Menço ou minto? Regularização de paradigmas verbais
*
1-Introdução
A variação e a mudança são duas das características que definem a natureza das
línguas naturais. Ao longo dos séculos o português sofreu mudanças e conheceu
períodos de instabilidade em que diferentes formas estiveram em concorrência.
Assim, um estudo variacionista será, seguramente, o melhor caminho a seguir na
análise diacrónica de uma mudança linguística.
Este trabalho tem como objetivo a observação de um grupo de verbos que, pela
sua evolução fonética, constituiu um tipo de padrão especial e que,
influenciados por diversos fatores, nomeadamente fatores de ordem psicológica e
cultural, passaram por um período de variação que resultou na regularização de
uns, mas não de outros. Este período abrangeu cerca de três séculos (séculos
XIII, XIV e XV).
A fim de compreender o modo como se realizou a alteração na morfologia verbal
deste grupo de palavras, é necessário estudar o período em que o fenómeno se
deu e os fatores que deram origem a mudanças não fonéticas, como, por exemplo,
a analogia.
Com base em documentos literários e notariais galegos e portugueses, far-se-á a
sistematização e a análise da variação que se regista para este grupo de verbos
que apresentaram, em resultado da ação das leis fonéticas, o radical de
primeira pessoa do singular do presente do indicativo e de todas as pessoas do
presente do conjuntivo fechado por sibilante, diferente do radical das
restantes formas verbais.
2-Os Verbos de Padrão Especial em Português
A evolução fonética regular está na base de grande parte das irregularidades no
paradigma verbal, que ainda hoje se verificam na língua. Estes verbos
irregulares a que Mattos e Silva (2008: 412-425) dá o nome de verbos de padrão
especial' são por esta autora agrupados por tipo de irregularidade em quatro
subgrupos diferentes:
Subgrupo 1: verbos que apresentam variação no lexema das formas do não-perfeito
e têm lexema específico para as formas do perfeito, com ou sem variante (p. ex.
dizer);
Subgrupo 2: verbos que apresentam lexema invariável para as formas do não-
perfeito e têm lexema específico para as formas do perfeito (p. ex. saber);
Subgrupo 3: verbos que apresentam variação nos lexemas do não perfeito, sendo o
lexema das formas do perfeito a variante mais generalizada do lexema do não-
perfeito (p. ex. arder, crescer);
Subgrupo 4: verbos de PP especial, tradicionalmente chamado particípio forte
(p. ex. abrir).
O primeiro subgrupo é constituído por verbos em que a consoante final do
radical se modifica foneticamente em contacto com a semivogal [j], embora não
na primeira pessoa do singular do presente do indicativo nem nas formas do
presente do conjuntivo. A consoante oclusiva latina [k] sonorizada pelo
contexto intervocálico mantém-se, enquanto nas restantes formas fricatiza para
[dz] > [z] (cf. DICO >digovs. DICIS > dizes). A oclusiva [g], em verbos como
cingir, também se manteve no conjuntivo e na primeira pessoa do indicativo, mas
alterou-se para a africada [d?] e mais tarde para a fricativa [?] nas outras
formas do presente do indicativo. Esta distinção rapidamente desapareceu na
língua, tendo a consoante [g] sido substituída por [?] por analogia com as
outras formas. Contudo, em erguer a regularização foi diferente da dos
restantes verbos, uma vez que a consoante [g] do radical da primeira pessoa
predominou sobre as outras (cf. erges > ergues) (Piel 1989: 24-25).
No subgrupo 2 constam verbos como saber, prazer, caber e dar, que são por sua
vez subcategorizados em dois tipos. No tipo a) agrupam-se os verbos em que se
deu uma metátese da semivogal [j] para a sílaba anterior nas formas do presente
do conjuntivo. É o caso do verbo saber: sab[j]a(lat. sapeat) > saiba. Nas
formas dos tempos do perfeito deu-se também uma metátese (SAPUI- > soub-), que
resultou do deslocamento do u para a sílaba anterior. No tipo b) encontramos o
verbo dar, que apresenta duas vogais temáticas diferentes: VTa para os tempos
do não-perfeito e VTe para os tempos do perfeito (cf. dás vs. deste) (Mattos e
Silva 2008: 412-425).
Ao terceiro subgrupo, constituído pelos verbos que têm um lexema para a
primeira pessoa do singular do presente do indicativo e para todas as formas do
presente do conjuntivo oposto ao lexema dos outros tempos, pertencem:
(i) verbos como ARDEO > arço, AUDIO > ouço, MENTIO > menço, PETIO > peço, em
que a sibilante é proveniente da palatalização dos conjuntos latinos [tj] e
[dj]. Esta mudança fonológica deu-se pela presença da semivogal [j], que afeta
as consoantes correspondentes a <c>, <t> e <d>, transformando-as em <ç> = [ts]
> [s], fenómeno que não só se manifestou em formas verbais, como também em
palavras de outras classes (Piel, 1989: 25). Contudo, observando o elenco de
verbos em que esta palatalização se deu no português arcaico, constatamos que,
por analogia com as outras pessoas do presente do indicativo, alguns destes
verbos readotaram as consoantes oclusivas [d] e [t] (ardo e minto), ao passo
que outros mantiveram a forma correspondente à evolução fonética da palavra
(ouvir, pediremedir) (Maia, 1995: 24-25);[1]
(ii) verbos incoativos como acaecer, conhocer, nacer, crecer (Mattos e Silva,
2008: 412-425), que apresentaram evoluções diferentes entre si até aos dias de
hoje. Este tipo de verbos provém de uma construção latina que consistia na
inserção de um infixo <sc> que se associava à vogal temática dos verbos,
conferindo-lhes, assim, um valor de início de ação, pelo que a este tipo de
verbos se dá o nome de verbos incoativos (do lat. inchoare). Esta partícula
incoativa, que se podia aplicar a verbos de qualquer uma das quatro conjugações
latinas, dava sempre origem a verbos de terceira conjugação (tema em e,-SCERE),
que se fixaram em português na segunda conjugação, como seria de esperar
(Costa, 2007: 13-27). Deste modo, coexistiam dois verbos com a mesma base, mas
com um valor aspetual diferente cf. DORMIRE (dormir) vs. ADDORMISCERE
(adormecer, começar a dormir'). Hoje em dia, alguns destes verbos nem sempre
contêm este valor incoativo (MERESCERE > merecer), embora esta dicotomia se
mantenha para muitos dos verbos desta classe.[2]
A evolução fonética que a sequência <sc> sofreu deu origem a diferentes
irregularidades. Este morfema, constituído por duas consoantes, era produzido
em latim como uma fricativa línguodental surda [s], na posição de coda da
primeira sílaba, e como uma oclusiva velar surda [k], na posição de ataque da
segunda sílaba. Esta última consoante já terá chegado ao português como uma
consoante africada predorsodental [ts], tendo resultado mais tarde na fricativa
[s] que hoje existe na língua. Visto que nos primórdios do português a
consoante correspondente a <s> ainda não havia palatalizado em [?], sendo
provavelmente produzida como [?], pelo menos em grande parte das regiões de
Portugal (tal como se verifica hoje em certas regiões setentrionais, onde ainda
se conservam as sibilantes apicais), esta terá sido assimilada pela consoante
[s], correspondente a <c> /<ç>, simplificando assim num só fone, devido ao
elevadíssimo número de traços distintivos que passaram a partilhar (Costa,
2007: 13-27). Assim, esta sequência passou a representar-se maioritariamente
como <c> /<ç>, representação substituída, em muitos verbos, pela grafia
etimológica, o que influenciou inclusivamente a maneira como estas palavras são
pronunciadas. Portanto, esta mudança fonética foi provocada por fatores
externos à língua, nomeadamente histórico-culturais, uma vez que a sequência
<sc> foi recuperada por volta dos séculos XVI / XVII para várias palavras de
diferentes classes, numa tentativa de reaproximação do português às suas raízes
latinas. Esta tentativa não abrangeu todos os verbos incoativos existentes no
português,[3] o que resultou nas diferentes formas que hoje existem na língua
(nasco > nasço vs. paresco > pareço).
Relativamente ao subgrupo 4, este é constituído pelos verbos de particípio
passado irregular, tradicionalmente chamados particípios fortes, já que são
acentuados no seu radical e não na vogal temática, tal como acontece com os
particípios regulares. Também estes se subdividem.
(i) No primeiro grupo, encontramos verbos como abrir, escrever e cobrir, cuja
construção de particípio passado provém do étimo latino ao qual acrescentamos
os morfemas nominais de género e de número (cf. abr- / abert-).
(ii) No segundo grupo, o particípio passado constrói-se a partir do radical
único do verbo, acrescentando-lhe os morfemas de género e número. A este
subgrupo pertencem verbos como aceitar, juntar e salvar - cf. aceitar/ aceite
(Mattos e Silva, 2008: 412-425). Durante o período arcaico estas formas
coexistiram com outras (acesas / acendudas). O mesmo se verifica nos dias de
hoje, em que muitos particípios passados irregulares são substituídos pela sua
vertente regular, dependendo do contexto em que surjam (morto / matado).
Outros, ainda, desapareceram em favor de formas regulares que eliminaram a
forma etimológica do particípio passado (coit- / cosid-) (Mattos e Silva, 2008:
412-425).
Como vimos, as irregularidades inerentes aos verbos de padrão especial do
português são variadíssimas. Por essa razão, pretende-se estudar e analisar
mais detalhadamente os verbos pertencentes ao terceiro subgrupo, que apresentam
o lexema da 1ª pessoa do presente do indicativo e de todas as pessoas do
presente do conjuntivo terminado em sibilante. Pretende-se, igualmente, estudar
os fenómenos que levaram à regularização de muitas destas formas. Entre eles,
encontra-se a analogia, que explica algumas mudanças morfológicas destes
verbos.
3-A analogia
A questão das mudanças analógicas é muito importante para este estudo, uma vez
que justifica a maioria das regularidades em paradigmas onde, devido a mudanças
resultantes de leis fonéticas, encontraríamos irregularidades.
O que são, então, as leis fonéticas e o que é a analogia? As mudanças fonéticas
são regulares e afectam qualquer signo dentro do mesmo contexto fonológico,
independentemente da categoria da palavra ou da função morfológica que o
constituinte afetado desempenha na palavra em que se assinala este tipo de
mudança. Este carácter cego da evolução' dos sons justifica-se pelo facto de
que as mudanças fonéticas seguem uma lógica diferente da lógica do sistema
linguístico, isto é, operam meramente a nível da mudança sonora (Lucchesi,
1998: 77-78). As mudanças analógicas, contrariamente às leis fonéticas, têm uma
motivação mais pragmática e são reflexo da representação mental que os falantes
têm das palavras que conhecem, estabelecendo relações associativas entre elas.
Vejamos o modo como estas mudanças ocorrem e o tipo de relações subjacentes a
este fenómeno.
3.1-A ação niveladora da analogia nos paradigmas verbais
Silva (1998: 23) exemplifica os diferentes tipos de regularização analógica
dentro do quadro da flexão verbal do português:
1- por modelos próprios do verbo ' geralmente quando ocorre a regularização dos
radicais que, resultantes de leis fonéticas, se tinham tornado estranhos à
maioria da conjugação (arço, ardes > ardo, ardes);
2- por esquemas alheios, de outros verbos, mas ainda dentro da mesma classe.
Está neste caso a regularização dos morfemas sufixais que exercem uma força
coercitiva de conjunto (dei, deste, dei (arc.) > dei, deste, deu); mas também o
podemos ver no aparecimento de algumas formas fracas de perfeito de verbos que
primitivamente tinham perfeitos fortes, exercendo-se a força reguladora
simultaneamente no radical e nas desinências (jouve, crive > jazi, cri).
As regularizações que se operam no grupo de verbos que forma o nosso objeto de
estudo, isto é, os verbos pertencentes ao subgrupo 3, segundo a classificação
de Mattos e Silva (2008), constituem o primeiro tipo de processo de analogia,
de acordo com o quadro acima apresentado. Para além de apresentar a
classificação dos diferentes tipos de analogia, dentro do quadro da flexão
verbal do português, Silva (1998: 21) refere, ainda, que a mudança analógica
nos paradigmas verbais (e não só) deriva de associações que se estabelecem na
mente do falante e que podem ser de três tipos:
(i) Funcionais ' é o caso da desinência -eu, que substitui -ei na terceira
pessoa do singular dos pretéritos perfeitos fracos da segunda conjugação. O
falante associa este morfema a uma função específica, destruindo, deste modo, a
ambiguidade anteriormente existente.
(ii) Semânticas ' aplica-se a verbos com significados semelhantes ou opostos,
que adotam as características um do outro. Exemplo deste tipo de fenómeno é o
particípio passado do verbo ouvir, muitas vezes produzido como ouvisto, à
imagem de visto.
(iii) Morfológicas' um verbo afectado por este tipo de associação é jazer, já
que, durante o período arcaico, apresentava o radical JASC- na primeira pessoa
do singular do presente do indicativo e todas as pessoas do presente do
conjuntivo à semelhança dos verbos incoativos, que também apresentavam dois
radicais diferentes nas formas do presente.
A analogia, que atua no sentido de nivelar' a língua, corrigindo as
irregularidades produzidas pelas leis fonéticas, dá muitas vezes origem a novas
irregularidades, criando formas que concorrem com a forma original resultante
da sua evolução fonética. Esta situação provoca um desequilíbrio no sistema,
uma vez que as novas formas ficam em variação com as antigas, o que pode
resultar no desaparecimento de uma das formas ou dar origem a mudança, numa
tentativa de voltar a equilibrar o sistema, através de um emprego restrito e
particular para cada uma das formas resultantes, na alteração semântica de
alguma ou no desaparecimento quer da forma analógica quer da forma etimológica
(Alonso, 1989: 75-78).
A analogia é tradicionalmente classificada em três diferentes tipos:
(i) nivelação analógica (que resulta na diminuição da alternância nos
paradigmas) ' um caso ilustrativo é precisamente o verbo arder, que constitui
um dos verbos em estudo neste trabalho. Visto que a evolução fonética das suas
formas deu origem a uma irregularidade - neste caso, a existência de dois
lexemas para as formas do presente - um dos lexemas foi eliminado, passando a
existir uma só forma para o radical do presente (arço, ardes > ardo, ardes).
(ii) extensão analógica (que resulta na criação de alternância em paradigmas em
que ela não existia) ' este tipo de analogia revela-se em palavras como
acordos, cuja vogal do radical se pronuncia frequentemente como [?], à imagem
do que acontece com palavras como porcos (p[?]rcos). A alternância vocálica que
existe entre as palavras p[o]rco, p[?]rca e p[?]rcos deve-se a uma harmonização
vocálica que se deu na palavra porcu, devido à presença da vogal final [u], o
que não ocorre com as duas outras palavras, já que as suas vogais finais ([a] e
[o]) não são altas. Porém, a palavra acordo não sofreu nenhuma harmonização,
sendo que a vogal [o] do radical provém da evolução fonética da palavra latina,
tanto no singular quanto no plural.
(iii) criação analógica (que consiste na adição ao léxico de uma palavra que se
relaciona com outra já existente) ' um exemplo deste tipo de criação é a
palavra cheeseburger, que surgiu pela substituição de um segmento da palavra
hamburger ' ham (fiambre) ' que, apesar de não ser um constituinte morfológico
da palavra, foi interpretado como tal (Marquilhas, 1996: 578-579)
Para os estruturalistas, a analogia constitui um tipo de mudança que não
pressupõe uma alteração no sistema (Alonso, 1989: 76). De facto, consiste na
imitação regular por parte dos falantes, criando determinadas construções que
se aproximam de outras já presentes na língua. Deste modo, dá-se uma
substituição de formas anteriormente existentes no sistema linguístico. Como
este tipo de regularização não é sistemático, afeta apenas algumas formas e,
visto que a analogia é um fenómeno de natureza psicológica' e não mecânica'
(como são as leis fonéticas), a sua ocorrência é imprevisível. Assim, a sua
abrangência não é total, o que se traduz numa atuação esporádica' (Marquilhas,
1996: 578-579). Trata-se de um fenómeno que não depende simplesmente de uma
tentativa de equilibrar formas onde se encontra desproporção', mas é reflexo
de um conjunto de regras já estabelecidas no sistema gramatical dos falantes,
que relacionam forma e função. Estas regras acabam por se estender a novos
casos, aos quais não eram anteriormente aplicadas.
O tipo de mudança analógica que diz respeito aos verbos aqui estudados é a
nivelação analógica, pois estas regularizações (arço, ardes > ardo, ardes)
acabam com a existência de dois radicais verbais para o presente do indicativo
e do conjuntivo em algumas formas. Pretende-se avaliar cada uma das formas
verbais deste tipo e analisar a sua evolução, tentando perceber que fenómenos
ocorreram na regularização de algumas delas, de que maneira atuou a analogia
nestas mudanças e em que casos não é possível explicar linguisticamente as
alterações que se deram no paradigma verbal.
4-Dados linguísticos
Neste ponto pretende-se fazer uma análise sistemática da evolução dos verbos
que apresentam dois radicais para o presente ' um para a 1ª pessoa do singular
do presente do indicativo e todas as formas do conjuntivo e um para as
restantes formas do presente do indicativo.
Antes de passar ao estudo dos dados recolhidos é importante fazer uma breve
descrição dos documentos que constituem o corpus deste trabalho. Estes foram
retirados de corpora em formato digital, que estão disponíveis online: Corpus
informatizado do Português Medieval, Tesouro Medieval Galego-português e
Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, sendo que os textos selecionados
abrangem o período entre os séculos XIII e XVI, e são provenientes de diversas
regiões de Portugal e da Galiza. Estamos conscientes de que a distribuição
geográfica destes documentos peca por haver mais registos de textos galegos[4]
e do norte de Portugal do que do sul. Em contrapartida, procurámos utilizar
documentos de diversos tipos, de modo a melhor avaliar a evolução das formas
verbais em estudo em diversos registos textuais.
Importa acentuar que o estudo que se realizará será mais qualitativo do que
quantitativo, devido à referida discrepância na proveniência dos textos a
estudar ou a falta de informação referente à sua origem, já que há muitos
textos cuja procedência não é certa. Assim, a análise dos dados a nível
geográfico contemplará apenas as ocorrências de textos cuja proveniência se
conhece. A análise diacrónica destes verbos será, por isso, o principal alvo
deste trabalho.
4.1-Verbo sentir
Antes de observar o comportamento deste verbo no período arcaico, apresenta-se
abaixo um quadro com todas as ocorrências[5] pertinentes para o presente
estudo, ou seja, todas as formas do presente do conjuntivo e 1ª pessoa do
singular do presente do indicativo.
Tabela 1- Sentir
_________________________________________________________________________
|__|Presente_do_indicativo____________|Presente_do_conjuntivo_____________|
| |Forma |Forma variante |Forma |Forma variante |
|__|etimológica|_____________________|etimológica|______________________|
|P1|senço_(2)__|sinto_(39),_sento_(5)|____________|______________________|
|P2| |____________|sintas_(1)____________|
|P3| |sença_(3)__|sinta_(8),_senta_(2)__|
|P4| |____________|sintamos_(7)__________|
|P5| |sençades_(3|______________________|
|P6|__________________________________|____________|sintam_(2),_sentam_(1)|
Há, para este verbo, dois radicais que concorrem com o radical etimológico,
cuja diferença reside precisamente na vogal do radical. Note-se que a forma do
radical que se perdeu, SENT-, é a mesma das restantes formas do presente (cf.
sent-es) e, no entanto, não foi a que vingou, mas sim SINT-. Isto mostra-nos
que a analogia actua de dois modos diferentes. Além da nivelação analógica na
regularização deste grupo de verbos, com a generalização de uma só consoante
final do radical de todas as formas do presente, deu-se também uma extensão
analógica, que criou uma alternância vocálica, anteriormente inexistente.
Poderá pensar-se que estes verbos, cuja vogal do radical se alterou, tenham
seguido o modelo de verbos como ferir, em que encontramos dois radicais
diferentes, com a mesma distribuição (firo vs. feres). Contudo, não há nenhum
indício suficientemente forte que nos permita afirmar que esta terá sido a
associação que levou à alternância vocálica. Outros fatores poderão ter
influenciado a evolução destas formas.
Registam-se poucas formas do presente para o verbo sentir. Porém, podemos ver
que há mais ocorrências de formas analógicas com o radical SINT- (58) do que
SENT- (8). Note-se, também, que a presença do radical etimológico SENÇ- é muito
pequena no corpus observado (8).
Vejamos a distribuição destes dados ao longo dos séculos em que houve variação.
No século XIII ainda não há registos de variação, encontrando-se apenas formas
verbais terminadas em sibilante. Destas formas etimológicas há ainda uma
ocorrência no século XIV, a par das duas formas analógicas acima referidas
(SINT- e SENT-), que predominam neste período. De acordo com estes dados, o
século XIV parece ser o período em que se regista maior variação para este
verbo, havendo um número bastante significativo de formas com o radical SENT-
(33,3%), o que nos leva a crer que a extensão analógica que ocorreu nestas
formas do verbo sentir possa ter sido posterior à nivelação analógica que se
manifestou nos restantes verbos deste grupo, eliminando qualquer tipo de
variação paradigmática para o presente. Contudo, não se poderá afirmar
categoricamente que tenha sido essa a ordem da evolução destas formas verbais.
Os dois processos analógicos sofridos por este verbo podem ter aparecido na
língua mais ou menos no mesmo momento, de um modo independente. Devido à
escassez de dados referentes a este período, não nos é possível tirar
conclusões claras neste sentido. No entanto, o facto de o radical SENT- se
registar predominantemente no século XIV leva-nos a colocar esta hipótese,
especialmente porque os restantes verbos deste grupo, à exceção do verbo
mentir, apenas sofreram um tipo de analogia ' o nivelamento analógico.
No século XV só se registam duas ocorrências do radical SENT-. Como seria de
esperar, as formas etimológicas deste verbo já se encontram extintas, o que
significa que durante este período a pouca variação existente aponta, já, para
a estabilização da mudança.
4.2-Verbo perder
Tal como acima vimos para o verbo sentir, também perder apresentou, durante o
período arcaico, três radicais diferentes para as formas do presente do
conjuntivo e primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Ao
contrário de todos os outros verbos aqui em estudo, perder foi o único em que
se deu uma mudança não fonética no lexema que não resultou na eliminação da
alternância da consoante final do radical, antes numa alteração dessa mesma
consoante.
Tabela 2-Perder
_____________________________________________________________________________
|__|Presente_do_indicativo__________|Presente_do_conjuntivo___________________|
| |Forma |Forma variante |Forma |Forma variante |
|__|etimológica|___________________|etimológica|____________________________|
|P1|perço_(18)_|perco(12),_perdo(2)|____________|perca_(3)___________________|
|P2| |perças_(1)_|percas_(1)__________________|
|P3| |perça_(49)_|perca(297)_perda(21)________|
|P4| |perçamos_(3|percamos_(9)_perdamos_(2)___|
|P5| |perçades (6|percades (207), per-dades(2)|
|__| |____________|perdaes_(1)_________________|
|P6|________________________________|perçam_(5)_|percam_(73)_________________|
Para este verbo, registaram-se bastantes ocorrências, como se pode ver, o que
já nos permitirá fazer uma análise diacrónica e geográfica destas formas
verbais.
Olhando para o conjunto de todas as ocorrências vemos que, à semelhança do que
se observou para sentir, as formas resultantes da ação da extensão analógica
sobre este paradigma não se fixaram na língua, tendo o radical PERC-
substituído as outras duas formas concorrentes (PERÇ-, PERD-). De facto, esta é
a forma que mais vezes se registou, seguida da diretamente resultante da forma
etimológica. As formas em PERD- são as menos frequentes na nossa amostra (4%).
Analisemos, então, como se distribuem estas formas diacronicamente:
Relativamente aos documentos portugueses do século XIII, 48% das ocorrências
que se registam mantêm a sua forma etimológica, o que mostra que este foi o
século que testemunhou o maior período de variação, sendo que o surgimento das
formas variantes tem que ter sido anterior a esta época, embora no nosso corpus
não se registem dados anteriores referentes a este verbo.
Também se observa a existência de dois radicais não etimológicos, embora a
forma PERD-, igual ao radical das restantes formas do presente, ocorra com
menor frequência (18% de todas as ocorrências) do que a forma PERC-, que
prevaleceu.
As ocorrências referentes ao século XIV demonstram que o lexema etimológico
corresponde a 4,2% das ocorrências de perder neste século, o que já aponta para
uma preferência dos falantes pelo uso do radical PERC- neste grupo de formas do
presente. O uso da forma PERD- diminuiu bastante relativamente ao século XIII,
constituindo agora apenas 3,5% das ocorrências.
No século XV, o radical etimológico PERÇ- representa apenas 4,5% destas formas
verbais, não havendo uma grande diferença quanto ao uso desta forma
relativamente ao século anterior. Quanto ao radical proveniente da ação da
extensão analógica neste paradigma (PERD-), é nítido que o seu uso sofreu um
decréscimo acentuado, registando-se apenas duas ocorrências no nosso corpus
(0,7%), pelo que se pressupõe que nesta época provavelmente já não pertencesse
ao léxico ativo dos falantes. Mais uma vez, observa-se que o radical PERD-,
igual à forma usada para as restantes pessoas do presente do indicativo, é
eliminado na língua, em favor de uma outra forma em que se regista alternância
no paradigma do presente.
Relativamente ao século XVI, podemos afirmar que os poucos dados recolhidos (18
ocorrências) corroboram as tendências que os demais dados faziam prever, sendo
que todos eles correspondem à forma do radical que hoje se regista. Contudo,
não é certo que durante este período não houvesse alguma variação. O reduzido
número de ocorrências não nos permite presumir tal com absoluta certeza, mas
tudo indica que no século XVI o radical PERC- já se tivesse estabelecido na
língua como a única forma gramaticalmente aceite para a primeira pessoa do
presente do singular do indicativo e todas as pessoas do presente do
conjuntivo.
Em relação aos textos galegos, observa-se que o radical analógico PERD- surge
com baixíssima frequência no século XIV, acabando por não ocorrer nos séculos
seguintes nos documentos observados, o que é curioso, já que essa foi a forma
que se fixou na língua galega. A forma etimológica também regista um decréscimo
em favor da outra forma variante, PERC-.
4.3-Verbo arder
Arder é um dos verbos que pertencem ao elenco de verbos de padrão especial
pertinentes para este estudo. No entanto, a sua ocorrência na língua corrente,
contrariamente a verbos como perder, pedir ou ouvir, que pertencem ao
vocabulário quotidiano dos falantes, é bastante reduzida, pelo que as formas de
arder constituintes do nosso corpus se registaram também em número muito
reduzido. Assim, far-se-á a descrição e a distribuição diacrónica e regional
das poucas ocorrências deste verbo, tendo em conta que dificilmente se poderá
fazer alguma generalização a respeito das diferentes fases por que passou
durante o período de variação.
Tabela 3-Arder
_____________________________________________________________
|__|Presente_do_indicativo_____|Presente_do_conjuntivo________|
| |Forma |Forma variante|Forma |Forma variante |
|__|etimológica|______________|etimológica|_________________|
|P1|____________|______________|____________|_________________|
|P2| |____________|_________________|
|P3| |arça_(3)___|arda(1),_arca_(1)|
|P4| |____________|ardamos_(1)______|
|P5| |____________|ardades_(1)______|
|P6|___________________________|____________|_________________|
Vemos nesta tabela que apenas se obtiveram sete formas deste verbo; o radical
etimológico e o analógico surgem praticamente com a mesma frequência. Observa-
se também uma forma com o radical ARC-, que, por ser uma ocorrência isolada,
talvez se possa considerar como uma questão meramente gráfica, uma vez que a
alternância <c> ~<ç> era bastante frequente nesta época. Porém, vale sublinhar
que a insuficiência de dados não permite averiguar qual terá sido a história
desta e das restantes formas de arder.
Todas as ocorrências se distribuem pelos séculos XIII e XIV; apenas uma provém
de um documento do século XIV. No século XIII encontramos o mesmo número de
formas etimológicas e variantes (3 ocorrências), embora, devido aos poucos
dados encontrados, não possamos ver qual seria a verdadeira tendência deste
verbo durante este período. A única forma detetada para o século XIV é formada
com o radical ARD-, tal como nos dias de hoje. Contudo, somos levados a supor
que, à semelhança do que se verifica com os outros verbos, as duas formas
tenham estado em concorrência até mais tarde.
Relativamente à distribuição geográfica destas formas verbais, não será
possível fazer a sua sistematização, já que se tem conhecimento da origem de
apenas três das ocorrências.
4.4-Verbo ouvir
Neste estudo, apenas se assinalam dois radicais alternativos das formas
relevantes do presente (OUÇ- e OY-). Note-se que o lexema OIÇ-, que hoje se
encontra em variação com a forma OUÇ-, ainda não se regista durante o período
arcaico, pelo menos nos documentos por nós analisados. Abaixo apresenta-se o
quadro com todos os dados encontrados referentes a ouvir.
Tabela 4-Ouvir
____________________________________________________________________
|__|Presente_do_indicativo_____|Presente_do_conjuntivo_______________|
| |Forma |Forma variante|Forma |Forma variante|
|__|etimológica|______________|etimológica__________|______________|
|P1|ouço_(59)__|oyo_(103)_____|ouça(2)______________|______________|
|P2| |ouças_(3)____________|______________|
|P3| |ouça(14)_____________|oya_(6)_______|
|P4| |ouçamos_(3)__________|______________|
|P5| |ouçais(3),ouçades_(1|)_____________|
|P6|___________________________|ouçam_(18)___________|oyam_(8)______|
Olhando para a distribuição destas formas, concluímos que os radicais variantes
apenas se registam na primeira pessoa do singular do presente do indicativo e
na terceira do singular e do plural do presente do conjuntivo. Contudo, estas
formas constituem 53% de todas as ocorrências obtidas.
Vejamos agora como se distribuem estas formas diacronicamente:
Para este verbo, encontram-se formas referentes aos séculos XIII, XIV e XV nos
documentos portugueses. Quanto aos galegos, os dados obtidos são todos
provenientes de textos que datam do século XIV. A distribuição destas formas é
nítida ' a forma etimológica permaneceu na língua portuguesa, aparentemente sem
ter estado em variação com a forma OY-, que encontramos em abundância nos
textos galegos e que constitui o radical utilizado hoje nesta língua.
4.5-Verbo pedir
A seguir a perder, pedir é o verbo em relação ao qual se encontram mais
ocorrências, o que nos permite uma análise mais detalhada dos fenómenos
envolvidos nesta mudança.
Tabela 5-Pedir
__________________________________________________________
|__|Presente_do_indicativo_____|Presente_do_conjuntivo_____|
| |Forma |Forma variante|Forma |Forma variante|
|__|etimológica|______________|etimológica|______________|
|P1|peço_(118)_|pido_(84)_____|peça_______|______________|
|P2| |____________|______________|
|P3| |peça_(14)__|pida_(3)______|
|P4| |peçamos_(3)|pidamos_(2)___|
|P5| |peçais_(1)_|pidades_(1)___|
|P6|___________________________|peçam_(7)__|______________|
Os dois radicais que se apresentam encontram-se em número bastante equilibrado,
sendo que a forma analógica corresponde a 41% de todas as formas. Importa
referir que, à semelhança do que se apontou em relação ao verbo ouvir, em pedir
o radical PID- foi o que prevaleceu na língua galega, pelo que a proveniência
dos documentos em que se encontra cada uma das formas estudadas é de grande
relevância na análise deste verbo. É provável que o uso de cada um dos radicais
seja característico de determinadas regiões, esperando-se que haja uma
preferência pelo radical variante pelo menos na Galiza e possivelmente no norte
de Portugal.
De acordo com as nossas expectativas, as formas analógicas de pedir predominam
nos textos galegos, correspondendo à totalidade das formas encontradas, o que
nos leva a concluir que este verbo poderá nunca ter tido um radical concorrente
dentro do que hoje constitui o território português. Não será, no entanto, de
excluir a hipótese de que possa ter havido alguma variação nas regiões
portuguesas circundantes da Galiza, apesar da inexistência de documentos
comprovativos.
Relativamente ao percurso que este verbo teve na Galiza, não se regista
variação no século XIII: as três formas encontradas são construídas com o
radical etimológico, não se distinguindo, portanto, das formas portuguesas. No
século XIV surgem as primeiras formas construídas com o radical PID-, embora em
número reduzido (16%), o que demonstra que a forma PEÇ- seria ainda a menos
marcada, durante este período. É no século XV que o lexema que hoje constitui o
radical do presente do verbo galego pedir se generaliza. Apesar de ainda se
assinalarem algumas formas verbais etimológicas (15%), já se adivinha o domínio
da nova forma, que se manterá na língua galega até hoje. Este verbo parece
seguir o padrão evolutivo do verbo ouvir, que já analisámos acima. A distinção
que passa a existir entre os radicais portugueses e os galegos poderá ter
origem na influência do castelhano sobre a língua galega, uma vez que as formas
inovadoras que surgem no galego são semelhantes às castelhanas já existentes.
4.6-Verbo mentir
Apesar de pertencer ao vocabulário corrente dos falantes, este é um verbo para
o qual não se registaram muitas ocorrências. Contudo, tentaremos examinar a sua
evolução ao longo dos séculos, em Portugal e na Galiza.
Tabela 6-Mentir
__________________________________________________________
|__|Presente_do_indicativo_____|Presente_do_conjuntivo_____|
| |Forma |Forma variante|Forma |Forma variante|
|__|etimológica|______________|etimológica|______________|
|P1|menço_(1)__|minto_(2)_____|____________|minta_(1)_____|
|P2| |____________|______________|
|P3| |mença_(2)__|minta_(2)_____|
|P4| |____________|______________|
|P5| |mençades_(4|______________|
|P6|___________________________|____________|______________|
A partir da distribuição que acima se apresenta, podemos perceber que a forma
etimológica e a variante tiveram uma presença relativamente equilibrada, ao
longo deste período, não havendo registo de um uso preferencial notório de uma
forma em detrimento da outra. No entanto, sabemos que cada século conta a sua
história, bem como cada lugar. Assim, observemos o modo como estas formas se
distribuem:
Curiosamente, apenas se obtiveram dados relativos ao século XIII e ao século
XV, pelo que o período de variação e transição não se regista. Porém, somos
levados a calcular que, durante o século XIV, as formas etimológicas tenham
coexistido com as formas analógicas.
5-Conclusões
A partir da sistematização e análise que foi feita relativamente a este grupo
de verbos que, em resultado da sua evolução fonética, constituem um tipo de
verbos de padrão especial, cujo radical das formas do presente do conjuntivo e
primeira pessoa do singular do presente do indicativo difere do radical das
demais formas verbais, chegámos à conclusão de que não é possível estabelecer
um padrão evolutivo comum a todos os verbos.
Ainda assim, podemos subdividir este grupo em quatro padrões distintos:
1º padrão ' constituído pelos verbos ouvir e pedir, para os quais se regista
variação a partir do século XIII, sendo que, até esse momento, os lexemas OUÇ-
e PEÇ- ainda não haviam sofrido a ação da analogia que, mais tarde, se
manifestou. Observamos também que as formas analógicas que se assinalam apenas
se encontram em textos galegos. Assim, com margem para dúvidas, podemos supor
que as formas etimológicas chegam ao português sem sofrer alterações, já que
também não passaram por um período de variação no território onde hoje se fala
português. Vale referir que as formas alternativas que surgiram nos textos
galegos para estes verbos são as mesmas que se registam na língua atual. Em
galego, o verbo oír não regularizou e o radical do presente do conjuntivo e
primeira pessoa do singular do presente do indicativo terminado em semivogal,
OI-, difere do radical das restantes formas, O- (oio, oes, oia), ao passo que
no caso do verbo pedir existe um radical verbal específico para todas as
pessoas do presente, que difere do radical dos restantes tempos (pido, pides,
pedi).
2º padrão ' constituído pelo verbo arder, que durante o seu período de variação
apenas apresentou dois radicais variantes para as formas do conjuntivo e
primeira pessoa do singular do presente do indicativo ' a forma etimológica e a
forma resultante da ação de nivelação analógica, que acabou por se generalizar,
tanto em português, como em galego.
Poderemos imaginar que a nivelação analógica tenha sido mais eficaz para este
verbo do que para os restantes, devido à sua reduzida frequência de uso,
comparado com os outros verbos (perder, pedir, ouvir, mentir e sentir), que
constituem vocábulos do quotidiano dos falantes. Embora o verbo arder não seja
dos mais raros, emprega-se em situações peculiares. Assim, observamos que o
significado, a pragmática, a iteração ou qualquer outra relação associada às
palavras interferem em questões morfológicas e fonológicas, o que justifica a
existência de quatro padrões distintos neste grupo de verbos.
3º padrão ' constituído pelos verbos sentir e mentir, para os quais se registam
três radicais alternativos durante o período de variação no português arcaico
(SENÇ-, SENT-, SINT- e MENÇ-, MENT-, MINT-) ' um correspondente à forma
etimológica, um outro proveniente de uma nivelação analógica (SENT-, MENT-) e
um resultante, provavelmente, de uma extensão analógica derivada da influência
dos verbos que apresentam alternância vocálica nos radicais do presente, como
ferir, dormir e correr (SINT-, MINT-). Esta última forma, que eliminou a
alternância da consoante final do radical mas introduziu uma alternância
vocálica, foi a que se fixou em ambas as línguas.
4º padrão ' constituído pelo verbo perder. Relativamente a este verbo, como já
foi referido, não se encontra uma explicação óbvia para a adoção do radical
PERC-, que concorreu com a forma etimológica PERÇ- e com PERD-, resultante da
nivelação analógica, e que, apesar de se distanciar da morfologia do radical
das restantes formas, foi adotada pelos falantes, mantendo assim a alternância
paradigmática já antes existente. Parece-nos, contudo, plausível assumir que a
variação gráfica <c> vs. <ç> existente na época possa estar na origem da
criação deste radical. Em galego, foi o radical PERD- que, pela ação da
nivelação analógica, prevaleceu, eliminado, assim, qualquer alternância em
todas as formas verbais.
Curiosamente, observamos uma ocorrência do uso de um radical terminado em <c>
relativa ao verbo arder (arca). Este caso isolado pode levar-nos a pensar que a
consoante alternativa seja apenas resultado da dita variação gráfica,
representando, portanto, a consoante sibilante do radical etimológico. O facto
de não haver mais registos desta forma corrobora a hipótese de que não existiu
realmente um radical terminado em consoante oclusiva para este verbo, o que
significa que a variação gráfica não terá afetado o verbo arder. Será então
legítimo perguntarmo-nos se este tipo de variação gráfica pode constituir a
verdadeira causa da variação e posterior mudança das formas do verbo perder? De
facto, não seria um caso único na história da língua portuguesa. Recordemos
como a inovação gráfica dos verbos incoativos influenciou a nossa língua,
alterando a pronúncia da consoante final do radical (nacer > nascer [naser] >
[na?ser] / [n??er]). Além disso, a frequência de uso do verbo perder é
nitidamente superior à do verbo arder, como acima já indicámos, o que levou à
existência de dois padrões evolutivos distintos para estes dois verbos .
A nível geográfico, observa-se que os documentos galegos apontam para
tendências diferentes, que adivinham desde cedo a separação linguística que
veio a dar-se posteriormente. Esta distinção começa a partir do século XIII,
acentuando-se nitidamente no século XIV, sendo que é no século XV que termina o
período de variação, apesar da existência de raras ocorrências de formas
etimológicas nos documentos galegos desta época, que seriam, com certeza,
consideradas formas marcadas e conservadoras para a maioria dos falantes, visto
que a grafia está sempre um passo atrás' da realidade linguística oral. Vale
referir que esta separação entre galego e português se deveu, em grande parte,
a fatores externos. No caso do galego, a influência do castelhano não pode ser
menosprezada. Os verbos oír e pedir são exemplos muito concretos desta
influência, dado que estas formas variantes, idênticas às castelhanas, e que
encontrámos em documentos galegos desde o século XIII, não surgiram em
documentos portugueses em nenhum momento do período em que os verbos
pertencentes a este grupo sofreram variação. Isto significa que enquanto a
variação e mudança que os verbos portugueses sofreram se pode justificar pela
ação da analogia (nivelação analógica ou extensão analógica), as mudanças
verbais do galego mostram como outros fatores, como o contexto histórico, podem
ter um papel determinante na evolução de uma língua. Não poderemos, porém,
afirmar que todas as mudanças que ocorreram nestas formas verbais galegas
tenham tido a mesma causa. A regularização do verbo perder (perdo, perdes,
etc.), que não se verificou na língua portuguesa, parece ser um caso típico de
regularização por nivelação analógica. Além do mais, as formas verbais
castelhanas do presente não são iguais às formas galegas (pierdo vs. perdemos),
havendo alternância paradigmática relativa ao acento.
A partir da análise que fizemos de cada verbo concluímos que, embora cada um
tenha a sua história própria, todos eles passaram por um período de grande
variação e instabilidade no século XIV, em que vários radicais verbais
coexistiam no mesmo sistema linguístico. Observámos, também, que foi no século
XV que se estabeleceram as mudanças que permaneceram, tanto em português como
em galego, até aos dias de hoje. Estas observações confirmam, assim, as
propostas de periodização que apontam para uma fase de instabilidade que, nos
finais do século XIV, separa o português antigo do português médio. Ao longo do
período médio (ou seja: ao longo do século XV, quando as ocorrências das formas
arcaicas se tornam raras) são selecionadas as variantes que se imporão no
português clássico do século XVI. Historicamente, a este período de seleção de
variantes corresponde a definitiva separação política e linguística entre o
português de raiz setentrional, ligado à Galiza, e o português centro-
meridional. Enquanto a Galiza sofria a ocupação castelhana, Portugal definia-se
como reino independente. A localização da corte na Estremadura, elegendo as
variedades centro-meridionais como modelo linguístico, será determinante para o
processo de estandardização do português.
Na história de uma língua interferem, indubitavelmente, fatores de natureza
linguística e extra-linguística. É, por isso, necessário termos em conta
fatores diversificados como a analogia, principal motor de regularização dos
paradigmas dos verbos portugueses deste grupo; a influência de outras línguas,
nomeadamente a influência do castelhano em determinados verbos galegos; a
grafia, que terá sido a causa da criação do atual radical do verbo perder, bem
como outros fatores de ordem psicológica e social, que levaram à regularização
de alguns verbos, mas não de outros do mesmo tipo.
Este grupo de verbos é, assim, uma prova de que a língua é dependente da ação
do Homem, das suas necessidades, do seu conhecimento e do contexto cultural em
que existe. É impossível dissociar uma língua dos seus falantes, da sua
história e da sua cultura: a língua é reflexo da toda a experiência humana.