Colonialism in Question: Theory, Knowledge, History
Frederick Cooper, Colonialism in Question: Theory, Knowledge, History,
Berkeley, University of California Press, 2005.
Este importante trabalho certamente terá impacto significativo numa série de
campos inter-relacionados do saber que se congregam em torno do rótulo
"estudos coloniais ". O seu autor, um eminente historiador da
África com uma importante obra sobre a descolonização nos impérios coloniais
1
, talvez seja mais conhecido fora do âmbito específico da história da África
pela coordenação, juntamente com Ann Laura Stoler, de um influente e muito
citado volume sobre os impérios coloniais chamado Tensions of Empire
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.
O presente livro retoma uma série de questões levantadas e analisadas na
mencionada colectânea, mas fá-lo agora de modo mais articulado e desenvolvido.
Em especial, ganha tratamento minucioso o complexo tema das limitações do poder
nos impérios coloniais, com desdobramentos já esperados por quem conhece os
seus trabalhos anteriores como a crítica à ficção maniqueísta do Estado
colonial e a exposição da fragilidade que caracteriza a oposição entre
colonizado e colonizador. Porém, o livro também aborda temáticas novas, que
parecem inquietar o historiador preocupado com a retórica fácil que impera nos
estudos coloniais e pós-coloniais: põe à luz as várias formas de teleologias
que habitam o horizonte intelectual de historiadores e cientistas sociais e
todos os credos, em especial os contos do progresso rumo ao Estado-nação, à
modernidade e à globalização; revela com uma satisfação irónica o arraigado
conformismo reinante na vanguarda dos que estudam o pós-colonialismo;
finalmente, expõe de maneira cirúrgica os problemas do aparato conceptual das
ciências humanas contemporâneas com o seu apego aos jargões fáceis.
O título do livro pode provocar uma decepção no leitor. Apesar de tratar da
questão colonial, abordando situações coloniais específicas (v. capítulo 7), o
livro está longe de ser uma história do colonialismo ou mesmo uma reflexão
directa sobre esse momento da história mundial. Trata-se antes de uma obra mais
ambiciosa, dedicada ao questionamento conceptual e à crítica de certos modos a-
históricos de se fazer história.
Organizado em três partes semiautónomas, o trabalho é constituído por oito
capítulos, três dos quais já haviam sido publicados anteriormente, sendo um
deles (o capítulo 3) em co-autoria com Rogers Brubaker.
A primeira parte, voltada para a reflexão sobre os estudos coloniais e o
pensamento interdisciplinar, tem como ponto de partida a aparente estranheza de
ter esse campo de estudo florescido num tempo em que os impérios coloniais já
não representam mais uma forma viável de organização política. No entanto, a
estranheza desfaz-se quando o autor aponta para a natureza a-histórica de
muitos desses estudos. Apesar de a reflexão sobre o colonialismo ter dado, nos
últimos vinte anos, largos passos rumo ao questionamento de verdades
estabelecidas, contestando, por exemplo, a narrativa do progresso que irradia
da Europa, a natureza interdisciplinar das questões coloniais acabou por ser
empobrecida pelo uso repetido de clichés que, se um dia foram provocativos,
perderam há muito o seu potencial de veicularem sentido. O «colonial» dos
estudos coloniais e pós-coloniais é muito genérico e abstracto. O colonialismo
é visto como algo que se justapõe à modernidade europeia também entendida de
modo muito rasteiro e o seu estudo muito frequentemente reduz-se a uma
crítica ao iluminismo e à modernidade. Este é o grande tema da «introdução»,
que se desdobra numa crítica aos modos pouco históricos de se fazer história:
colectando e comparando textos desconexos em termos de tempo e espaço,
saltitando entre momentos históricos sem prestar a devida atenção às cadeias
causais, sendo aprisionado a um certo presentismo e rotulando acriticamente o
que seria uma época.
A seguir, no capítulo intitulado «Ascensão, queda, ascensão dos estudos estudos
coloniais», Cooper retoma o paradoxo de os estudos coloniais florescerem quando
os impérios já não têm mais sentido político e mostra que nos anos 50 Balandier
já clamava pela análise da situação colonial como uma totalidade do campo do
poder. Apesar do potencial explicativo de conceitos (rede, situação e campo
social), da inovação que foi tomar o problema colonial como uma totalidade e da
sua sensibilidade histórica em perceber que a colonização era um processo
histórico específico, a chamada de Balandier não foi atendida e a situação
colonial saiu do foco do interesse dos académicos. Naqueles anos turbulentos, o
colonialismo era sobretudo uma temática para críticas e ataques, que não
merecia uma análise detida. A mudança social, bem como as promessas de
modernização, urbanização e industrialização das sociedades africanas, eram os
temas que interessavam a cientistas sociais e historiadores e por isso a
proposta de Balandier passou a ser pensada em termos da teoria da modernização,
cujos princípios distintivos enfatizavam que modernidade e tradição são
dicotómicas e que os dois pólos dessa dicotomia expressam um pacote complexo de
mudanças. Somente na década de 80, argumenta Cooper, a ideia de modernidade vai
deixar de obstruir a de colonial e a colonização passará a ser vista como uma
reflexão da pior faceta da modernidade. Mas por tratar o colonialismo de
maneira genérica e abstracta, e não como uma situação histórica na qual pessoas
concretas actuam de facto, um período dinâmico carregado de incertezas, a ideia
de modernidade nesses novos estudos obstrui a de história.
A segunda parte é dedicada à reflexão conceptual estrita, na qual três
conceitos centrais para os estudos coloniais são colocados em questão:
identidade, globalização e modernidade.
Identidade é uma categoria nativa muito importante na cultura política das
sociedades ocidentais. Porém, pretende também ser uma categoria para descrição
e análise. O problema com esse contrabando entre o mundo da vida e o dos
conceitos tem a ver com a distância semântica entre categorias nativas e
ferramentas analíticas. No caso da identidade, o seu uso como conceito por
antropólogos, sociólogos, historiadores, é alargado de mais e obscurece os
modos pelos quais os actores históricos a empregam. Em resumo, a identidade
sofre de um mal muito disseminado no campo intelectual contemporâneo: a
obesidade conceptual. E por querer muito significar acaba por nada dizer. Uma
vez exposta a raiz da ambiguidade e imprecisão do conceito, Cooper vislumbra um
conjunto de ferramentas analíticas que poderiam dar sentido ao largo espectro
de práticas e processos que procuramos entender com o uso do conceito de
«identidade», sem os problemas que tal uso acarreta. No entanto, se a sua
crítica à ambiguidade e imprecisão do conceito, em especial a versão
antiessencialista dos «construtivistas», acerta plenamente no alvo, parece-me
que a sua opção por proporpropor uma série de termos substitutos, em vez de uma
verdadeira teoria da identidade, é problemática e ingénua. Primeiramente, por
ser uma opção excessivamente normativa; depois, por atomizar em vários termos
alternativos aquilo que no mundo da cultura é tomado como um campo único de
fenómenos.
A crítica à globalização segue a mesma linha de raciocínio. Cooper reconhece
que o termo tem significados polémicos para os actores sociais, mas
acertadamente insiste em que não se trata de ser a favor ou contra a
globalização. Propõe antes que se reformule a questão dos mecanismos de conexão
entre espaços separados e entre fronteiras (e dos limites dessas
interconexões), assim como a dos processos de demarcação territorial e de
cruzamento ou trânsito entre fronteiras, sem que seja preciso lançar mão da
noção de globalidade. Como conceito, globalização sofre de dois problemas
básicos: sugerir que há um sistema único de conexão operando em todo o globo e
implicar que isto é uma faceta do tempo presente, que esta é a época global.
Trata-se de uma metanarrativa teleológica que enfatiza um processo em andamento
que é nomeado por aquilo que é o seu suposto ponto terminal, que aparece com
uma aura de inevitabilidade. Os problemas com essa forma de compreender os
fenómenos sociais são equivalentes aos apontados na sua crítica à teoria da
modernização dos anos 50 e 60. Além disso, por representar uma espécie de
história presentista, que começa com uma versão do presente (no caso, a versão
idealizada do presente globalizado) e vai ao passado para revelar ou que tudo
leva ao presente ou que tudo se desvia dele, a metanarrativa da globalização
distorce a história dos impérios coloniais e da colonização, menospreza
processos de conexão territorial passados e o papel dos povos não europeus
nestes processos. Em vez de uma ideia artificial e muito genérica de
globalidade, Cooper realça a necessidade de se procurar um ponto intermédio
entre o local e o global, que não perca de vista o complexo emaranhado de
conexões, a variedade dos mecanismos de conexão territorial e os seus limites.
O último conceito objecto de crítica é o de modernidade. Trata-se, a meu ver,
do capítulo mais problemático. Primeiro, porque, dos três conceitos
questionados, este é o que é menos central para a reflexão intelectual (como
mostra o gráfico das palavras-chaves mais usadas, na p. 8 do livro). Segundo,
porque seu uso é mais restrito a uma certa historiografia (a dos estudos
subalternos indianos e dos seus adeptos encantados alhures), sendo pouco
difundido noutros contextos, como o africano e o das sociedades sul-americanas.
Certamente modernidade é um termo com muitos significados divergentes entre si.
Como acontece com o termo «identidade», há no caso em questão uma grande
distância semântica entre os vários sentidos que os actores históricos dão ao
termo «moderno» e os sentidos atribuídos pelo mundo intelectual ao conceito de
modernidade. Isso é o bastante para tornar tal conceito impreciso e ambíguo,
com pouco poder de esclarecer situações históricas específicas. Especialmente
problemáticas são as noções de modernidades alternativas e modernidade
colonial. A primeira, pelo pouco poder explicativo que habita no seu
pluralismo. Como bem aponta Cooper, se qualquer inovação produz uma modernidade
alternativa, então o termo tem pouco valor analítico e sugere um curioso e
problemático compartilhamento dos atributos que a constituem por povos muito
separados no tempo e no espaço. A segunda, por querer fazer da colonização um
projecto universalizante, emanado da Europa, cuja finalidade era trazer os
colonizados ao mundo da modernidade. Tal projecto implica que ela é algo a que
os colonizados deviam aspirar, apesar de não a merecerem, e implicitamente
carrega consigo a reivindicação do direito europeu de governar as colónias.
A terceira e última parte é constituída por dois capítulos que tematizam a
complexa relação entre o império e o Estado-nação, questionando as narrativas
pouco profundas que supõem como inevitável a transformação dos impérios em
Estados-nações. O capítulo 6, de natureza mais geral, explora as várias formas
de imaginação política e de gerenciamento do dilema típico de todos os
impérios, que tem a ver com a conjugação dos processos de incorporação de gente
com os de reprodução das diferenças e hierarquias num território muito grande e
descontínuo, habitado por povos culturalmente distintos. O argumento central
deste capítulo é o de que para governar um império é necessário pensar
imperialmente e que isto é muito diferente de pensar como nação. Para isso é
necessário que se conte uma história mais profunda do que a de dois séculos do
colonialismo europeu que levou ao surgimento dos Estados-nações, olhando para
um período muito mais longo e para um conjunto mais multifacetado de formas de
organização política. Por meio do exame de estruturas imperiais pré-modernas
(Roma e Mongólia) e modernas, europeias e não europeias (China e Império
Otomano), Cooper revela-nos o engano que é pensar os impérios modernos como
projecções dos Estados-nações, sendo as colónias meras expressões do poder
nacional. As trajectórias tomadas pelos vários impérios foram diferentes.
Alguns entraram em crise e transformaram-se em tempos diferentes em Estados-
nações (França e Inglaterra, Espanha e Portugal), outros reconfiguraram-se como
impérios (Rússia); alguns vincularam-se com interesses capitalistas (por
exemplo, Portugal, segundo Gervase Smith), outros ligaram-se ao sentimento da
paixão e ao valor da honra (Portugal, segundo Hammond); alguns mantiveram
quanto puderam a oposição entre sujeitos e cidadãos, outros foram francamente
incorporadores. Em resumo, as trajectórias imperiais sempre foram muito mais
diversificadas do que a narrativa idealizada e teleológica que propõe o caminho
único que vai do império ao Estado-nação. E, mais do que diversificada, os
impérios sempre se depararam com os seus próprios limites.
O capítulo 7 lida com um caso em que o fim do império não resulta de uma
oposição idealizada entre o colonialismo violento e as forças libertadoras dos
movimentos nacionalistas, mas antes das fissuras e tensões no interior da
própria estrutura imperial. Neste capítulo Cooper focaliza uma série de greves
encaminhadas pelas lideranças sindicais na África ocidental francesa nos anos
40. Trata-se de um capítulo bem ao gosto dos antropólogos em que o autor mostra
como o diálogo entre as lideranças sindicais e os agentes da autoridade
colonial francesa levou ambas as partes a um ponto em que nenhuma delas queria
ir. Ao aceitarem a reivindicação trabalhista de igualdade entre franceses e
africanos, de universalidade da cidadania, os agentes coloniais impuseram ao
império um custo com que ele não podia arcar e esse foi apenas o primeiro passo
rumo ao rompimento do dogma da indissolubilidade do império colonial. Por sua
vez, a demanda por equivalência entre franceses e africanos impunha aos líderes
sindicais o paradoxo de que ao igualarem-se aos franceses esses trabalhadores
organizados distanciavam-se da massa de africanos do mundo rural, o que fez com
que vários líderes políticos africanos (antigos líderes sindicais) procurassem
separar a luta de classes da busca pela unidade política. O resultado final
destes embates foi que os africanos ganharam a soberania. Esta, porém, não foi
a única demanda que surgiu de toda a mobilização trabalhista dos últimos anos
do regime colonial francês. Mas, como bem nota Cooper, foi a que a França
estava desejosa de conceder.
Recusando-se a contribuir com o conto de progresso rumo à modernidade, à
globalização ou ao Estado-nação, Cooper ressalta a necessidade de se dar
atenção plena às múltiplas e dinâmicas trajectórias da interacção histórica, à
riqueza da imaginação política dos actores históricos e aos constrangimentos e
limites impostos sobre tal imaginação. Nisto está o ponto forte deste
interessante livro. Força que suplanta largamente a perspectiva muito normativa
que por vezes domina a crítica conceptual da segunda parte e o estilo marcado
por uma erudição excessiva (239 páginas de texto e 68 de notas) onde o autor
muitas vezes fica aprisionado pelos «ismos» que tão bem critica.
1
Frederick Cooper, Decolonization and African Society: The Labor Question in
French and British Africa, Cambridge, Cambridge University Press, 1996.
2
Frederick Cooper e Ann Laura Stoler (eds.), Tensions of Empire: Colonial
Cultures in a Burgeois World, Berkeley, University of California Press, 1997.
Wilson Trajano Filho