Representantes e dominantes: Os governantes e as relações de classe em Portugal
Introdução
Precisar as pertenças e as relações de classe, nas suas agregações coletivas e
manifestações individuais, estabelecidas pelos titulares do poder executivo em
Portugal no período da democracia constitucional é a carência sociológica
existente que nos propomos a tratar neste artigo. Esse esforço analítico
implica delimitar um aporte teórico e conceptual capaz de dotar de sentido e
classificação o diminuto universo constituído pelos 776 ministros e secretários
de Estado, que integraram os 19 governos constitucionais (1976-2013). Para tal,
procura-se expandir, sob um prisma particular, a análise realizada recentemente
sobre a realidade da burguesia portuguesa e para a qual remetemos nas questões
de maior abrangência (Louçã, Lopes e Costa, 2014).
Este estudo do universo constituído pelos indivíduos que desempenharam funções
de governação, daqui em diante designados por governantes, seguiu uma análise
longitudinal dos percursos individuais, estabelecendo como indicadores
relevantes: o capital escolar; o percurso profissional; a ocupação de cargos
públicos; as relações no domínio da propriedade. O resultado deste exame,1
inédito na sociologia portuguesa, procura contribuir para a agregação de
conhecimento das relações de classe em Portugal e confrontar duas questões
sociológicas específicas, sumariadas nesta introdução: (i) situar em que
extensão a passagem por cargos executivos de governação resulta num processo de
mobilidade social ascendente por parte dos atores envolvidos; (ii) aferir de
que forma o processo de cooptação política para os altos cargos do Estado se
relaciona com os interesses dos detentores de capital numa dada estratégia de
acumulação.
1. Da burguesia ao Estado
Em Os burgueses(Louçã, Lopes e Costa, 2014), defendemos que a burguesia se
define pela relação social de acumulação de valor numa sociedade de classes,
por via da exploração direta e indireta, mas também pela sua capacidade de
cooptação, reprodução, governação e legitimação nas relações estabelecidas com
as outras classes. A burguesia é, portanto, a classe que detém os meios de
produção e que determina a reprodução da estrutura social da sociedade moderna.
É a classe mais visível, homogénea e consciente, mas também a mais
desconhecida. Caracterizar este processo combinado de dominação implica, antes
de mais, situar as relações específicas através das quais se operam os padrões
de domínio da burguesia, nomeadamente as que se estabelecem para lá do mero
plano económico.
Nessa abordagem, a existência e a reprodução do Estado como arena de confronto
constitui um campo suplementar e não secundário das relações de classe, uma vez
que reflete, mesmo que de forma distorcida, o conflito social que engendrou a
sua própria construção e lhe concedeu uma função de poder na reprodução da
estrutura social. O foco não reside apenas nas instituições que asseguram
funções específicas e nessa sua pluralidade constituem os diversos ramos do
Estado - governo, administração central, aparelho coercivo, poder
judicial - mas antes na conexão entre a função dessas instituições e as
formações sociais e históricas que as erigiram, revelando as bases sobre as
quais é produzida a sua legitimidade.
O debate em torno do binómio Estado-sociedade remonta aos clássicos da
sociologia, estabelecendo correntes dissonantes no que respeita à leitura das
ligações estabelecidas entre as esferas económica e política. Sumariamente,
podemos identificar uma primeira abordagem que dá primazia à coesão social2
entre os grupos e classes sociais, presente em várias escolas de pensamento,
podendo ser encontrada de forma vincada na teoria social dos
(estruturo)funcionalistas de Durkheim (1973) até Parsons3 (1988) - assim
como em parte da teoria económica (neo)liberal - de Adam Smith a Friedman
(1962). Enquanto os primeiros tendem a valorizar a função integradora do Estado
perante sociedades em processo de rápida transformação, a matriz liberal
valoriza a separação existente entre a esfera económica e a esfera política.
Nesta visão, o Estado surge como uma entidade acima dos conflitos endógenos da
sociedade, garantindo o exercício do poder sem intromissão de maior nas
relações de propriedade, que se apresentam, por sua vez, naturalizadas e
desligadas da relação de forças existente no plano político.
Neste artigo seguiremos uma abordagem teórica distinta. A análise acumulada
pelas correntes críticas - do contributo marxista aos (neo)weberianos,4
não obliterando os teóricos do poder e das elites, como Wright Mills (1981)
- que desvendaram dimensões do conflito social na base histórica e
substantiva da formação dos Estados fornece-nos claras evidências das ligações
intrínsecas estabelecidas entre o poder económico e o poder político. Seguindo
o enfoque proposto por Bob Jessop (1990), assumimos que a particularidade do
Estado, caracterizada pela dissociação formal da estratégia de acumulação de
valor dominante em cada época, está intimamente relacionada com as suas formas
de representação. Por outras palavras, à conhecida súmula de Max Weber, do
"Estado como monopólio do uso legítimo da violência física num dado
território" (2004: 525), é necessário acrescentar o Estado como produtor
de representações legitimadas, permitindo aos seus dirigentes a reivindicação
de uma autonomia, mais ou menos relativa, em face dos interesses divergentes
presentes na sociedade.
Ainda segundo Jessop, o facto de o poder de Estado no capitalismo tardio se
estabelecer em função da organização social de uma classe particular, a
burguesia, não anula a existência de "projetos hegemónicos
diferentes".5 As vias pelas quais os aspetos substantivos do Estado
encontram o respaldo ou a rejeição de uma base social muito heterogénea são
variáveis. A viabilidade de cada projeto hegemónico, que tenha no Estado o seu
principal pilar de sustentação e responda à lógica de acumulação de valor, está
dependente de múltiplos fatores, entre os quais a capacidade de conciliar
interesses particulares divergentes entre a própria classe economicamente
dominante, de forma a não prejudicar a reprodução do valor em geral.6 Desse
modo, do fecundo debate sobre a função e a autonomia do Estado numa sociedade
de classes,7 estabelecemos que os meios de representação política, assim como
as características e os arquétipos do seu exercício, constituem um objeto de
suma importância na apreensão do problema: o que importa aqui compreender é
como as formas de cooptação política para os altos cargos do Estado e o papel
desempenhado pelos ex-governantes se relacionam com os interesses dos
detentores de capital numa dada estratégia de acumulação.
A existência de diversos "formatos de representação", que
condicionam a seleção dos representantes políticos, não determina por si só os
meios pelos quais essa representação é assegurada, mas antes remete para o
contexto no qual a classe economicamente dominante garante a reprodução das
suas posições por via do Estado (Therborn, 1978: 183). A arqueologia de um
debate particular ajuda-nos a avançar. Perfilando a abordagem estruturalista,
Poulantzas (1978: 147) recusa a conceção instrumentalista do Estado concebido
como utensílio passivo, manipulado por uma só classe ou fração de classe,
realçando o facto de o "pessoal do Estado" constituir uma categoria
social por efeito da própria organização estatal, mas uma categoria que não é,
contudo, desprovida de um lugar de classe: "As contradições e divisões no
seio do bloco no poder repercutem-se, pois, no seio das altas esferas do
Pessoal do Estado. Mais: em virtude da pertença de classe pequeno-burguesa de
largas partes deste pessoal, as lutas populares afetam-no forçosamente".
Daí que mesmo avançando a conceptualização de uma "fração
hegemónica", que assegura a aliança coerente das classes dominantes,
Poulantzas não estabeleça uma relação desse domínio como sendo dependente da
ocupação dos altos cargos do Estado.
A esta visão dos agentes como portadores de disposições objetivas,
condicionadas por uma estrutura de classes, Ralph Miliband (1973) contrapõe a
necessidade de um aporte empírico mais apurado na investigação dessas ligações.
Esta análise, excessivamente taxada como "instrumentalista", legou-
nos pistas importantes no estudo das relações de representação. Segundo
Miliband, tratar a "elite do Estado" como uma entidade separada não
anula a necessidade de analisar as relações que esta estabelece com a classe
economicamente dominante, realçando o caráter histórico de cada processo:
Uma classe que possua ou controle os meios de produção deve também
ter uma adequada segurança, pelo menos, com relação à boa vontade e à
proteção daqueles que controlam os meios de administração e coerção;
e os que controlam o Estado devem ser capazes de confiar na
cooperação daqueles que possuem ou controlam os meios de produção. É
provável que os principais meios para estabelecer a comunicação e a
aprovação decorram do controle dos outros dois meios. (Miliband,
1999: 476)
Para tal, a tese apresentada por Raymond Aron (1964), que dá conta da
importância dos detentores de capital na reprodução das relações económicas,
mas que minimiza a sua participação em funções de representação política, deve
ser questionada. A composição desta "elite do Estado" importa, pois
releva, em parte, como é realizada a cooptação e seleção dos representantes em
cada país, sublinhando o papel desempenhado pelos governantes na estrutura
económica depois da sua passagem pelo exercício do poder.8
Atentando a este enquadramento e ao contexto histórico e particular do Portugal
moderno, apresentamos justamente uma tese sobre o papel do Estado como base de
sustentação da acumulação de capital (Louçã, Lopes e Costa, 2014: 506). Ao
tratar os cinco instrumentos de construção do poder económico durante a
vigência da ditadura - o disciplinamento da força de trabalho, a
concentração forçada de setores produtivos, a proteção contra a concorrência
externa, a garantia do mercado colonial e a criação de novas empresas sob o
modelo de monopólio - estabelecemos a envergadura da dependência do
capital privado face à proteção estatal. Esta base de dominação estendeu-se ao
período democrático, mas não sem uma necessária reconfiguração.
A perda dos mercados coloniais e o levantamento da proteção e tutela sobre os
mercados internos abriu caminho a três formas de acumulação suplementares de
capital. Encontramos, em primeiro lugar, as transferências estabelecidas por
via do sistema financeiro, com os bancos a funcionarem como centros de
investimentos através de aplicações em monopólios e áreas de rendas garantidas,
sendo as privatizações, ocorridas na década de noventa e no início do século,
determinantes para este processo. Segue-se um sistema fiscal ancorado nos
benefícios e proteção concedidos aos grandes grupos económicos, com o Estado a
reequilibrar a dotação orçamental por via do fator trabalho. E, por fim, a
manutenção de canais que alimentam o caudal de evasão fiscal, como os offshores
e outros instrumentos de fraude, que retiram uma fatia substancial à capacidade
tributária do país. Em todos estes processos, o Estado é uma peça central para
a reprodução do poder económico, detido por um núcleo da burguesia altamente
concentrado e apoiado por uma rede de gestores e administradores que totalizam
de 2 a 3% da população.
Esta leitura, bem a propósito do que nos interessa aqui tratar, situa a
reprodução da burguesia em Portugal por via da acumulação de capital,
permitindo aferir as relações pelas quais se estabelece uma transposição do
poder entre o económico e o político. A replicação do poder da burguesia,
defendemos em Os burgueses (2014: 504), está igualmente dependente de um
processo de cooptação que se traduz na associação entre os interesses da
acumulação de capital e os grupos de governantes e ex-governantes. Esse
processo de cooptação promove um robusto processo de mobilidade social
ascendente, ao mesmo tempo que gera uma naturalização e interiorização do poder
económico como principal fator de estabilidade do poder político.
Importa ainda recordar que a junção de uma teoria crítica do Estado a uma
análise empírica capaz de revelar estes laços foi mote de investigações
relevantes no contexto internacional, desde logo na importância concedida ao
meio escolar e à cultura na reprodução do sistema social (Bourdieu e Boltanski,
1976), bem como nos efeitos destes mecanismos sobre a seleção dos governantes e
do pessoal do Estado (Bourdieu, 1989). O nível económico, destacando as
relações de propriedade desenvolvidas por ex-governantes e os processos de
cooptação por parte de grandes grupos empresariais, adquiriu igualmente
relevância (Shleifer e Vishny, 1994; Faccio, 2006). Na análise que se segue
impõe-se, portanto, a busca das interligações capazes de elevar, a partir da
teoria existente, um conhecimento situado, adquirido pela recolha empírica, ao
plano de um processo social (Burawoy, 2009: 40). No caso, as relações de classe
dos governantes em Portugal nos últimos 40 anos.
2. Os governantes e a burguesia dirigente e profissional
Precursor no estudo das classes sociais, Hermínio Martins (2006) concedeu-nos
uma análise cuidada da sociedade portuguesa sob a égide dos últimos anos de
poder ditatorial (1969-1974). O seu enfoque relacional, que valoriza as aceções
de status e poder como campos adstritos à relação de classe, permite, na
esteira de Max Weber, aportar numa explicação pluricausal das relações sociais.
Referindo-se às disposições e relações de classe, Martins posiciona a
"elite política"9 como um dos centros de poder de uma ditadura que
classifica perentoriamente como classista. Análise que se apoia na evidência de
uma ordem social marcada por uma mobilidade social condicionada, onde os
elementos das "classes baixas" ou socialmente marginais
dificilmente ascendem ao restrito círculo da elite política. Como refere
Martins:
No caso de Portugal, o acesso à elite política é determinado pela
origem social ou pelo recrutamento através de instituições militares
ou educativas prestigiantes e altamente selectivas, ou por ambos;
através de organizações formais e relações informais, conubiais e
conviviais, a elite política torna-se profundamente identificada com
a classe alta. (ibidem: 103)
A similaridade de hábitos, padrões de consumo e de afirmação identitária a
partir de encontros cerimoniais e cruzamentos familiares, que leva Martins a
estabelecer uma íntima conexão entre a elite política e a "classe
alta", seria própria de um regime dominado por uma elite diversificada
- latifundiários; financeiros; grandes industriais; escalões superiores
das Forças Armadas, da função pública e da universidade; episcopado católico e
os quadros superiores das profissões liberais -, porém reduzida em número
e apoiada num alto grau de concentração económica.10 Os processos de cooptação
e assimilação de elementos de outras classes, destacados pela via profissional
ou política, caracterizam também a reprodução de um poder assente na repressão
e no controlo estatal apertado em quase todos os setores da economia (Martins,
2006: 105).
As análises de classe que se seguiram a este período trataram uma realidade já
muito modificada, influenciada pela internacionalização da economia, a
reconfiguração do setor industrial, o recuo da produção agrícola e o grande
alargamento dos serviços. O período democrático, com o crescimento dos serviços
públicos sob a égide do Estado, é caracterizado por uma grande transformação na
estrutura das classes sociais em Portugal, estudada, desde então, por vários
autores (Almeida, Costa e Machado, 1994; Estanque e Mendes, 1997; Queiroz,
2005; Silva, 2009; Carmo, 2013).
Em meio às diversas correntes teóricas que tratam de analisar as classes
sociais, a categorização dos indivíduos que ocupam cargos dirigentes no seio do
poder executivo levanta algumas questões de ordem conceptual.11 Estanque e
Mendes (1997), no seu estudo inserido na rede internacional dinamizada por Erik
Olin Wright, apresentam uma tipologia de localização das classes que valoriza a
distribuição dos "recursos em meios de produção" como divisor
social entre aqueles que possuem os meios de produção e os que estão compelidos
a vender a sua força de trabalho como único meio para a sua subsistência. Este
critério, que colhe na conceção marxista clássica, não figura, porém, como
suficiente para uma análise mais acurada da complexa estrutura de classes no
capitalismo tardio. Por isso, os autores incorporam no seu quadro de análise a
chamada "exploração organizacional ou burocrática" (controlo
desigual de recursos organizacionais; autoridade) e a "exploração por
credenciais ou qualificações" (controlo desigual de qualificações
escassas). Neste quadro, a categoria de "gestor"12 é separada da de
"burguesia/capitalistas", pelo facto de os primeiros apresentarem
recursos organizacionais (autoridade sobre subordinados, capacidade de decisão
na organização) e posse de qualificações (credenciais e capital escolar), mas
ausência de propriedade dos meios de produção. Enquanto a burguesia
representava, à data, 0,8% da população, os gestores qualificados ascendiam a
2,6%. Mendes e Estanque realçam ainda o peso do Estado na fatia constituída
pelos gestores, uma vez que empregava 14,7% do total da categoria.
Privilegiando uma abordagem mais centrada nos processos de mobilidade social
(trajetórias de classe) e na categorização dos indicadores profissionais, a
tipologia cunhada por João Ferreira de Almeida, António Firmino da Costa e
Fernando Luís Machado (1988, 1994) estabeleceu, numa primeira fase, limites
mais alargados para as frações superiores, situando na Burguesia Empresarial e
Proprietária (BEP) todos os indivíduos que ocupem a posição de
"patrões". Já a categoria de Burguesia Dirigente e Profissional
(BDP) fica delimitada às "profissões científicas, técnicas e
artísticas", cujos indivíduos desempenhem a profissão na condição de
"isolados" (trabalhadores por conta própria), e ao grupo de
"diretores e quadros superiores", cujos indivíduos desempenhem a
profissão na condição de "isolados" ou "assalariados".
Estes autores consolidaram, mais tarde, esta tipologia com base numa matriz
profissional e familiar, na qual o grupo designado por Empresários, Dirigentes
e Profissionais Liberais (EDL), e o grupo constituído por Profissionais
Técnicos e de Enquadramento (PTE) ocupam as posições cimeiras da estrutura de
classes (Machado et al., 2003: 51). No primeiro grupo inserem-se todos os
profissionais que desempenhem as suas funções na qualidade de
"patrões", mas também os "trabalhadores por conta
própria" e por "conta de outrem" que se encontrem na
categoria de "Quadros Superiores da Administração Pública, Dirigentes e
Quadros Superiores de Empresas", assim como os "Especialistas das
Profissões Intelectuais e Científicas" e os "Técnicos e
Profissionais de Nível Intermédio" que se encontrem na condição de
"trabalhadores por conta própria". Os profissionais destas últimas
duas categorias que são trabalhadores por "conta de outrem"
totalizam o segundo grupo (PTE). A aplicação desta tipologia realizada por
Cristina Roldão (2008), tendo por base os dados do European Social Survey,
quantificou a burguesia em 11,6% da população.13
A inclusão da BDP no segundo patamar da estrutura de classes é igualmente
secundada por Queiroz (2005), que valoriza o alargamento dos critérios já
mencionados da propriedade, da escolarização e da autoridade no contexto de
trabalho. Segundo esta autora, a BDP é constituída pelos "gestores de
empresas privadas" e os "dirigentes de empresas e serviços
estatais". Os valores destas categorias são, todavia, diminutos em
Portugal: o contingente total da BDP aumentou de 1,4% da população ativa em
1991 para 2,9% em 2001. O Estado e as grandes e médias empresas concentravam,
em 2001, 77,2% do total da BDP, sendo que nestes dois sectores, 36,4% dos
indivíduos possuíam grau de escolarização superior e universitária.
Destas análises não ressalta, à primeira vista, uma análise especificamente
dirigida a uma "elite política", tal como realizada por Hermínio
Martins, nem os critérios estabelecidos a partir das características de tipo
escolar, organizacional e de relações de propriedade se aplicam corretamente ao
contexto temporalmente delimitado do exercício de cargo executivo e eletivo. Os
elementos estabelecidos por estes autores para a análise das classes sociais
contam, todavia, para uma melhor compreensão da pertença de classe do universo
em causa, particularmente da sua relação com a BDP. Para uma leitura mais
aprofundada das relações de classe dos governantes cabe, a partir desse
enquadramento, assinalar a variação dos indicadores desde a perspetiva
longitudinal dos percursos de vida, antes e depois da passagem pelo governo, a
saber: o grau de qualificação escolar; as relações de propriedade; o tipo de
ligação estabelecido com as empresas.14
3. Os governantes em Portugal: um retrato
A recolha dos dados referentes aos percursos individuais dos 776 governantes,
que ocuparam 1281 cargos de ministro ou secretário de Estado ao longo dos 19
governos constitucionais, resultou em 90% de informação válida, ou seja, em
apenas 10% dos casos (78 governantes) não se encontraram dados disponíveis. A
metodologia e a análise detalhada das relações estabelecidas por este universo
foi exposta em capítulo próprio de Os burgueses(2014),15 pelo que neste artigo
cabe enfatizar, como assinalamos na introdução, alguns dos aspetos particulares
das ligações de classe dos governantes.
A primeira dessas relações diz respeito ao capital escolar, um indicador
importante por figurar como variável principal da já mencionada exploração
credencial. É relevante verificar, à partida, que dos 530 governantes sobre os
quais foi possível averiguar a trajetória escolar (68% do total), apenas 10
obtiveram a formação universitária depois da sua passagem pelo governo. No que
concerne às tendências gerais, é possível constatar que 370 governantes (69%)
se formaram em universidades de Lisboa, seguindo-se as universidades de
Coimbra, com 77 governantes (15%), e do Porto, com 57 governantes (11%). São
muito poucos, apenas 22, os governantes que se formaram em outras universidades
do país. Também na área de formação dos governantes há uma alta concentração,
com destaque para três cursos: licenciatura em Direito (178 governantes, que
ocuparam 297 cargos); licenciatura em Economia, Finanças e Gestão (155
governantes, que ocuparam 268 cargos); licenciatura em Engenharia (102
governantes, que ocuparam 181 cargos). Este equilíbrio, como nos revela o
Gráfico_1, tem variado significativamente consoante o governo. A partir destes
dados é possível aferir que o padrão de recrutamento dos governantes em
Portugal é marcado por uma alta incidência de quadros com formação superior,
evidenciando uma fraca acumulação de capital escolar associada ao exercício do
poder. É ainda significativa a concentração de formação em três universidades
nacionais, bem como a hegemonia de três áreas de formação específicas.
O segundo domínio que importa analisar é o das relações de propriedade e de
autoridade no contexto da organização do trabalho. Do universo de 698
governantes sobre os quais existem informações, verificamos que 415 (59%)
estabeleceram relações empresariais, antes ou depois da passagem pelo governo,
seja ao nível da ocupação de posições cimeiras na administração de entidades
públicas e privadas, no desempenho de cargos em grandes escritórios de
advogados, ou na posse de capital das empresas. A evolução dessas ligações,
revelada pelo Gráfico_2, mostra que de todos os governos anteriores a 2005,
apenas o IX Governo, formado pelo bloco central, apresenta menos de 50% de
governantes com ligações económicas. Os que revelam essas ligações com mais
intensidade são o X Governo (65% com ligações), o XI Governo (68% com
ligações), o XV Governo (76% com ligações) e o XVI (80% com ligações); em
contrapartida, o VIII Governo (51% com ligações), o IX Governo (48% com
ligações), o XII (36% com ligações) e o XIII (25% com ligações) são os que
menos ligações apresentam.16
De forma a refinar esta análise, ligando-a ao foco da exploração capitalista
(posse dos meios de produção) e da exploração organizacional (hierarquia
organizacional), cabe destrinçar o tipo de relação estabelecida. Essa opção
permite verificar que dos 415 governantes que constituíram relações económicas,
apenas 6 o fizeram exclusivamente por via da propriedade direta da posse de
capital. Já os que somaram a posse de capital à ocupação de cargo hierárquico
relevante antes da passagem pelo governo totalizam os 26 governantes. No caso
de 20 governantes que já haviam ocupado cargos em empresas, as relações de
propriedade foram estabelecidas apenas depois da passagem pelo governo. Já o
contrário, um percurso iniciado pela relação de propriedade para depois do
governo alcançar os lugares cimeiros em empresas, foi realizado por apenas 2
governantes. Por fim, para 25 destes governantes a passagem pelo governo
significou o acesso à propriedade de capital e a uma ou mais posições
privilegiadas a nível organizacional.
Foi, no entanto, pela via exclusiva da ocupação de cargos de direção que a
maioria dos governantes constituiu a sua ligação. Foram 171 os governantes que
já exerciam funções de direção aquando da sua passagem para o governo, e 158 os
que alcançaram essas posições depois de desempenhado o cargo governativo. Esta
análise revela que ao contrário do que acontece a nível escolar, a passagem
pelo governo está associada a uma forte mobilidade social ascendente, com 28%
dos governantes sobre os quais existe informação disponível a estabelecer uma
relação económica dominante apenas depois da passagem pelo governo (47% do
total com ligações). Já o facto de 31% dos governantes (53% do total com
ligações) aportar no governo vindo de um cargo de direção empresarial é também
revelador do padrão de recrutamento levado a cabo pelos partidos na escolha dos
seus representantes.
Estas tendências não revelam, contudo, a evolução das ligações estabelecidas em
termos da dimensão das empresas (número de trabalhadores) ou da intensidade dos
cargos desempenhados (número de ligações). Essas duas dimensões importam na
medida em que apreendem o tipo de trânsito estabelecido pelos governantes e as
estratégias de cooptação do poder económico, assim como valorizam os critérios
estabelecidos na literatura das classes sociais, desde logo no que diz respeito
à exploração organizacional a partir de uma perspetiva longitudinal. Para tal,
e à falta de informação continuada sobre o número de trabalhadores empregados
pelas empresas assinaladas, cabe usar a categoria de "grandes grupos
económicos",17 construída em Os burgueses (2014: 158),pelo facto de
englobar, inequivocamente, empresas de grande dimensão (mais de 100
trabalhadores).
A relevância desta abordagem confirma-se pela constatação de que quase metade
dos governantes com ligações a empresas se associaram, antes ou depois do
governo, a estes grandes grupos. Foram 170, mais de um quinto do total, os
governantes que se vincularam a estes grupos, ocupando 311 cargos governativos
(um quarto das posições de poder), o que revela uma maior repetição em funções
executivas quando comparado com os restantes. A composição dos X, XI e XII
Governos, que apresentam 63%, 42% e 44% de representantes ligados aos grandes
grupos (Gráfico_3), determina em grande medida esta tendência.
Este trânsito privilegiado verificado nas altas instâncias do poder económico
em Portugal revela ainda um padrão diferenciador na cooptação dos governantes
por parte destas grandes empresas. Do total de governantes desta categoria,
apenas 56 (33%) estabeleceram o seu vínculo com uma ou mais destas empresas
antes de aportarem no governo, sendo que 114 (67%) apenas acederam a este
círculo restrito depois de deixarem as funções executivas. Verificamos,
igualmente, que este conjunto de governantes beneficiou comparativamente mais
com a sua passagem pelo governo, posto que se regista um avolumar considerável
de cargos ocupados a nível empresarial: antes da chegada ao governo, estes
governantes desempenharam 320 cargos em empresas, sendo que em 57 casos não
tinham desempenhado nenhum cargo, já no período pós-governo contabilizamos a
ocupação de 1350 cargos em empresas.
O estreitamento do exame aos governantes na categoria referente aos grandes
grupos permite-nos identificar, num patamar económico superior, uma tendência
preponderante de cooptação de ex-governantes, em contraponto com a colocação de
quadros empresariais sem experiência política em cargos governativos, o que
acontece com menor intensidade. O facto de nesta categoria o processo de
acumulação e ascensão social ser consideravelmente mais acelerado, marcado
inclusive pela maior ocupação de cargos executivos, aponta para um fenómeno de
interligação do poder político e económico, plasmado na multiplicação de redes
e cargos desempenhados por estes ex-governantes.
Conclusão
A relação de cooptação, que se traduz na associação entre os detentores de
capital e os grupos de governantes e ex-governantes, revela-se como um processo
social de grande relevância. O estudo do trânsito estabelecido pelos
governantes, antes e depois da sua passagem pelo poder executivo, aponta para o
estabelecimento de vínculos com o poder económico de forma constante e
transversal aos diversos governos ao longo do período observado. Apenas nos
governos mais recentes, cujos membros cessaram funções há relativamente pouco
tempo, a percentagem de ligações não supera os 50% dos governantes. Essas
ligações intensificam-se, inclusive, nos governos que dinamizaram uma das
formas assinaladas de acumulação suplementar de capital, as transferências
estabelecidas por via do sistema financeiro, apoiadas nos processos de
privatização, no caso o período que vai do X ao XVI Governos.
Ao observarmos a trajetória individual dos governantes, destrinçando os níveis
da mobilidade estrutural (propriedade; autoridade; qualificações), verificamos,
em primeiro lugar, que a cooptação de dirigentes para os cargos governativos
obedece a um elevado padrão de qualificações escolares. Mais de dois terços dos
governantes em Portugal possuía formação superior antes de chegar ao governo,
sendo provenientes, na sua maioria, das universidades do Porto, Coimbra e
Lisboa. O percurso escolar destes governantes revela ainda uma uniformização
balizada por três cursos, Direito, Economia e Engenharia, pelo que podemos
falar de uma estratégia assente na acumulação de capital escolar específica
assumida pelos partidos nas escolhas dos seus principais quadros. Essa
evidência reforça-se pela quase inexistência de formação escolar associada ao
desempenho do cargo ou ao período que se lhe segue: a entrada nos cargos
executivos está determinada por um grau de qualificação superior ao existente
em todas as frações da burguesia, inclusive a BDP, havendo um espaço muito
reduzido para a ascensão de quadros sem qualificações.
As relações de autoridade e propriedade revelam tendências distintas. Há um
conjunto significativo de governantes que provêm de cargos profissionais
desprovidos de uma posição de autoridade ou propriedade dominante. Neste
conjunto, porém, o exercício integral de cargos legislativos (deputados) e do
ensino superior (professores) constituem a maioria dos casos, pelo que não
sendo aqui contabilizados como ligações económicas, acarretam necessariamente
algum grau de autoridade sobre outros. Os governantes nesta condição são, ainda
assim, uma minoria. Na maioria dos casos, duas tendências marcam as relações
económicas estabelecidas antes ou depois da passagem pelo cargo governativo. A
primeira dá conta do pouco peso das relações de propriedade nas trajetórias dos
governantes, com apenas 2% a estabelecer ligações económicas exclusivamente por
essa via. Essa constatação remete, por exclusão, para os 81% dos governantes
que constituíram ligações pela via exclusiva de cargos de autoridade, aos quais
se somam 17% que o fizeram também, em paralelo, por via da propriedade.
Ao tratar estes números, o que remete a maioria deste universo para a categoria
dos "gestores" e da BDP, desde uma perspetiva longitudinal,
alcançamos uma melhor interpretação do trânsito estabelecido por estes
dirigentes. O facto de quase um terço do total de governantes alcançar posições
economicamente dominantes apenas depois de passarem pelo governo, revela um
processo significativo de mobilidade social ascendente associado ao exercício
das funções. Por outro lado, o facto de 31% de governantes que integram o
governo provirem de uma posição dominante manifesta uma estratégia levada a
cabo pelos partidos, que se socorrem de quadros firmados a partir da atividade
empresarial. Assumimos, igualmente, a limitação desta análise no que diz
respeito à mobilidade "intergeracional", cuja recolha de dados se
afigura difícil, mas que tornaria a análise mais refinada no que concerne à
mobilidade ou reprodução social dos lugares de classe.
Esta análise é, não obstante, insuficiente para situar os diversos níveis de
poder económico, uma vez que engloba todas as ligações de todos os governantes.
De forma a particularizar as relações situadas nas frações superiores do poder
económico, recorremos à categoria de "grandes grupos económicos". O
tratamento deste conjunto revelou diferenças significativas. Este grupo
diminuto de entidades cativou, nos últimos quarenta anos, não só quase metade
dos governantes com ligações, como seguiu uma estratégia de cooptação muito
mais agressiva do que as restantes empresas. O facto de mais de dois terços dos
governantes chegarem a estes grupos económicos apenas depois de passarem pelo
governo, demonstra a valorização e preocupação dos últimos em respaldar o seu
poder económico por via do capital político destes dirigentes. Essa
transposição de papéis resulta ainda, atentando na trajetória desta categoria
de governantes, na sua transformação em quadros estruturantes da economia, uma
vez que o número de cargos desempenhados em empresas, depois da passagem pelo
executivo, mais do que quadruplica. Muitos regressam mesmo ao governo,
ocupando, no total, um quarto dos cargos governativos, pese embora
representarem apenas um quinto dos governantes.
Ao aduzirmos o papel desempenhado pelos governantes no entrelaçamento e na
sustentação do poder económico, reforçamos a tese que situa o Estado como
elemento central para a reprodução da burguesia. A replicação desta dominação
de classe em Portugal depende do processo de cooptação, que figura como uma das
características complementares de uma estratégia de acumulação historicamente
estabelecida. Esta interdependência é própria de um regime marcado pelo atraso
económico e pela extração rentista como instrumento primordial de exploração.
Esta conclusão contraria a proposição apresentada pelas correntes
(neo)liberais, segundo a qual o Estado assume uma autonomia total face aos
conflitos endógenos da sociedade. Mas mais do que estabelecer uma classificação
abstrata da autonomia do Estado, esta análise busca apontar as vias pelas quais
os centros de decisão política são alvo de captura pelos detentores de capital,
revelando a função de manutenção e reprodução destas relações como um dos
princípios do poder de Estado no contexto do Portugal contemporâneo.