros periféricos, prisões, centros fechados
para imigrantes).
É neste contexto que Bauman aproxima as novas fronteiras do que acontecia na
frontier. Encara a realidade social contemporânea como frontier land semelhante
à frontier do Oeste Norte-americano no século xix, onde a ausência de leis e
normas beneficiava os barões do gado e os bandidos, que para Bauman têm o seu
equivalente atual nas multinacionais e nos grupos terroristas, ambos
responsáveis pela produção de lixo humano, os primeiros no ramo do progresso
económico e os segundos no ramo da criação destrutiva da ordem. Nesta
fronteira, são óbvios os danos colaterais em vidas humanas causados pelos
modernos barões do gado e por outros bandidos. Entre as consequências, Bauman
destaca: a vida na fronteira como fonte de grande ansiedade, de medo (se a
ameaça é real ou fantasiada é menos relevante neste contexto do que a realidade
do medo), de instabilidade; a vida na fronteira como dissolução da confiança
entre indivíduos e a sua substituição pela desconfiança generalizada; a
fronteira como geradora de exclusão dos indesejados e de obsessão pela
segurança entre os que vivem dentro. Recorrer a um autor como Bauman, cuja
biografia evidencia uma larga e difícil experiência de várias fronteiras,
talvez obrigue a matizar o pensamento utópico de Santos com um toque de
trágico, pois, para muitos redundantes ou condenados do planeta, as
fronteiras determinam, em grande parte e sem celebração possível, o curso das
suas vidas.
As personagens de migrantes ilegais do corpus do presente estudo correspondem
bastante bem ao que Bauman diz da vida na fronteira. Sylvia e Raul, os
migrantes mexicanos em Fast Food Nation, Lorna, a migrante albanesa em Le
silence de Lorna, Sonia, a migrante russa em Transe, Tarek, o migrante sírio em
The Visitor, Diana, a migrante estoniana de etnia russa em Promised Land ou
ainda Bilal, oriundo do Curdistão iraquiano, em Welcome, experimentam
constantemente os efeitos de uma vida na fronteira. Independentemente dos seus
projetos de vida e da sua origem, o seu estatuto (migrante clandestino) assim
como o seu lugar na fronteira transformam-nos em algo muito semelhante ao human
waste de Bauman. Nestes filmes, o migrante só existe enquanto mercadoria cujo
valor de uso se mede pela sua capacidade de trabalho. Aliás, só vale enquanto
dura a possibilidade de explorar o seu corpo. Neste contexto, não será por
acaso que quase todos os filmes do corpus contêm uma sequência evidenciando o
corpo esgotado ou ferido do migrante, pois é naquele momento que melhor
transparece o seu estatuto de mercadoria descartável.5
A partir do momento em que as personagens pagam um intermediário, ou seja, a
partir do momento em que mesmo longe da reificação material da fronteira tendem
para esta, o seu percurso biográfico anterior, a narração do que foram antes da
transação desaparece do guião. Perdem em parte o controlo do seu percurso, até
porque dependem de um passador a par da rota para a fronteira. A partir de aí,
a sua autonomia é reduzida (Lorna, Sylvia, Carlos, Tarek, Bilal) ou inexistente
(Sonia, Diana) e a sua transformação em mercadoria quase absoluta.
Talvez os filmes que representam os percursos das mulheres destinadas à
prostituição clandestina sejam os que melhor conseguem retratar a súbita
transformação de um sujeito em mercadoria. Assim, em Promised Land, a sequência
de abertura (00:00:00 ' 00:09:35) mostra um grupo de mulheres russófonas a
serem levadas por um grupo de beduínos no deserto do Sinai em direção à
fronteira israelita. Esta não constitui obstáculo nenhum para o grupo que a
perpassa apesar da sua militarização massiva. A presença das mulheres na
fronteira é concomitante com a sua mercadorização absoluta, pois são a seguir
vendidas numa espécie de leilão assaz semelhante ao que acontecia aos escravos
e num inglês pidgin parecido com o utilizado pelos proxenetas em Transe. Nesta
longa sequência da venda (00:12:48 ' 00:22:08), o estado de partes do corpo
(seios, nádegas, boca) indica o valor da mercadoria. Aqui não existem, porque
não interessam na transação, nomes nem biografias, o anonimato dos corpos
reforçando até o seu carácter de mercadoria. O vocabulário utilizado pelos
diversos indivíduos envolvidos no tráfico (beduínos, palestinianos, israelitas
de várias origens geográficas) remete para esta metamorfose; carga, lote,
mercadoria são tantas palavras que designam literalmente, ou seja, sem figura
de retórica, o que as mulheres são do seu ponto de vista.
O filme de Gitai evidencia fronteiras materiais porosas, mesmo as que, para a
população palestiniana, são quase intransponíveis. Assim, os passadores levam
um grupo de mulheres para Ramallah sem problema, o checkpoint do exército
israelita não sendo para eles um obstáculo. Aqui a fronteira oficialmente
hermética, barreira que deveria garantir a segurança do Estado israelita e dos
seus cidadãos, é representada como permeável, ineficaz, lugar de contrabando e
de exploração. Nisto, Promised Land retrata fielmente o hiato entre o discurso
oficial tido sobre a fronteira e a fronteira como fenómeno dinâmico e
criminógeno. O contexto geográfico neste ponto importa pouco ' México-Estado
Unidos, Israel-Palestina, Índia-Bangladeche ' pois basta existir uma relação
desequilibrada de poder entre ambos os lados, um desenvolvimento económico
assimétrico entre dois países para facilitar a transformação da fronteira em
lugar de corrupção, de violência e de alienação,6 com a emancipação económica e
social a ser associada sobretudo aos contrabandistas e guarda-fronteiras.
No entanto, a passagem da fronteira material não significa para a personagem
do/a migrante clandestino o fim da sua situação de ser fronteiriço. Em Fast
Food Nation, o grupo de mexicanos que entra nos Estados-Unidos e encontra
trabalho num talho industrial não perde o seu estatuto de corpo-mercadoria. O
filme de Linklater associa intimamente o/a migrante enquanto ser fronteiriço
por essência com o modo de funcionamento da economia neoliberal que, em grande
parte, precisa da fronteira para garantir os seus lucros. O filme entrelaça os
percursos de um grupo de migrantes mexicanos com a investigação levada a cabo
por Don Anderson, quadro na multinacional onde trabalham os primeiros. A
montagem aponta para o papel central do migrante clandestino no processo de
produção industrial de carne: a sequência inicial é construída como uma
publicidade para a multinacional em questão, mas um lento movimento ótico em
direção a um pedaço de carne grelhada leva o recetor a entender que em parte o
filme dissecará o processo que leva a carne ao consumidor. A esta segue-se
uma segunda sequência (fronteira México-Estado Unidos, exterior noturno) que
introduz o grupo de migrantes prestes a encetar a sua viagem. A montagem
alternada opera assim a junção entre o mundo dos clandestinos e o mundo do
talho industrial, e justamente porque se trata deste tipo de montagem o recetor
entende o propósito de Linklater: apontar para a indissociabilidade de ambos os
mundos em certos setores da economia neoliberal.
Não será por acaso que, durante a sua visita de controlo ao talho industrial
onde trabalham os migrantes (00:26:13 ' 00:28:30), Anderson, encarregado de
entender a origem da presença de matéria fecal na carne bovina, somente esteja
interessado nas condições materiais em que esta se produz (higiene, limpeza das
máquinas, etc.), sem prestar atenção ao estatuto dos trabalhadores migrantes
presentes ao longo da linha de produção. Literalmente passa ao lado destes, e
da sua constante exploração. A sequência acaba com o grupo a assistir a um
programa de prevenção dos acidentes de trabalho. Don passa em frente ao grupo
sem parar, como se estes ocupassem um lugar natural no cenário em questão.
A presença da personagem de Anderson, homem maduro, mergulhado numa espécie de
crise por causa do que vai descobrindo a propósito da produção industrial de
carne, permite-me focar outra característica da fronteira encenada pelos filmes
do corpus: a presença na fronteira de um cidadão ocidental em crise junto ao
migrante clandestino.
O intermediário necessário na fronteira: o homem ocidental de meia-idade em
crise
Em certos filmes do corpus, o migrante ilegal partilha o guião com outra
personagem, a do homem ocidental de meia-idade em crise (por causa de um
divórcio ou da morte da esposa), que reencontra um certo alento pelo contacto
com o migrante clandestino. Tanto Simon em Welcome como Walter em The Visitor
serão, em determinada altura, confrontados com o Outro, sujeito sem documentos,
ser fronteiriço à espera de passar para o lado da fronteira onde se é cidadão.
Assim, Walter, até ao encontro com Tarek e Zainab, o casal que ocupa o seu
apartamento em Nova Iorque, aparece quase exclusivamente em sequências de
interior: dentro de casa, no seu gabinete, no carro e sempre filmado em plano
americano ou em plano aproximado. A escala de plano é aqui muito significativa
pois serve, por um lado, para analisar o rosto da personagem principal e, por
outro lado, para insistir na sensação de fechamento. Não seria errado ver
nestes tipos de plano uma metáfora do estilo de vida levada por Walter.
Há claramente uma dicotomia que atravessa ' ou melhor que estrutura ' The
Visitor entre o dentro (associado ao tédio) e o fora (associado à vida) quando
Walter se depara com jovens músicos a tocar em baldes de plástico num parque de
Nova Iorque. É fora da Universidade que Walter sente o ritmo, experimenta a
pulsação da vida. A seguir, passa um colega que o convida para voltar para
dentro. Só que, a partir de agora, o dentro (tanto a vida íntima de Walter como
a sua casa) nunca mais será o mesmo. Encontra-se esta mudança ilustrada na
sequência da primeira aula de jembê de Walter com Tarek (00:22:57 ' 00:26:26).
Se, no início do filme, Walter tocava piano em casa sozinho na penumbra, agora,
numa escala de plano idêntica, temos um Walter em plena luz e sorridente. O
plano de semiconjunto aqui já não realça a solidão de Walter, mas torna-se
cinematograficamente necessário para, por um lado, mostrar a luz a iluminar o
cenário e, por outro lado, deixar espaço para Tarek. Existe outra sequência
paradigmática neste contexto: depois do concerto dado no parque, Tarek e Walter
caminham juntos em plano americano a meia-perna; aos poucos um movimentoótico
transforma a escala de plano até acabar em plano de grande conjunto mostrando o
parque, as pessoas, a cidade e, por fim, a luz radiante. Parece que a
felicidade de Walter cresce de forma proporcional ao movimento ótico.
É de relevar, ainda que de passagem, que este Outro representado como a
salvação da personagem em crise também se manifesta em filmes onde o migrante e
os seus filhos vivem legalmente no país de referência. É o que acontece em Gran
Torino(Eastwood, 2008), no qual a personagem de Walt Kowalski, interpretada por
um Eastwood crepuscular, consegue reorientar a sua vida e dar significado à sua
morte no contacto com os seus vizinhos Hmong em geral e o jovem Thao em
particular (Thao sendo o equivalente deste lado da fronteira a Tarek e Bilal,
vindos do outro lado). Este filme não para de evidenciar fronteiras, umas
visíveis, outras menos, umas de ordem pública, outras de ordem mais privada,
assim como múltiplas transgressões das mesmas.
Pode dizer-se que existe uma espécie de linha invisível que separa Walt dos
seus vizinhos, os limites da sua propriedade correspondendo a uma fronteira
cultural, intransponível durante parte do filme. Do ponto de vista de Kowalski,
deste lado da fronteira ter-se-ia a civilização (a língua inglesa, a bandeira
americana, o relvado cortado, a casa em perfeito estado) e, do outro lado da
fronteira, o que ele considera os bárbaros (uma língua diferente, um relvado
ao abandono, uma casa em mau estado). Este outro lado é-lhe desconhecido e os
Hmong equivalem, na sua representação do mundo, aos coreanos, chineses, em
suma, aos asiáticos em geral. Note-se de passagem que, do outro lado, Walt tem
uma equivalente: a avó, também num primeiro momento relutante em ter um vizinho
americano, branco (vejam a sequência na qual lhe pergunta em Hmong porque ainda
não deixou o bairro). O recetor percebe que Kowalski muda quando as personagens
começam a circular através da fronteira, quando há fluidez e movimentos entre
os espaços, ou seja, quando Walt aceita, por um lado, cruzar a fronteira para
partilhar um almoço Hmong e, por outro lado, quando aceita Thao, como ajudante,
no seu espaço privado.
Estas múltiplas passagens de fronteira evidenciam a possibilidade de mobilidade
entre os dois lados, apesar das representações em vigor de cada um dos lados.
Por sua vez, a mobilidade revela um mundo em plena mudança. É a própria
sociedade americana ' como qualquer outra sociedade ocidental ' que se depara
com a chegada de novos imigrantes (com a desconfiança e, às vezes, o medo que
se sente de ambos os lados). Uma curta sequência é muito reveladora desta
situação: a da consulta de Walt no hospital. Na sala de espera, a personagem
observa os outros utentes e constata que muitos são de origem estrangeira assim
como a enfermeira, a nova médica... O mundo de Walt está a transformar-se de
maneira rápida, talvez de maneira mais rápida do que em qualquer outro momento
da história do seu mundo.
Se alguém nestes filmes experimenta positivamente o que acontece neste contexto
fronteiriço é a personagem recorrente do homem ocidental em plena crise
existencial. Ao contacto com o Outro, Walter, Simon e Walt afastam-se das
origens da sua infelicidade e, por assim dizer, encetam uma viagem interna que
os leva a redefinir a sua identidade. A fronteira torna-se então um lugar de
hibridação e de salvação para um cidadão (oriundo do Norte) sem rumo, mas não
para um sujeito (oriundo do Sul) à procura de um porto seguro.
Lembrar-se-á que a hibridação como limite experimentado na fronteira se
encontra em grande parte celebrada nos textos de Ribeiro e Santos. Para o
primeiro, seria difícil pensar identidades híbridas ou mestiças sem
fronteiras, pois radica na fronteira o que fundamenta este tipo de
subjetividade: a plurivocidade, a ambiguidade, a heterogeneidade. É consciente
das tensões e relações desiguais de poder inerentes às identidades híbridas que
Ribeiro estuda o fenómeno fronteiriço. Na sua conceção, a fronteira não tem
delimitação clara, ou seja, o autor recusa a noção de que a linha' de
fronteira define rigidamente uma binaridade entre um dentro e um fora, o
totalmente familiar e o inteiramente estranho, não consentindo, assim, qualquer
modo de mediação ou de articulação (Ribeiro, 2001: 471). O que propõe
relativamente à sociabilidade na fronteira recorda o que acontece a certas
personagens na sua equivalente ficcional: A fronteira é um medium de
comunicação, o espaço habitável em que o eu e o outro encontram uma
possibilidade de partilha e, assim, a possibilidade de dar origem a novas
configurações de identidade (ibidem).
Se os realizadores destes três filmes escolheram uma estética da ilusão, uma
total legibilidade, a presença de um intermediário com o qual o recetor se
possa identificar, tal se deve em grande parte à vontade de convencer/seduzir o
público ocidental (e de facto Gran Torino, The Visitor e Welcome foram sucessos
de bilheteira). Outros filmes como Le silence de Lorna, Promised Land, Transe
ou Lilya 4ever caracterizam-se por uma estética marcada pela alusão, a tradução
da evolução das personagens migrantes através de metáforas, a ausência do
intermediário. Todos colocam a questão do olhar do recetor na fronteira: como
ver o/a migrante ilegal e, a fortiori, como olhar para o corpo da mulher
traficada na fronteira (como é o caso nos três últimos).
Importância do ponto de vista do recetor
A questão da instância de receção e da sua relação com a diegese, têm sido uma
preocupação teórica para os analistas de filmes: quem recebe o filme e de que
maneira? Como apontam análises fílmicas recentes (e.g. Garraio, 2011), não se
pode de facto evitar questionar o lugar do recetor nas ficções que nos ocupam
aqui, nomeadamente o olhar do recetor relativamente ao corpo das mulheres
traficadas. O olhar do espetador, o seu ponto de vista, parece deste modo
indispensável à representação do/a migrante clandestino na fronteira, pois cada
filme, independentemente das suas escolhas estéticas, envolve o recetor.
A estética dos filmes depende em parte desta questão inicial: o que fazer com
os corpos violentados na fronteira? Representá-los no campo ou no fora de
campo? São as respostas a estas questões que levaram Gitai, Villaverde e
Moodysson a optar por certas escolhas estéticas. Em Promised Land, o realizador
israelita escolheu filmar com câmaras digitais para reforçar o efeito de real.
Além disso, em virtude das suas características técnicas (máquinas pequenas e
leves), conseguiu seguir as personagens de perto, colar-se aos seus passos.7 A
sequência da venda das mulheres no deserto ilustra paradigmaticamente a relação
entre escolha técnica, estética e significado: a câmara circula entre os
corpos, observa-os como se de um traficante se tratasse, ou seja, aqui o
recetor encontra-se, com o recurso à câmara subjetiva, a observar os corpos
como se fosse um traficante entre os outros, daí sem dúvida a sensação de
incómodo criada junto da instância de receção. Mais à frente, no momento em que
as mulheres passam o checkpointlevadas pelos traficantes, vários transeuntes
anónimos olham diretamente para a objetiva. Aqui, o realizador não escondeu a
máquina de filmar, transgredindo as fronteiras entre ficção e documentário '
neste género cinematográfico o olhar-câmara e a presença assumida da máquina de
filmar fazem parte dos códigos ', o que leva agora o espetador a sentir-se
observado. Talvez seja nesta passagem do recetor do estatuto de observador ao
de observado que radica a articulação entre estética, ponto de vista e ética,
pois Gitai obriga assim o espetador a questionar não a prostituição forçada
(esta é condenada à partida), mas sim os valores e a moral do sistema
socioeconómico no qual se insere total ou parcialmente.
Lilya 4ever e Transe colocaram igualmente a questão do olhar do recetor no
centro das suas preocupações, se bem que com dispositivos diferentes. O
primeiro coloca o espetador numa situação desconfortável ao confrontá-lo com a
violência sexual contra a personagem principal pelo recurso à câmara subjetiva:
uma sequência composta por uma sucessão rápida de planos em montagem cut-cut
mostra a cara dos clientes em cima da vítima, ou seja, neste caso a instância
de receção confunde-se nitidamente com o olhar desta. Mais uma vez a escolha
estética tem claras implicações éticas.8 Em Transe, de certo modo o filme mais
complexo, e talvez o menos acessível do corpus, a realizadora portuguesa
interroga constantemente o olhar do espetador, colocando-o em cena em certos
momentos. Assim, uma sequência que se situa depois da violação de Sonia pelo
seu raptor russo encena, num plano fixo, Sonia nua em pano de fundo a vestir-se
e, na frente esquerda, as costas do violador em plano aproximado a observar o
corpo da primeira (00:55:09). Nesta configuração inicial do espaço fílmico, o
olhar da instância de receção duplica o do violador, o que por si já torna o
lugar da primeira incomodativo, mas, no momento em que o violador se deita e
para de olhar, a situação do espetador torna-se quase impossível, pois, neste
momento preciso, já não existe intermediário entre aquele corpo e o eu-
espetador a observá-lo. De maneira radical, Villaverde encarcera o espetador
numa espécie de duplo constrangimento: recusar a posição de voyeur, o que o
levaria eventualmente a parar de ver o filme, ou questionar incessantemente o
nosso ponto de vista sobre o corpo sofredor. Em ambos os casos, o espetador
encontra-se numa situação complexa, que incomoda, a meio-caminho entre
cumplicidade e distanciamento crítico.
Por fim, em Fast Food Nation, o recetor é o único que tem acesso ao conjunto
das informações, que segue ao mesmo tempo Don na sua investigação e o grupo de
migrantes na sua procura de uma vida melhor. Por exemplo, este é o único a
saber o que acontece ao migrante anónimo que se afastou do grupo em pleno
deserto e que ali morre. Nesta posição de surplomb, a instância de receção é a
única a perceber que, embora Anderson e os mexicanos nunca venham a comunicar,
as suas rotas estão intimamente ligadas. Veja-se, por exemplo, a curta
sequência em que Don no seu carro e os migrantes escondidos numa carrinha param
lado a lado num cruzamento (00:15:37), lugar simbólico de encontro e de
separação. O espetador entende aqui que, embora nunca entrem em contacto na
diegese, as personagens são indissociáveis no sistema económico-social
representado.
Conclusão
Podemos assim entender as razões que levaram os realizadores a focar quase
exclusivamente um tipo de migrante ' o ilegal ' em detrimento de outros.
Talvez justamente porque o clandestino, por um lado, agregue os sofrimentos
decorrentes de uma vida na fronteira e, por outro lado, simbolize
paradigmaticamente as consequências negativas das assimetrias induzidas pela
organização neoliberal da economia. Como vimos, os filmes representam os
migrantes clandestinos no momento em que se preparam para atravessar a
fronteira física entre o Sul e o Norte ou já do outro lado da fronteira, à
procura de uma vida diferente. Independentemente do lugar ocupado pela
personagem do/a migrante, esta experimenta a fronteira e os seus efeitos,
negativos na maior parte dos casos. Sabemos agora que este tipo de
sociabilidade emerge bem antes da chegada do sujeito à fronteira física entre
dois Estados. Neste ponto, é de sublinhar que estas ficções tendem a sediar a
origem geográfica destas experiências fronteiriças em territórios sob controlo
de forças policiais ocidentais (europeias ou norte-americanas), nomeadamente
nos centros de retenção para migrantes ilegais (cf. o meu comentário a
Welcome, neste volume, pp. 147-179). Porém, os efeitos negativos de uma
sociabilidade na fronteira para o migrante clandestino começam em muitos casos
bem antes da sua chegada a um destes campos. Cada vez mais aliás, por causa da
delegação do controlo das fronteiras externas da União Europeia a certos
Estados do Magrebe (Conselho Europeu de Sevilha, junho de 2002), esta
sociabilidade vive-se dolorosamente em centros de detenção sediados no Sul,
nomeadamente em Marrocos (Boukhari, 2007).
Gostaria finalmente de apontar ainda para a complementaridade entre ciências
sociais e humanas em análises deste tipo. No caso presente não se procedeu nem
a uma análise fílmica interna, nem à leitura do filme como um documento
semelhante a qualquer outro documento. Pelo contrário, mostrou-se em vários
momentos que, se um filme dimana do social, fá-lo com recurso a figuras de
retórica, a personagens, a configurações narrativas que dizem o social de um
modo peculiar. Quiçá seja na fronteira, mais uma, entre as ciências que este
peculiar melhor se revela.9