Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTHUAp2182-74352015000100007

EuPTHUAp2182-74352015000100007

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN2182-7435
Year2015
Issue0001
Article number00007

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Memória, história e narrativa: Os desafios da escrita biográfica no contexto da luta nacionalista em Moçambique

Introdução Com a problematização da produção e reprodução das ciências, os finais do século xx e as primeiras décadas do século xxi marcam um período de debates de carácter epistemológico, trazendo inúmeros e importantes desafios aos estudos de ciências sociais. Neste quadro, as últimas quase três décadas do século xx distinguem-se pela existência de um processo novo de desconstrução/construção histórica, a que Pacheco Borges chamou "uma ampla renovação historiográfica" (Borges, 2006: 1).

No processo de "renovação historiográfica", é possível constatar que depois da crise dos grandes paradigmas e da afirmação de uma história totalizante, a problematização de temáticas como a narrativa histórica e a construção biográfica, bem como a memória e sua relação com a História, produziram novas interrogações e aprofundaram outras discussões. Neste contexto, evidencia-se a revalorização da narrativa e o papel de destaque que a memória passou a desempenhar no campo das ciências sociais, contribuições para as novas formas de olhar a própria História.

Uma vez que a narrativa e a memória podem ser abordadas através de múltiplos olhares, os grandes debates de carácter epistemológico em redor destas temáticas levantaram polémicas novas inseridas na procura de respostas aos também novos problemas, processos estes envolvendo académicos de várias disciplinas e escolas. Sem ignorar as múltiplas abordagens1 que se têm realizado, a nossa contribuição pretende centrar-se nas discussões que tratam da História, independentemente da sua origem disciplinar. Deste modo, retomando alguns questionamentos nascidos em redor da inter-relação entre a História, a memória e a narrativa como parte das preocupações dos cientistas sociais, e o significado particular que a narrativa assume na história de África, com este texto trazemos para discussão questões e interrogações de carácter metodológico. As nossas reflexões partem de uma experiência de pesquisa acumulada no trabalho com histórias de vida e biografias, e os nossos exemplos são tomados de estudos de caso associados ao movimento nacionalista no sul de Moçambique.

1. O lugar da história em África e o papel da narrativa histórica No processo mais global ligado ao pensamento crítico que se desenvolveu na segunda metade do século xx, a História, enquanto disciplina, assumiu um papel de destaque face aos debates que então tomaram lugar no seio dos intelectuais africanos (Zeleza, 2006). A ideia principal que presidiu a estes processos que ocorreram no âmago das ciências sociais e das humanidades prendia-se com a necessidade de renegociar os termos epistémicos da produção do conhecimento (ibidem), onde, para tomar de empréstimo as ideias defendidas por Sousa Santos ou Aníbal Quijano sobre esta mesma problemática, se colocava na mesa de debate a diversidade epistemológica contra um saber subalternizado (Santos, 2009; Quijano, 2009), e a necessidade de encontrar outras alternativas ao padrão "eurocentrado" e, como diria Hountondji, a partir de uma "reapropriação crítica dos próprios conhecimentos endógenos de África [...] com uma apropriação crítica do próprio processo de produção e capitalização do conhecimento" (Hountondji, 2009: 129).

No continente africano, a História de África como disciplina académica começa a ter relevância apenas nas décadas de 1950 e 1960, com o desenvolvimento dos processos de descolonização e das independências nacionais. Um revisitar da instituição e desenvolvimento desta disciplina no continente mostra-nos a produção de uma História de África onde o foco das problemáticas desenvolvidas se concentra em redor de temas que procuram rebater a ideia de um continente sem história, onde o africano passa de objecto a sujeito da história e onde ainda a narrativa nacionalista assume um lugar privilegiado. Trata-se de um período de revalorização da história do continente, que caminha a par e passo com o crescimento das chamadas "universidades desenvolvimentistas" (Mamdani, 2007; Silva, 2010). Este período de intensa produção historiográfica é conhecido como a Idade de Ouro da historiografia africana.

História oral, narrativa e biografia A escassez de documentos escritos para períodos mais remotos e a necessidade de comparar e testar a veracidade das fontes contribuíram para o desenvolvimento da história oral, num processo que contou com a colaboração de historiadores, antropólogos e linguistas, onde não podemos esquecer a destacada contribuição de Jan Vasina (Jewsiewicki e Mudimbe, 1993). Vista como uma fonte alternativa e/ou complementar à existência de outros documentos para além da escrita, que em muitas sociedades a oralidade e a escrita coexistem e o recurso a outras provas documentais é variado, a história oral foi também desenvolvida para sobrelevar uma visão colonial do passado e para "dar voz" e visibilidade aos protagonistas da História em África. Referimos aqui, não os "esquecidos" pela historiografia colonial, mas também, os retratados, interpretados, e reinterpretados, à luz dos detentores da palavra escrita.

Embora o uso de fontes orais não constitua uma especificidade de África, elas passaram a fazer parte dos recursos metodológicos da sua historiografia particularmente depois das décadas 1950 e 1960 e, no geral, nos períodos que se seguiram às independências nacionais dos seus países. No contexto que acabámos de mencionar, com a contribuição dada pelos relatos orais, a historiografia africana iniciou um processo de resgate da memória histórica do continente.

Em África, a partir da década de 1970, a historiografia ganha um interesse específico pela história social e pela história intelectual (ibidem), onde a narrativa histórica passou a assumir um papel de relevo. As novas correntes da história que se desenvolvem a partir da década de 1980 no "mundo ocidental" reforçam a importância que a narrativa histórica vinha desempenhando e as perspectivas da sua análise e "renovação".

Não podemos entretanto ignorar, tal como argumentam Jewsiewicki e Mudimbe (1993), que o percurso da historiografia africana, ao transitar por um processo de rejeição de uma concepção colonial de análise, tentando produzir um conhecimento a partir de si,também caiu, contraditoriamente e repetidamente, na armadilha da visão cristã e ocidentalizada da interpretação da História. No desafio apresentado por estes dois autores para uma nova leitura da História foi necessário não lidar com problemas como memória individual e colectiva, como quebrar a concepção dualista da "África da tradição" e da "África de hoje", a favor da articulação entre ambas (ibidem: 10).

É igualmente importante não perder de vista o pressuposto que a narrativa histórica deve ser situada dentro de um contexto, não podendo por isso ser utilizada como instrumento neutro de interpretação. Construída com fins específicos, ela não pode ser vista de forma independente, quer do seu narrador quer das circunstâncias que levaram à sua produção (Wertsch, 2000). Coloca-se assim em debate a objectividade do historiador, onde "a não inocência do documento" levanta inúmeras discussões sobre processos de manipulação (Le Goff, 2010), retomando a questão do uso e validação das fontes. Na sua conhecida alocução intitulada "Towards a Usable African Past", Terence Ranger (1976) tratou com profundidade a problemática da objectividade histórica ao debater a questão da cultura dos heróis da Idade do Ouro, um tema que ainda se mantém actual se tomarmos em linha de conta a necessidade de revisitar e reavaliar a história do nacionalismo em África e as repercussões que esses movimentos e suas lideranças têm ainda na história mais recente dos seus países.

A biografia histórica, por sua vez, pelo seu carácter e natureza multifacetados, permite reunir uma combinação complexa de elementos que contêm não a descrição da vida pessoal do biografado e a leitura do meio em que o mesmo se insere, como outras componentes novas. Porque feita a partir de diferentes recursos documentais dos quais a narração do próprio sujeito ou de terceiros se situam entre tantas outras fontes, escritas ou não, a biografia passa também a ser objecto de estudo e debate nas várias disciplinas de ciências sociais, possibilitando a compreensão do comportamento humano e da sociedade num sentido mais amplo, permitindo assim fazer considerações críticas aos paradigmas e objectos da história social. O desenvolvimento da biografia insere-se a partir de agora na função narrativa do discurso histórico, expressando-se através de várias heterogeneidades e múltiplas formas de identidade, e passa a ocupar um lugar de destaque que lhe é dado pela abertura que caracteriza este período.

2. Memória, História e narrativa Ao longo dos tempos, a História enquanto disciplina foi vista com vários sentidos. No dizer de Le Goff (2010) ela tem também o sentido de narração.

Nesse processo, História e memória confundiram-se muitas vezes, mas também se afastaram simultaneamente. A constituição das ciências sociais e o desenvolvimento dos estudos multidisciplinares reservaram no entanto à memória um papel especial no campo das ciências sociais. Hoje, ela é vista e tratada como um instrumento essencial na criação e preservação de identidades, sejam individuais ou colectivas, mas também como um poderoso instrumento de poder (ibidem). Os "usos e abusos da memória" (Ricoeur, 2010) envolvem, entre outros aspectos, o esquecimento e suas estratégias, o perdão e a manipulação, cuja compreensão é fundamental para a narrativa histórica (ibidem).

Na narrativa histórica a memória desempenha um papel essencial, na medida em que, como nos diz Florès, citado por Le Goff, permite transmitir a outrem "uma informação, na ausência do acontecimento ou de um objeto" (Le Goff, 2010: 421), através do uso da linguagem. No processo de configuração e reconfiguração narrativa, o historiador tem que enfrentar diversos obstáculos, onde as armadilhas da memória podem envolver estratégias de esquecimento e processos de manipulação, dos quais os mais perigosos são, no dizer de Paul Ricoeur, frequentemente associados à ideologização da informação e a manifestações de poder (Ricoeur, 2010).

Usando exemplos particularizados em experiências colhidas na realidade da pesquisa, passarei a discutir a relação entre a memória e a narrativa histórica, e os desafios que esta relação coloca à escrita da História.

A narrativa biográfica como História: Zedequias Manganhela e Eduardo Mondlane Para analisar as particularidades de uma realidade empírica situada, centramos a nossa escolha na história de vida de Zedequias Manganhela, complementada pela de Eduardo Mondlane.

As motivações que me levaram a trabalhar com as histórias de vida de Manganhela e Mondlane, mesmo aproximando-se, são diferentes. Mondlane surgiu nos meus trabalhos como uma figura difícil de contornar, quando estudava o papel das igrejas protestantes na formação de uma consciência política no sul de Moçambique, onde a Missão Suíça (Igreja Presbiteriana de Moçambique) era o estudo de caso (Silva, 2001a; 2001b). No entanto, dado o tema específico do referido trabalho, mais do que meu objecto específico de estudo, a sua história de vida acabou por se limitar a um exemplo mais aprofundado, com fins de ilustração de uma realidade que pretendia transmitir. Revisitando o estudo que fiz sobre a vida de Eduardo Mondlane, fica claro que a minha opção pelo período que cobre a constituição da sua identidade na infância e juventude até à sua eleição como Presidente da FRELIMO - Frente de Libertação de Moçambique, reflecte a minha tentativa de "fugir" às armadilhas da ideologização da memória e das celebrações das histórias únicas e oficiais.2 O meu encontro com Zedequias Manganhela tem em comum com o meu estudo sobre a vida de Eduardo Mondlane apenas o facto da sua história de vida ter surgido como uma ilustração dos argumentos que desenvolvi no estudo acima referido (Silva, 1993a; 1993b; 2001a; 2001b). Nesse trabalho, a sua trajectória de vida foi sobretudo utilizada para exemplificar a relação entre colonizador e colonizado e a violência da repressão colonial nos anos de 1970. Mais de 27 anos depois, voltei a revisitar Manganhela, mas desta vez tendo o indivíduo como objecto de estudo e não como uma simples ilustração, o que me levou a fazer face a outros obstáculos de carácter metodológico que se prendem com a escrita biográfica,3 e que constituirão o cerne de algumas das questões que abordarei. Assim, para ilustrar os desafios da escrita biográfica como história, concentrar-me-ei na história de vida de Manganhela. Recorrerei ao percurso de vida de Mondlane, mais uma vez, apenas como ilustração. Para melhor situar o desenvolvimento dos meus argumentos, farei uma brevíssima incursão pela história de vida de Zedequias Manganhela, que a história e a interpretação do seu percurso constituirão o maior suporte desta discussão.

Zedequias Manganhela Zedequias Manganhela nasceu na região de Matutuine, no sul de Moçambique, a 25 de Outubro de 1912. Originário de uma modesta família de camponeses, ainda muito jovem perdeu o pai tendo a sua educação ficado à responsabilidade de um tio, professor primário formado para o ensino de indígenas (numa escola da Missão Suíça) e a única pessoa escolarizada da família, na época.4 Como outras crianças do campo, da mesma idade, foi pastor de gado.

Em 1926, com 14 anos, teve o seu primeiro contacto com a Missão Suíça e com uma escola na sua região de nascimento, estudando depois em Lourenço Marques e em Ricatla (Marracuene), sempre em escolas da Missão Suíça, até finalizar os estudos primários em 1933.

Entre 1934-37 frequentou a Escola de Formação de Professores Indígenas em Alvor (1934-37). Casou em 1940 e cursou o Pastorado entre 1945 e 1947. Em 1948 foi investido como Pastor.

Tendo trabalhado em várias localidades do sul de Moçambique, como evangelista, professor e Pastor, ocupou na então Missão Suíça posições de liderança, das quais se destaca o lugar de presidente do Conselho Sinodal da Igreja Presbiteriana de Moçambique (Missão Suíça), que assumiu em 1963. Tendo sido posteriormente reconduzido ao mesmo cargo, desempenhou esta função até ao momento da sua prisão pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), em Lourenço Marques, em 1972, quando exercia também, por acumulação, a função de pároco na pequena igreja da Missão, em Chamanculo.5 Em Dezembro do mesmo ano faleceu na cadeia da Machava, havendo fortes indicações de assassinato, embora os documentos oficiais tivessem declarado a sua morte por suicídio.

A sua actividade como Pastor realizou-se no contexto da chamada "africanização"6 da Missão Suíça, que a partir de 1948 viveu uma fase de transição, com a passagem de uma igreja suíça (Missão Suíça) a uma igreja moçambicana, a Igreja Presbiteriana de Moçambique (IPM). O final desta longa transição ocorreu apenas em 1970, quando foi assinada uma convenção entre a Missão Suíça e a igreja moçambicana (IPM), acto em que a primeira concedeu a autonomia total à segunda. Em vários passos deste processo Zedequias Manganhela teve também protagonismo, como líder da igreja.7 Como Pastor e, mais tarde, estando no topo da liderança da sua igreja, Zedequias Manganhela viajou por vários países e continentes como representante da igreja de Moçambique. Neste quadro, visitou alguns países da Europa, da América Latina, e do continente africano. Em Moçambique, Manganhela realizava visitas não às paróquias do sul do Save, mas, em plena Guerra Colonial, visitava o centro do país, no então distrito de Manica e Sofala, e o norte, no distrito de Nampula, no exercício das suas actividades de carácter profissional. Nessa qualidade, visitou também as actuais províncias do Niassa, Zambézia e Cabo Delgado (Silva, 2001a; 2001b; Chamango, 2005).

Tendo-se tornado amigo de Eduardo Mondlane durante a sua juventude, reforçou essa ligação através de contactos mútuos realizados em 1961 durante a visita privada do primeiro a Moçambique (que era então funcionário das Nações Unidas), e teve ocasião de o reencontrar pelo menos duas vezes na Suíça, quando Mondlane era presidente da FRELIMO (Silva, 2014).

Manganhela era um homem prezado no seio da sua comunidade e bastante respeitado como mentor da juventude. A sua morte em Dezembro de 1972 causou um choque indescritível em vários círculos nacionais e teve repercussões profundas a nível internacional, que levaram à intervenção junto do Governo português não dos missionários suíços como de várias instituições internacionais, media e representantes diplomáticos de alguns países com governos progressistas.

Num artigo em duas partes, publicado por Gita Honwana em 1982 e 1983, que trataremos de seguida, a autora refere que depois de vários meses de prisão e apenas 3 interrogatórios, a 11 de Dezembro de 1972, a PIDE/DGS em Moçambique comunica à sua sede em Lisboa o suicídio de Zedequias Manganhela. Os cenários que se seguiram levam a crer que se tratou de um assassinato por suspeita do seu envolvimento com a FRELIMO, com a acusação de enviar regularmente fundos para a Tanzânia, sua ligação com Eduardo Mondlane, e de ter facilitado a fuga de jovens para se juntarem à FRELIMO (Honwana, 1982 e 1983; Silva, 2014).

Muito pouco foi escrito por, e sobre Manganhela. Existe uma autobiografia, arquivada no "Departamento Missionário das Igrejas Protestantes da Suíça Romande" (DM), em Lausanne, hoje "DM Échange et Mission", que parece ter sido escrita em 1959, originalmente em xirhonga e posteriormente traduzida para as línguas portuguesa e alemã, e algumas pequenas notas biográficas em francês.8 O mesmo arquivo conservou algumas fotografias, documentos pessoais relativos à sua actividade profissional, maioritariamente escritos em xirhonga e, sobretudo um volume considerável de recortes de jornais, artigos de revistas, correspondência diversa, depoimentos e um conjunto de informações dispersas que se prendem, sobretudo, com o período da sua prisão e morte.

Gita Honwana publicou um artigo, acima referido, intitulado "Um episódio de justiça colonial: O caso de Zedequias Manganhela",9 em dois números, da extinta revista Justiça Popular, com as datas de Outubro de 1982 (1.ª parte) e Janeiro/Maio de 1983 (2.ª parte).

Em 2005, com a chancela da IPM, foi publicada uma pequena biografia intitulada Zedequias Manganhela: Pastor e mártir, da autoria de Simão Chamango, traduzida mais tarde para francês e publicada em 2010 por uma editora suíça.

Em 2010, Georges Andrié10 publicou igualmente um pequeno ensaio, sob a chancela do "DM Échange et Mission", traduzido para português com o título Moçambique no cúmulo do sofrimento (1972-1974): Lutos e luta da Igreja Presbiteriana de Moçambique e do departamento missionário das igrejas protestantes da Suíça de língua francesa, onde o autor relata de uma forma extraordinariamente clara e dramática o período que precedeu a prisão de Manganhela, a sua permanência na cadeia da Machava juntamente com outros membros da IPM, a sua morte, e o período subsequente, até 1974.

Chamango conheceu e privou com Manganhela, e Andrié partilhou com ele os momentos mais críticos da relação entre o Estado colonial e as igrejas protestantes, onde a vigilância da polícia política condicionava as suas acções, constrangia os seus gestos e obrigava-os a controlar as suas palavras.

Se Honwana (1982 e 1983) trata a prisão e morte de Manganhela do ponto de vista jurídico, quer em Chamango (2005) quer em Andrié (2010) Manganhela é retratado como um mártir da igreja, assassinado pela PIDE, a polícia política do governo colonial. Dos três textos publicados, dois giram essencialmente em redor da sua prisão e morte. Assim, no artigo de Honwana (1982 e 1983) e no ensaio de Andrié (2010), o percurso de vida de Manganhela até 1972, fica praticamente "esquecido". Os relatos de Georges Andrié deixam-nos perceber, umas vezes de forma indirecta outras de forma incisiva, a repressão do regime e a violência do sistema, retratados na prisão de Manganhela e seus colegas, e nas mortes violentas de Manganhela e do evangelista Sidumo.11 O discurso racista do regime, relativamente à população indígena, é representado de forma incisiva por Andrié, ao reproduzir as palavras grosseiras de um ministro do regime colonial português, a propósito das reacções de várias organizações internacionais pela morte de Manganhela: "Mas afinal, porquê tanto barulho por causa de um negro?" (Andrié, 2010: 26). O artigo de Honwana (1982 e 1983), que junta aos autos de acusação e outros documentos algumas entrevistas como base de análise, permite-nos igualmente perceber a violência do regime colonial na sua fase derradeira.

O ensaio de Andrié (2010), ao centrar a sua trama no período que precede a prisão de Manganhela e sua morte, dá-nos uma imagem extremamente dramática e carregada de emoção dos acontecimentos, através dos relatos sobre a prisão e morte de Zedequias Manganhela e José Sidumo, e a prisão de outros membros da Igreja Presbiteriana de Moçambique. O título da sua obra, No cúmulo do sofrimento, revela por si o peso dos relatos nela contidos.

As informações mais completas que obtive sobre a bárbara morte de Manganhela foram-me gentilmente transmitidas por Andrié, numa série de entrevistas realizadas em Lausanne, entre os finais de 1980 e inícios da década de 1990. No seu ensaio publicado em 2010, estes mesmos acontecimentos são retomados. No prefácio a este livro, assinado por Jacques Küng (2010), referências à "resistência" do autor em publicar as suas memórias que, e nas palavras de Küng, "Ele era muito mais um homem da palavra do que da escrita" (ibidem: 5). Depois de comparar as entrevistas que realizei em Lausanne com Andrié e referidas mais acima, com o discurso desenvolvido pelo mesmo testemunho na sua publicação de 2010, encontrei a mesma hierarquização na selecção de acontecimentos, a mesma narrativa dramática e o mesmo espírito crítico do seu autor, que o passar dos anos não apagou nem diminuiu. Isto leva- me a ir para do que Küng considera em Andrié como sendo uma pessoa mais dada a falar que a escrever, para situar essa inconsciente "resistência" em escrever as suas memórias na dor não superada das lembranças. Uma vez que colocamos o documento no estatuto de "não-inocente", e se associarmos estes aspectos à tensão que sempre marcou as relações entre a Missão Suíça/Igreja Presbiteriana de Moçambique, e o Estado colonial português, a hierarquização dos acontecimentos acima referidos é também reveladora do contexto que o autor viveu.

O trabalho de Chamango (2005), embora apareça muito "colado" à autobiografia de Manganhela que referi mais acima, sobretudo para o período da sua infância e juventude, tem no entanto o grande mérito de conter pequenos depoimentos da sua filha mais velha, Margarida; seu filho falecido, Ernesto; seu genro e colaborador por longos anos, João Cuambe, e de outros colegas de Manganhela, que nos oferecem informações importantes e nos retratam a figura do pai e do educador, mas também a de um líder religioso carismático e muito humano, que acreditava no futuro de um Moçambique independente. Chamango (2005) traz-nos também informações sobre um misto de tristeza, revolta e medo que se abateu sobre a comunidade religiosa depois da prisão e morte de Manganhela. A imagem que o autor nos transmite do seu funeral confirma a violência do regime colonial.

As publicações de Chamango (2005) e, em parte, de Andrié (2010), somadas às memórias que me foram transmitidas pelos colegas e amigos ou discípulos do biografado, no seio da Igreja Presbiteriana de Moçambique, retratam a figura de Manganhela centrada na igreja, pretendendo ao mesmo tempo marcar os feitos de um líder religioso, mártir. Embora feito de forma indirecta, é bastante óbvio que uma administração da imagem que se pretende transmitir, o que se aproxima muitas vezes de uma hagiografia. Quer na escrita de Chamango quer na de Andrié, a forma como os acontecimentos são encadeados é reveladora dos laços identitários comunitários e o sentido de pertença dos seus autores, em redor dos quais se desenrola a composição da intriga e se configura a acção dos seus actores, o que é particularmente visível no ensaio de Andrié.

ainda a documentação colonial, da qual destaco particularmente os documentos da PIDE/DGS de 1972 a 1974,12 contendo vários processos dos prisioneiros de 1972, entre os quais Zedequias Manganhela, onde se inclui a sua suposta confissão e a nota também supostamente assinada por ele antes de se "suicidar".13 No conjunto destes documentos, ainda correspondência trocada entre Lourenço Marques e Lisboa a propósito das prisões realizadas na época, e recortes de jornais, entre outros documentos, que nos ajudam a reconstituir a biografia de Zedequias Manganhela, à qual voltaremos mais adiante.

Memória, esquecimento e manipulação de fontes No trabalho que tenho vindo a realizar, e para tomar de empréstimo as palavras de Georges Duby nos seus Diálogos sobre a nova história (Duby e Lardreau, 1989), deparo-me com uma História construída sobre farrapos da memória, onde os vestígios com os quais trabalho, para além de não serem uniformemente repartidos, não foram inocentemente preservados e/ou esquecidos. No processo da narrativa estamos perante situações onde a memória se aproxima e afasta, criando espaços para desenhar mitos e para cultivar o imaginário. Para discutir memória, esquecimento e perdão, retomo a minha pesquisa sobre Zedequias Manganhela.

A minha incursão pela história de vida de Manganhela realizou-se em duas fases diferentes, como referido. Na segunda fase da pesquisa, com um foco diferente e mais direccionado, entre outros testemunhos colectados realizei entrevistas em Moçambique com alguns dos mesmos informadores que havia contactado na primeira fase (neste espaço de tempo, alguns tinham falecido).

A estes, coloquei perguntas novas e retomei algumas questões colocadas na primeira fase, quer para reconfirmar depoimentos ou clarificar algumas ideias, quer para testar se mantinham as mesmas opiniões e postura sobre determinados assuntos abordados nas primeiras entrevistas. Não voltei a contactar os missionários suíços, que todos os entrevistados haviam falecido durante este interregno de mais de vinte anos. Destas duas rondas de entrevistas gostaria de registar e comentar os seguintes acontecimentos: a morte de Manganhela e o protagonismo dos entrevistados.

Na primeira série de entrevistas que realizei, mesmo não sendo estas especificamente direccionadas à vida de Manganhela, a alusão ao seu nome e obra foram sistematicamente mencionados. Destacam-se nestes depoimentos as referências à sua ligação com Eduardo Mondlane e ao seu trabalho como líder da IPM, num complicado processo de transformação da Missão Suíça em IPM, onde a cerrada vigilância da polícia política criava sérios obstáculos às suas actividades. As informações sobre a sua prisão e morte, embora aparentemente reveladas com abertura foram também marcadas por vários silêncios, sobretudo no que se refere à sua morte e à suspeita da existência de alguns delatores entre os membros da sua igreja. Uma das pessoas que entrevistei confessou-me na altura que a "fuga" relativa às discussões sobre a sua morte e prisões de membros da comunidade religiosa se devia ao facto de este assunto ter sido praticamente "silenciado" por decisão tomada pela igreja, para proteger as famílias dos antigos prisioneiros e evitar divisões no seio da IPM. Mais de duas dezenas de anos depois, e na posse de alguns documentos fotocopiados dos arquivos da PIDE/DGS em Lisboa, que incluíam "denúncias" de vários membros da igreja (entre os quais Manganhela) contra os seus colegas, acusados de serem simpatizantes e colaboradores da FRELIMO,14 abordei alguns dos meus informadores da primeira série de entrevistas para novas entrevistas. Confrontados com a lista de nomes mencionados nos diversos processos da PIDE/DGS como colaboradores da FRELIMO, incluindo os seus próprios nomes, discutiram abertamente a impossibilidade de os factos relatados poderem ser verdadeiros, até porque eram contraditórios, mas mencionaram quer a eventualidade de as confissões terem sido feitas sob coação, quer a possibilidade de terem sido forjadas. Não recusaram entretanto a confirmação de que também havia no seu seio membros da comunidade religiosa infiltrados pela PIDE, alguns dos quais pediram perdão depois de terem saído da cadeia em 1972/3, justificando que haviam sido coagidos a aceitar falsas declarações e a assinar documentos. A maior parte dos nomes listados nos processos de acusação a que tive acesso tinham falecido.

Na segunda série de entrevistas verifiquei também haver referências mais vincadas à proximidade entre Manganhela e os meus entrevistados, destacando-se o facto de um significativo número dos meus informantes sublinhar ter sido perseguido ou admoestado pela PIDE/DGS na altura da prisão de Manganhela, ou depois da sua morte.

Nas palavras de Ricoeur, "Pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando diferentemente os protagonistas da acção assim como os contornos dela" (2010: 455). Muitos dos meus entrevistados, a quem revisitei vários anos depois, reconfiguraram os seus discursos. Nos episódios acabados de narrar, está também patente a estratégia de esquecimento, que talvez possa ser vista como um "esquecimento de fuga" (ibidem), inerente ao processo de configuração e reconfiguração do discurso. Do mesmo modo, foi possível encontrar processos de reinterpretação e reapropriação da história, e a construção e reconstrução da imagem de si (entrevistado), bem como a projecção do principal protagonista desta história, Zedequias Manganhela. A meu ver, com este processo tenta-se resgatar a imagem de alguém que lhes é próximo e com quem partilham pertenças, cuja imagem em determinados momentos foi transmitida de forma menos positiva, enquanto: i) a hipótese de suicídio num contexto cristão; ii) as histórias de "traição" e "denúncias" feitas por vários membros da IPM contra outros membros da comunidade, e sobretudo contra Manganhela; iii) as "denúncias" supostamente feitas por Manganhela contra os seus companheiros e membros da comunidade religiosa, mencionados na sua suposta "confissão de culpa", como apoiantes e simpatizantes da FRELIMO. também nestes casos, depois do referido "esquecimento de fuga", prenúncios de uma reconciliação com um passado, marcado pela dor.

No trabalho de configuração da narrativa é necessário tomar consciência das armadilhas criadas não pelo esquecimento, mas sobretudo pela forma como as fontes escritas ou orais podem ser manipuladas. Para além dos casos acima referidos, outros três exemplos podem ser utilizados para ilustrar esta situação: i) os autos de acusação e o processo que inculpa Manganhela e seus companheiros de colaboração com a FRELIMO; ii) a declaração supostamente escrita e assinada por Manganhela e encontrada junto ao seu corpo na prisão da Machava; iii) a declaração de Hans Theodore Thonsen,15 encarcerado numa cela próxima daquela em que se encontrava Manganhela.

Os processos da PIDE/DGS referentes aos prisioneiros de 1972, maioritariamente da IPM, contêm, entre outros documentos, autos de acusação, onde constam "confissões" dos presos políticos com denúncias contra seus companheiros como colaboradores da FRELIMO, mas sobretudo contra Manganhela, para além de alguma correspondência. No processo de Zedequias Manganhela,16 por sua vez, um dossier de 58 folhas, sua presumível "confissão", contendo listas de nomes de membros da sua igreja, de outras confissões religiosas, e até de alguns missionários suíços com quem o acusado mantinha ligações, organizava reuniões ditas de carácter "subversivo", e através dos quais se recolhiam fundos para a FRELIMO.

Uma leitura cuidada destes documentos mostra-nos uma série de contradições internas que colocam em dúvida se estaríamos mediante uma confissão forjada, e coercivamente assinada, ou, para outros casos, se a assinatura seria verdadeira.

No "processo Manganhela", é também possível encontrar uma nota imputada à sua autoria e, com a sua assinatura, que teria sido escrita antes da sua morte, encontrada junto ao seu corpo no pavilhão 7, cela 6, cujos extractos são como se segue: Compreendido e sentido este arrependimento, tenho única e exclusivamente uma alternativa: peço PERDÃO que espero me será concedido pela minha Pátria - Portugal [...] Não podendo suportar mais o peso das falsas acusações e injusta responsabilidade de que me levaram a mentir desmedidamente, suicidei-me na cela 6 do Pavilhão 7 da Cadeia Central da Machava em 10 de Dezembro de 1972. ADEUS ZEDEQUIAS MANGANHELA17 Com esta nota, "assinada" por Manganhela, a polícia tentou provar o seu suicídio.

No artigo de Honwana (1982/1983), a autora refere que em declarações ao processo de inquérito, sua viúva, seu colega Matié ou a missionária Arminda Cruz, para mencionar apenas alguns testemunhos, aceitaram a possibilidade de a assinatura deste documento ser de Manganhela, mas não a escrita contida nas 58 folhas manuscritas da "confissão" de Manganhela, embora contestassem a hipótese de suicídio.

Hans Theodore Thonsen, num depoimento recolhido depois da morte de Manganhela, testemunha que o mesmo foi assassinado pelos guardas prisionais quando se recusou a assinar o "auto de culpa". Estando numa cela muito próxima à do acusado, ele pôde ouvir as conversas trocadas entre os guarda prisionais (que identificou pelos nomes) e Manganhela (de quem reconheceu a voz), tendo referido que este se recusava a assinar um documento, mesmo sob ameaça de morte (Silva, 2014). Este depoimento contradiz as informações contidas nos documentos que fazem parte do acervo da PIDE/DGS em Lisboa, sobre o "processo Manganhela" e a Missão Suíça, e a hipótese de suicídio.

Estes exemplos acabados de mencionar alertam-nos para o perigo da manipulação da narrativa feita provavelmente sob intimidação, ou sedução de libertação da prisão depois da "confissão". Independentemente de estarmos a tratar de documentos forjados ou escritos sob coação, estamos perante mais uma armadilha da narrativa que direcciona a "composição da intriga e impõem uma narrativa canônica" (Ricoeur, 2010: 455).

Reinterpretação e reapropriação Na configuração da narrativa feita pelo seu protagonista ou por terceiros, é comum termos que lidar com a reapropriação da história face a novos contextos sócio-políticos, ao desenvolvimento de mitos e à mistificação de uma figura, aspectos que se prendem também com a manipulação da memória, o esquecimento e o apelo às identidades, sobretudo colectivas. Para ilustrar esta situação, parto da história de vida de Eduardo Mondlane.

Trabalhar com a história de vida de Eduardo Mondlane, destacado herói nacional, implica ter que tomar como primeiro obstáculo a existência de "histórias oficiais"18 e ideologizantes, desconstruir mitos e distinguir a produção resultante do imaginário popular da história real. Ao contrário do sucedido com o meu estudo sobre Manganhela, antes da escrita deste texto não tive oportunidade de revisitar a trajectória de vida de Mondlane por via dos entrevistados que foram testemunhos da sua vida e obra na primeira fase da minha pesquisa, que a maioria deles tinha falecido.

As minhas entrevistas com os missionários suíços, muitas das quais na altura especificamente voltadas para o tema Eduardo Mondlane, são no entanto a melhor ilustração das formas de configuração e reconfiguração, onde os protagonistas da acção e os seus contornos podem ser deslocados para outros lugares e posições, de acordo com os contextos da produção da narrativa (Ricoeur, 2010).

Nestas entrevistas foi possível constatar que, vários anos passados depois da morte de Mondlane e da independência de Moçambique, quer a vitória da FRELIMO contra o colonialismo português quer os feitos de Mondlane eram reinterpretados à luz da história presente, dando também protagonismo à Missão Suíça e a alguns dos seus missionários.

No imaginário popular, a figura de Eduardo Mondlane também deu azo a várias interpretações e reinterpretações sobre a sua vida, envolta em mitos. Em 1961, quase 11 anos depois de ter partido do seu país para estudar em Lisboa por um curtíssimo período, seguido dos seus anos nos Estados Unidos da América, Mondlane volta a Moçambique. Como nos dizia o missionário André-Daniel Clerc em 1985,19 Eduardo tinha saído um rapaz pobre, para estudar, e regressava agora como funcionário das Nações Unidas e professor universitário. Era um dos raríssimos negros moçambicanos com doutoramento, e voltava casado com uma esposa branca e americana.

Durante a sua estadia em Moçambique, Eduardo Mondlane visitou amigos e familiares em Lourenço Marques, em Gaza (sua terra natal) e em Inhambane.

Participou em cultos religiosos, e falou aos crentes da sua igreja na pequena paróquia de Chamanculo em Lourenço Marques. A sua viagem para Gaza e Inhambane foi contada e recontada em diversas versões (Silva, 1993a), das quais o nosso registo gravou uma nota comum: por um lado, o receio que os moçambicanos e os missionários suíços tinham que as autoridades coloniais intentassem qualquer acção que colocasse em risco de vida Mondlane e a família; por outro lado, e contraditoriamente com a primeira questão, a grande preocupação das autoridades coloniais em garantir a segurança de Mondlane, tentando deste modo evitar possíveis conflitos diplomáticos, numa altura em que a colonização de Portugal era alvo de críticas severas nos círculos políticos internacionais.

Na história dos movimentos de libertação em África é comum encontrarmos a parábola da águia contada e recontada em diversas versões, mas sempre com um objectivo similar, ou seja, despertar na sociedade a ideia de que a liberdade é sempre alcançável, mesmo não sendo um processo fácil. A parábola trata de uma águia que cresceu e viveu em cativeiro, juntamente com aves domésticas. Na primeira ocasião em que o seu dono abriu as portas e lhe deu a liberdade para voar, a águia fê-lo mas voltou à capoeira onde crescera. Nas vezes seguintes, ela voou para mais longe e regressou várias vezes, até que um dia não voltou.

Na sua intervenção em Chamanculo, durante o culto de domingo, falando aos crentes, Mondlane trouxe a parábola da águia. Nas muitas versões que ouvi sobre este episódio encontrei mais uma vez a configuração e a reconfiguração da narrativa, celebrando de diversas formas a figura de Mondlane como "profeta da liberdade".

Nos dois exemplos acabados de referir as narrativas revelam os vínculos de pertença que ligavam Mondlane aos meus entrevistados. As diversas narrativas permitiram fazer uma leitura da sua configuração na base, quer da constituição de identidades pessoais, que ligavam Mondlane aos missionários suíços ou aos seus amigos, quer das identidades comunitárias, construídas na base da religião e da nacionalidade.

3. Complexidades metodológicas da escrita biográfica As diversas leituras feitas a posteriori,sobre Manganhela ou Mondlane, não podem ser dissociadas do contexto da "recuperação" de uma história nacional que havia sido preterida para segundo plano durante o período colonial, sem esquecer que, por sua vez, ela também mergulha no seio da construção de figuras de heróis nacionais. Tudo isto se situa, ainda, quer no quadro de uma história oficial de Moçambique, quer no quadro da própria história institucional da IPM/ Missão Suíça à qual ambos se encontravam intrinsecamente ligados, alertando-nos para a identificação dos vários desafios a enfrentar quando tomamos a narrativa biográfica como possibilidade de escrita da História.

Os contextos em que as narrativas biográficas de Manganhela e Mondlane se foram construindo e reconstruindo, são também exemplos da importância da relação entre memória, história e identidade, e da forma como a pertença e a memória são fundamentais na formação identitária de grupos e no estabelecimento do sentido de coerência, permitindo a regulação do seu comportamento social.

A relação entre a História e o tempo marcou as diversas escolas e épocas. Na narrativa histórica, a reflexão faz-se a partir da relação entre tempo vivido e narração, levantando a problemática da História Imediata e da História do Tempo Presente, onde podemos situar as narrativas biográficas. As interrogações que hoje se colocam sobre os desafios metodológicos da narrativa biográfica são o resultado de uma visão não linear dos fenómenos onde a relação entre história, memória, identidade e sua conjugação com o tempo presente trazem novos questionamentos (Fiúza, 2007), que levaram a adequar o arsenal teórico- metodológico da ciência histórica para poder captar a actualidade.


Download text