Homens em Fundo Azul-Marinho. Ensaio de Observação Sociológica sobre Uma
Corporação nos Meados do Século XX: a Armada Portuguesa
Freire, João, Homens em Fundo Azul-Marinho. Ensaio de Observação Sociológica
sobre Uma Corporação nos Meados do Século XX: a Armada Portuguesa, Oeiras,
Celta Editora, 2003, 220 páginas.
O catedrático de Sociologia do ISCTE foi, noutros tempos, aluno do Colégio
Militar e oficial da Armada. Esta coincidência entre o cientista social e o
militar profissional fez nascer uma obra única na literatura de ciências
sociais, portuguesa ou estrangeira: Homens em Fundo Azul- -Marinho, que, a
título propedêutico, podemos introduzir como uma análise descritiva da marinha
de guerra portuguesa em meados do século passado.
Descontadas a introdução e as conclusões, a obra desenvolve-se segundo a lógica
de alguém que entra na Armada: o primeiro capítulo é consagrado à
"iniciação", incluindo a formação inicial e posterior, as praxes
nas escolas e nos navios, as formas de tratamento, os comportamentos
específicos dos marinheiros, os uniformes e as distinções, os livros sobre a
marinha de guerra em Portugal no século XX e as publicações oficiais ou
oficiosas da Armada.
Iniciado o marinheiro, ele não poderá deixar de pertencer a um dos subgrupos
humanos estruturados nos quais a Armada se articula: o segundo capítulo trata
das "segmentações " navais; nele são analisados: as categorias
hierárquicas e as carreiras, estas articuladas com as especialidades; o sistema
de punições e recompensas; as "linhagens" de oficiais (famílias que
em gerações diferentes dão oficiais à Armada) e as origens sociais da
oficialidade; as "elites separadas" e "grupos separados
", incluindo certas especialidades (aviação naval, hidrografia) ou
unidades (Escola Naval, navio-escola Sagres) que desfrutavam de um estatuto de
elite; os processos de participação (conselhos de promoções) e o associativismo
(Casa do Marinheiro da Armada e sobretudo o Clube Militar Naval).
Integrado num segmento, o marinheiro está em condições de embarcar: o terceiro
capítulo é consagrado ao "pequeno universo total — o navio e o
mar"; são analisados os tipos de navios, de equipamentos e de missões, as
afectividades, a organização e a vida a bordo, o navio no porto, a guerra e a
imitação da guerra, em particular os exercícios navais.
Nos dois últimos capítulos a lógica biográfica que estrutura a obra dá uma
contorção: o marinheiro — a marinha de guerra — enfrenta as
"envolventes" e confronta-se com os "fins, ethos e estética
da Armada". Nas envolventes são incluídos o orçamento do Estado
consagrado à Armada, as técnicas relevantes para o fabrico e funcionamento do
navio de guerra, o regime político e as mudanças sócio-culturais nos anos 1960.
O último capítulo, mais heterogéneo, estuda a interacção entre os objectivos da
Armada e os comportamentos individuais dos marinheiros num certo número de
situações; pormenoriza depois a atitude dos marinheiros em relação ao culto
religioso, à arte e ao estilo de vida; por fim, trata da relação com as
marinhas de outros Estados.
As fontes são a legislação e os regulamentos navais, bem como a bibliografia
especializada, mas sempre pública — além, claro, da "observação
participante", que João Freire designa por "observação
interna" e é a principal origem das informações.
A introdução e as conclusões são sobretudo metodológicas; nestas é reiterada a
classificação da marinha de guerra como "corporação" e sublinhado o
seu lado profissional.
A bibliografia sobre a Armada portuguesa é curta e boa; assenta em obras — e
legislação — profissionais que tantas vezes escapam ao estudioso exterior à
instituição.
Fazem falta os índices onomástico e de assuntos.
A obra, cuja estrutura acabamos de resumir, é difícil de apresentar, pois é um
caso singular: não entra em nenhum género literário já existente e por isso é
impossível descrevê-la pelo processo de lhe colar uma etiqueta. O livro em
apreço não é um romance, apesar do título e da escrita leve, rápida, quase
sempre aliciante — pois tem muitas notas de rodapé; não é de memórias, embora
tenham sido vividos pelo autor muitos dos factos ou situações nele descritos,
pois o objecto é a vida de uma instituição, e não a de uma pessoa.
Homens em Fundo Azul-Marinhopertence a uma das ciências sociais, como o próprio
subtítulo reivindica; mas a qual? Não é historiografia, embora a datação do seu
objecto conste do subtítulo, pois a narrativa dos factos passados está
subordinada ao propósito de identificar princípios gerais; não é antropologia,
pelo menos no sentido tradicional desta ciência, pois nem trata do parentesco
nem de uma sociedade que é estranha ao narrador; é sociologia, mas não é
sociologia militar, pois quase sempre se afasta dos topoi deste ramo.
O autor, aliás, também parece ser ambivalente em relação ao estatuto
epistemológico da obra: apresenta-a como uma monografia sociológica, usando a
metodologia das sociologias das organizações, das profissões e do trabalho,
além da etnografia social e das "ciências militares-navais ", mas
não enjeita a qualificação de antropologia, relevando embora "a pouca
fixidez destas fronteiras" (p. 187) ou, mais indirectamente, a de
"exploração etno-metodológica" (p. 209).
Num certo sentido, a obra é realmente uma monografia de ciência social, mas o
seu melhor está alhures: na capacidade de reconstituir a Armada portuguesa de
meados de Novecentos com a imaginação de um ficcionista e o rigor de um
cientista social.
Homens em Fundo Azul-Marinho tem uma dimensão sobretudo positiva e descritiva;
contudo, algumas afirmações e algumas teses são discutíveis. Teria sido
vantajoso aprofundar um tanto os quatro temas seguintes: o ethos do militar da
Armada; os efeitos da guerra na Armada; a relação desta com o Estado; os
conceitos utilizados para a estudar.
O ethos do militar da Armada, apesar do capítulo cujo título inclui aquela
palavra, é pouco aprofundado. O autor refere os "três princípios
fundamentais" que a Armada propunha: patriotismo, orgulho na instituição,
culto do saber e da eficiência; acrescenta-lhes cinco outros princípios
normativos: procedimentos rotineiros ligados à organização; dever de
obediência; assunção dos objectivos fixados pelo poder político; camaradagem e
solidariedade; representações simbólicas.
Sendo secundário que algumas destas designações pareçam pouco elucidativas,
devemos relevar que elas nos dão o "género próximo" da instituição
militar, mas desvalorizam a "diferença específica" da Armada —
ainda que ao longo do texto numerosas sugestões avulsas permitam recompor essa
diferença. Teria sido por certo produtivo estabelecer uma relação sistemática
do ethos naval com o espírito republicano e com um universo regulado pela
ciência — um universo previsível, portanto. Nesta dimensão, seria de valorizar
o papel da Ordenança do Serviço Naval, o regulamento geral da vida a bordo, o
qual aparece subestimado, ainda que seja dignificado entre os "livros
sagrados" da Armada (p. 113). A Ordenança — the book da marinha britânica
— sintetiza o rigor científico da hierarquia naval, a previsibilidade social e
o comando não discricionário.
Teria sido também relevante tentar identificar o modelo de autoridade naval; já
nessa altura incluía por certo um forte elemento de participação: o comandante
era suposto aconselhar- se sobre o modo de realizar os fins com o subordinado
técnica e cientificamente habilitado — sendo prerrogativa do comando estatuir
sobre esses fins, e apenas estatuir, cabendo o respectivo estudo e execução aos
subordinados; o subordinado não era livre de discutir esses fins, mas tinha o
dever e o direito de dissertar em toda a liberdade sobre os meios para os
executar, e apenas sobre os meios.
O que vem descrito sobre a atitude do marinheiro face à Igreja, que o autor
designa quase sempre por religião, sobre o panache, que o marinheiro aprecia
como estilo de acção, ou sobre o heroísmo é aplicável a outros segmentos de
militares — aos de cavalaria, por exemplo.
Parece duvidoso que a "familiaridade " estivesse entre as
"características principais do tratamento usual entre os militares da
armada", mesmo entre os da mesma categoria hierárquica (p. 27), mas
talvez seja exacto afirmar que o espírito de corpo dos marinheiros se
exterioriza sempre que um deles fala com outro.
A participação da marinha na guerra colonial é objecto de uma descrição concisa
(pp. 179 e segs.) e, como vimos, a guerra naval, assim como os seus sucedâneos,
os exercícios navais, são também referidos (pp. 137 e segs.). O autor menciona
que a guerra africana e o novo clima social dos anos 1960 estimulavam os
oficiais jovens de então a distanciarem- se da cadeia de comando naval, mas não
procede a uma análise metódica do efeito da guerra em África sobre o ethos dos
oficiais e sargentos e por isso tem de ignorar a problemática do papel
instituinte que a participação na guerra colonial teve na própria Armada. Nesta
linha, teria sido interessante analisar as transformações operadas nos oficiais
da classe de marinha que prestaram serviço como oficiais de fuzileiros (v. pp.
95-96).
A relação entre a Armada e o "Estado Novo" não encontra nesta obra
uma tematização estabilizada. Vejamos um único aspecto e apenas de relance. O
autor parece considerar que a marinha de guerra teve um papel de apoio ao
"Estado Novo" e tolerou as intromissões deste (na p. 42 afirma que
os critérios de acesso ao almirantado eram "também de natureza
política"), mas escreve "no geral, o pessoal da armada manteve uma
certa e cautelosa distância em relação ao discurso do poder" (p. 176).
Estas frases não são em rigor contraditórias, mas têm pulsões opostas e por
isso causam perplexidade. Perplexidade que se mantém porque parece ter sido
apenas a guerra colonial que "comprometeu" a Armada com a
"orientação política do salazarismo " (p. 178) — compromisso
paradoxal, pois o autor reconhece que a oposição moderada nos anos 1960 não era
menos colonialista do que o "Estado Novo" e, portanto, o
colonialismo da Armada, por si só, tanto a identificaria com a oposição
moderada como com o próprio "Estado Novo".
O autor caracteriza a Armada como uma "instituição militar" e
"corporação profissional", sugerindo que a actividade dos
marinheiros é um trabalho. Quem ler esta obra perceberá a natureza
institucional da marinha de guerra portuguesa — que por certo perdura no
período posterior ao estudado nesta obra. Já é mais discutível a aplicação à
Armada da metodologia da sociologia do trabalho — aliás, a especialidade de
João Freire. Considerada do ponto de vista das profissões, a marinha de guerra
é um conjunto delas — conjunto que muda no tempo e no espaço; ora este plural
da profissão naval não permitiria construir conceptualmente a unidade da
corporação.
Indo noutra direcção e mais fundo, o conceito de trabalho — mesmo que não
retenhamos por necessário que ele tenha de incluir na sua compreensão a directa
transformação da natureza — parece ser inaplicável ao universo da marinha de
guerra pelo próprio facto de os militares da Armada serem elementos de uma
instituição correspondente à "ordem" da segurança. Consideremos por
um momento que a sociedade tem como segmentação elementar três "ordens
" — a simbólica, que dá a identidade; a da segurança, que garante a
sobrevivência daquela identidade; a económico-biológica, que a reproduz. Sendo
assim, a noção de trabalho, em rigor, só é aplicável à "ordem "
económico-biológica; as duas outras exercem formas específicas de autoridade e
esse exercício, ainda que na substância seja igual ao da "ordem"
económica, tem outra qualificação social — e também teórica.
Estas críticas deixam o essencial intocado. Homens em Fundo-Azul Marinho é uma
obra preciosa para quem queira compreender a marinha de guerra portuguesa, pois
permite compreender a psicologia dos marinheiros militares, à qual, aliás, João
Freire presta muita atenção.
E, descontadas as porções metodológicas, é um livro que lemos pelo prazer da
leitura. Há algumas excelentes vignettes: a caracterização do comandante do
navio, por exemplo (p. 114). O interesse da obra aumenta porque o autor tem
talento para escolher o petit fait vrai. Vejamos um exemplo. O "Estado
Novo" instituiu a Brigada Naval, um ramo da Legião Portuguesa; entre
outras actividades, fazia assistência aos pobres. Um belo dia, o comandante
José Moreira de Campos, um oposicionista militante, ao descer a Avenida da
Liberdade, cruzou-se com um desfile da Brigada Naval. Houve então "uma
cena de bengalada" entre Campos e os legionários navais; o comandante
oposicionista classificou os legionários de "turba de maltrapilhos
armados". A "turba de maltrapilhos" era uma organização do
Estado Novo e em particular da própria marinha.
Luís Salgado de Matos