Referencial teórico que orienta a produção científica qualificada sobre a
qualidade em serviços turísticos
1. Introdução
O turismo é uma atividade económica incipiente do ponto de vista da
profissionalização e organização e ainda há muito que fazer em termos da
qualidade da oferta de produtos e serviços, problema que se soma à fragmentação
e diversidade da cadeia produtiva que impedem haver clareza sobre o impacto
deste setor para a economia (Theobald, 2005). A atividade turística tem
potencial estratégico em países em desenvolvimento em termos económicos e da
visibilidade positiva perante os seus habitantes e a comunidade internacional
(Sainaghi, 2010).
A crise económica mundial que se verificou em 2008 reduziu a procura e aumentou
a oferta de serviços turísticos. Neste contexto, só sobrevivem as organizações
que geram novas necessidades de consumo e que se preparam para o futuro. Países
com fortes atrativos naturais tendem a concentrar a atividade turística no
paradigma dos 4S (sun, sea, sand, sex) e negligenciam a qualidade dos serviços,
representada pela hospitalidade, segurança, alimentação, boa logística, entre
outros fatores (Brunner-Sperdin & Peters, 2009; Narayan, Rajendran &
Sai, 2008). O turismo no Brasil, por exemplo, ainda que a situação mundial não
seja favorável, tem um crescimento projetado de 5,1% ao ano, alavancado por
eventos desportivos (Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos
Internacionais no Rio de Janeiro em 2016), e chegará em 2022 à cifra de 625
bilhões de reais de participação no Produto Interno Bruto (PIB), com a geração
de cerca de 10 milhões de empregos diretos (WTTC, 2012).
As empresas do setor turístico (agências de turismo, meios de hospedagem,
transportadores turísticos, organizadores de eventos, de demais do trade)
formam uma cadeia produtiva integrada, com ações isoladas ou conjuntas que,
avaliadas pelos clientes, resultarão na percepção sobre a experiência vivida e
sobre a qualidade global do serviço ofertado (Eraqi, 2006). O desempenho das
empresas do setor influencia a satisfação do turista e determina o grau de
competitividade, a imagem e atratividade dos destinos, a criação de novos
negócios, os investimentos em infraestrutura e preservação e a geração de
emprego e renda formal e informal (Eraqi, 2006; Mak, 2011; Santos, Ferreira
& Costa, 2014).
Para compreender quais fundamentos teóricos orientam os pesquisadores que
escrevem sobre este tema, o objetivo deste artigo é apresentar as teorias que
serviram de base para a produção científica qualificada sobre a qualidade de
serviços turísticos. Para alcançar este objetivo, fez-se a seleção de artigos
em bases de dados indexadas dos últimos dez anos e identificado e analisado o
referencial teórico usado pelos autores.
2. Metodologia
No seguimento do já citado crescimento do setor do turismo, encontra-se a
pesquisa neste campo do conhecimento subutilizada do ponto de vista teórico e
prático, carente de enquadramento teórico e metodológico consistente e ainda
incompreendida por setores políticos e empresariais, que não a veem como meio
de investigação e divulgação de novas tecnologias operacionais e de gestão ou
como instrumento de avaliação do desempenho no setor (WTO, 2002). Para tratar
este assunto, esta pesquisa utilizou métodos e técnicas consistentes para
suprir esta lacuna evidenciada na literatura, com aporte teórico robusto e
métodos coerentes e suficientes.
Metodologicamente esta pesquisa é de cunho teórico, com abordagem qualitativa.
Esta seção apresenta o processo de seleção dos artigos (revisão bibliográfica),
cujo referencial teórico será analisado.
O processo de seleção da bibliografia foi realizado em três fases:
a)seleção dos artigos diretamente nas bases de dados, por meio dos sistemas de
busca eletrónica;
b)uso de filtros de pesquisa definidos arbitrariamente conforme escopo da
pesquisa e decisões dos pesquisadores;
c)pré-análise dos artigos, para selecionar os artigos mais aderentes à
pesquisa.
2.1 Seleção dos artigos
Para selecionar os artigos, fez-se a combinação das palavras-chave “qualidade”,
“desempenho” e “turismo”, buscando-se sua ocorrência no título, resumo e
palavras-chave de artigos publicados de 2002 a 2012. Priorizou-se a busca em
artigos científicos e de revisão e desconsiderados livros, artigos no prelo,
editoriais, notas e literatura cinzenta em geral. Os artigos científicos são
evidências mais atualizadas do progresso científico e se originam de um
processo reconhecido no mundo académico, avaliado por pares, documentado,
registrado e formal (Fachin & Hillesheim, 2006).
2.2 Filtros de pesquisa
Os artigos selecionados passaram pelos filtros para reduzi-los a um conjunto
(portfólio) de artigos aderentes aos objetivos da pesquisa. Os filtros
retiraram os artigos em duplicidade e os que têm o título ou resumo
desalinhados com os objetivos da pesquisa. A filtragem tem a função de eliminar
artigos indesejáveis e de aperfeiçoar o processo de pesquisa para não se ter
que dedicar tempo desnecessário à leitura exaustiva de textos que não agregam
valor.
2.3 Pré-análise dos artigos
A pré-análise dos artigos teve a finalidade de identificar aqueles que
representam o que de mais recente foi publicado sobre qualidade em serviços
turísticos, valendo-se de regras de pertinência (artigos aderentes ao tema) e
de homogeneidade (artigos que tratam em profundidade do tema). Trata-se de uma
abordagem qualitativa de análise, por meio de um contato com o conteúdo dos
artigos, porém sem aprofundar na leitura. Foram arbitrados os seguintes
critérios de análise: aderência do conteúdo aos objetivos da pesquisa;
contribuição teórico-empírica (considera os resultados obtidos e a
originalidade/relevância acadêmica); robustez do aporte teórico ( qualidade e
quantidade do aporte teórico).
O resultado da pré-análise é um conjunto de artigos não duplicados, com título,
resumo e conteúdo alinhados aos objetivos desta pesquisa (portfólio
bibliográfico). O referencial teórico deste portfólio é o objeto de análise
neste artigo.
3. Resultados
4650 artigos foram coletados diretamente nas bases passou pelo filtro da
duplicidade (4096 artigos), do alinhamento do título e resumo (179 artigos) e,
após a pré-análise do conteúdo, culminou em um portfólio de 29 artigos não
duplicados, com título, resumo e conteúdo alinhados aos objetivos desta
pesquisa. A Tabela_1 apresenta as obras mais citadas entre aquelas do
referencial dos artigos do portfólio.
A intenção de recorrer a estas obras se justifica para compreender as teorias
de base que sustentam a produção científica sobre a qualidade de serviços
turísticos. Entre as obras mais referenciadas, todas da década de 80 e 90, têm-
se uma única sobre método de análise e tratamento de dados quantitativos (Hair,
Anderson, Tatham & Black, 1995), outras duas sobre gestão de operações de
serviços (Grönroos, 1990) e marketing de serviços (Zeithaml & Bitner, 1996)
e as demais sobre qualidade em serviços. Os principais resultados da leitura e
análise destes trabalhos serão apresentados em ordem cronológica e, quando
necessário, complementados com outros estudos. A figura_1 mostra o mapa de
citações das referências apresentadas na anterior.
Nela se observa a importância dos trabalhos de Oliver (1980) e de Parasuraman,
Zeithaml & Berry (1985; 1988) para os estudos sobre qualidade em serviços,
pois todos os trabalhos subsequentes sobre este assunto os usaram como fonte de
consulta. Oliver (1980) definiu que a satisfação do cliente é a comparação
entre o que serviço recebido e o esperado, que chamou desconfirmação positiva
ou negativa das expectativas. Trata-se do valor atribuído ao acordo firmado com
a organização. A satisfação é a avaliação do quanto a empresa é capaz de
atender às necessidades físicas e psicológicas dos clientes. A desconfirmação
será positiva quando excede as expectativas e negativa quando o cliente percebe
que o desempenho da organização foi aquém do que esperava.
Este conceito subsidiou o surgimento da teoria dos gaps de Parasuraman,
Zeithaml & Berry (1985), um marco importante para compreensão e medição da
qualidade em serviços que culminou na elaboração da escala SERVQUAL
(Parasuraman, Zeithaml & Berry, 1988). Esta escala inicialmente com dez
dimensões foi reduzida posteriormente para cinco dimensões aplicáveis a todos
os tipos de serviços que são usadas para medir o gap 5 da teoria supracitada:
(1) tangibilidade, que abarca a infraestrutura física, equipamentos, material
de divulgação; (2) confiabilidade, ou a capacidade de entregar o que foi
acordado; (3) responsividade, que representa o fornecimento do serviços em
tempo e a presteza; (4) garantia, que é a credibilidade do sistema para a
prestação dos serviços; (5) empatia, ou o interesse real para entender o
cliente e suas necessidades.
Nadiri & Hussain (2005) argumentam que a possibilidade de medir a qualidade
de serviços, tornou a escala SERVQUAL um instrumento muito utilizado, porém
bastante debatido no meio académico. Este instrumento têm sofrido críticas
(Taplin, 2012), devido à sua limitação na medição de alguns tipos de
atividades, como as do turismo que têm forte caráter experiencial (abkar,
Brencic, & Dmitrovic, 2010). Gopalan & Narayan (2010) citam o exemplo
da dificuldade de avaliar a qualidade do serviço de visitação a parques
temáticos, em que o turista participa de inúmeros encontros de serviço com
diferentes pessoas e em diferentes locais. Frente a esta dificuldade, emerge a
necessidade de um aprofundamento teórico sobre qualidade na prestação de
serviços e, dentro deste tema, a consideração das especificidades do setor de
turismo.
Oliver & Desarbo (1988) apresentaram o modelo de equidade, que é a
percepção do cliente quanto à imparcialidade e se houve justiça na prestação do
serviço. Para Chang (2008), a equidade é importante para o turista e que ele a
percebe por meio de comparações de suas expectativas com as entregas de pessoas
e instituições, porém alerta sobre a limitação do conceito em considerar a
causalidade da satisfação na comparação somente entre o lócus interno
(expectativas) e externo (resultados), pois há outras ocorrências que acarretam
a satisfação/insatisfação que podem ser imputadas ao acaso. O cliente atribui
um valor frente à percepção entre o que foi acordado e o que é percebido
(Zeithaml, 1988).
Grönroos (1990) se ampara na desconfirmação expectativa e afirma que deve
prevalecer a qualidade percebida, independente da qualidade técnica da
organização. Esta percepção é influenciada pela forma como o serviço é prestado
e da forma como o cliente experimenta a prestação do serviço, sendo esta última
mais difícil de avaliar. A imagem construída pelo cliente sobre a organização
durante e após a prestação de serviço mediará a relação futura com esta empresa
por meio da geração de expectativas com base na experiência vivida.
Carman (1990) analisa criticamente o SERVQUAL e conclui que (1) o instrumento é
multidimensional (oito dimensões) e não unidimensional como é proposto, (2) o
instrumento não é aplicável a todo tipo de serviço e que seria necessário
incluir outras variáveis como, por exemplo, o preço; (3) algumas dimensões
precisam ser incrementadas com mais itens para aumentar a confiabilidade e (4)
que as expectativas são influenciadas pela frequência de consumo, pois há
diferenças entre consumos esporádicos e frequentes, que é por ele considerado o
principal problema do instrumento. Saleh & Ryan (1991) investigam a
qualidade em meios de hospedagem com a aplicação do SERVQUAL e igualmente o
criticam, pois não identificam todas as dimensões atribuídas ao instrumento.
Afirmam que a qualidade do serviço cria diferencial para os hotéis, porém fazem
uma distinção entre qualidade funcional e qualidade técnica, conceitos tratados
anteriormente por Grönrooss (1990). Interpretam que a primeira se refere ao que
é oferecido no contato direto com o cliente, incluindo o atendimento pessoal e
o ambiente físico, enquanto a qualidade técnica envolve o conhecimento
necessário à prestação do serviço, a complexidade das operações e os aspectos
intangíveis do negócio. Concluem que a qualidade funcional poderia compensar as
deficiências técnicas na oferta dos serviços e que para os hotéis, a
característica mais importante é a hospitalidade, incluindo os aspectos
tangíveis.
Bolton & Drew (1991) afirmam que definir o valor percebido em função da
qualidade do serviço prestado não é suficiente, pois o primeiro é individual e
subjetivo e é dado pelo cliente ao serviço que lhe é oferecido e varia conforme
o gênero, a idade, a região, a cultura, entre outras características pessoais.
Diante da discussão no meio académico sobre a causalidade entre satisfação e
qualidade, estes autores apontam que a qualidade antecede a satisfação, estão
relacionadas, porém não se tratam do mesmo conceito. Reconhecem que a
performance influencia a satisfação por meio do resultado percebido ou
indiretamente pela desconfirmação de suas expectativas.
Cronin Jr & Taylor (1992) desenvolveram o modelo SERVPERF para avaliação da
qualidade em serviços como alternativa ao SERVQUAL, cuja diferença básica é que
o SERVPERF considera apenas as percepções do cliente. Para os autores, a
qualidade dos serviços também antecede a satisfação dos clientes, e esta com a
fidelização e com a intenção de recompra (Salazar, Costa & Rita, 2010;
Batista, Couto, Botelho & Faias, 2014).
Zeithaml & Bitner (1996) distinguem os conceitos de satisfação e qualidade
de serviços, consideram os fatores que as influenciam e também apregoaram que
há uma relação de causalidade entre eles. A satisfação tem caráter pessoal e
subjetivo, influenciado (1) pelo estado emocional, (2) pelas especificações dos
serviços, (3) pela percepção do cliente da fonte do sucesso na prestação do
serviço (lócus interno ou externo); (4) da personalidade do cliente e (5) da
avaliação da equidade. Para estes autores, a qualidade do serviço é mais
limitada, pois tem foco técnico e operacional no resultado do que lhe foi
entregue.
Assinala que em geral medem e administram a satisfação dos clientes como meio
de estabelecer estratégias para aumentar a percepção do cliente sobre a
qualidade dos serviços. Estabelece que em serviços com alta complexidade
(saúde, educação, engenharia, serviços especializados) o cliente é incapaz de
fazer um juízo sobre a qualidade técnica e opta por se valer de impressões
gerais sobre a prestação do serviço. Para tal, se valeu das dimensões da
qualidade em serviços sublinhadas por Parasuraman, Zeithaml & Berry (1988):
confiabilidade, segurança, responsividade, empatia e tangibilidade.
Oliver (1997) se ampara na teoria da desconfirmação para considerar a
satisfação do cliente como função das expectativas. A percepção é mediada pelos
juízos de valor e por características sociais e culturais. Este autor é quem
pela primeira vez trata do papel da equidade na satisfação do cliente, na
comparação entre o dispêndio de recursos e o que foi ofertado pela empresa.
Cronin Jr, Brady & Hult (2000), na época em que escreveram este artigo,
constataram a existência de três movimentos na academia em relação à pesquisa
conceitual em serviços: (1) qualidade dos serviços; (2) satisfação do
consumidor; e (3) valor percebido, este último mais recente à época. Estes
autores também defenderam que a qualidade dos serviços antecede a satisfação.
Relataram que os gestores comumente vinculam a avaliação destes conceitos a
avaliações dos colaboradores e a premiações internas, pressupondo vinculação de
resultados favoráveis às percepções positivas dos clientes, mas que o valor
percebido é o melhor preditor das intenções de recompra e da fidelização dos
consumidores. Conceituou valor como um construto formado por duas dimensões:
(1) benefícios recebidos (económico ou social) e (2) sacrifício em obter o
serviço (preço, risco, conveniência, tempo gasto, entre outros). Em trabalho
recente, Campos, Mendes, Silva & Valle (2014) reforçam que a liderança tem
forte papel na construção da cultura organizacional voltada para a qualidade.
4. Conclusões
Nesta seção apresenta-se um resumo com as principais lacunas e oportunidades
detectadas neste estudo teórico.
Conclui-se que o conceito de qualidade em serviços observado na literatura não
difere atualmente das abordagens seminais e está fortemente ancorado na
percepção dos clientes da dicotomia expectativa-desempenho. Essa constatação
pode estar ancorada na formação e atuação em Marketing dos autores das
principais referências ainda cultuados no meio académico, quando se fala em
qualidade de serviços, tais como Oliver, Grönroos, Parasuraman, Zeithaml. Por
sua formação, estes autores têm um olhar mais atento aos aspectos
mercadológicos e na qualidade percebida e menos na gestão da qualidade e das
operações de serviços.
A baixa produção científica teórica sobre a qualidade em serviços turísticos
proporciona ao meio académico investigar o assunto em profundidade e dele gerar
novos conceitos e abordagens. Optou-se neste artigo por um estudo em
profundidade da literatura por meio de uma abordagem qualitativa, iniciado com
uma seleção de 29 artigos dos últimos dez anos, não duplicados, com título,
resumo e conteúdo alinhados com o tema.
Em relação às referências do portfólio bibliográfico, observou-se que os
estudos sobre a qualidade e/ou desempenho no setor turístico são ancorados em
teorias oriundas do marketing, focadas na percepção do cliente. Conclui-se que
os trabalhos seminais não podem ser desconsiderados, porém é necessária a
inclusão de outros conceitos que considerem a amplitude e alcance da qualidade
no setor de turismo, tais como a experiência de serviços, responsabilidade
socioambiental, gestão da qualidade, gestão de processos, entre outros.
Evidenciou-se o uso dominante de modelos conceituais generalistas de avaliação
da qualidade em serviços para avaliar o turismo. Sugere-se a proposição de
teorias e instrumento para o turismo, que considerem as especificidades do
setor. A literatura ainda aponta o uso excessivo de instrumentos generalistas
para avaliar o setor turístico, tais como o SERVQUAL e SERVPERF, ambos criados
há mais de vinte anos e usados indiscriminadamente em empresas de serviços.
Sugere-se a criação de instrumentos próprios para o setor de turismo, aplicável
aos vários segmentos: agências de viagens, meios de hospedagem, organizadores
de eventos, transportadores turísticos, parques temáticos, acampamentos, entre
outros.
A principal limitação deste trabalho é o processo de seleção e análise dos
artigos que tem forte influência do viés dos pesquisadores, pois há decisões e
interpretações sobre o conteúdo dos trabalhos em todas as fases. Em uma
pesquisa qualitativa como esta não há como eliminar as decisões dos
pesquisadores, porém alerta-se sobre a importância do rigor científico para que
o resultado final seja o mais fiel à realidade estudada.