A pintura do autorretrato contemporâneo em portugal: breve panorâmica
ABSTRACT
Self-portrait is associated with fascinating stories and involves concepts such
as mythology, legend, symbology, narcissism, affirmation, multiple claims,
resemblance, realism, naturalism and self-examination. Self-portrait is a
repository of great complexity and is in the origin of copious definition.
Contrary to previous sacred representations, historical images and mythological
characters, in Middle Ages the painter's individual identity was less
represented in self-portraits. Individual valuation and appreciation of
portraits raised the intellectual autonomy characteristic of Renaissance. Self-
portrait gained independence then. During Romanticism, painters prefered to
abandon figurative process in pictorial representation. Introspective self-
portrait aroused and continued to grow until the twentieth century. Currently,
the self-portrait is still looking for identity.
Keywods: self-portrait; self-examination;complexity; metaphor;sign
I ' Nas Origens do Autorretrato: Lenda, Mito e História
Donner aux mots la vie mystérieuse de l'art
Guy de Maupassant (1850-1893)[1]
Uma das formas primordiais do conhecimento intuitivo remonta às narrativas
mitológicas correspondentes aos alvores das histórias de organização dos povos
primitivos. A conceção do mundo trespassa nas descrições dos fenómenos da
natureza personificados e animados, fixadas em conformidade com a imaginação
desses povos da Antiguidade.
A transmissão oral de lendas[2] e mitos[3] suscitou a sua modificação e
enriquecimento no decorrer dos séculos, incorporando um património intelectual
e civilizacional específico.
Deuses, heróis e seus descendentes, enquanto corpus da herança mitológica grega
que integrou a cultura ocidental, são intérpretes desse sentido anímico e
antropomórfico que caracteriza o mythos dessa civilização. Por oposição
caracterizou Platão a logos, a argumentação que com base na razão leva à
reflexão filosófica.
A fábula de Dibutades[4] à qual tradicionalmente é atribuída a origem mítica do
retrato, não deixa de se aproximar do mito de Platão sobre a alegoria da
caverna, sendo este último genericamente aceite como a narrativa pioneira que
sustenta a teoria do conhecimento no ocidente[5].
A projeção, enquanto motivo presente nas duas situações mitológicas,
correlaciona a representação artística e a representação cognitiva: embora se
trate de duas narrativas diferentes, verifica-se um certo paralelismo de
estratégias equacionando a questão da visibilidade e da representação,
destacando-se que no mito de Platão visualidade e cognição apresentam
implicação recíproca.
Stoichita interpreta o mito de Platão como a construção de um cenário que toca
os limites entre os mundos da aparência e da realidade, vendo nas sombras
platónicas o antecedente da imagem do espelho e no eco o resultado dos sons do
fundo da prisão ' Platão introduz um elemento auditivo que devolveu os sons
( ) que vem reforçar a ilusão primitiva que é de ordem visual. ( ).
A sombra e o eco aparecem em Platão como as primeiras falsas aparências (uma
ótica, outra auditiva) do real. Assim, a sombra precede, mesmo nos mundos dos
logros óticos, o reflexo do espelho.
Trata-se, nesse estádio do pensamento platónico, de uma intenção clara de
colocar a sombra nas origens da duplicação epifenomenal, antes da imagem do
espelho ( ) para Platão, sombras e reflexos especulares são aparências
estritamente ligadas, só sendo diferenciadas pelo seu "grau de claridade
ou de obscuridade"[6].
Outra ideia relacionada com o mito de Platão implicada na abordagem do
autorretrato é a mimesis, em paralelo com o estrato social do pintor, o lugar
da arte na cidade ideal e a associação da imagem pintada à imagem especular:
-_ ( ) se tu quiseres agarrar um espelho e expô-lo de todos os
lados, em menos de nada executarás o sol e os astros do céu, em menos
de nada, a terra, em menos de nada tu próprio e os outros animais e
os móveis e as plantas e todos os objetos de que se falava ainda
agora.[7].
Explicitamente, Platão estabelece comparação entre imagem pintada e imagem
especular, suscitando reflexão sobre a fragilidade do mimetismo ' A imagem
pintada é, a exemplo do reflexo especular, pura aparência (phainomenon),
desprovida de realidade (aletheia). ( ) Deste modo assiste-se, parece-nos, à
inscrição e mesmo ao triunfo do espelho no seio do sistema das representações
epifenomenais ' e a implicação recíproca entre o reflexo especular e o
estatuto da pintura no plano da mimética ' Se, na tradição de Plínio, a imagem
"capta" o modelo reduplicando-o (tal a função mágica da sombra), em
Platão, ela restitui a sua semelhança (tal é a função mimética do espelho) ao
representá-lo.[8].
Dos estudos efetuados por Lacan e por Piaget a chamada fase ou "estádio
do espelho" (Lacan), correspondente ao período que vai entre os seis
meses ' quando a criança reconhece a própria imagem no espelho ' e até cerca
dos dezoito meses, quando distingue a projeção da sombra, sendo consensual nos
nossos dias a possibilidade de interpretação do mito de
Narciso[9] e da sua paixão pelo seu próprio reflexo na água, no enquadramento
da teoria de Lacan, para quem o "estádio do espelho" ( ) pertence
principalmente à identificação do eu, enquanto que a sombra, ela, diz respeito
sobretudo à identificação do outro. Sabendo isso, compreende-se por que razão
Narciso se apaixonou pela sua imagem especular e não pela da sua sombra. E
igualmente se compreende porque, em Plínio, a projeção amorosa da jovem
rapariga tem por objetivo a sombra do outro (do seu amante). Encontramo-nos sem
dúvida perante dois cenários, diferentes pelas suas essência, origem e
história. De facto trata-se de duas modalidades opostas (mas que é possível por
vezes colocar em relação) da conexão à imagem e à representação. ( )
Os artistas que, nos séculos seguintes, ilustraram o mito de Narciso
sublinharam preferencialmente o caráter efémero do reflexo especular ( ) mas
evitaram a representação da "sombra", que em Ovídio não era senão
uma metáfora. ( )
A primeira parte da história de Narciso era estática, a segunda é dinâmica. ( )
A vista engana e a prova de realidade que deveria ter chegado pelo tocar, não
se produz. Nesse esforço de transgressão descrito por Ovídio (Metamorfoses),
verdadeiro bailado a dois, Narciso ainda acredita que a imagem é um outro. A
pretensão vã destinada a transformar a vista em abraço chega ao drama, ao
momento culminante em que o herói realiza, finalmente, o "estádio do
espelho". A imagem (imago) já não o engana, ela já não é uma
"sombra", ela já não é o outro, mas ele mesmo: "Isto sou
eu"/Iste ego sum.[10].
O mito de Narciso assenta na autocentralização da imagem refletida, suscetível
de interpretações turbulentas, introduzindo a mobilização de conceitos como
falácia; ilusão; simulacro; engano, conceitos por sua vez presentes no registo
do autorretrato. Da transversalidade de leituras dos dois mitos, de Dibutades e
de Narciso, decorre a inscrição da origem do traço (desenho), da pintura
(sombra/mancha) e da própria imagem (imago) na História da Arte.
No fresco sobre A Origem da Pintura (1569-1573) que Vasari (1511-1574)
incorporou na sua Casa Vasari em Florença, pode-se observar o recurso a
sombra plena e definida.
Momentos distintos ' Dibutades e Narciso ' visões afinal muito próximas,
retomados nos séculos seguintes como metáfora da pintura, sempre nas
adjacências do próprio autorretrato.
A batalha de Issos, pintura mural do final do século IV a.C.[11], comemorando
a vitória de Alexandre o Grande sobre Dario (rei da Pérsia), para além da
rigorosa caracterização física e psicológica de cada uma das personagens '
incluindo os dois protagonistas ' ilustra a reflexão de um rosto no escudo de
um dos combatentes cuja imagem reúne fortes probabilidades de ser um
autorretrato de Apelles, retratista oficial preferido de Alexandre.[12]
Sendo A batalha de Issos uma obra-prima que celebra os feitos e a grandeza da
cultura helenística, não será difícil aceitar a tese do autorretrato do
principal pintor oficial ' de cujo registo dão notícia as fontes clássicas '
ter funcionado como aditivo que, em jeito de assinatura, sublinharia a
importância da obra. Resta conjeturar sobre os principais e verdadeiros motivos
artísticos da autorrepresentação: autoglorificação? Virtuosismo?
II ' Autorretrato e Autonomia Intelectual do Pintor
"OGNI DIPINTORE DIPINGE SE"[13]
Segundo alguns historiadores de arte, terá sido Martin van Heemskerck (1498-
1574) quem terá ouvido a expressão que se converteria em adágio todo o pintor
se pinta a si mesmo.[14].
Cabeça e mão, intelectualidade e técnica, são as duas faces da mesma moeda,
metáfora do autorretrato e, por extensão, da criação visual.
No diálogo central que se estabelece entre os dois agentes que são o pintor e o
modelo, há uma particularidade no caso do autorretrato: modelo e executante são
um só indivíduo, há uma unidade na dualidade do diálogo ' expressão/não
expressão; consciente/inconsciente ' que ocorre (supostamente de modo honesto)
entre si e si próprio, permeabilizado pelo sentido de si. Três pontos
referenciais, pois: o eu/sujeito, o me/reflexivo e o trabalho criativo ou,
por outras palavras, um dos fatores determinantes na autorrepresentação visual
será o modo como o autor concebe e constrói as relações estabelecidas entre as
três referências.
Se o desenho implica um diálogo entre o artista e a obra, enquanto que a
pintura é o resultado de uma reflexão mais aprofundada, até que ponto se pode
interpretar a autoimagem como ressonância da subjetividade do artista criador?
Quais os limites para a dinâmica da estratégia interpretativa? "A
Pintura é uma ocupação mental" (pittura é cosa mentale), escreveu
Leonardo da Vinci, , e Miguel Ângelo permaneceu igualmente firme "nós
pintamos com o nosso cérebro, não com as nossas mãos" (si dispinge col
ciervello et non com le mani) ( ) Vasari sustentou que só uma "mão
treinada" podia mediar a ideia nascida no intelecto, ou, como Miguel
Ângelo colocou num famoso soneto, "a mão que obedece ao intelecto"
(la man che ubbidisce all'intelletto) ' por outras palavras, a "mão
instruída" (docta manus) que Nicola Pisano tinha reivindicado possuir
três séculos antes. ( ) "Habbiamo da parlare con le mani", Annibale
Carracci é suposto ter dito cerca de 1590 ( )[15].
A autorretratística autónoma desenvolve-se no século XVI paralelamente ao
reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para as cortes principescas
altamente competitivas na promoção de uma cultura cortesã personalizada e
digna. Nessa medida, as autoimagens dos pintores ' e outros artistas ' podem
ser interpretadas como celebrações próprias das suas vidas pessoais, estratégia
para ampliar o reconhecimento social da posição conseguida por mérito
artístico.
Da Antiguidade Clássica, prolongando-se durante a medievalidade, chegaram até
nós obras em que a imagem do autor pode ser interpretada como um substituto da
assinatura daquele, prevalecendo a associação da imagem à sua autoria, sobre a
exigência de rigor no traçado das reais linhas do rosto, deste modo se
descurando a questão teórica da semelhança.
Rufillos (c. 1150-1200), monge do mosteiro de Weissenau e iluminador célebre,
autorrepresentou-se pintando-se no interior do R do Saltério de Genebra (Fig.
5), sentado a pintar e ilustrando a cena com os instrumentos do ofício e
recipientes de cores necessárias à prática pictural. Todavia, apesar do retrato
em si mesmo exibir traços realistas e algum esmero na execução, não se trata
ainda de uma identidade individual, específica de um indivíduo ' que é
diferente do caráter genérico, sendo este afeto ao género e não ao indivíduo '
e como tal não integra a classificação de um verdadeiro autorretrato.
A identidade indica uma referência comum e transversal na representação, ou
seja, a relação de pertença do indivíduo a um determinado corpo social ou
congregação.
Sendo certo que existe algum consenso relativamente à emergência do
autorretrato independente no século XV, na Itália e na Flandres, e mesmo
considerando que aquela que é hoje a mais antiga e mais importante coleção de
autorretratos do mundo ' com cerca de 1650 exemplares ' terá sido empreendida
em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675)[16], há que reconhecer que,
já no final da Idade Média, a afirmação de uma identidade de partilha e de
pertença a um grupo com interesses sócio-corporativos em comum se verificara '
o escultor da região alemã de Souabe (antiga Checoslováquia) Peter Parler
(1330-1399) colocou o seu próprio busto no trifório da Catedral de Praga (c.
1370-1379), entre os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados à
construção do edifício.
Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estratégia semelhante à de Peter
Parler, ao esculpir o seu busto, em bronze, na Porta do Paraíso (1447-1448)
do Batistério de Florença, colocando a sua assinatura/imagem à margem das cenas
historiadas, no rebordo da porta, através da estratégia de inscrição do busto
num medalhão, retomando a tradição da estatuária antiga ' que reservava este
cariz de representação aos deuses e, depois, aos imperadores romanos ' em
associação com a necessidade de afirmação da sua dignidade profissional.
Nestas circunstâncias, interessará à abordagem do autorretrato independente a
identidade que referencia as qualidades características individuais, ou seja, o
conjunto de indicadores de caráter particular que remetem para a semelhança com
o próprio indivíduo, assim propiciando a identificação do modelo com o sujeito,
ao qual está subjacente um ato de intenção no registo da autoimagem,
consentidamente oferecida à visualidade.
Na autorretratística renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma produção em que
Os autorretratos autónomos eram muitos deles trabalhos acabados, dirigidos a
uma audiência que ultrapassava o círculo imediato da família ou dos
companheiros de ofício"[17].
Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centro da
composição de O Cortejo dos Magos (1459), Florença, Capela Palácio Médici,
dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome no gorro
vermelho que exibe na cabeça. Se for considerada a hipótese de ter sido dada
continuidade à herança da Antiguidade, a imagem do pintor colocada no seio da
sua própria obra poderá ser entendida como um substituto da sua assinatura.
O pintor dissimulou a própria imagem entre as múltiplas personagens, na dupla
condição de participante/figurante e de espectador da cena que integra: trata-
se de um autorretrato dissimulado, in assistenza.
A estratégia idêntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510), em Adoração dos
Magos (1475), Galeria Uffizi, Florença, integrando a composição como um
figurante da assistência, dissimulado em evento que mobilizava um número
considerável de participantes. O esquema da personagem, correspondente ao
autorretrato, dirigindo o olhar para o observador, a par do porte majestático
da figura de corpo inteiro, exibindo uma toga de tonalidade amarelada, indiciam
a consciência da dignidade da representação veiculada pelo pintor.
Albrecht Dürer (1471-1528) apresenta ao espectador, num dos muitos
autorretratos que registou, um enfoque nas duas vertentes que contribuíram para
o reconhecimento e emancipação do estatuto social do pintor e da própria
autorretratística: uma visão intelectual a par da destreza e da habilidade
manual. No Autorretrato com pele (1500), Alta Pinacoteca, Munique, Dürer
entrega-se a um exercício de perícia no escrutínio do rosto, concentrando-se no
olhar ' dirigido para o observador ' intenso, tradutor de uma profundidade
espiritual inequívoca.
Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na Escola de Atenas (1510-1511) Palácio
do Vaticano, Roma,no papel de admonitore/narrador/comentador (que adverte)
para a cena apresentada: o olhar apela, convida a seguir a condução proposta,
dissuade pela sua intensidade a ameaça de qualquer outra via interpretativa.
Trata-se de um exercício de guia para a leitura do quadro, surgindo o pintor/
artista como testemunho irrefutável. O espectador é interpelado pelo olhar para
si dirigido pelo construtor do espaço pictural onde a história se processa,
convidando-o a entrar nela e a aderir ao enunciado.
III ' Vivências Através do Autorretrato: à Descoberta de Si ou a Mão como Fala
Espelho e intimismo, autorretrato, metáfora e complexidade: como tal estratégia
de leitura se aplica ao autorretrato de Francesco Mazzola dito o Parmegianino
(1503-1540), de 1524, intitulado Autorretrato num Espelho Convexo!...
Subtileza técnica e efeitos bizarros contribuem para a qualidade deste
autorretrato, onde cada detalhe refletido, luzes e sombras, acentuam a
naturalidade da cena (de evidente originalidade na época) indiciadora de um
intelecto complexo e extraordinariamente criativo. Refere Joanna Woods-Marsden
a propósito desta obra: No centro do compartimento e da obra de arte, o
autorretratista está vestido como um nobre cortesão, em pele e cambraia, e a
sua mão, transformada em qualquer coisa diluída, branca e aristocrática, está
adornada com um anel de ouro.[18].
Seguindo o princípio de que os dois principais centros de interesse em qualquer
retrato são a sua cabeça e as mãos, não pode a interpretação circunscrever-se à
linearidade: a cabeça, qual metáfora do intelecto gerador da conceção, e a mão
que executa, que concretiza a ideia do pintor que de si mesmo é modelo,
sublinham o exercício de virtuosismo apresentado.
Sendo este considerado o primeiro autorretrato autónomo italiano pintado no
interior de um tondo, as conotações são ainda potenciadoras de outros diálogos
e interpretações. A lembrança da tradição dos autorretratos contidos em
medalhas, pela circularidade; as formas curvas e esféricas e o círculo, tidos
como geometricamente de grande perfeição, remetendo para a formatação e
representação das esferas terrestre e celestial ' Na verdade, a cabeça
esférica de Parmigianino dentro do trabalho "esférico", virando-se
no interior da sua estrutura circular, evoca uma analogia entre macrocosmo e
microcosmo: a estrutura do cosmos e a da cabeça humana, aqui colocada como foco
central da composição e do artefacto.[19].
Denotando uma profunda autoconsciência relativamente ao estatuto artístico e
social do pintor, neste autorretrato a mão é assumida como atributo do empenho
da criação visual (aqui entendida como associação do intelectual com o pleno
domínio da técnica pictural), a qual se celebra de modo fascinante nesta obra.
Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratos cujo destino
generalizado eram patronos interessados, a quem eram enviados como ofertas,
dada a barreira de género que a impedia de entrar em competição de caráter
profissional com pintores do sexo masculino, pagos para executarem trabalhos
acertados.
Este Autorretrato ao Cavalete Pintando um Painel Devocional (1556) (Fig._8)
pode contextualizar-se numa perspetiva de autopromoção, em que a artista no ato
de pintar é, simultaneamente, assunto e objeto, autora e modelo, segurando com
delicadeza os instrumentos da Pintura, pincel, tento e paleta sobre a
prateleira do cavalete. Curiosamente, é no decurso da segunda metade deste
mesmo século XVI que os pintores reivindicam o seu estatuto profissional com
recurso às ferramentas do seu ofício.
Clara Peeters (1594-1657) autorretratou-se, col. privada, cerca de 1610 sob o
título sugestivo de Vanitas, ou a morte como argumento no autorretrato. A
figuração da natureza-morta segundo o princípio de oposição entre o sentimento
da beleza emanado da natureza luxuriante, e o seu contrário, o sentimento do
efémero e transitório. Nesse conjunto de elementos da natureza, que
progressivamente se vai degradando, se incluem a juventude e a beleza feminina
e, como tal, tais motivos incorporam também o tema da Vanitas.
O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado Auto- Retrato
como Alegoria da Pintura (1638-1639) , Royal Collection, Londresd, filia-se na
reivindicação do estatuto intelectual da artista, enquanto pintora ou, por
outras palavras, a personificação feminina da Pintura e a identificação direta
da artista com a arte a que alude. Este autorretrato representa um ato de
coragem da parte de uma mulher pintora, na medida em que todo o esquema
apresentado representa uma subversão dos valores artísticos (os quais
privilegiavam o intelecto masculino e remetiam para um plano de passividade o
trabalho artístico feminino), reunidos na dupla dimensão intelectual e manual:
o arco descrito pela cabeça e pelas mãos articula metaforicamente ambos os
domínios subjacentes à execução do trabalho artístico, paralelamente com a
figura enérgica e vigorosa que domina a composição, cuja construção enfatiza a
afirmação da criatividade da pintora. O acrónimo A.G.F. colocado sob a paleta
sublinha a tenacidade desafiadora e a firmeza da sua atitude num meio artístico
adverso.
Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos produziu,
cobrindo a sua carreira artística de mais de quarenta anos. Esta obra sob a
designação de Autorretrato como Apóstolo Paulo, de 1661, Amesterdão,
representa a delegação do próprio rosto do artista na personagem do Apóstolo
Paulo, podendo suscitar a interrogação sobre a eventual identificação do pintor
com uma das figuras mais marcantes do primeiro cristianismo. É, porém, pelo
poder da expressão, surpreendente, pela sinceridade eloquente do semblante e
pela técnica que este autorretrato se distingue, sendo notórias as carnações e
os efeitos da luz e da sombra sobre fundo neutro. O presente autorretrato pode
ser incorporado na interpretação de que Rembrandt não pretendeu personificar a
sua época, antes privilegiando uma grande complexidade afetiva, espiritual e
humanística e evidenciando características de profundo intimismo e de forte
penetração psicológica. Sendo certo que esta última noção era desconhecida no
século XVII, não será de estranhar a primazia concedida à semelhança/parecença,
para a qual concorria obviamente a execução manual extremamente cuidada.
No belíssimo Autorretrato a ¾ que se encontra na Fundação Calouste Gulbenkian
(c. 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto através de uma imagem pública, como
personagem romântica e simultaneamente protagonista da modernidade do tempo em
que vivia. É uma obra emblemática, concebida ainda na tradição da Renascença,
mas em que o modelo exibe vestes contemporâneas, assumindo postura de dandy,
segurando o chapéu escuro de seda e as luvas de camurça, em atitude de saudação
ao espectador, a quem a sua expressão facial se dirige, enfatizada pela técnica
de domínio do espaço pictural através do próprio corpo.
Sendo a abordagem polissémica da imagem inevitável, a teatralidade subjacente à
pose do modelo não deixará de suscitar a metáfora da possibilidade de
associação da representação autoconstruída a um espaço cénico onde se desenrola
o diálogo entre o protagonista e o destinatário / espectador da ação
apresentada.
No ano imediatamente anterior à sua morte, o mesmo ano em que entra no
sanatório de Saint-Paul-de-Mausole, Saint-Rémy-de-Provence, 1889, Vincent Van
Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretratos Musée d'Orsay, Paris,
cerca de quarenta em menos de cinco anos e mais de vinte nos últimos dois anos
de vida.
Um olhar verdadeiro, intensamente emocional e fixo, em que se adivinha uma
firme determinação, e um profundo autoconhecimento, são características
evidenciadas pelo pintor, que confessa ao irmão Théo: Eu queria fazer retratos
que um século depois surgissem às pessoas de então como aparições. Portanto, eu
não procuro fazê-lo pela semelhança fotográfica mas pelas nossas expressões
apaixonadas, empregando como meio de expressão e de exaltação o caráter da
nossa ciência e o gosto moderno da cor. O meu próprio retrato é também quase
assim, o azul é um azul fino do Midi e o fato é em lilás claro.[20].
Os olhos que refletem a transparência do sentimento do eu convertem-se no
espelho de projeção do olhar do observador, espécie de simbiose que, no ato de
comoção, reconhece a comunhão na dualidade, reencontrando a fórmula je est un
autre
O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo de
autorrepresentação acaba, afinal, por remeter para as inesgotáveis polémicas
que a produção artística de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo: Génio e
Loucura - Ninguém sabe exatamente de que enfermidade sofria Van Gogh No século
XIX, associava-se com frequência a loucura ao génio criativo, e não era raro
crer que a intensa sensibilidade de um artista e o aspeto irracional da criação
artística podiam derivar para alterações mentais. Seguidamente, a obra e o
sofrimento de Van Gogh interpretaram-se desta maneira e deram lugar a muitas
especulações sobre a loucura.[21].
De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881-1973), a
escolha recaiu entre um de 1907Narodni Galerie V, Praga e outro de 1972,Col.
Privada Tóquio. Entre um e outro poderá situar-se a trajetória da sua vida
artística: 1907 é o ano de acabamento da pintura emblemática Les Demoiselles
d'Avignon, que marca o nascimento oficial do artista, o primeiro dos dois
autorretratos surge, pois, quando começou a afirmar a sua personalidade
pictural e artística; o autorretrato de 1972 terá o sido o último autorretrato
de Picasso e uma das últimas obras que executou, falecendo no ano seguinte. In
extremis, que longo caminho percorrido pelo autorretrato, entre o rosto-
máscara (de influência africana) e o rosto-crânio, pré-figurando a morte e o
medo do desconhecido!... E se em 1907, quando Picasso tinha 26 anos de idade,
se pode ainda colocar a questão da semelhança e as influências do cubismo, em
1972 a autonomia da obra em si sobrepõe-se a qualquer referência a uma
realidade exterior, designadamente em termos de semelhança.
A geometrização das formas simplificadas do rosto de 1907, sustentando o olhar
penetrante e enérgico, residente na dilatação das pupilas do modelo, não deixa
de pôr em causa a noção de semelhança e, portanto, a prática da
autorrepresentação.
No autorretrato de Picasso, pintado a 3 de junho de 1972, os olhos começam a
sair das órbitas, sentimentos de angústia, impotência e pavor antecipam a visão
da própria morte, a qual haveria de acontecer no ano seguinte, fechando o ciclo
de experiências artísticas protagonizadas pelo pintor. Inequívoca a sua
capacidade de comover o observador, testemunho extraordinariamente humano e
intimista, de quem sabe que já não se trata apenas de apontar o próprio olhar
ao espelho. O seu rosto macilento, de lembrança marmórea e olhar petrificado,
não ilude: criador e observador unem-se, numa atitude universal e ancestral, de
quem sabe que nada mais resta senão a aceitação da miserável condição humana,
com as suas fragilidades e limites, incontornáveis.
IV ' Paraa Compreensão do Autorretrato em Portgual: Breve Contextualização da
Sua Produção
O primeiro autorretrato (como tal identificado) de que há notícia em Portugal
está esculpido numa mísula ' de um ângulo que, na Casa do Capítulo do Mosteiro
de Stª. Mª. da Vitória, na Batalha, serve de suporte ao arranque das nervuras
da abóbada ' representando Mestre Huguet (?-1438), que dirigiu o estaleiro
batalhino entre 1402 e 1438.
A escultura, construída no século XV, filia-se na tradição de afirmação de uma
identidade de pertença a um grupo profissional, à semelhança da
autorrepresentação de Peter Parler, no trifório da Catedral de Praga (c. 1370-
1379). Os elementos que identificam o arquiteto responsável pelas obras da
Batalha (projeto de arquitetura de alçada régia) estão bem visíveis na
figuração: a figura está de cócoras, em adaptação à superfície, usa túnica
cintada e chapéu de turbante traçado pelo pano pendente, conforme vestuário do
século XV, exibindo nas mãos a régua do seu ofício.
A apontada proveniência estrangeira (levantina? inglesa? irlandesa?) de Huguet
remete para a influência exterior e para a permeabilização do intercâmbio
cultural com uma linguagem artística próxima do dinamismo de outros centros
artísticos europeus, sobretudo se for tido em conta o papel da rainha D. Filipa
de Lencastre na afirmação da dignidade da Dinastia de Avis, bem como a
importância da edificação do Mosteiro na reivindicação da legitimidade do poder
régio.
No autorretrato de Huguet está patente que na visibilidade que de si quis
deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstração de
autoconsciência relativamente à sua identidade artístico-profissional. O
sentido da identidade construída situa-se nas adjacências da afirmação
individual do artista e da sua ligação a uma obra emblemática referenciada à
independência de um reino.
Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se, Biblioteca Nacional de
Madrid, na última imagem de De aetatibus mundi imagines (fº. 89 R), usada
como cólofon. A autorrepresentação mostra o artista rodeado pelas três virtudes
teologais, Fé, Esperança e Caridade, em gesto de oferta do Livro das Imagens
das Idades do Mundo à fera que representa a Malícia do Tempo.
Imagem emblemática cuja compreensão passa naturalmente pela mobilização não só
da contextualização da representação, temática, atributos e significação da
cena, como pela caracterização cultural e artística do próprio autorretratado.
Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e, porque Deus é a
primeira causa de todas as formas de existência, é também a única fonte de
inspiração artística. A criação é pintura, na idêntica medida em que pintura é
criação de mundos ( ) A pintura nasce também sob o signo da marca individual.
[22].
No espaço de representação do autorretrato as virtudes da Fé, no Cristianismo,
representado no atributo da cruz, a Caridade com a mensagem da generosidade e a
Esperança no triunfo dos valores do Antigo, protegem da fúria da destruição
evidenciada pela fera Malícia do Tempo a obra do artista, que entre mãos a
segura, implorando a proteção do castigo divino contra a ameaça iminente e
insensível dos vícios, simbolizados no animal, contra o engenho e a criação do
artista, que no cenário tradutor da mensagem de triunfo da espiritualidade e da
sabedoria integrou o seu autorretrato. Holanda pretendeu deixar para a
posteridade o registo da sua imagem ligada à obra produzida, na dupla qualidade
de humanista e de artista.
O autorretrato que se segue, Museu Grão-Vasco, Viseu, insere-se no retábulo
subordinado ao tema Cristo em Casa de Marta e Maria (c. 1535-1540), hoje no
Museu de Grão Vasco, mas proveniente da capela de Stª. Marta do Paço Episcopal
de Fontelo, encomendado c. de 1530 por Dom Miguel da Silva (vide armas dos
Silvas no pedestal das colunas que integram a arquitetura), bispo de Viseu '
reconhecido humanista que foi embaixador de Portugal em Roma entre 1515 e 1525,
no tempo de Leão X, Adriano VI e Clemente VII, de quem era amigo próximo ' e
cujo retrato nesta obra foi identificado pelo historiador de arte Rafael
Moreira como sendo a personalidade sentada à mesa com Cristo.
Dalila Rodrigues nomeia a dupla Grão Vasco (c. 1475-1541-1542) e Gaspar Vaz
(séc. XV/XVI) como responsáveis pela execução do retábulo.[23].
A temática da obra, indicada no próprio título, remete para o texto evangélico
de S. Lucas.[24]. A ação, centralizada em Cristo, passa-se em cenário
ostensivamente doméstico, entre arquiteturas clássicas e janelas em trompe
l'oeil, abrindo significativamente a ação para o exterior do espaço pictural. A
linguagem dos gestos supre a das palavras: Marta, voltada para Cristo, estende
a mão em direção a Maria, por sua vez em atitude contemplativa.
Emblematicamente disfarçada, no ambiente religioso e simbólico, a figura do
pintor que nela se autorretrata ' sendo suposto tratar-se de Gaspar Vaz ' quis
deixar o seu registo/assinatura nessa obra eclética, e de encomenda notável,
saída da oficina de Viseu, sob orientação artística de Grão Vasco. Identificado
pelo barrete do ofício de pintor, o rosto emergente e o olhar dirigido para a
parte central da cena, a mão bem visível sobre uma das colunas, insinua-se sem
se introduzir na ação, qual figura de convite que conduz e orienta o olhar do
observador, direcionando-o para a figura de Cristo, cuja linguagem gestual
corrobora a mensagem cristã da necessidade da primazia da palavra de Deus sobre
as preocupações terrenas. É o admonitore, lembrando a condição humana.
Fernão Gomes (1548-1612) utiliza recurso idêntico, em 1590, ao pintar o seu
autorretrato na Ascensão de Cristo, Museu de Arte Sacra do Funchal, dirigindo
o olhar para o exterior do espaço de representação, em direção ao olhar do
observador. A mão direita sublinha a intencionalidade de focalização na
manifestação divina, enquanto que a sua fisionomia atrai a atenção pela
singularidade e individualização dos traços, distintos da idealização das
outras personagens.
Giraldo de Prado, ou Giraldo Fernandes do Prado (1535?-1592), Em 1590 ( ) ao
tempo pintor de óleo e de fresco, calígrafo e cavaleiro-fidalgo de D. Teodósio
II, Duque de Bragança, pintou os painéis do retábulo da igreja da Misericórdia
de Almada, por encomenda de ilustres almadenses, o então provedor Francisco de
Andrada e Manuel de Sousa Coutinho.[25]. No painel central do extenso
retábulo, alusivo à temática bíblica de invocação mariana, pinta o seu
autorretrato, auto-figurandosse como observador que, embora dentro do espaço
pictural, se posiciona exteriormente à cena principal representada no centro do
quadro.
A colocação estratégica do autorretratado, a dimensão psicológica
individualizada da sua expressão, remetem para uma postura de afirmação,
equivalendo a presença do autor à sua assinatura na obra. O discurso do pintor,
sensível à graciosidade das duas personagens femininas ' Virgem e Sta. Isabel '
e ao enquadramento destas num espaço de representação definido pelas
arquiteturas de pendor maneirista que compõem o cenário, sublinha a
teatralidade da construção do espaço de representação que, com a sua presença,
assina.
Pedro Nunes (1586-1637), mestre eborense de formação italiana ' esteve em Roma
entre 1609 e 1614 ' pertenceu à última geração de pintores maneiristas, cuja
atividade se verifica ainda durante o primeiro terço do século XVII, quando já
emergiam propostas estilísticas mais inovadoras e consentâneas com o proto-
barroco, que se expressava em abordagens naturalistas.
Refere Vitor Serrão: Estamos perante um artista plenamente integrado ' dir-se-
ia que algo anacronicamente, dada a época avançada em que labora ' nos
programas do maneirismo italianizante, no sentido "intelectual" da
distorção dos espaços, fidelidade à idea romanista de ambiguidade e capacidade
de vibrante colorista.[26].
Na espetacularidade cenográfica da Descida da Cruz Capela do Esporão, Sé
Catedral de Évora, marcada sobretudo pelos efeitos de desequilíbrio na relação
dos planos e das figuras, pelo cromatismo e pelo característico modelado,
sobressai uma cabeça coberta com barrete vermelho de faixa branca, onde se
impõe um olhar expressivo, direcionado para o espectador, enquanto que o
indicador da mão direita aponta o destinatário do percurso de leitura: a figura
de Cristo, símbolo da esperança na vida eterna; em contraste com essa visão,
foi colocado em primeiro plano um conjunto de elementos que remetem para a
lembrança da morte física ' a caveira e os ossos, em cruz.
O autorretrato de Pedro Nunes, como admonitore, assim assinando aquela que é
tida como a sua obra-prima, protagonizando postura exterior ao cenário
religioso e ao tempo da narrativa ' qual eu fiz esta obra ' dimensiona o
humanismo concomitante com o seu maneirismo retardatário conforme o normativo
tridentino: Esta notável composição romanista, derivada de um modelo
rafaelesco segundo estampa de Raimondi, mas com interpretação livre, arrojada e
assaz original, marca o clímax da nossa pintura da Contra-Maniera; integra,
além disso, o autorretrato do artista em postura de admonitore e testemunho de
liberalidade.[27].
O autorretrato de António de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-se no óleo
sobre a Chegada de Sta. Inês de Assis ao Convento (1696-1697), Conv. De Sta.
Clara, Évora. Tema incidente sobre a iconografia clarissa, desenvolvido num
quadro de história, narra os acontecimentos que rodearam a história da irmã de
Sta. Clara e apresenta uma cena de grande dinamismo cenográfico, na qual o
artista se pintou como figura secundária, disfarçado in assistenza. Todavia,
a sua figura, de fisionomia extraordinariamente individualizada, destaca-se na
cena e interpela o observador, para quem o olhar do pintor dirige o diálogo '
testemunhando com tal postura uma notória autoconsciência relativamente à
nobreza do seu ofício e à afirmação do novo estatuto social e profissional dos
pintores de arte.
Félix Machado da Silva Castro e Vasconcelos, Marquês de Montebello (1595-1662),
produziu pelo meado de seiscentos (c. 1643) um autorretrato que pode dizer-se
ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretrato independente.
A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nosso país no
século XIX encontra na autoimagem do Marquês de Montebello uma evidente
antecipação que, curiosamente, parte de alguém que viveu parte substancial da
vida pessoal no exterior. Tendo sido detentor de diversas comendas e solares no
território nacional, por via de herança materna, escolheu o partido e o serviço
de Filipe III de Portugal, IV de Espanha, de quem foi embaixador em Roma. Viveu
também em Madrid e em Milão e dedicou-se ao ensino da pintura, sobretudo de
retrato, em consequência de ter visto bens confiscados no seu país, por se ter
posicionado do lado de Espanha.
Importa sublinhar a questão da novidade (c. de 1643) entre nós do autorretrato
reivindicativo, de afirmação profissional, quando a coleção de autorretratos da
Galeria Uffizi, constituída pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675),
continuada pelo sobrinho Cosme III, Grão Duque da Toscana (1642-1723) anda
oficialmente associada à data de 1681.
A iconografia escolhida pelo Marquês, de Montebello, que se autorrepresenta
como pintor independente, rodeado dos filhos, é extremamente original, sem
paralelo na pintura portuguesa do tempo. Pintado a ¾, semivoltado para o
espectador, de pé e ao cavalete, mostrando os instrumentos do seu ofício '
pincéis e paleta ' os dois filhos como modelos, as inscrições identificando o
filho Francisco, a filha Bernarda e ele próprio ' Felix Machado Marques de
Montebello ' todos os elementos apresentados sublinham o assumir do seu
estatuto de artista da corte de Madrid, na especialidade da pintura de retrato.
As insígnias de fidalgo que exibe no peito acentuam a pose aristocrática. Foi
feito conde de Amares depois de 1640. Trata-se de um autorretrato
reivindicativo e emblemático.
V ' A Pintura do Autorretrato Contemporâneo em Portugal: Evolução e Reflexão
Em contexto de retrato coletivo de colegas de profissão ' é o primeiro retrato
de grupo produzido pela pintura portuguesa, enquanto testemunho de cumplicidade
de um ideário[28] ' João Christino da Silva (1829-1877) inseriu a sua figura no
quadro Cinco Artistas em Sintra M.N.A.C., pintado em plena natureza em 1855,
colocando-se em posição lateral face ao grupo central, como figura secundária
[29]. Um outro pequeno grupo formado por camponeses curiosos com a técnica
artística pontua a dimensão do grupo central de figurantes.
Para além de autorretrato reivindicativo de um estatuto sócio-profisssional a
que a ainda recente criação da Academia de Belas-artes (1836) vinha sublinhar a
importância, este é também um autorretrato em disfarce, em que o pintor afirma
a pertença a um grupo de artistas estética e ideologicamente representado e
geracionalmente cúmplice. Nesse sentido, o autorretrato apresentado representa
também um símbolo da estética romântica.
De Henrique Pousão (1859-1884), um autorretrato executado em 1878, aos 19 anos
de idade, portanto obra da juventude (embora tenha desaparecido prematuramente,
com apenas 25 anos), do ano anterior à finalização do curso na Academia
Portuense de Belas-Artes e também anterior à sua partida para Paris, o que
viria a suceder em novembro de 1880, onde iniciou estudos nos ateliers de
Cabanel e de Yvon, tendo-se seguido Roma, em novembro de 1881.
A expressividade natural e a sinceridade do olhar aliam-se no registo da auto-
observação, sendo percetíveis sentimentos de subjetividade e de afirmação
pessoal, característicos de uma atitude romântica.
A escolha de Pousão é um sinal inequívoco de individualismo, da persona que
olha o observador, é um exercício de puro virtuosismo; não há na
autorrepresentação indicadores que remetam para reivindicação de estatuto ou de
profissão, tratando-se da construção de um território especial, a sua
identidade, usado como recurso técnico, assim dando razão ao princípio de que
todos os pintores se pintam.
O paisagista Silva Porto (1850-1893) executou raríssimos retratos de si mesmo.
Identificado[30] como um autorretrato seu, de c. de 1879 (Fig._11), de meio-
corpo, a figura impõe-se desde logo pela profundidade traduzida na expressão
facial.
A observação devolvida ao espectador exprime um caráter intimista e de grande
sensibilidade, privilegiando serenidade, timidez, reflexão e seriedade. 1879
foi o ano de regresso do pintor do pensionato que ganhou e lhe facultou a
realização de estudos em Paris e em Roma. Sob a orientação de Cabanel, Yvon e
Daubigny, foi admitido nos salons de 1876, 1878 e 1879[31] e, neste último
ano, terá conhecido a futura esposa, Adelaide Tavares Pereira, que lhe serviu
de modelo[32] com alguma frequência.
No busto perfilado, com a cabeça ligeiramente voltada, a nota porventura mais
evidente é a ausência de coincidência entre os olhares do autor e do
espectador, qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou está
contida na projeção do seu olhar concentrado num ponto indefinido, localizado
no espaço de inserção do espectador, cuja presença sugestivamente se indica
através da direção do olhar autoral.
Trata-se de uma obra construída na tradição do autorretrato como exercício de
auto-observação, na tradição do Romantismo e que irá encontrar mais tarde novos
desenvolvimentos no autorretrato introspetivo.
Existem várias autorrepresentações de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), a
maioria das quais apresentadas em associação com a prática da pintura. Pela
singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela em que se
autorrepresentou aos 28 anos, em 1885, executada em homenagem à geração
naturalista, O Grupo do Leão, M.N.A.C., tela destinada a figurar
originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33]. Columbano ocupa, de pé
junto ao irmão, posição lateral relativamente à centralidade da obra '
estrategicamente definida pelo mestre do naturalismo, Silva Porto ' o
caricaturista por excelência da sociedade portuguesa, Rafael Bordalo Pinheiro
(sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demais retratados), cuja
obra define uma apreciação de rara exatidão relativamente aos Portugueses.
Significativamente ' Columbano representa a vertente erudita do entendimento do
seu País ' o autorretratado, com o seu aspeto intelectual, acentuado pela
miopia que se adivinha nas lunetas, coloca-se como se estivesse de saída da
cena e dos ideais do paisagismo defendidos pelo grupo de artistas, cujos
princípios estéticos epigonalmente haveriam de continuar no tempo, nas próximas
gerações. Columbano era retratista, pintor de interiores, e a sua
autorrepresentação sublinha esse distanciamento. É evidente a consciência do
ato e do espaço da autorrepresentação, o artista está ciente do papel central
que o rosto desempenha na definição da identidade da persona.
No mesmo ano de 1885, quando pintou o Retrato de D. José Pessanha, M.N.A.C.,
' erudito e crítico de arte que escrevera um artigo sobre o artista ' Columbano
inscreveu na representação a sua autoimagem num espelho, conceptualizado como
trompe l'oeil da composição, assim evidenciando um notável exercício de
modernidade pictural, no tempo artístico nacional e no contexto da produção da
autorretratística no País. Emblematicamente, a encenação que integra a
autoprojeção sobre um dos instrumentos da profissão do pintor, converte-se num
espaço de ensaio da metáfora sustentada entre a pintura e a crítica. A
autorrepresentação ganha uma dimensão mais aprofundada, em termos de
explicitação do registo da autoanálise e da auto-observação, sublinhando a
ausência de constrangimento face à apreciação do objeto/matéria que é a pintura
relativamente ao crítico de arte, em conformidade, afinal, com a intransigência
que o caracterizou na sua liberdade artística.
De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Condeixa (1857-
1913). Os estudos realizados em Paris (onde permaneceu entre dezembro de 1880 e
abril de 1886, tendo sido discípulo de Alexandre Cabanel) refletem-se no
academismo que informa a sua paleta. A obra, M.N.A.C., estrutura-se num jogo de
sombra/luz, em tonalidades enegrecidas conforme o convencionalismo esquemático
dos valores próprios do Romantismo. A visão do autorretrato devolve ao
espectador uma representação de meio-corpo, frontal, qual reflexão eu olho-te
a observares-me, depois de me ter olhado no espelho a pintar-me. Através da
coincidência de olhares, do pintor e do espectador, comunica-se o exercício da
auto-observação, seguindo os modelos clássicos da autorretratística
genericamente vigorante em França na primeira metade do século XIX, os quais
continuavam a informar culturalmente a formação dos nossos pensionistas e
bolseiros[34]. O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorreferência
de grande sinceridade na captação da individuação, com ênfase na perseguição
consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade e honestidade.
Entre os autorretratos pintados por Aurélia de Sousa (1866-1922), assume
particular destaque aquele que executou cerca de 1900, M.N.S.R., portanto na
viragem do século, pela modernidade, unanimemente reconhecida pela crítica
nacional e internacional[35]. Representa uma visão emblemática da mulher
artista, na sociedade portuguesa do seu tempo. Ainda que as palavras que se
seguem não tenham sido dirigidas especificamente a Aurélia, como são
elucidativas, designadamente na possibilidade do seu ajuste ao autorretrato em
questão: Eu tenho uma face, mas uma face não é o que eu sou. Por detrás existe
uma mente, a qual tu não vês mas que te observa. Esta face que tu vês mas eu
não, é um medium' que eu possuo para expressar alguma coisa do que eu sou.
[36].
Sobre esta obra disse José-Augusto França: Fácil seria descrever esta cabeça
severa, de cabelos arruivados, cortada pelo decote subido de uma blusa azul ( )
um grande alfinete de âmbar a fechar geometricamente este elemento da
composição, na vertical da risca do penteado, do nariz, no meio da boca cerrada
( ) o vermelho e o azul do que traz vestido ( ) Somam-se estes elementos do
retrato ' mas fica de fora aquele que sobretudo o faz: este olhar azul-claro
que fixa inteiramente a composição. Não se diz os olhos, semicerrados por
atenção, fitando o espelho invisível ' mas o olhar, ou seja, o que neles é
imaterial. ( ) Que mais profunda solidão numa quinta antiga sobre o Douro, de
exílio da pintora? Não há, com certeza, outro autorretrato assim na pintura
portuguesa ( )[37].
O tempo de Aurélia foi também o de Sigmund Freud, de Klimt, Van Gogh e
Schielle. Esteve em Paris, entre 1898 e 1902, onde estudou com Jean-Paul
Laurens e Benjamin Constant, tendo viajado e pintado na Bretanha e visitado
museus em Bruxelas, Antuérpia, Berlim, Roma, Florença, Veneza, Madrid e
Sevilha, não sendo de refutar a execução do autorretrato em Paris.
Frontalidade, expressão enigmática do rosto, intimismo, severidade e uma enorme
consciência da própria individualidade, são características de uma modernidade
irrefutável, paralelamente com a abertura para soluções inovadoras que o século
XX haveria de conhecer, na desconstrução do cubismo, na angústia expressionista
ou no lirismo abstracionista.
Da sua curta vida marcada pela boémia, Armando de Basto (1889-1923) deixou-nos
um autorretrato, M.N.S.R., executado cerca de 1917. A grande dimensão do rosto,
ocupando a quase totalidade do retângulo, é o elemento que desde logo se impõe
na visão da tela. Uma observação mais atenta permite perceber um olhar
melancólico, centrado no espectador, em cuja direção o rosto e o torso se
voltam.
Emergindo dos tons enegrecidos do fundo ' os quais enquadram a figura ' o
rosto, em tonalidades térreas, espelha as marcas de uma vida desregrada e
rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista, quer em termos
académicos, quer pessoais. Armando de Basto pintou-se como um homem e não como
pintor. Tendo exercido ampla atividade nos domínios da caricatura e do desenho
humorístico, só terá começado a pintar cerca de 1913, com incidência no
retrato, ainda no período em que esteve em Paris (1910-1914), onde conviveu com
Modigliani, que lhe pintou o retrato. De qualquer modo, a singularidade do
autorretrato reside, fundamentalmente, no fascínio que se desprende do olhar,
suscitando o diálogo ' significativamente registando a facilidade de
relacionamentos pessoais por parte do artista ' na tradição da
autorretratística de Rembrandt e de Henri Fantin-Latour, relativamente aos
valores de tratamento do rosto, mas sobretudo marcando a perseguição de ideais
de liberdade e de independência, distintivos da vivência modernista.
É de 1925 o quadro em que José de Almada Negreiros (1893-1970) se autorretrata,
inserido num grupo de dois pares, C.A.M. da F. C. G., em cenário neutro, muito
embora se saiba que a obra fez parte da decoração da Brasileira (Chiado,
Lisboa) e sejam evidentes os indícios de conotação temática com o domínio
artístico ' da tela onde Almada colocou o ano de realização do quadro e a
assinatura que o haveria de celebrizar, ao desenho sobre o qual José-Augusto
França se interrogou poder tratar-se da caricatura de Gualdino Gomes ' ( ) se
atentarmos no chapéu que lhe caracterizava a boémia verrinosa ( )[38] ' até ao
suporte do registo que merece a concentração da atenção da maioria dos
elementos do grupo, mas de que certamente não terá sido aleatória a exibição do
verso, vedando o acesso à descodificação do motivo desenvolvido. Almada vira
para o campo visual do espectador o registo que segura com a sua mão direita,
assim construindo um enigma com enfoque essencial na composição da cena de
interior. Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na esfera
do convívio social, e não como protagonista de um cenário artístico, ainda que
não tenha refutado visibilidade na alusão à condição artística: é manifesta a
intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernista, na vida airada de
Lisboa - 25[39], sem constrangimentos, dela comungando através da apresentação
da frequência dos salões de chá e cafés característicos dos frenéticos anos 20.
Almada autorrepresentou-se na celebração da sua contemporaneidade, assumindo-se
na sua individualidade, numa conversa suspensa entre os figurantes, em cuja
representação se impõe a transversalidade do olhar, como atitude de
cumplicidade geracional.
Sábias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida: Almada foi sempre
autorretrato.
De si e de Portugal, nas sucessivas modalidades que ele e o País foram tomando,
numa inesperada identidade de propósitos e acerto de tempo ( )[40].
Em 1929 José Tagarro (1902-1931) realizou um duplo autorretrato (Fig._12) que
se apresenta como um dos mais originais (não só da sua época, mas seguramente
da produção artística contemporânea portuguesa), produzido dois anos passados
sobre a frequência da Escola de Belas-Artes de Lisboa, também dois anos antes
da sua prematura morte e no exato ano em que visitou a França e teve
oportunidade de estudar e se atualizar em Paris, durante algum tempo.
Pertencente à 2ª. Geração Modernista em Portugal[41], a obra apresenta uma
síntese de grande expressividade e força ' com destaque para a atenção ao rigor
no tratamento das cabeças, boca e olhos ' resultante da articulação entre o
característico traço firme (desenho) e a distribuição do cromatismo na mancha
da pintura propriamente dita, numa demonstração de extrema modernidade e
manifestação de grande dignidade profissional. E foi nesta condição que Tagarro
quis ser visto para a posteridade: com o entusiasmo contagiante do artista que
se autodescobre e se questiona, mirando-se no olhar/espelho do observador, a
quem atrai ainda através das tonalidades do encarnado do lápis com que desenha,
ferramenta do ofício que dá forma à ideia/criatividade. O efeito de surpresa
persiste, em grande parte, pelo contraste entre técnicas ' enquanto que a
pintura modela o rosto pintado, com particular atenção na descrição do
pormenor, o desenho do segundo plano expõe o rosto perfilado, numa construção
simétrica de ambos os rostos, cujos olhares são dirigidos ao espectador, assim
suscitando o diálogo entre desenho e pintura. Ideia e forma interpenetram-se na
essência da imagem de inequívoco vigor narcisista, sem equivalente na pintura
do autorretrato deste período: É o simulacro da visibilidade da autoimagem que
alimenta a imaginação e fomenta a criatividade artística ( ) no impossível jogo
de espelhos em que a autoimagem é projetada, representação da
autorrepresentação narcisicamente refletida no olhar ' espelho do espectador,
paradigma do momento em que o artista, como sujeito em representação, se dá a
ver, perdido nas ruínas da sua própria visão e mostrando-se como testemunho de
uma profunda consciência da condição humana.[42].
O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintado no ano
do seu casamento com Arpad Szénès, em 1930, col. privada, Paris, quando a
pintora tinha 22 anos, também o ano anterior à oportunidade de expor nos Salons
d'Automme et Surindépendants, em Paris[43].
Autorretrato a meio corpo, em fundo predominantemente neutro, o olhar límpido,
frontal e interrogativo, fixo no observador, constitui desde o primeiro momento
de contemplação do espectador o principal foco de atração. É um registo
figurativo de mulher, uma construção expressionista, reveladora de intensa
sensibilidade, sem qualquer alusão do modelo à prática artística, ainda que
seja possível antever, na plasticidade dos planos e nas linhas escuras e
acinzentadas, a procura de novos valores espaciais. A figura feminina,
emergindo entre os negros ' do cabelo, das sobrancelhas, olhos e vestuário '
impondo-se na tez clara da pele, da qual se destaca o rubro da boca (com
correspondência na peça de mobiliário que se acha à direita do observador),
ocupa parte significativa da tela e define-se entre a contenção do
enquadramento em espaço interior fechado e a luminosidade do claro-escuro
envolvente, numa síntese de evidente simplicidade e de reminiscência de um
universo onde impera a solidão. Sente-se uma estratégia de introspeção
psicológica, tendência já presente em Rembrandt e que se afirmou com o
Romantismo.
É também do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de Artur Loureiro
(1853-1932), então com 77 anos, M.N.S.R., obra executada dois anos antes da sua
morte e onde as soluções estéticas apresentadas têm como patamar de referência
os valores do naturalismo oitocentista em que o pintor fez a sua aprendizagem e
se exercitou.
A imagem representa a figura de um velho homem, de pé, cujo corpo semiperfilado
se ampara a uma bengala ' posicionada no prolongamento da trajetória da
diagonal definida pelo braço direito da figura ' segurada pela mesma mão que
prende um chapéu negro, certamente recolhido por respeito devido face à
penetração em espaço interior. No gesto são visíveis os tons da carnalidade da
mão, igualmente presentes no rosto virado na direção do espectador, que
enfrenta no cruzamento de olhares. Sobre as vestes negras, um casaco castanho
mel, gasto do tempo e do uso, compaginável com a exposição da idade, traduzida
no branco do cabelo e da barba descuidada. O artista escolheu expor-se do ponto
de vista humano, auto-descrevendosse em sintonia com a miséria afetiva e a
solidão características dessa fase da vida. Significativamente, e com uma
enorme coragem e força por detrás das lentes, os olhos do autorretratado
interpelam o observador, a quem é oferecida a autoimagem/espelho, como proposta
de reflexão intemporal.
O autorretrato pintado por Domínguez Álvarez (1906-1942) em 1934, intitulado
D. Quixote, constitui uma imagem que dificilmente sai do alojamento da
memória em que facilmente se instala, nas profundezas do silêncio interior
específico do espectador atento. É uma obra que não tem paralelo na pintura do
autorretrato contemporâneo em Portugal. A panóplia de sentimentos que gera no
ato da sua observação corresponde sem contraditório à definição que José-
Augusto França registou para autorretrato: O autorretrato fita, por natureza e
fatalidade de processo, o espectador que o há de olhar, tanto como a si próprio
o pintor se olhou, e o que foi monólogo desejado do artista, acaba por se
realizar em diálogo. Diálogo de três, porém, que três são os seus elementos: o
pintor que se retrata, a sua imagem retratada, e a pessoa que a olha, como se
estivesse a olhar o seu autor. Que não está: o autorretrato é apenas a sua
imagem, não pintor pintado mas o que ele, fora dele, pintou. Mas por isso se
dirá que, mais do que apenas a sua imagem, o autorretrato, está para além dela
e de quem a pintou, por a ter pintado ' ou seja, criado em obra de arte Não se
deixará de dizer que o autorretrato é a quintessência da arte, pela duplicidade
mágica da imagem fornecida.[44].
O olhar acusatório, e completamente despido de esperança, que endereça ao
espectador, cumpre-se na perturbação do vazio, na tristeza, na censura e no
medo. A representação que de si deixa o pintor remete para um universo
misterioso, conturbado e inquietante, feito mensageiro da morte a que sombras e
negros aludem, povoando o cenário de onde emergem o rosto ' alongado na barba
cujo fim não se vislumbra ' e parte do peito, cuja tonalidade parece já ser
presságio do cadáver que haveria de ser dentro de muito poucos anos passados.
Da expressão pictórica de Álvarez correspondente aos anos 30 destacou também
José-Augusto França o insólito ' Nenhuma referência parisiense, nenhuma
informação de Berlim, nenhum acomodamento modernista, e um gosto espanhol que
era ou podia ser de mais ninguém e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal. Um
artista isolado, passando misérias no Porto, sem ares da boémia burguesa dos de
Lisboa ' um vago sonho provinciano de "mais além" como divisa de
impossível grupo. A sua pintura é toda assim, arredando-se do ensino da Escola
que lhe deu diploma e desemprego, em perseguição de fantasmas soltos pelas ruas
tristes do Barredo, manchas negras e informes; ou de paisagens visionárias de
tenebrosos burgos de Espanha, lembrados do Greco.
É um D. Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa, pela indecisão mítica
que vivemos, entre D. Sebastião e D. António, com a desgraça de ambos ( ) A
imagem de Álvarez é mais triste que qualquer outra ( )[45].
Álvarez morreu com 42 anos, vítima de tuberculose e certamente também das suas
opções estéticas, definidas à margem dos padrões oficiais[46]. O seu
autorretrato é um paradigma da fragilidade da condição humana e do cenário de
instabilidade em que a vida humana se movimenta. Pelo traçado das linhas
oblíquas, em evidente oposição com a estabilidade inerente à figura vertical,
Álvarez questiona a racionalidade da sua vivência, agoniada pela debilidade
física e pela injustiça da ausência de reconhecimento, que só chegaria após a
sua morte. Que metáfora mais adequada que a construída pelo pintor sobre si
próprio?
O autorretrato de Maria Keil (1914-2012), pintado em 1941 (simples coincidência
ou curiosidade, a inversão dos dois últimos algarismos com o ano do seu
nascimento?), com 27 anos de idade, C.M. Silves, lembra o autorretrato de
Aurélia de Sousa, anterior em cerca de quatro décadas, sobretudo pelo colorido,
modernidade e firmeza da expressão, já que a simplicidade sedutora e a
articulação com a prática da pintura ' no recurso à representação do reverso de
um quadro ' distanciam Maria Keil da solidão de Aurélia, numa época que pouco
tinha a ver com o início do século, apesar de o tempo ser de guerra e de
insegurança.
Por esse mesmo autorretrato ' de indiscutível contributo para a afirmação da
2ª. geração modernista, que era a sua ' recebeu Maria o prémio Amadeo de Souza-
Cardoso do mesmo ano de 41. É como pintora que se autorretrata, representando-
se junto ao reverso de um quadro, olhando firmemente o espelho/observador. Um
aparente paradoxo está, porém, subentendido na imagem (no sentido em que o
conceito pode indicar como propósito contra a opinião comum), o qual se pode
sintetizar na seguinte interrogação: como pode um quadro ser representado no
seu reverso, entrando assim em conflito com a ideia de representação pictural?
Aparente paradoxo, visto que a imagem pictórica é uma realidade fictícia, o
quadro é uma representação, o seu reverso apresenta o objeto que lhe serve de
suporte, é o negativo da representação a que alude, sugerindo a ideia de
metáfora. Poder-se-á então especular que para conhecer o reverso do quadro há
que dar-lhe a volta? Quereria Maria Keil lembrar no seu autorretrato a
dialética da sua meditação sobre o quadro, na dupla qualidade de imagem/
representação e objeto? Ou questionar no simulacro da aparência a própria
essência do autorretrato?
O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994), pintado em 1951 M.N.S.R.,
com os seus 39 anos, constitui uma obra notável e verdadeiramente singular em
termos plásticos. O efeito imediato de surpresa, em parte causado pela dimensão
da figura que ocupa a quase totalidade do quadro, deriva também da consciência
estética manifestada no tratamento da iluminação, numa luminosidade dourada
projetada sobre as tonalidades negras e acinzentadas das roupagens, dominando a
composição, estando esta estruturada em planos onde o geometrismo impera.
Camarinha optou por uma representação de si como indivíduo, construindo uma
autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor da expressividade do
rosto e da própria pintura: a aproximação ao espectador é transmitida na
linguagem gestual da imagem de prontidão sentada, o olhar baixo e fixo no
espelho, em interrogação irónica, as mãos entrelaçadas e pousadas sobre os
joelhos, em atitude expectante e de intensa vitalidade narcísica.[47].
Cruzeiro Seixas (1920-) produziu, cerca de 1958, um autorretrato tridimensional
que, pelo insólito e pela complementaridade, justifica a sua abordagem no
presente contexto: óleo e gouache sobre osso, col. J. P. F., Lisboa. O impacto
imediato que acompanha o efeito de surpresa é perturbador, em grande parte
ancorado na coragem de exposição material de uma ruína física, insinuando a
metáfora de outra ruína, certa e transversal ao comum dos mortais, e
justificando a reflexão de Derrida sobre o autorretrato: O aspeto central da
tese de Derrida reside, pois, na inevitabilidade do autorretrato como ruína,
presente desde o primeiro olhar sobre o modelo (outro), condenado à condição de
fragmentação da reflexão da imagem e à dependência do envolvimento com o
espectador. É o simulacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a
imaginação e fomenta a criatividade artística.[48].
Humor provocatório, alguma crueldade, intencionalidade reflexiva, atravessam a
obra e são pretexto para o autor desmontar a polissemia do autorretrato ' é um
olhar inquieto e irónico, aquele que Cruzeiro Seixas transferiu para o objeto
artístico, que alegoricamente alude às práticas artísticas inerentes à
humanidade pré-histórica e marca a tentativa de acerto temporal com as
vivências culturais atualizadas com o seu tempo, e as propostas de criação
artística vigorantes no exterior de Portugal.
O autorretrato não é reflexo do espelho mas o próprio espelho, no qual o
criador se projeta e sobre o qual o espectador reflete, ao rever-se no
condicionamento da sua libertação e na sua impotência face à sujeição
inexorável ao tempo.
Em 1972 José Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato, C.A.M. da F.C.G.,
sob a temática da sua condição de artista, lembrada na representação da mão que
segura o pincel, centrada na parte inferior da composição. Quadro dentro do
quadro, a autoimagem por semelhança impõe-se pela frontalidade da reflexão no
espelho e pela subjetividade transmitida no vigor do olhar fixo, numa linguagem
figurativa atualizada com a recente produção artística europeia, frequentada e
desenvolvida com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian: Amesterdão, Bruxelas,
Madrid (ou Paris) no contacto com o Grupo Kwy, ou no convívio com artistas
inovadores como Lourdes Castro, Costa Pinheiro, Christo, etc.
O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura, emergindo do
cromatismo, e da luminosidade vibrante, e sendo emoldurado nas áreas
periféricas cimeiras pelo labirinto de pequenas construções geométricas, numa
síntese que apela à vivência corporal e à presença efémera, mas intensa, do
tempo.
A autorrepresentação de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985, intitulada
Paisagens do Atelier, col. do autor, é portadora de uma profunda
autoconsciência da representação, por sua vez geradora de uma complexidade
inesgotável, sustentada na reflexão em torno da existência. Autorrepresentação
integrada no ciclo emblemático denominado la fenêtre de ma tête, cabeça/sede
das ideias na confluência do ato expressivo, enquanto utopia e erudição, é
signo de criação artística, mas também poética, preocupação eclética a
justificar a afirmação do percurso individual de Costa Pinheiro,
reconhecidamente europeu. A cabeça/janela que abre para a imaginação, que rasga
as fronteiras impostas pelo espaço e pelo tempo, em sugestão do diálogo
interior construído na experiência da invenção de outro dentro de si mesmo (em
negação do beco sem saída da emigração vivenciada?).
Exteriormente à cabeça, perfilada, vazia e colorida de azul ' a cor tão
característica do pintor ' o registo do cavalete e do pote com os pincéis,
instrumentos mediadores do ato da pintura, enquanto que dentro do quadro mas
pairando sobre a cabeça ' que se sabe ser a sua pela marca do também
característico bigode que o individualiza ' a informação la fenêtre de ma
tête precisa o poder da imaginação, não contida nos limites do corpo orgânico.
Pelo contorno se destaca da escuridão a cabeça iluminada, na construção de uma
nova imagética assumida na rutura com a segurança da submissão da picturalidade
à estética, em opção pelo desafio da linguagem metafórica: transparência da
abstração e sobreposição das ideias relativamente ao sujeito do ato criativo.
A autorrepresentação de Costa Pinheiro é síntese óbvia do movimento do
espírito, desde as sensações às ideias, ( ) dialética aporética entre o
próprio e a representação.[49].
Mais que a janela, a autorrepresentação de Costa Pinheiro reflete o estado de
autoconsciência face à importância dos sonhos, é afirmação da subjetividade, é
testemunho da libertação do pintor que, através da autorrepresentação, se
reencontra e supera a persona, no sentido da máscara.
Num compartimento de interiores ' mas onde se rasga uma janela, deixando ver
uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tons de azul celeste
e pela luminosidade convidativa ao esvoaçar dos pássaros ' e em grupo familiar
Paula Rego (1935-) autorretrata-se, col. da autora, enfatizando a importância
do assunto no próprio título do quadro ' Autorretrato com Netos ' pintado em
2001-2002 e cuja integração na primeira agenda (2010) que a Casa das
Histórias destina ao público, após a inauguração em 18 de setembro de 2009,
adquire aqui particular significado.
Parábola em torno da família e da condição feminina, temas que assume sem
dissimulação, mas simultaneamente com referência explícita à pintura.
Estratégia desarmante, no confronto entre a seriedade do tema da família,
apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundo da cena, e o
posicionamento simbólico da artista, voltada em direção ao espectador,
afetivamente protegendo com o braço direito uma neta, mas usando a própria
corporalidade como contraponto ao peso do quadro que atrai o olhar do
observador. Quadro dentro do quadro, ou a linguagem metafórica da
autorreflexão, centrada entre a lembrança das exigências da vida familiar e o
universo imaginário e tenso, próprio da criatividade a que a pintura pendurada
alude.
A articulação entre as duas situações da vida da mulher, por um lado, e a
ligação entre dois períodos de vivências, maturidade e infância (veja-se o
registo de brinquedos e dos característicos cães de Paula Rego), corroboram o
poder da narração das histórias que a artista confessa terem tido importância
decisiva na construção do seu imaginário e da sua visão.
A família contextualiza a perspetiva do feminismo, como epicentro identitário,
no confronto com a necessidade da criação artística. Refere Paula Rego: As
minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu
conto são histórias que as mulheres contam.[50].
Tal visão como estratégia de sobrevivência pessoal, está generalizada entre a
crítica: Não é comum dar às mulheres a oportunidade de se reconhecerem na
pintura, muito menos a de verem o seu mundo privado, os seus sonhos, no
interior das suas cabeças, projetados numa escala tão grande e tão
despudoradamente, com tanta profundidade e tanta cor.[51].
O autorretrato de Paula Rego, retomando a figuração, é afinal pretexto para
glosar emoções e afetos, criatividade e identidade.
Conclusão
Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na época
contemporânea, múltiplas são as possibilidades da sua abordagem. A própria
palavra autorretrato é uma palavra de vocação polissémica. Nela cabe o que é
específico da criação humana, culturale visual,em associação com o cruzamento
entre intelecto e técnica: a sede da ficção reside na tradução individual '
através do registo da autoimagem pictural ' de uma intencionalidade específica
do próprio eu. Ainda que continuem certamente a suscitar amplas discussões,
questões como a identidade, a intelectualidade, a cultura ou a técnica,
relativamente à abordagem da autorretratística, não será demais lembrar que não
é aleatório o facto de o autorretrato introspetivo por semelhança, que se
desenvolve em Portugal no século XIX, ter prolongado a sua presença entre nós
nos anos 70 do século XX, paralelamente com algumas manifestações de abertura a
outras soluções que se foram afirmando sobretudo a partir do meado do século,
assinalando a abertura do nosso país ao exterior (em grande parte com a
intervenção dos bolseiros apoiados pelo mecenato da Fundação Calouste
Gulbenkian) e na sequência da revolução de 1974, acompanhando as transformações
sócio-culturais e a aproximação mais atualizada e próxima do cosmopolitismo.
Em termos imagéticos, os traços individualizados que no autorretrato
identificam a referência da persona/individualidade irão depois dar lugar à
sobreposição do ato criativo em si, e o autorretrato transforma-se então em
intencionalidade de gesto de negação, destruição, provocação, secundarizando o
sujeito da criatividade.
As incertezas universais ' mesmo quando humildemente expostas ' esbatem a
segurança no reconhecimento da visão e da perceção transmitidas pelos sentidos
humanos. A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se e confundem-se, nos
nossos tempos, a memória que assegura a identificação dos traços fisionómicos
perde sentido, e a eternidade é equivalente do hoje e do agora. O
autorretrato tende a converter-se em registo do efémero, do transitório e do
vazio, acompanhando a eterna busca do sentido da vida: