Continuidades e descontinuidades da realidade política italiana (1943-1948)
Nota: Esta base de dados
sobre o perfil e carreiras
dos ministros italianos do
período da transição
democrática foi construída
através da consulta de
múltiplas fontes. Entre as
mais relevantes contam-se o
Dizionario biografico degli
italiani(2006), Roma,
Istituto della Enciclopedia
Italiana, vols. 1-67; La
Navicella, deputati e
senatori del parlamento
italiano, Roma, Editoriale
Italiana, 1921, 1924 e 1948;
Chi è: dizionario degli
italiani d'oggi, Varese, La
Tecnografica, 1928, 1947,
1931; M. Missori (1973),
Governi, alte cariche dello
Stato e prefetti del regno
d'Italia, Roma, Istituto
Grafico Tiberino; http://
it.wikipedia.org.
Fonte: Elaborado pelo autor a
partir de uma base de dados
sobre os ministros italianos
construída para o efeito.
O grande triunfador foi a DC, com 35,21% dos votos, seguida pelo Partido
Socialista (20,68%) e pelo Partido Comunista (18,93%). O PdA, herdeiro do
movimento antifascista Giustizia e Libertà,só conseguiu 1,45% dos votos, e o
PLI, que dominara a política italiana até 1922, 6,78%. Importa ainda salientar
a discreta afirmação de uma força baseada numa ideologia fortemente
antidemocrática, o movimento do Uomo Qualunque (5,27%), cujo lema era
"estava-se melhor quando se estava pior".
Estes dados levam-nos à conclusão de que estamos perante algumas permanências
da ideologia autoritária, já que o ideário democrático não encontrava ainda
forte legitimação na sociedade (Morlino, 1998), na qual as classes médias
conservadoras não tinham ainda erigido a DC como o seu partido de referência
(Scoppola, 1997). Esta foi a fase final da consolidação democrática italiana.
Após a realização do referendo e a eleição da Assembleia constituinte, a qual
não veio a ter poderes legislativos, De Gasperi formou mais um governo (de 13
de Julho de 1946 a 2 de Fevereiro de 1947), em que o PdA não estava
representado. Tanto na Assembleia como no governo eram três as formações
dominantes (correspondendo a cerca de 75% dos deputados): DC, PSI e PCI, as
quais foram a base de uma nova remodelação governamental, que só iria durar
três meses (2 de Fevereiro a 31 de Maio de 1947).
Mais uma vez, foram as circunstâncias internacionais, neste caso os novos
equilíbrios decorrentes da guerra fria, que vieram influenciar profundamente a
política italiana. Em Maio de 1947, o Partido Comunista foi afastado do governo
para nunca mais voltar através de uma praxe definida como conventio ad
excludendum. De Gasperi formou uma nova coligação governamental (31 de Maio de
1947 a 23 de Maio de 1948), desta vez com os liberais e com o Partito
Socialista dei Lavoratori Italiani (PSLI), de Saragat, uma formação política
nascida de uma ruptura à direita do Partido Socialista.
A constituição foi aprovada pelos partidos em Janeiro de 1948. A Itália
tornava-se então uma república parlamentar, baseada num sistema eleitoral
proporcional. Eram estabelecidas duas câmaras, a câmara dos deputados e o
senado, através de um sistema chamado bicameralismo perfetto,uma vez que os
dois ramos do parlamento têm exactamente os mesmos poderes e elegem
conjuntamente o chefe de Estado, cujos poderes viriam a ser fundamentalmente
representativos. Já o presidente do Conselho, por seu turno, era nomeado pelo
chefe de Estado e passava a ter uma relação de confiança com o parlamento.
No dia 18 de Abril de 1948 tiveram lugar as primeiras eleições legislativas,
que se seguiram ao golpe soviético na Checoslováquia (Fevereiro de 1948) e
foram fortemente influenciadas pela guerra fria. A DC foi a grande vencedora
das eleições: atingindo quase a maioria absoluta e tornando-se o partido
anticomunista por excelência, conseguiu ganhar votos à direita, tendo os
partidos desta última tendência passado de um total de 14%, obtido nas eleições
de 1946, para 8,6%.
Os nove ministérios da transição
Uma vez delineadas as principais linhas de desenvolvimento do processo político
de transição entre o regime fascista e o actual regime democrático,
analisaremos agora o universo dos membros da elite ministerial italiana que
exerceu funções no período que se estende de 25 de Julho de 1943, data da
formação do primeiro governo pós-fascista, a 23 de Maio de 1948, dia em que
terminou o mandato do último governo da transição.
Os dados sobre os perfis dos ministros foram obtidos a partir de biografias,
dicionários biográficos e várias fontes impressas. Se em alguns casos foi
possível completar as fichas biográficas destes indivíduos, noutros foi mais
difícil, sobretudo no que diz respeito ao período dos governos
"Badoglio", que se seguiram à derrota de Mussolini.
Um olhar geral
A chama fase de "transição" italiana teve o seu início a 25 de Julho
de 1943 (fim do fascismo) e perdurou até Maio de 1948 (eleição da Câmara dos
Deputados). Durante este período de quatro anos e dez meses sucederam-se nove
governos e quatro presidentes do Conselho (v. quadro_n.º_1): Badoglio (dois
ministérios), Bonomi (dois ministérios), Parri (um ministério) e De Gasperi
(quatro ministérios). Os ministros que passaram por esses nove governos
perfazem um total de 96. Trata-se de um tempo, como é fácil de imaginar,
caracterizado por uma fortíssima mobilidade, ou melhor, por uma baixa
permanência ministerial, em que o governo que durou mais tempo foi o do quarto
consulado De Gasperi (v. quadro_n.º_1) com onze meses, em contraposição com o
segundo governo Badoglio, que só existiu durante dois meses. Dada a forte
instabilidade e o carácter de passagem de um regime para outro, os dados
relativos à permanência vêm a ter um valor relativo. Em nosso entender, é mais
significativo analisar a mobilidade para todo o período da transição
democrática, em vez de governo a governo.
Número de pastas ministeriais por indivíduo
[Quadro n.º 2]
Fonte: V. quadro_n.º_1.
Durante esses cinquenta e oito meses, a maioria dos ministros (57,29%) só
passou por um ministério, 20% por dois, enquanto apenas 3,13% integraram um
mínimo de sete e um máximo de treze ministérios. Neste sentido, pode dizer-se
que estes últimos protagonizaram grande parte da transição. Sem querer jogar
com as palavras, é de sublinhar o forte carácter transitório dos ministérios
durante a transição.
Qual era o cargo que os ministros tinham antes da sua nomeação (v. quadro n.º
3)? Esta pergunta é da maior importância, pois, pelo seu carácter de novidade,
o regime não se podia basear numa tradição de recrutamento de longo prazo. Com
a excepção do primeiro e do segundo governos Badoglio, em que, respectivamente,
71,4% e 30,8% dos ministros não têm um passado político _ embora em 28,6% dos
casos tenham sido antes secretários de Estado_,nos restantes governos a
filiação partidária ou uma prévia experiência política são factores da maior
relevância. No segundo governo Badoglio, em 23% dos casos os ministros já
tinham desempenhado cargos semelhantes no governo anterior e em 46% eram
dirigentes partidários. Temos de lembrar que se trata da fase que se segue à
Svolta di Salerno(Março de 1944), em que os partidos vêm a ser reconhecidos
como protagonistas da política depois de mais de vinte anos de um regime
fascista.
Background político dos ministros
(em percentagem)
[Quadro n.º 3]
Fonte: V. quadro_n.º_1.
Entre o segundo e o terceiro consulado Bonomi há uma certa estabilidade: ser
dirigente partidário é importante para o primeiro mandato (30,8%), mas tem
pouco significado no segundo (7,1%). Aumenta, no entanto, o peso dos ministros
que foram secretários de Estado, de7,7% no primeiro governo Bonomi para 14,3%
no segundo, e o número dos que já eram ministros sobe de 53,8% para 71,4%.
A clivagem política, tanto no que se refere ao período fascista como ao passado
liberal, representado simbolicamente pelo governo Bonomi, verifica-se no
governo Parri. Neste, 44% dos ministros eram dirigentes partidários sem uma
carreira ministerial anterior e 50% provinham do segundo consulado de Bonomi.
Na passagem do governo Parri para o primeiro governo De Gasperi verifica-se uma
certa estabilidade: 86,7% dos ministros já tinham exercido o cargo nos
anteriores governos da transição. O facto de se ser membro da Consulta
Nazionale não parece ter grande importância, pois apenas 6,7% dos ministros
faziam parte dela antes da sua nomeação. Depois das eleições para a Assembleia
Constituinte de 2 de Junho de 1946, nas quais os partidos puderam medir o seu
peso real na sociedade italiana, observa-se um novo momento fracturante,
representado pelo segundo governo De Gasperi (13 de Julho de 1946 a 2 de
Fevereiro de 1947). Neste assiste-se à parlamentarização do governo: 41,2% dos
ministros foram deputados à Assembleia Constituinte antes da sua primeira
nomeação, 5,9% foram dirigentes partidários, 11,8% secretários de Estadoe 41,2%
ministros. Assim, depois dos dois consulados Badoglio e da fractura com o
fascismo, o segundo governo De Gasperi representa a fase de maior mudança
ministerial, enquanto o terceiro é apenas uma continuação do segundo, pois
86,7% dos ministros já tinham ocupado o cargo em governos anteriores e os
restantes 13,3% foram escolhidos entre os membros da Assembleia Constituinte (o
que significa que mais de metade dos ministros tinham desempenhado funções
parlamentares antes da sua nomeação).
Por fim, a última grande ruptura é representada pelo quarto governo De Gasperi,
que marca o fim da aliança entre a DC e o PCI, no qual a percentagem de
ministros que já haviam desempenhado anteriormente estas funções desce para
52,9% e os restantes 47,1% dividem-se entre secretários de Estado e membros da
Assembleia Constituinte. Em conclusão, desde a formação da Assembleia
Constituinte até ao último consulado De Gasperi, no qual 10% dos ministros não
faziam parte dela, todos os ministros eram deputados. O assento na câmara dos
deputados por parte dos ministros italianos é uma "tradição" que,
paradoxalmente, nem sequer foi quebrada durante o período do fascismo e
representa, portanto, um elemento de forte continuidade.
Continuidades e descontinuidades: liberais ou antifascistas?
Analisámos, em primeiro lugar, a experiência política dos ministros da
transição nos governos liberais em vigor até 1924-19253. Os dados dizem-nos que
esta variável é da maior importância, pois, efectivamente, estamos perante uma
forte continuidade entre o regime liberal e a democracia pós-fascista (v.
quadro n.º 4).
Passado político dos ministros da transição no regime liberal até Outubro de
1922
[Quadro n.º 4]
Fonte: V. quadro_n.º_1.
Se 92,6% dos ministros do primeiro governo Badoglio não tiveram uma carreira
política prévia, tratando-se de um governo de carácter burocrático, o segundo
governo De Gasperi (13 de Julho de 1946 a 2 de Fevereiro de 1947) foi aquele em
que apenas 16,7% dos ministros não apresentaram uma participação política
anterior. Se exceptuarmos o governo Parri e o primeiro governo De Gasperi, nos
quais a percentagem dos ministros que já tinham ocupado esse cargo no período
liberal rondava apenas os 5%, nos restantes governos este valor ronda os 20%.
Mais elevada é a percentagem dos ministros que foram deputados 42% no governo
Parri e cerca de 28% nos quatro governos De Gasperi. São cerca de 20% os
ministros, deputados e os dirigentes partidários, ou seja, aqueles ministros
que, no regime liberal, detiveram altos cargos dentro dos partidos. Em suma, a
percentagem da elite política que transitou do liberalismo para a democracia é
alta, atingindo um pico no segundo governo De Gasperi (83,3%).
Passamos agora a analisar a variável fascista-antifascista (v. quadro n.º 5).
Procura-se aqui apreender a representatividade daqueles que, após o golpe de
Estado protagonizado por Mussolini em 1925, se opuseram, de alguma forma, à
ditadura. Trata-se, neste caso, de um antifascismo activo e nesse sentido não
são considerados os que, não querendo aceitar o regime fascista, decidiram
abandonar a actividade política.
Actividade política dos ministros da transição durante o regime fascista (1922-
1943)
[Quadro n.º 5]
Fonte: V. quadro_n.º_1.
No primeiro governo Badoglio não existem antifascistas, o que vem confirmar a
ideia de que a transição verificada com a substituição de Mussolini foi um
processo de reestruturação no quadro de um regime autoritário. Tanto assim é
que 14,8% dos ministros do novo governo tinham participado no governo anterior,
enquanto nos restantes oito governos não haverá ministros com passado político
no fascismo. Governos antifascistas? Não. Estamos perante governos que na
maioria dos casos eram compostos por não-fascistas, ou seja, por pessoas que
durante o regime de Mussolini deixaram a política activa (trata-se de uma
percentagem que vai de 74,1% no governo Badoglio até 26,7% no terceiro governo
De Gasperi). O número de ministros que sofreram perseguições por parte do
regime, ou seja, os que foram exilados ou presos, atinge o seu ponto máximo no
terceiro governo De Gasperi (40% passaram pelas prisões e 13,3% foram
exilados), o que significa que, em média, os antifascistas oscilam entre os 28%
no segundo governo Badoglio e os 40% a 50% nos restantes governos.
Em suma: ser fascista constituía de certeza, durante o período em estudo, com
excepção para o caso do primeiro governo Badoglio, um verdadeiro impedimento
para o ingresso no governo. Ser antifascista podia ser vantajoso, mas não era
condição fundamental para se ser nomeado ministro.
Perfis sociais dos ministros
Idade
A variável "idade" é, na nossa opinião, uma das mais interessantes
quando se procura analisar os eixos de continuidade/descontinuidade na
composição de uma elite dirigente.
Desde já é preciso sublinhar que, a partir do primeiro governo de transição (v.
quadro n.º 6), a média etária sobe bastante em relação aos valores verificados
durante o governo Mussolini, passando de 47 anos para 59 nos dois governos de
Badoglio (25 de Julho de 1943 a 18 de Junho de 1944). Com a nomeação de Ivanoe
Bonomi (18 de Junho de 1944), a média etária não tem variações sensíveis: 59
anos no primeiro e 57 no segundo consulado, que irá coincidir com o fim do
conflito. Nos restantes cincos governos, a média etária permanece estável,
assumindo o seu valor mais baixo (53 anos) durante o primeiro governo De
Gasperi, entre Dezembro de 1945 e Julho de 1946. Já nos dois últimos governos
De Gasperi os números fixam-se entre os 54 e os 56 anos.
Media etária dos ministros
[Quadro n.º 6]
* Cotta e Verzichelli (2006).
Fonte: V. quadro_n.º_1.
Considerando os dados agregados para o período de 1946-1992, ou seja, os dados
relativos à prima repubblica(Cotta e Verzichelli, 2006), constata-se a
existência de uma tendência prolongada, uma vez que a média para todo o período
é de 54 anos. Esses dados sugerem-nos uma primeira hipótese: a transição para a
democracia não foi só a transição do fascismo, mas também do liberalismo. No
entanto, o quadro n.º 7 revela-nos que os ministros dos dois períodos que são
objecto de comparação pertencem a uma mesma geração. A média etária dos dois
grupos, calculada a partir do dia da nomeação de Mussolini para a Presidência
do Conselho, é de 38 anos (fascismo) e de 39 (transição democrática). Isto
significa dizer que a geração política que governou durante o regime fascista é
a mesma que governou a transição democrática. Era aquela geração de pessoas que
foram introduzidas no sistema político após as eleições parlamentares de 1919 e
1921, que marcaram um profundo corte com o liberalismo do século xix.
Media etária dos ministros no dia 30-10-1922
[Quadro
n.º
7]
Fonte:
V.
quadro
n.º
1.
Naturalidade
Para melhor compreender as origens geográficas dos ministros é necessário
cruzar duas variáveis: a primeira é a dimensão do local de nascimento e a
segunda corresponde à área do país em que o mesmo lugar se inscreve: Noroeste,
Nordeste, Centro ou Sul. Desta forma, procura-se verificar até que ponto a
existência no território italiano de uma clara clivagem entre cidades grandes e
aldeias, bem como entre o Norte e o Sul, influi na composição das elites
governativas e, simultaneamente, nas práticas políticas das mesmas.
Origem geográfica dos ministros: clivagem cidade/campo
[Quadro n.º 8]
Fonte: V. quadro_n.º_1.
Em relação à primeira variável (v. quadro n.º 8), é difícil encontrar linhas de
continuidade. Pode dizer-se que a maioria dos ministros provém de cidades com
uma população que oscila entre os 40 000 e os 100 000 habitantes, não sendo as
grandes cidades os centros de maior recrutamento. Por exemplo, Roma e Milão
nunca chegam a representar centros importantes de recrutamento de elites
ministeriais, atingindo como valores máximos apenas 15,8% para o caso de Roma e
5,3% para o de Milão durante o primeiro governo Bonomi. Já no governo Parri e
no primeiro governo De Gasperi não há ministros oriundos da capital. Nos
últimos dois governos De Gasperi atinge-se o valor mais alto de ministros
provenientes de cidades com menos de 40 000 habitantes, com percentagens que
rondam, respectivamente, 46,7% e 45,5%.
Origem geográfica dos ministros: clivagem Norte/Sul
[Quadro n.º 9]
* Cotta e Verzichelli (2006).
Fonte: V. quadro_n.º_1.
Assim, se a clivagem entre grandes e pequenas cidades não é muito
significativa, levando a pensar que o recrutamento é relativamente difuso,
importa ver se as grandes clivagens entre as diferentes zonas do país se
reflectem nos modelos de recrutamento (v. quadro n.º 9). Estas variações
decorrem não só de diferentes níveis de desenvolvimento económico e social,
como se poderia pensar num primeiro momento, mas prendem-se também com o facto
de a Itália estar, durante o período de 1943-1945, geograficamente dividida em
duas partes: uma ocupada pelos alemães e outra pelos aliados.
No primeiro governo Badoglio, num momento em que o armistício ainda não fora
assinado e os aliados só ocupavam áreas restritas no Sul, os ministros oriundos
do Noroeste eram apenas 22,2%, uma percentagem consideravelmente mais baixa do
que a observada anteriormente: durante o período fascista, este valor rondava
os 44%, sendo também inferior aos 33% que se registavam na última fase do
período liberal (Cotta e Verzichelli, 2006). No primeiro governo Badoglio, os
ministros oriundos do Sul da Itália atingiam quase os 52% e 58,8% no segundo.
Uma mudança bastante significativa em relação ao passado, se pensarmos que
durante o fascismo só 24% dos ministros tinham essa proveniência e que no
anterior regime liberal a percentagem era de 22,6%. Apreende-se ainda outra
tendência: diminui a percentagem de ministros oriundos do Noroeste da Itália,
zona de maior desenvolvimento industrial, e aumenta a representação de
ministros do Nordeste, que rondam os 25% no segundo governo Bonomi e cerca de
20% nos governos De Gasperi. De facto, se formos ver a tendência registada
durante o período compreendido entre 1946 e 1992, podemos reparar que, em
média, a representatividade dos ministros oriundos do Nordeste volta a baixar
para 10,4%.
Em conclusão, se exceptuarmos o valor máximo de ministros oriundos do Sul da
Itália atingido nos dois governos Badoglio, nota-se uma oscilação entre as
diferentes zonas do país, recuperando uma prévia tradição de dispersão no
território: 60% dos ministros eram oriundos do Norte (um terço do Noroeste e um
terço do Nordeste), 30% do centro do país e 10% do Sul. Só durante a fase de
estabilização do novo regime político é que os ministros oriundos do Sul do
país vão adquirir maior peso, rondando os 40% durante o período da prima
repubblica,ou seja, bastante mais do que a soma do Noroeste e do Nordeste
(37,6%).
Educação
No que diz respeito ao nível de educação da elite ministerial (v. quadro n.º
10) observam-se duas grandes tendências, que percorrem o longo período que vai
desde a unificação do país, em 1870, até aos nossos dias: a diminuição até ao
seu desaparecimento de ministros com um passado militar e o aumento de
ministros licenciados.
Formação dos ministros
[Quadro_n.º_10]
* Cotta e Verzichelli (2006).
Fonte: V. quadro_n.º_1.
O regime fascista constitui uma excepção quanto a estes movimentos de longa
duração. De facto, se no anterior período liberal o número de ministros
licenciados atingia uma percentagem de 83,2%, já durante o período fascista
esta percentagem desce consideravelmente para 66,7%. Durante o governo
Badoglio, este valor desce ainda mais, atingindo 51,9%; porém, neste caso,
deve-se ter em conta a alta percentagem de pessoas que têm uma formação
superior nas escolas militares (29,6%). A partir do terceiro governo de
transição (Bonomi 18 de Junho a 12 de Dezembro de 1944), a percentagem de
licenciados vai subindo, passando de 73,7% para 93,3% no terceiro governo De
Gasperi e voltando a baixar no quarto para os 77,3%. Esta circunstância parece
ir contra a tendência dos dados relativos a todo o período da prima repubblica,
durante o qual os ministros licenciados foram, em média, 90,8%. No entanto,
apesar das variações observadas nos diferentes governos de transição, não deixa
de ser legítimo dizer que a licenciatura vai sendo cada vez mais um imperativo
para aceder ao governo (Cotta e Verzichelli, 2006).
O primeiro ministério liderado por Badoglio compreende uma alta percentagem de
indivíduos formados nas escolas militares: 29,6% (v. quadro_n.º_10). Este facto
não surpreende, uma vez que os militares eram a força mais próxima da monarquia
e, como tal, constituíam a garantia de um eventual projecto de reconstituição
de um regime neo-autoritário e, em todo o caso, representavam a única
instituição capaz de preencher o vazio deixado pelo fim do regime fascista e
pela ausência de uma classe política alternativa. Durante a ditadura fascista,
a percentagem de militares era de 10,8%. Durante os ministérios da transição
assistiu-se a uma progressiva diminuição da presença dos militares (Adinolfi,
2004), passando de 23,5% no segundo governo Badoglio para 10,5% no primeiro
governo Bonomi, enquanto nos últimos três governos De Gasperi não se regista já
a sua presença. Estamos, assim, perante uma efectiva tendência para a
progressiva substituição dos detentores das pastas tradicionalmente atribuídas
a militares. O predomínio de ministros civis entre as elites ministeriais
converte-se num factor cada vez mais comum, de tal forma que no período de 1946
a 1992 a percentagem dos ministros com educação militar não ultrapassa os 0,4%.
Entre as licenciaturas que abrem as portas de acesso ao governo (v. quadro n.º
11), a de Direito é a que apresenta a frequência mais alta: 50% do total dos
ministros no primeiro governo Badoglio. Este facto é de certo modo
surpreendente, sobretudo se pensarmos que se trata de um período durante o qual
se observa a mais baixa percentagem de licenciados. Mas mesmo nos governos de
cariz partidário a presença de ministros licenciados em Direito ronda sempre os
50%, só vindo a atingir um valor muito abaixo desta média no segundo governo De
Gasperi (33,3%).
Background universitário dos ministros
[Quadro n.º 11]
Fonte: V. quadro_n.º_1.
* Cotta e Verzichelli (2006).
Durante o regime fascista, os licenciados em direito constituíam 32% do total
dos ministros, média sensivelmente abaixo da tendência relativa a todo o
período da I República (1946-1992), período em que rondavam os 62,8%. Quanto às
outras licenciaturas, a frequência varia muito de um governo para outro, sendo
três as faculdades principais de recrutamento depois da de Direito: Letras,
Ciências Sociais (entre 21% e 4,5%) e Engenharia (entre 20% e 0%). O último
consulado de De Gasperi representa uma excepção, dado o grande número de
licenciados em Economia (18,2%), o que sugere que depois dos governos de
unidade nacional era necessário enfatizar o carácter técnico dos ministros, já
que as questões económicas, juntamente com a aprovação da Constituição e o
início do Plano Marshall, voltam a ter uma grande importância. Estes dados
parecem enquadrar-se nas tendências de longa duração (1946 a 1992), em que as
áreas de formação dos ministros são assim distribuídas: Humanidades, 10,4%,
Economia, 11,6%, e Engenharia, 4,0%, enquanto no regime fascista os ministros
licenciados em Engenharia, a segunda licenciatura mais comum depois de Direito,
representam cerca de 10%.
Profissão
No que diz respeito às profissões desempenhadas pelos ministros, observa-se uma
mudança significativa ao longo de todo o período da transição.
Não é de estranhar a grande percentagem de militares nos dois governos Badoglio
(v. quadro n.º 12). A sua representação passa de uma frequência de 10% no
regime anterior para 25,9%. Trata-se, como já foi atrás salientado, de um dado
claramente conjuntural. Importa, no entanto, referir que os ministros oriundos
do exército constituem a esmagadora maioria dos representantes deste grupo e,
como tal, as outras forças militares, nomeadamente a força aérea e a marinha,
não têm um papel de grande relevo.
Background profissional dos ministros no momento da nomeação*
[Quadro n.º 12]
* devido ao multiple choise,
o resultado pode não ser 100.
** Cotta e Verzichelli
(2006).
Fonte: V. quadro_n.º_1.
Seguindo a peculiar conjuntura política do período, há duas profissões que
passam a ter um importante grau de representação no governo. Trata-se, por um
lado, dos diplomatas, cuja presença atinge uma percentagem de mais de 10% na
delicada fase das negociações do armistício com os aliados, enquanto no período
anterior os valores eram de 4,6%, vindo depois progressivamente a fixar-se nos
5%, e por outro lado, dos juízes, profissão desempenhada por 11% dos ministros,
o que reforça ainda mais o carácter fortemente burocrático deste governo.
No que diz respeito à categoria dos advogados, há uma certa continuidade na sua
representação durante o período em estudo, quando comparada com o período
liberal, que o antecede, e comPrima Repubblica, a que dará lugar. Durante a
época liberal, o número de representantes deste grupo profissional rondava os
20%, descendo significativamente para 6,5% durante a ditadura fascista. Nos
nove governos que marcam o período de transição, os advogados detêm sempre
entre 20% e quase 40% dos lugares governamentais (38,9% no primeiro governo De
Gasperi). Apesar da forte clivagem em relação ao período fascista e ao período
liberal, este dado está em consonância com a tendência consolidada até aos anos
70 (Cotta e Verzichelli, 2006).
Outra categoria que assume um lugar significativo no conjunto da elite
ministerial é a dos professores universitários. No período anterior à ditadura,
o número de ministros com antecedentes no ensino universitário tinha vindo
sempre a aumentar, passando de 13,1% nos primeiros governos da Itália unificada
para 19,6% nos últimos governos da Itália liberal. Este valor continuou a subir
durante a ditadura fascista, atingindo os 26,1%, enquanto no período da
transição/consolidação desce sensivelmente. No primeiro governo militar, os
professores universitários são apenas 7,4% do total dos ministros, uma
percentagem que nos restantes oito governos oscila entre 10,6% e 18,8%, embora
suba até um valor máximo de 31,8% no último governo da consolidação, sendo que
este número parece constituir uma excepção. Com efeito, os dados relativos a
todo o período da Prima Repubblicamostram que a categoria dos professores
universitários ronda os 20%, seguindo assim uma tendência já visível no final
do período liberal.
Quanto à clivagem público/privado, optámos por enquadrar os políticos numa
categoria própria (v. quadro n.º 13), na medida em que estes têm, em nossa
opinião, uma carreira profissional mista: são pagos pela administração pública
quando eleitos ou nomeados, embora não se trate claramente de funcionários, e
são pagos enquanto dirigentes de partido, ainda que os partidos não sejam
propriamente instituições públicas. Neste caso específico da presença de
funcionários públicos observam-se algumas descontinuidades na tendência geral.
Clivagem entre emprego público e emprego privado*
[Quadro n.º 13]
* devido ao multiple choise,
o resultado pode não ser
igual a 100.
Fonte: V. quadro_n.º_1.
Como é óbvio, a presença dos funcionários públicos nos dois governos Badoglio é
massiva, ainda que maior no primeiro (74,07%) do que no segundo (47,06%).
Durante a ditadura fascista (Adinolfi, 2004), a percentagem de ministros com
carreiras oriundas da função pública era de 36%, um dado que nos restantes sete
governos da consolidação democrática varia entre 31,58% no primeiro governo
Bonomi e 16,67% no segundo governo De Gasperi, no qual 66,67% dos ministros
podem ser classificados como políticos profissionais. Quanto à presença de
profissionais sem vínculo ao Estado, os valores são inconstantes, passando de
22,22% no primeiro governo de transição para valores entre 31,25% no segundo
governo Bonomi e 61,11% no segundo governo De Gasperi.
Trata-se, portanto, de valores relativamente elevados se considerarmos que na
ditadura fascista esta categoria só atingia os 16%. Pelo que se observa no
quadro n.º 14, os políticos profissionais associam geralmente a sua actividade
a outras profissões, embora no primeiro e no segundo governos Bonomi, tal como
no primeiro governo De Gasperi, cerca de 70% a 85% dos ministros fossem
políticos profissionais a tempo inteiro.
Background profissional dos políticos profissionais
[Quadro n.º 14]
Fonte: V. quadro_n.º_1.
Quais são então as profissões associadas com mais frequência à carreira de
ministro? Em primeiro lugar, com certeza, a advocacia, com valores de 33% no
primeiro governo Badoglio, 25% no governo Parri e 14,29% nos governos De
Gasperi (I e IV). Com menor frequência, encontramos a docência universitária:
16% no primeiro governo Bonomi e 28,57% no quarto governo De Gasperi. Não há
políticos profissionais entre os militares, agricultores, juízes, prefeitos,
engenheiros, operários e empregados privados. Na grande maioria dos casos, os
ministros vêm de profissões não ligadas ao Estado, embora seja importante
verificar as diferenças entre partidos, pois esses dados vêm confirmar, como
salientámos no início, a grande importância que as profissões liberais e a
fácil passagem de uma profissão para outra assumiam na elite política italiana.
De alguma forma, podemos ver confirmada em parte a teoria de Putnam (1976), que
considera que a probabilidade de integrar a elite é directamente proporcional à
classe social, uma vez que as classes aqui representadas são maioritariamente
as classes médias-altas.
Género
Por fim, numa clara continuidade com a prática política dos anteriores
governos, durante todo o período de transição nunca nenhuma mulher exerceu o
cargo de ministro. Foi preciso aguardar até aos anos 70 do século xx para
assistir à inclusão das mulheres no plano político italiano.
Conclusões: as características do recrutamento ministerial
Ao longo da primeira parte deste artigo procurámos evidenciar que o afastamento
de Mussolini do governo não representou o início da transição política italiana
no sentido da democracia e que a mesma foi inteiramente determinada por causas
endógenas ao regime fascista. O projecto de uma revolução dentro do regime
falhou devido aos erros cometidos por parte da monarquia, que geriu o período
dos quarenta e cinco dias em que se desenvolveram as negociações para a
assinatura do armistício. Só a partir de 8 de Setembro de 1943 é que os
partidos puderam voltar a reunir-se e só a partir de Abril de 1944 é que teve
início um governo inteiramente político, o de Ivanoe Bonomi. Começa então a
fase dos governos dos CLN, que vai durar até Maio de 1947, período durante o
qual será preciso reconstruir as instituições do país. As votações realizadas a
2 de Junho de 1946 para a Assembleia Constituinte e, conjuntamente, o referendo
república/monarquia constituem um momento de viragem fundamental na vida
política italiana. O sistema monárquico é preterido em relação ao sistema
republicano, ao mesmo tempo que é delineada a real força dos partidos e se
definem, consequentemente, novos equilíbrios.
Na segunda parte analisámos os perfis dos vários ministros com vista a
aprofundar, de forma empírica, algumas das perguntas que foram surgindo ao
longo da primeira parte do estudo. Concluímos que, muito embora os ministros do
período da transição tivessem, na grande maioria, um passado político no
período liberal, fazendo parte da mesma geração dos ministros do período
fascista, poucos deles tinham sido recrutados anteriormente para cargos no
executivo. Em termos de origens geográficas, a elite política em análise
representava várias partes do país, não sendo Roma e Milão centros de
recrutamento privilegiados. A marcar uma certa continuidade com o regime
liberal e, ao mesmo tempo, descontinuidade com o regime fascista, é possível
definir quatro grandes variáveis: o aumento da taxa de licenciados; o aumento
da representação de professores universitários; o fim da participação de
militares e a grande representação de ministros com um passado profissional na
advocacia ou com uma licenciatura em Direito. Em termos de continuidade com o
fascismo e de descontinuidade com o regime liberal verificámos o crescimento da
profissionalização da política.
Por fim, todos os partidos passam de um modelo de recrutamento dos ministros
que começa por ter nos dirigentes partidários o seu grupo de eleição, o qual se
converte depois, com a criação da Assembleia Constituinte, no grupo dos
deputados.
Este artigo aborda apenas uma parte da história política italiana, sendo que
muitas das linhas do seu desenvolvimento estão ainda por estudar. Por um lado,
focámo-nos na ruptura e na continuidade com o regime liberal e com o regime
fascista; por outro, tentámos apurar quais as principais variáveis em causa no
processo de recrutamento ministerial. Já sublinhámos que a classe política dos
vinte anos do regime ditatorial teve de ser afastada, assim como todas as
camadas intermédias, políticas e burocráticas tais como os dirigentes locais
e os presidentes de câmaras municipais , as quais foram automaticamente
excluídas das novas instituições.
O processo de transição começou por ser uma simples reestruturação dentro do
regime monárquico e, em parte, do regime fascista para se tornar, num segundo
momento, uma transição democrática. Um processo gizado de cima para baixo por
uma elite que foi legitimada pela sua actividade política durante o regime
liberal. São, pois, representantes das três grandes forças que adquiriram um
grande peso depois das eleições de 1921. Como se referiu anteriormente, estamos
perante uma fortíssima descontinuidade em termos do recrutamento da elite
governamental, muito embora se verifique uma continuidade na elite política.
No decurso dos cinco anos estudados (1943-1948) ocorre a profissionalização da
política. O recrutamento é feito dentro dos partidos de massas, primeiro entre
os dirigentes, depois nas câmaras (neste caso a Consulta Nacional e a
Assembleia Constituinte). Os partidos de notáveis perdem uma guerra que tinha
ficado em aberto no momento do golpe de Estado de 1926, quando o governo
fascista proibiu a actividade de todos os partidos políticos existentes, com
excepção do PNF.
Esta trajectória vertical, que caracteriza a construção da democracia, é
evidente na percentagem de ministros do sétimo e do oitavo governos que foram
anteriormente deputados na Assembleia Constituinte: 100%. Este, sim, constitui
um verdadeiro traço de continuidade na história política italiana que nem no
período fascista foi quebrado.