Novas Formas de Mobilização Popular
José Rebelo (coord.), Novas Formas de Mobilização Popular, Porto, Campo das
Letras, 2003, 298 páginas.
A presente obra reúne as comunicações ao colóquio internacional "Novas
formas de mobilização popular ", realizado no Instituto Superior de
Ciências do Trabalho e da Empresa em Outubro de 2001, aprofundadas e
reorganizadas tematicamente para publicação. Os mais de vinte textos são
assinados por autores nacionais e estrangeiros, na sua maioria cientistas
sociais, mas entre os quais também podem ser encontrados uma jornalista, um
juiz e um investigador da área da genética.
O tema agregador destes artigos é a reflexão sobre os novos modos de
participação pública, alternativos ao modelo convencional de representação e
distintos dos movimentos sociais tradicionais, fundados nas diferenças de
classe1. O coordenador optou pela organização dos textos, de natureza bastante
diversa, em quatro grandes áreas temáticas.
Sob o título "Novas legitimidades " encontram-se quatro artigos
essencialmente teóricos. M. Wieviorka analisa as lutas antiglobalização,
explorando as suas lógicas internas de exclusão, alienação e individualização.
Isolando três dimensões fundamentais destes movimentos (crítica, investigativa
e identitária), o autor identifica os respectivos riscos: "o ascendente
do esquerdismo conjugado com o pensamento hipercrítico" (p. 31), a
criação de elites de contraperitagem e o fechamento identitário (que conduz à
radicalização e à violência). São de destacar sobretudo os alertas lançados à
investigação científica neste domínio: "não é aceitável fazer da
globalização o deus ex machina da análise sociológica" (p. 20) e
"não é possível compreender as lutas antiglobalização a partir da
globalização a que elas se opõem [...]: não se explica a acção colectiva
através daquilo a que ela se pretende opor" (p. 21). M. Carvalho da Silva
aborda igualmente a questão da globalização para salientar a ameaça aos
direitos sociais que ela representa e reivindicar a centralidade do trabalho
nos processos de desenvolvimento e transformação da sociedade, como base para
as propostas sindicais adaptadas à contemporaneidade.
Numa perspectiva mais localizada, M. Sodré destaca o caso dos grupos sociais
brasileiros económica e socialmente desfavorecidos, em geral excluídos da
esfera pública, que se socorrem de recursos simbólicos e culturais (as
comunidades litúrgicas e os agrupamentos musicais, no caso dos afro-
descendentes, o artesanato, no caso das populações indígenas) para adquirirem
visibilidade e melhorarem as suas condições de existência.
Por último, o artigo de V. Matias Ferreira centra-se na cidade como palco
privilegiado do exercício da cidadania, visto que "a cidade condensa e
polariza, através de um esquema de representação social e política, a estrutura
social e o sistema político da respectiva sociedade" (p. 60). O autor
detecta um "’vazio’ das formas de manifestação (do) social e nos
mecanismos da regulação (da) política" (p. 55), efeito ainda das décadas
de autoritarismo político, que se materializa no eufemismo da
"participação social". Sob este rótulo (usado, por exemplo, na
consulta pública em planos de urbanização) esconde-se um simulacro de
intervenção política, em que os cidadãos são figurantes, um somatório de
comportamentos individuais sem relação entre si, um processo homogeneizante,
social e economicamente discriminante.
O segundo agrupamento de artigos intitula-se "Novos dispositivos e novas
práticas de comunicação", dizendo respeito aos veículos comunicacionais
mobilizados por estas novas formas de protesto público. Entre estes veículos
assumem particular destaque as novas tecnologias de informação e os mass media.
R. Paiva convoca, uma vez mais, o caso brasileiro para demonstrar como grupos
excluídos fazem uso dos media para atingirem os seus objectivos. A autora traça
uma distinção pertinente entre os movimentos ou partidos que usam os media e os
movimentos ou partidos mediáticos, caracterizados pela "adopção de uma
postura mediática em que estética, espectáculo, telepresença e
imprevisibilidade se impõem" (p. 69). No mesmo sentido, D. Andringa
socorre-se de dois casos exemplares recentes de intensa mobilização dos canais
televisivos (o indivíduo que se barricou nas instalações da RTP; a mobilização
por Timor Leste) para distinguir a atenção mediática de cariz espectacular e
emocional (centrada na esfera privada) do comprometimento cívico dos media
(centrado na esfera pública).
O artigo de D. Miranda consiste num breve ensaio sobre o conceito de rede na
teoria social, estruturado em cinco questões epistemológicas. M. Diani examina
a influência da "comunicação mediada por computador " nos
movimentos sociais. Ainda que este meio tenha associado um conjunto de
vantagens genéricas, o seu impacto é fortemente condicionado pela
heterogeneidade dos movimentos: diferentes tipos de organização e diferentes
populações terão uma capacidade diferencial para usufruírem destes benefícios.
Também a natureza ambígua deste tipo de comunicação, na fronteira entre o
público e o privado, o directo e o mediado, acarreta não só mais-valias, mas
igualmente constrangimentos. O autor conclui que, se a comunicação mediada por
computador é eficaz na mobilização de esforços em movimentos já existentes,
está por aferir a sua real capacidade para gerar "novos movimentos
sociais comunitários virtuais" (p. 96).
Os dois restantes artigos neste conjunto abordam o mesmo movimento social: a
mobilização da população portuguesa em torno da causa da autodeterminação de
Timor Leste. Porém, se o texto de J. Coutinho Ferreira e P. Dionísio se limita
a descrever esquematicamente o contexto, o processo de mobilização e o desfecho
do caso, o artigo de G. Cardoso e P. Pereira Neto explora em maior detalhe o
papel das novas tecnologias de informação e comunicação, nomeadamente os mass
media e os "novos media" na emergência, organização e
desenvolvimento do movimento. O argumento central defendido pelos autores é que
o sucesso dos movimentos está estreitamente ligado à sua capacidade de seduzir
os media tradicionais e instrumentalizar os novos media. Contudo, também os
próprios movimentos sociais podem ser transformados pelas novas tecnologias.
O terceiro bloco temático das comunicações designa-se "Novas
configurações jurídico-políticas" e localiza-se essencialmente na esfera
do direito. P. Bacelar Vasconcelos traça uma súmula histórica das relações
entre mobilização popular e democracia representativa, culminando no estado
actual de tensão entre o que o autor define como "a impotência reformista
do poder político" e a "perversão da opinião pública". A.
Cluny explora a relação entre os novos direitos proporcionados pelo Estado
social e a real possibilidade de acesso dos cidadãos ao direito e ao sistema
judicial, objecto de reivindicação por parte dos movimentos emancipadores.
Retomando a questão da globalização, abordada nos artigos acima mencionados, J.
P. Dubois analisa-a do ponto de vista da ameaça aos direitos sociais,
económicos e culturais, do enfraquecimento do Estado e das transformações
induzidas pelos fluxos migratórios, mas também da mundialização dos direitos
fundamentais. O autor comenta ainda as "novas caras" da cidadania
no mundo actual sob a perspectiva social e territorial.
O tema das novas tecnologias da informação e comunicação ressurge no texto de
M. E. Gonçalves, que examina a tensão existente entre os direitos de liberdade
e de propriedade na "era da Internet". Neste domínio, o direito ao
acesso à informação (essencial em questões como o ambiente ou o consumo) tende
a colidir com a valorização económica e social da informação e com a protecção
legal conferida à propriedade intelectual (programas de computador, bases de
dados, ficheiros disseminados através da Internet). A própria legislação
comunitária vai no sentido de valorizar "mais a informação como
mercadoria [...] do que como bem público ou benefício colectivo" (p.
167), quando "num mundo em rede o direito de acesso à informação passa a
ser uma condição fundamental da liberdade individual" (p. 168). O texto
de A. P. Dores consiste na apresentação de um projecto de investigação em curso
relativo à reclusão de cidadãos estrangeiros em prisões portuguesas. É aflorado
o impacto da globalização no sistema e instituição prisionais e são elencadas
as dimensões analíticas que constroem a especificidade da situação das prisões
portuguesas.
O último conjunto temático de artigos é denominado "Novos projectos,
novos objectos" e diz respeito às formas de mobilização pública nos
domínios da ciência, do ambiente e da cultura. J. Arriscado Nunes destaca o
risco como uma arena em que "as formas tradicionais da regulação e do
exercício do poder político têm-se revelado inadequadas ou insuficientespara
lidar com os novos imperativos de decisão e de acção em situações de
incerteza" (p. 191). Visto que tanto os benefícios como as consequências
negativas das dinâmicas científicas e tecnológicas são desigualmente
distribuídos, tendem a emergir novas formas de intervenção, de debate e de
protesto, salientando-se, a título de exemplo, os movimentos de justiça
ambiental2. Estas formas de mobilização popular produzem novas configurações de
saberes e de experiências (redefinição de fronteiras entre peritos e leigos) e
a constituição de novas identidades e novos colectivos. O autor propõe, por
fim, um elenco de variáveis para aferir a comparabilidade das várias
experiências participativas.
O artigo de V. Soromenho Marques esboça uma breve história do associativismo
ambiental, ligando-a aos constrangimentos à participação cívica em Portugal. No
entanto, o autor conclui que "a intervenção cívica dos ambientalistas
portugueses tem contribuído mais ou menos modestamente para dinamizar a
consciência dos cidadãos, o desempenho das instituições e o rigor e a eficácia
do direito" (p. 206). J. Gil Nave aborda as formas menos
institucionalizadas de intervenção popular no domínio ambiental, nomeadamente
os movimentos nimby (not in my backyard): "formas de mobilização e de
protesto popular em defesa do status quo ambiental do quadro de vida local, em
reacção contra iniciativas externas, nomeadamente com origem nas estruturas
administrativas do Estado central" (p. 209). Com base nos resultados do
2.º inquérito nacional Os Portugueses e o Ambiente (Observa, 2000), o efeito
nimby é confrontado com as variáveis de caracterização social, de cultura
ambiental e participação cívica e de percepção social do risco para se concluir
pela "omnipresença das raízes do efeito nimby" (p. 233).
A. F. Cascais explora o tema da bioética, expondo a história da sua emergência
como disciplina científica, o papel assumido pelos movimentos sociais
(sobretudo feministas e homossexuais) no seu desenvolvimento e a sua
pertinência face ao estado actual da ciência e tecnologia. Perante os perigos
colocados pela dominância da racionalidade técnico- -científica, a bioética
apresenta um património de reflexão e de investigação, de instrumentos de
regulação e de práticas de avaliação das comunidades e actividades científicas
que será determinante mobilizar de forma a garantir o controlo da sociedade
sobre a tecnociência. No mesmo sentido, C. Monteiro, no texto seguinte, alerta
para os problemas suscitados pelo papel dominante das empresas privadas nos
recentes desenvolvimentos na área da genética humana. A aplicação de patentes
sobre inovações nas técnicas de diagnóstico, por motivos comerciais,
constituirá uma infracção ao direito das populações à saúde.
Os dois últimos textos desta publicação dizem respeito à esfera da cultura. C.
Lopes apresenta um texto essencialmente teórico em torno da análise da festa
(como nova/velha forma de mobilização popular) a partir do conceito de
ludicidade. I. Conde reflecte sobre a arte contemporânea em Portugal em função
dos vectores do espaço (globalização/localização), do tempo (velocidades
contemporâneas vs. nostalgias do passado), das políticas (financiamento e
regulação por parte do Estado) e dos direitos (dos artistas e do público).
Num país em que a tradição e as taxas de participação cívica são escassas
3
e em que o aparelho burocrático- administrativo, "centralizado,
hierarquizado e secretista"
4
, está pouco rotinizado na auscultação das populações no processo de tomada de
decisão, a análise das novas formas de mobilização pública assume um especial
relevo. A presente obra tem o mérito indiscutível de abordar um tema actual e
pertinente, que carece de reflexão e estudo, apresentando as múltiplas
questões, metodologias e mesmo disciplinas científicas através das quais pode
ser investigado. No entanto, representa apenas uma amostra destes novos
movimentos sociais, ficando muitos outros por abordar (nos domínios da saúde,
da segurança rodoviária, da educação, do desenvolvimento local, etc.). A maior
fragilidade desta obra reside na qualidade desigual dos artigos, alguns dos
quais só remotamente relacionados com o tema central ou escassamente
sustentados em investigação empírica sólida.
Ana Delicado
1
V., a título de exemplo, entre a abundante literatura desta área: A. Touraine
(1993), La voix et le regard, sociologie des mouvements sociaux, Paris, Seuil,
e obras posteriores do mesmo autor; D. Lapeyronnie (1988), "Mouvements
sociaux et action politique, in Revue française de sociologie, XXIX, pp. 593-
619; L. Maheu (1995), Social Movements and Social Class — the Future of
Collective Action, Londres, Sage; S. M. Lyman (ed.) (1995), Social Movements:
Critiques, Concepts, Case-Studies, Londres, Macmillan; Elísio Estanque (1999),
"Acção colectiva, comunidade e movimentos sociais — para um estudo dos
movimentos de protesto público", in Revista Crítica de Ciências Sociais,
n.º 55, pp. 85-112.
2
Um dos casos que têm sido abundantemente estudados é o da co-incineração de
resíduos perigosos [v., a título de exemplo, M. E. Gonçalves (2003),
"Imagens públicas da ciência e confiança nas instituições: o caso de Foz
Coa e da co-incineração", in Os Portugueses e a Ciência, Lisboa, D.
Quixote, e João Arriscado Nunes e Marisa Matias (2003), "Controvérsia
científica e conflitos ambientais em Portugal: o caso da co-incineração de
resíduos industriais perigosos", in Revista Crítica de Ciências Sociais,
n.º 65].
3
V., por exemplo, M. V. Cabral (2000), "O exercício da cidadania política
em Portugal ", in M. V. Cabral, J. Vala e J. Freire, Atitudes Sociais dos
Portugueses, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, pp. 123-162, e André Freire
(2003), "Pós-materialismo e comportamentos políticos: o caso português em
perspectiva comparativa", in Jorge Vala, M. V. Cabral e Alice Ramos,
Valores Sociais: Mudanças e Contrastes em Portugal e na Europa, Lisboa,
Instituto de Ciências Sociais, p. 325.
4
Maria Eduarda Gonçalves (2002), "Implementation of EIA directives in
Portugal: how changes in civic culture are challenging political and
administrative practice", in Environmental Impact Assessment Review, n.º
22, p. 250.