Da Torre de Babel às Terras Prometidas: Pluralismo Religioso em Portugal
Helena Vilaça,Da Torre de Babel às Terras Prometidas Pluralismo Religioso em
Portugal, Porto, Edições Afrontamento, 2006, 285 páginas.
Uma das tendências mais marcantes e mais importantes no passado recente, na
vida actual e no futuro próximo das sociedades europeias é a crescente
pluralização cultural, étnica, moral e religiosa. Hoje em dia já não é possível
encontrar qualquer nação moderna sem diversos estilos de vida, mundividências
ou religiões. Não há dúvidas de que esta situação pode ser encarada com um
enriquecimento, embora possa provocar alguns mal-entendidos enquanto houver uma
falta de conhecimento perante o «outro». Neste sentido, há uma necessidade
crescente em estudar, interpretar e entender esta «nova» multiplicidade na
nossa vida quotidiana.
Um estudo explicativo deste género foi apresentado em 2006 por Helena Vilaça,
abordando a diversidade religiosa na vida contemporânea em Portugal. Trata-se
do livro Da Torre de Babel às Terras Prometidas Pluralismo Religioso em
Portugal, que se baseia parcialmente numa dissertação de doutoramento defendida
em 2003 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Independentemente de
algumas outras pesquisas que a autora já tinha feito anteriormente, este livro
representa uma aproximação pormenorizada do complexo assunto da paisagem
religiosa portuguesa em mudança. Trata-se de um estudo sempre bem-vindo e muito
necessário.
Tendo em consideração que somos confrontados com uma área científica com
algumas dificuldades terminológicas, a atenção do leitor centra-se logo na
introdução na frase seguinte: «A questão fundamental que nos acompanhou ao
longo da pesquisa prende-se, em boa medida, com a necessidade de estabelecer a
distinção entre a diversidade religiosa e o pluralismo religioso» (p. 25).
Trata-se de uma intenção ambiciosa se o leitor reparar que a recente literatura
científica ainda carece de uma clara separação entre «pluralismo» (pluralism) e
«pluralidade/diversidade» (plurality/diversity). Porém, Helena Vilaça decide-se
explicitamente pela utilização da palavra «pluralismo», «procurando depurar a
sua carga ideológica e normativa» (ibid.). Esta decisão tem a sua origem
principalmente na confrontação da autora com os sociólogos James A. Beckford e
Ole Riis. Enquanto o inglês Beckford prefere a palavra diversity para denominar
simplesmente uma realidade social e chama a atenção para as dificuldades na
utilização do conceito de «pluralismo», sublinhando exactamente as tendências
ideológicas e normativas deste termo1, o dinamarquês Riis utiliza o conceito de
«pluralismo» não apenas para denominar a mesma realidade social, mas também
para medir uma diversidade religiosa em três linhas ou níveis gerais: (a) a
relação das autoridades sociais com as religiões; (b) a relação entre as
religiões; (c) a situação do indivíduo perante uma variedade de religiões2.
Contudo, uma confrontação directa destas duas concepções terminológicas pode
facilmente provocar um certo equívoco, reconhecendo que ambas as opções são
completamente legítimas tudo depende das condições teóricas. Por outras
palavras, o conceito «pluralismo» é legítimo, descrevendo uma organização
social de uma diferença étnica ou religiosa sem tentativas normativas, enquanto
o conceito de «pluralidade» tem a mesma legitimidade, referindo-se simplesmente
à coexistência de várias opções religiosas.
Todavia, parece que não foi por acaso que Helena Vilaça se decidiu logo no
início pela utilização do conceito terminologicamente mais «problemático» (p.
33), estabelecendo no primeiro capítulo um interessante panorama histórico das
particularidades do «pluralismo religioso» no mundo ocidental. Embora a autora
tenha razão quando desenha uma história religiosa europeia, sobretudo sob o
domínio absoluto do cristianismo, esta forma de historiografia tem descurado as
alternativas religiosas que sempre existiram no velho continente. Não há a
mínima dúvida de que o monopólio da «verdade cristã» criou uma posição
inflexível perante opções religiosas divergentes ou sistemas de sentido
diferentes e suprimiu, assim, as possibilidades de um «pluralismo» religioso.
Porém, as diferentes opções nunca desapareceram por completo durante o domínio
monolítico do cristianismo e construíram assim, pelo menos teoricamente, uma
situação plural. Ou seja, posições teológicas, confissões ou concílios serviram
ou tornaram-se necessários geralmente para uma diferenciação perante uma
realidade, considerada o «outro».
Nas páginas seguintes encontramos observações bem ponderadas a partir das quais
Helena Vilaça confronta as diferentes tradições do «pluralismo religioso» no
velho continente e nos Estados Unidos. Esta confrontação oferece uma imagem
lúcida e compacta das enormes divergências entre estas duas paisagens
religiosas, e falta-nos apenas acrescentar que é exactamente aqui que reside a
origem de algumas dificuldades teóricas e terminológicas da nossa contemporânea
sociologia da religião, muitas vezes demasiado influenciada por algumas
concepções que nasceram dentro da sociologia dos Estados Unidos. Isso significa
que duas realidades diferentes não podem sempre ser explicadas com uma só
teoria. Não menos interessante é a última parte deste primeiro capítulo onde a
autora salienta claramente as dificuldades em designar o mundo religioso dentro
da actual União Europeia com a palavra «pluralismo», mostrando a incongruência
entre os conceitos de «pluralismo» e «tolerância» (p. 59). Tendo em conta que o
leitor pode ainda sentir no final deste primeiro capítulo uma certa incerteza
sobre o significado ambíguo dos conceitos de «pluralismo» e «pluralidade», a
autora oferece aqui um estratagema bastante inteligente, declarando que chegou
com a sua argumentação a um ponto onde tem de recapitular mais uma vez a teoria
da «problemática do pluralismo religioso» (p. 62).
Assim mergulhamos, no segundo capítulo, directamente numa das discussões mais
complexas e difíceis de toda a sociologia da religião dos últimos anos. Somos
confrontados concretamente com a polémica sobre o fenómeno da secularização, e
Helena Vilaça utiliza também neste capítulo uma estratégia sensata, começando
por delinear um panorama das condições históricas que originaram a teoria da
secularização. Assim, nas páginas seguintes são abordados, em linhas gerais,
alguns autores importantes que estão na base do debate sobre a secularização,
tais como Comte, Spencer, Marx, Engels, Weber, Durkheim, Tönnies e Simmel (pp.
64-82). Nesta incursão histórico-teórica a autora salienta de uma forma muito
atenta que os pais da sociologia da religião, especialmente Durkheim e Weber,
sublinharam o facto de que a modernidade e a religião não precisam de ser
necessariamente antagónicas. Trata-se de uma problemática que ainda continua a
provocar algumas confusões nas discussões científicas acerca de fenómenos
religiosos. Porém, nas primeiras considerações sociológicas sobre a religião
ainda não existia nenhuma verdadeira preocupação acerca do termo
«secularização», e esta ausência explica-se principalmente pela convicção a
partir da qual a religião continuará a ter um papel importante em sociedades
modernas e industrializadas (p. 81). Nos parágrafos seguintes, Helena Vilaça
descreve as primeiras teorias modernas sobre a secularização. Este procedimento
é legítimo, embora este ponto possa provocar algumas ambiguidades se o leitor
não tiver anteriormente uma certa familiaridade com a discussão sobre o
conceito de «secularização».
Ou seja, as observações e explicações da autora estão completamente correctas,
mas exigem, contudo, um conhecimento prévio da parte do leitor. Neste sentido,
a autora tem plenamente razão, dizendo que, por exemplo, o sociólogo Thomas
Luckmann elabora no seu livro clássico The Invisible Religion (1967) uma teoria
funcionalista que pode ser compreendida como uma consolidação da
«secularização», vista aqui como uma «deslocação» da religião do espaço
institucional para uma esfera privada ou individual (ou seja, publicamente
invisível). Porém, tal como esta deslocação ou esta «nova forma social da
religião» foi confundida nos anos seguintes muitas vezes com um certo
desaparecimento ou um declínio geral da religião, Luckmann declarou, a partir
dos anos 80, a «secularização» francamente como um «mito moderno»3. Luckmann
entendeu a religião sempre como uma espécie de conditio humana, e alguns dos
seus textos tardios podem ser assim interpretados facilmente como uma clara
rejeição do paradigma da «secularização». Helena Vilaça apresenta depois Peter
L. Berger, que estabeleceu uma teoria da «secularização», que significa para
este sociólogo «o processo mediante o qual as representações colectivas se
emancipam em relação às referências religiosas» (p. 85). Esta observação, ou
seja, a tendência para o declínio das instituições religiosas em muitas
sociedades europeias, está completamente correcta, embora possa ser
interessante saber que especialmente Peter L. Berger começou nos últimos anos a
falar repetidamente, e de uma forma muito nítida, sobre uma «dessecularização
do mundo»4. E, finalmente, temos a concepção de Bryan Wilson, que estabelece
uma ligação entre «secularização» e racionalização (p. 87), partindo de uma
certa laicização das igrejas tradicionais.
Depois da breve explicação destes três «teóricos» da secularização, Helena
Vilaça apresenta especialmente Talcott Parson, Robert Bellah e Niklas Luhmann
como sociólogos que não são propriamente autores centrais na discussão sobre a
«secularização», mas que deram, pelo menos, contributos importantes para a
discussão sobre o assunto. Neste ponto apenas se podia acrescentar uma
referência irónica de Luhmann através da qual ele sublinha um dos grandes
valores da discussão sobre a «secularização». Ou seja, pelo menos através desta
discussão, a religião teve a grande sorte de regressar ao centro da atenção dos
sociólogos5. Nas páginas seguintes, Helena Vilaça procura lançar algumas pistas
para a sistematização dos diferentes conceitos da secularização e destaca
nomeadamente as tentativas fundamentais de Karel Dobbeleare e de Olivier
Tschannen (pp. 91-94). Esta parte tem um valor essencial, pois o leitor toma
conhecimento de que a «secularização» continua a ser um conceito ambíguo e
polémico.
Helena Vilaça reconhece que este excurso sobre a discussão acerca da
«secularização» pode ser entendido como uma «estratégia discutível» (p. 95).
Porém, a autora chega no final deste segundo capítulo a um ponto importante,
sublinhando agora uma relação estreita entre «pluralismo» e «secularização».
Assim, Helena Vilaça chama novamente a atenção para Bryan Wilson, sobretudo
para Peter L. Berger, que reflectiu mais profundamente sobre a ligação entre
«modernização» («secularização») e «pluralização». Assim, a «estratégia
discutível» revela-se uma táctica inteligente, tal como este profundo mergulho
no interior da discussão polémica da «secularização» se mostrou capaz de
esclarecer «as potencialidades deste modelo teórico para a compreensão do
pluralismo religioso» (pp. 99-100). Embora uma tentativa deste género
signifique sempre um grande risco, Helena Vilaça conseguiu apresentar, em
linhas gerais, alguns dos pontos mais marcantes dentro da controvérsia sobre a
«secularização». Uma das maiores qualidades desta apresentação consiste no
facto de a autora deixar esta discussão praticamente em aberto, apresentando
simplesmente algumas posições bastante opostas. Assim, o leitor toma depois
contacto com a versão sociológica da rational choice theory, desenvolvida pelos
americanos Rodney Stark e Roger Finke, que defenderam um aumento da
religiosidade individual através de uma concorrência entre vários grupos
religiosos. Por outro lado, existem também posições como a do sociólogo inglês
Steve Bruce, que vê na moderna diversidade religiosa uma das razões para uma
crescente indiferença perante a religião. Helena Vilaça facilita o entendimento
destas posições principalmente contraditórias quando chama a atenção para o
facto de as paisagens religiosas nos Estados Unidos e na Europa serem
realidades diferentes, ou quase incomparáveis.
Depois desta esclarecedora exposição acerca das bases teóricas da
«secularização» e do «pluralismo», a autora prepara um desenho mais empírico e
sistematizado da diversidade religiosa em Portugal. A recapitulação do
raciocínio metodológico ajuda a entender a delineação das particularidades
locais na realidade social portuguesa. Helena Vilaça recorre mais uma vez à
excelente proposta analítica de Ole Riis, que pretende examinar o «pluralismo»
em «três níveis sociais consecutivos: macro, mesoe micro» (p. 114). Para além
de ser uma entrada favorável para a parte mais empírica do estudo, esta nova
sinopse ajuda também a perceber definitivamente a decisão da autora em usar o
termo «pluralismo». Assim, vemos que existe na «dimensão macrossocietal» uma
certa exigência que obriga as autoridades sociais a aceitarem e admitirem uma
multiplicidade ou pluralidade dentro do campo religioso, tal como o
«pluralismo» implica no micronível a liberdade de uma escolha individual. A
autora acrescenta a estas três dimensões a teoria de campo de Pierre Bourdieu
que ajudará especialmente a «determinar a presença e coexistência de vários
agentes e organizações com posições, objectivos e poderes diferenciados» (p.
115).
Na parte mais prática da pesquisa que começa com o capítulo 4, «Religião e
Estado na sociedade portuguesa», a autora começa com um retrato da produção
sociológica (ou geralmente científica) sobre a religião em Portugal que é
simultaneamente interessante e algo preocupante. Trata-se de uma leitura
interessante pela simples razão de que o leitor pode ter aqui rápida e
facilmente uma visão geral sobre toda a criação científica (não confessional)
que foi feita nos últimos anos em torno de fenómenos religiosos em Portugal.
Por outro lado, este retrato afigura-se um pouco inquietante por causa de um
certo desinteresse das ciências sociais em Portugal perante fenómenos
religiosos. Neste caso, o leitor estará completamente de acordo com Helena
Vilaça, que pronuncia aqui claramente a necessidade de um aumento temático de
trabalhos na área de uma ciência (ou sociologia) não confessional das religiões
(p. 130). Depois de um percurso através da história religiosa de Portugal,
Helena Vilaça aborda a situação actual das minorias religiosas em Portugal,
começando com o nível da «tolerância religiosa». Para a exposição deste
macronível, a autora descreve os contornos da nova lei da liberdade religiosa,
sem se esquecer de chamar a atenção para um parágrafo que parece escrito, quase
inconfundivelmente, contra alguns grupos de (neo)pentecostalismo, tal como a
Igreja Universal do Reino de Deus ou a Igreja do Maná. A autora é também neste
ponto bastante sensata, deixando o leitor decidir por si se existe um
verdadeiro apoio a uma plena liberdade religiosa num parágrafo que exclui
grupos religiosos implantados há menos de trinta anos no país ou sessenta no
estrangeiro (p. 156). Independentemente deste parágrafo «antipentecostal»,
Portugal aproxima-se, pelo menos teoricamente, de uma situação «pluralista» em
questões religiosas. Porém, o discurso religioso oficial continua a ser em
grande parte dominado pela Igreja católica. E, de facto, ainda hoje em dia se
encontra na sociedade portuguesa pontualmente a opinião a partir da qual
religião e catolicismo são a mesma coisa (pp. 157-158). No sub-capítulo 4.4, «A
religião em números no espaço e no tempo», a autora oferece uma aproximação
numérica baseada nos recenseamentos gerais da população e que mostra
nitidamente um crescimento da diversidade religiosa sobretudo entre 1991 e
2001. Ao ler estas páginas informativas, não restam dúvidas de que se trata de
uma tendência contínua.
A última parte do livro, do capítulo 5 até ao 7, traz consigo um panorama sobre
«o universo religioso minoritário» e uma avaliação das «atitudes dos
portugueses face ao pluralismo». Tendo em consideração que a autora procura
sobretudo «perceber em que medida a análise de um fenómeno minoritário
contribui para a compreensão mais aprofundada da nossa sociedade e dos
processos sociais em curso» (p. 174), o leitor aceitará que a atenção principal
da autora se debruce essencialmente sobre a comunidade protestante. Esta
decisão justifica-se pela apresentação pormenorizada desta minoria religiosa, e
desta forma é-nos apresentada uma boa explicação sobre o funcionamento do
«pluralismo» religioso em Portugal no mesonível. Finalmente, existe uma
exposição de algumas atitudes sociais dos portugueses perante uma variedade das
orientações religiosas. Neste sentido, Helena Vilaça resume que «o monolitismo
religioso continua a matizar culturalmente as representações religiosas dos
portugueses» (p. 259). Todavia, na nota final a autora faz entender, de uma
forma absolutamente clara, que também Portugal é recentemente marcado por
enormes transformações no campo religioso e a sociedade portuguesa apresenta um
crescente grau de diversidade religiosa (p. 264). É exactamente aqui que reside
o enorme valor deste livro, pois é o primeiro estudo sistemático sobre as
metamorfoses na paisagem religiosa em Portugal.
Embora a opção pela palavra «pluralismo» e a suposta «inexistência de uma
pluralidade religiosa» na história de Portugal sejam assuntos que podem
provocar opiniões divergentes, Helena Vilaça oferece um contributo extremamente
proveitoso para o entendimento das mudanças sociais nos últimos anos em
Portugal. A leitura deste estudo esclarece, em termos teóricos, assuntos tão
complexos como a «secularização» e amplia o nosso conhecimento prático sobre as
especificidades religiosas da sociedade portuguesa e as mudanças ocorridas nos
últimos anos. Isso significa que esta obra representa um estudo indispensável
sobre as mudanças religiosas que ocorreram nos últimos tempos na sociedade
portuguesa. E, finalmente, para além das pesquisas teóricas e práticas de
grande qualidade, este livro representa mais um valor bastante importante: o
livro de Helena Vilaça obriga ao reconhecimento de que o estudo ou a sociologia
das religiões precisam de uma continuação permanente. Trata-se de uma área
científica que, curiosamente, continua ainda a ser bastante subestimada na
paisagem académica de Portugal.
Steffen Dix
Notas
1
James A. Beckford, «The management of religious diversity in England and Wales
with special reference to prison Chaplaincy», in International Journal on
Multicultural Societies,v. 1 (2), 1999, pp. 55-66.
2
O. Riis, «Modes of religious pluralism under conditions of globalisation», in
International Journal on Multicultural Societies,1 (1), 1999, pp. 20-34.
3
Thomas Luckmann, «Såkularisierung ein moderner Mythos», in Luckmann,
Lebenswelt und Gesellschaft: Grundstrukturen und geschichtliche Wandlungen,
Paderborn, 1980, pp. 161-172.
4
Peter L. Berger (org.), The Desecularization of the World: Resurgent Religion
and World Politics,Washington, D. C., 1999.
5
N. Luhmann, Funktion der Religion, Frankfurt am Main, 1996 p. 225.