Baluartes da Fé e da Disciplina: O enlace entre a Inquisição e os Bispos em
Portugal (1536-1750)
José Pedro Paiva, Baluartes da Fé e da Disciplina: O enlace entre a Inquisição
e os Bispos em Portugal (1536-1750)
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, 480 pp.
João Peixe*
*Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Braga, Portugal.
jpeixe@ilch.uminho.pt
O Doutor José Pedro Paiva é dos mais destacados investigadores portugueses
sobre história religiosa em Portugal e, muito em particular, sobre a
Inquisição. Baluartes da Fé e da Disciplina é a sua mais recente publicação de
fôlego sobre o assunto. Trata-se de um sólido estudo sobre as relações entre a
Inquisição e os bispos de Portugal, desde a criação daquele tribunal até 1750.
O autor demonstra como o episcopado português e os agentes do Tribunal do Santo
Ofício estiveram enlaçados na defesa da Fé católica no Portugal da Contra-
Reforma, atuando os primeiros como pastores e os segundos como vigias. É
uma conclusão que resulta da análise cuidada e da interpretação crítica de
correspondência da época, de processos da justiça inquisitorial e eclesiástica,
de ficheiros pessoais e institucionais. Com efeito, são algumas centenas as
referências documentais e bibliográficas que suportam o autor e que fazem do
livro, também, um riquíssimo índice de fontes.
O primeiro capítulo debruça-se sobre O estabelecimento da Inquisição e o
reajustamento do campo religioso. A chegada do Tribunal da Fé ao reino de
Portugal fez com que houvesse necessidade de definir quais as suas
competências. Desde logo, sob sua alçada, ficou o julgamento das heresias
externas públicas, definidas como aquelas heresias praticadas em público. Os
bispos, que, antes do estabelecimento da Inquisição, eram os juízes competentes
em matéria de heresia, mantiveram a sua jurisdição apenas sobre as heresias
externas ocultas. Com o passar do tempo, muito graças à liderança do Cardeal D.
Henrique, a Inquisição adquire alguma superioridade face ao episcopado e os
delitos cujo julgamento lhe competia cresceram em número. Este estatuto de
superioridade, intencionalmente procurado, manifestava-se, também a outros
níveis, pelo alargamento da sua esfera de competências. Assim, passou a
competir à Inquisição a elaboração das listas de livros proibidos, tendo mesmo
chegado a controlar as leituras dos clérigos e até a autorização da publicação
de livros da autoria de bispos; por outro lado, os agentes do Tribunal da Fé
estavam fora da alçada episcopal, ao mesmo tempo que os clérigos passavam a ser
julgados por aquele tribunal em matéria de heresias. Por vezes, essa
superioridade manifestou-se ainda nalgumas intromissões em áreas da competência
exclusiva dos bispos, como fossem a escolha dos pregadores ou a forma como eram
registadas as visitas pastorais.
Esta superioridade atingida pela Inquisição não foi conseguida em conflito com
o episcopado português. Muito pelo contrário: houve uma colaboração evidente
entre ambos. O segundo e o terceiro capítulos demonstram em concreto como esta
cooperação e complementaridade se deram, enquanto o quarto analisa as raízes, o
fundamento e os objetivos de tal sintonia, cedo construída. Aquando do seu
estabelecimento, os recursos de que a Inquisição dispunha eram parcos. Por
isso, a ação inquisitorial deu os primeiros passos servindo-se da rede
diocesana já estabelecida no terreno. Depois, com o crescer da instituição,
muitos dos clérigos que vieram a ser agentes da Inquisição eram oriundos do
clero secular e mesmo de outras ordens regulares, sendo que a maior parte dos
Inquisidores Gerais foram bispos. Nas mesas do tribunal e nos paços episcopais
partilhava-se, portanto, uma mesma formação teológica e cultural de base, que
configurava uma mundividência semelhante. Mais ainda, muitos agentes
inquisitoriais, ao cessar as suas funções no Tribunal da Fé, assumiam a
liderança de dioceses, fechando assim a dança de titulares entre aqueles
órgãos. Não espanta pois que em momentos de crise, como foram os perdões gerais
concedidos pelo Papa e a suspensão do funcionamento do Tribunal, os bispos em
geral tivessem alinhado ao lado da Inquisição.
Esta colaboração manifestou-se de diversas maneiras. Já se falou que a
Inquisição, nos primeiros tempos do seu estabelecimento em Portugal, se serviu
da rede diocesana para suprir a sua própria falta de efetivos. Porém, esta
forma de colaboração prolongou-se, mesmo depois de o Tribunal estar já
solidamente implantado. São vários os casos de processos de heresia que foram
julgados pela justiça eclesiástica com o beneplácito e até com a delegação de
poderes expressa da Inquisição. São casos ocorridos em dioceses periféricas e,
em menor número, em dioceses cujo antístite era respeitado pelo Inquisidor
Geral e tinha a sua confiança. Era também o que se passava em dioceses do
império ultramarino, exceto em Goa, onde havia uma mesa da Inquisição. A outro
nível, o episcopado também contribuiu para o esforço inquisitorial cedendo para
o efeito as suas instalações. Foram vários os prisioneiros da Inquisição que
aguardaram julgamento em aljubes diocesanos e mesmo alguns condenados cumpriram
aí as suas penas. Por último, não menos importante, os bispos também
contribuíam para o erário da Inquisição com parte das suas rendas. Todavia,
esta cooperação não se fez sentir só ao nível dos recursos, fossem eles
materiais, humanos ou financeiros. A Inquisição também beneficiava de toda uma
estrutura de informação já montada no terreno. Era o caso da rede paroquiana e
das visitas pastorais, ambas fontes de inúmeros processos instaurados pelo
Tribunal da Fé. Em dado momento, os agentes da Inquisição tentaram mesmo
quebrar a confidencialidade do ato da confissão para benefício das suas
investigações. Venceu nessa altura o princípio sagrado e íntimo daquele
sacramento.
Por outro lado, como diz o autor, bispos e agentes inquisitoriais vigiaram
espaços diferenciados, concentraram a sua atuação em estratos da população
distintos, puniram crenças religiosas e comportamentos de diferente tipo (p.
267). Se a ação inquisitorial estava mais vocacionada para a vigilância dos
cristãos-novos e para as heresias maiores, como o Judaísmo, o Protestantismo ou
o Islamismo, o episcopado estava mais voltado para a doutrina e cabia-lhe, em
particular, a pastorícia das almas. Episcopado e Inquisição em conjunto
formavam um bloco doutrinário e disciplinador da sociedade, com vista à sua
uniformização e coesão. Fechava-se desta forma um círculo que se alimentava a
si próprio: num reino coeso, com uma monarquia estável, em que a influência do
rei se fazia sentir nas mais diversas esferas, incluindo a religiosa,
fomentava-se um sistema cultural e religioso que reforçava essa mesma
estabilidade e, por conseguinte, a cooperação entre os mais diversos órgãos e,
em particular, estes de que temos vindo aqui a falar, a Inquisição e os Bispos
de Portugal.
Sem dúvida que houve vozes discordantes e casos de deficiente cooperação. Houve
mesmo dois momentos de profundo afastamento entre o episcopado e o Tribunal da
Fé. Uns e outros merecem também a análise do autor. Não tiveram, contudo, a
dimensão de outros conflitos como os ocorridos nos restantes domínios da
Península Ibérica e na Península Itálica. A estas observações se dedica o
quinto e último capítulo do livro. Ao contrário do que aconteceu naqueles
reinos, onde houve bispos que boicotavam o trabalho das mesas locais da
Inquisição e onde outros foram presos e condenados por heresia, em Portugal os
conflitos, em número reduzido, nunca atingiram essa gravidade. Eram sobretudo
desentendimentos causados por questiúnculas pessoais; discussões sobre
precedências em cerimónias protocolares; conflitos derivados da sobreposição de
competências em casos de foro misto; ou bispos de dioceses remotas, nunca
ligados ao Tribunal, que resistiam à intromissão dos agentes da Inquisição
naquilo que acreditavam ser as suas competências. Já a questão dos
Apontamentos foi um dos enfrentamentos maiores, no qual um conjunto de
bispos, na sequência do breve papal Cum audiamus, sugeriu ao cardeal D.
Henrique, então regente de Portugal, uma série de medidas para serem adotadas
no governo do reino, na educação do jovem rei e na ação inquisitorial (sem
nunca a contestar, no entanto). O outro grande conflito deu-se já em claro
momento de decadência da Inquisição e opôs a esta instituição um grupo de
bispos com interpretações doutrinárias diferentes das sancionadas pelo
Tribunal. Aliás, durante a história da Inquisição em Portugal, houve sempre
quem sugerisse vias alternativas à sua atuação, nomeadamente, através da
catequização e evangelização dos cristãos-novos. Porém, essas tentativas
fracassaram sempre devido ao fulgor da inquisição no momento em que eram
sugeridas.
Na badana do volume, podemos ler que o objetivo deste livro é o de compor,
explicar e pensar os sentidos das relações que se estabeleceram entre a
Inquisição e os bispos, no contexto dos desafios suscitados por esta alteração
[a reorganização do campo religioso após a criação do Tribunal do Santo
Ofício]. Cremos que o propósito foi plenamente cumprido. Pelo inventário das
suas fontes, pela profundidade da sua análise, pela acutilância das suas
conclusões, Baluartes da Fé e da Disciplina é uma obra incontornável para o
estudo da especificidade da Inquisição portuguesa e do contexto histórico em
que ela operou.
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