Resposta aos críticos
Resposta aos críticos
João Cardoso Rosas*
*Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Departamento de
Filosofia,4710-057 Braga, Portugal.
rosas@ilch.uminho.pt
Queria começar por agradecer a generosidade daqueles que entenderam contribuir
para o debate em torno do meu livro Futuro Indefinido: Ensaios de Filosofia
Política. Desde há anos que me habituei a beneficiar da inteligência e do
conhecimento dos participantes neste Simpósio graças à sua intervenção na
discussão de obras de outros autores, em inúmeros colóquios e seminários, na
Universidade do Minho e não só. Mas ser o alvo principal desse tipo de
discussão é, sem dúvida, um privilégio acrescido.
Os meus críticos decidiram escolher, cada um deles, um capítulo do livro em
causa. Isso poderia ter vários inconvenientes, desde logo pela perda da ideia
do conjunto, ou então pelo não tratamento de capítulos fundamentais. No
entanto, a estrutura da obra em debate autoriza facilmente uma tal divisão do
trabalho.
Com efeito, o livro começa por um capítulo dedicado à questão O que é a
Filosofia Política?, aqui recenseado por Giuseppe Ballacci, lançando uma
determinada ideia ' ou uma ideia determinada ' da prática filosófica neste
domínio e que os restantes capítulos ilustram. O segundo capítulo, que não foi
escolhido pelos críticos para recensão, avança a tese do pluralismo
inultrapassável das concepções políticas e da justiça ' e não apenas das
concepções do bem, como acontece em Rawls e noutros autores da tradição
liberal. Mas a melhor ilustração dessa tese acontece mediante a análise de
conceitos mais específicos. Ora, é precisamente isso que é desenvolvido nos
restantes ensaios que aqui são abordados, incidindo sobre os conceitos de
igualdade de oportunidades (no capítulo III, recenseado por Roberto Merrill),
liberdade (no capítulo IV, revisto por Maria João Cabrita) e democracia (no
capítulo VI, criticado por Marta Nunes da Costa). Assim, o leitor deste
Simpósio poderá ficar com uma ideia bastante robusta sobre alguns dos problemas
fundamentais que o livro suscita e aos quais procurarei agora, certamente sem
sucesso, responder.
A análise de Giuseppe Ballacci incide, como acima se disse, sobre a própria
concepção de Filosofia Política por mim defendida. Depois de expor e
contextualizar em termos filosóficos, com grande maestria, aspectos básicos
dessa mesma concepção, Ballacci suscita sobretudo duas críticas. A saber: 1) a
ideia de que as concepções do bem e os princípios últimos não devem fazer parte
da discussão política acaba por remeter essas ideias para uma esfera privada,
levando ao seu encerramento dogmático; 2) o enfoque exclusivo da Filosofia
Política nas instituições deixa de lado a questão das características das
pessoas que nelas participam ' a virtude dos cidadãos e dos agentes políticos '
e a história desaconselha tal esquecimento.
Quanto à primeira questão, creio que o Doutor Ballacci critica aqui mais a
visão original de Rawls, tal como exposta na obra Liberalismo Político, do que
aquela que eu próprio defendo. Com efeito, Rawls considera que, numa sociedade
livre, não é possível haver um consenso estrito em torno das questões básicas
de justiça. Isso deve-se ao facto de existir uma pluralidade de doutrinas
abrangentes e mundividências, de carácter religioso (na maior parte dos casos),
filosófico ou moral. Essa pluralidade é inultrapassável porque deriva do uso
livre da razão e dos chamados fardos do juízo, ou seja, das condições
epistémicas e práticas que explicam o desacordo (carácter vago dos conceitos,
influência da experiência pessoal de cada um, etc.). Nesse quadro pluralista
não é expectável que todos os cidadãos possam aderir aos mesmos princípios
pelas mesmas razões. Daí a impossibilidade do consenso estrito.
A solução encontrada por Rawls para este problema gira, como se sabe, em torno
da categoria de consenso de sobreposição. Rawls acredita que, ao longo do
tempo, uma sociedade pode evoluir para um consenso sobre as questões básicas de
justiça, mas não pelas mesmas razões aceites por todos os cidadãos. Ou seja, o
único consenso possível ' e necessário ' tem de assentar na sobreposição entre
as diferentes doutrinas abrangentes existentes na sociedade e os próprios
princípios de justiça. As razões pelas quais um cristão, um muçulmano ou um
filósofo ateu aderem a esse tipo de princípios ' por exemplo a protecção das
liberdades básicas ' podem ser muito diferentes entre si. Mas sobrepõem-se no
apoio aos próprios princípios.
No entanto, para que um consenso de sobreposição seja efectivamente possível, é
necessário que a justiça seja apresentada como política, não abrangente. Isto
é, separada de qualquer doutrina compreensiva de cariz religioso, filosófico ou
moral e formulada a partir de ideias que pertençam à cultura pública e
partilhada da sociedade. Além disso, a justiça deverá dizer respeito apenas
àquilo que Rawls designa por estrutura básica da sociedade, isto é, as
principais instituições legais e o modo como elas funcionam em conjunto para
distribuir, de facto, direitos e deveres pelos cidadãos. Essa estrutura básica
é composta pela Constituição, pelos principais arranjos relativos à
propriedade, à fiscalidade, etc. Voltarei a este assunto mais adiante, quando
se tratar de responder à segunda objecção do Dr. Ballacci.
A solução que Rawls encontra para a possibilidade de apoio a princípios e
instituições de justiça numa sociedade pluralista, tendo como eixo central a
ideia de consenso de sobreposição, obriga também a um determinado uso da razão
pública. Por razão pública Rawls entende uma razão política, aquela que é usada
pelos juízes nas sentenças, pelos políticos nos discursos, pelos funcionários
na sua profissão, pelos cidadãos quando discutem questões de justiça que a
todos dizem respeito. Para que o consenso de sobreposição seja possível e
persista no tempo é necessário que a razão pública corresponda a um determinado
ideal que reforce esse consenso. Por outras palavras, a razão pública deve
praticar um método de evitamento das doutrinas abrangentes, fixando-se nos
princípios políticos e nas razões políticas. É contra isto que Giuseppe
Ballacci se insurge, criticando Rawls, por considerar que as questões de
princípios últimos não devem sair da discussão pública e que, se isso
acontecer, será contraproducente.
Ora, do meu ponto de vista, esta interpretação de Rawls não colhe ou, para
dizê-lo de uma forma menos definitiva, não pratica suficientemente a caridade
hermenêutica devida ao pensador de Harvard. Quando Rawls diz que, numa razão
pública ideal, as doutrinas abrangentes não devem ser invocadas não está a
defender a interdição da discussão dessas doutrinas em público. Isso seria
absurdo. A razão pública, como acima disse, é a razão política, a razão
respeitante a certos temas e a determinados agentes quando, nas suas funções
específicas, abordam esses temas. Mas há muitas formas de debate público que
não têm a ver com razão pública neste sentido, por exemplo nas universidades,
nas igrejas, nas múltiplas instituições da sociedade civil, nos debates
públicos em órgãos de comunicação social, etc. Todos esses domínios se
inscrevem no não-político e não deverão existir aí limitações quanto à
invocação de princípios últimos e concepções específicas do bem.
O domínio próprio da razão pública no sentido rawlsiano é, por exemplo, uma
sentença de um tribunal. Pergunto: seria aceitável que um juiz, numa sociedade
democrática, invocasse numa sentença as suas próprias doutrinas compreensivas?
Outra possibilidade: um discurso formal do Presidente da República. Será
desejável que o Presidente, quando fala à nação sobre questões constitucionais
ou de justiça básica invoque nos seus argumentos a sua própria doutrina
abrangente (por ex., um certo tipo de cristianismo, ou uma filosofia ateia)?
Não será preferível que ele se atenha aos próprios princípios políticos? Um
último exemplo: quando os cidadãos discutem as mesmas questões de justiça e da
Constituição, a discussão torna-se mais proveitosa quando se atém às
divergências políticas expectáveis, ou seria preferível que invocasse
directamente convicções teológicas ou teorias filosóficas particulares? Não
levaria esta última possibilidade a comprometer o consenso que, no âmbito
político, é apesar de tudo possível e confere estabilidade à sociedade ao longo
do tempo?
Em suma, Rawls não considera que se deva evitar a discussão pública sobre todos
os temas, incluindo os princípios últimos. As restrições que ele coloca a um
ideal de razão pública política são muito menos limitadoras do debate público
no sentido mais geral do que pensa o meu crítico. Mas, até agora, falei apenas
de Rawls, não especifiquei qual a minha própria posição. Ela está patente no
capítulo aqui em análise mas, do meu ponto de vista, a sua diferenciação em
relação ao pensamento de Rawls não foi devidamente tomada em conta pelo meu
crítico.
Eu considero que a Filosofia Política tem vantagem em ser também uma Filosofia
Pública que se endereça a todos e cuja tecnicidade é por vezes um resultado da
elaboração intelectual, mas não da produção de um conhecimento com alguma fonte
privilegiada (intuição, ideias inatas, verdades inscritas nos céus, ou outra
coisa do género). Assim, a Filosofia Política é mais uma forma de doxa
acompanhada de razão do que de episteme, ela é um domínio de racionalidade e de
razoabilidade, mas não um domínio de certeza.
Ora, esta minha visão, devidamente sistematizada no capítulo em causa, é muito
genérica e engloba não apenas filósofos como Rawls, Barry, Dworkin, mas também
pensadores perfeccionistas neoaristotélicos, como Sandel hoje em dia, ou mais
estritamente comunitaristas, como Walzer. Muitos destes pensadores são críticos
do método de evitamento proposto por Rawls e eu devo dizer que, embora
considere que Rawls, como deixei claro, tem bons argumentos para a objecção
apresentada por Giuseppe Ballacci, também estou entre aqueles que não
consideram que o método de evitamento seja sempre defensável, ou que o seja por
regra.
Mesmo no uso da razão pública, no sentido estrito que lhe é dado por Rawls,
parece-me ser por vezes inevitável ' ainda que não necessariamente vantajoso ',
o uso de razões não-públicas. Isso deve-se a circunstâncias específicas que têm
a ver com o próprio uso prático da razão. Por exemplo, na interpretação de
princípios constitucionais gerais por parte de um tribunal constitucional ou de
um outro tribunal com as mesmas funções, por vezes é difícil interpretar o
alcance desses princípios sem recurso a pressupostos interpretativos arreigados
em doutrinas abrangentes (e.g., sobre o significado da dignidade humana). No
discurso de um político ou de um cidadão pode dar-se algo parecido. Por vezes a
invocação de doutrinas abrangentes acaba até por fortalecer o consenso porque
elas podem apelar muito para além da sua origem teológica ou filosófica e da
comunidade de cidadãos que as aceita à partida. Mas, mesmo que assim não seja,
por vezes é difícil falar sem que as nossas doutrinas de base estejam, de um
forma explícita ou implícita, a condicionar a interpretação que fazemos de
princípios da Constituição e de questões básicas de justiça.
Como se vê, portanto, eu nem defendo a posição ortodoxa rawlsiana. Mas a
razão pela qual não a defendo não coincide com a crítica que dela é feita por
Giuseppe Ballacci.
Passemos então à segunda questão levantada pelo meu crítico: o problema do
excessivo enfoque nas instituições (e não nas pessoas e na sua virtude). Neste
aspecto, a minha posição coincide com a de Rawls ' sou institucionalista,
portanto ' embora as razões que eu próprio invoque não sejam, por norma,
coincidentes com as dele.
Referi acima que uma das condições de possibilidade do consenso de sobreposição
é a aplicação restrita da justiça às instituições, à estrutura básica da
sociedade. Este ponto estava já presente no pensamento de Rawls antes da sua
teorização do consenso de sobreposição. Em Uma Teoria da Justiça, Rawls insiste
na ideia de que o objecto da justiça é a estrutura institucional. A justiça não
se aplica directamente às pessoas ou acções particulares. Se uma sociedade
tiver instituições justas, então ela é uma sociedade justa. É claro que isso
não impede que possam existir algumas injustiças localizadas. Tal é inevitável
sempre que se trata de aplicar regras institucionais a casos concretos. Por
exemplo, as regras do processo penal podem ser perfeitas, mas isso não impede a
existência de algumas sentenças injustas.
Apesar de tudo, Rawls não deixa de consagrar um pequeno espaço de Uma Teoria da
Justiça à análise de princípios aplicados aos indivíduos, nomeadamente o
princípio de equidade e os deveres naturais de justiça. Mas, com o enfoque
dado aos aspectos pluralistas da sociedade e ao consenso de sobreposição,
especialmente em Liberalismo Político, Rawls reforça seu lado
institucionalista. A única forma de encontrar um consenso numa sociedade em que
existe uma pluralidade inultrapassável de doutrinas abrangentes consiste em
restringir a justiça àquilo que é partilhável, ao nível da estrutura básica,
deixando de fora as visões e concepções específicas do bem, desde que elas não
sejam contrárias à própria justiça (como seria o caso, por exemplo, de
concepções racistas ou fascistas).
As fontes do meu próprio institucionalismo são um pouco diversas. Creio que ele
radica, antes de mais, numa certa leitura de Platão e da tradição da Filosofia
Política. Também na República platónica se coloca a questão de saber se a
justiça está em primeiro lugar na estrutura institucional ou no indivíduo, na
polis ou na alma. A intuição fundamental de Platão a este respeito sempre me
pareceu correcta. Ou seja, se fosse possível construir uma sociedade justa,
então estaria aberto o caminho para que as almas individuais alcançassem o
mesmo equilíbrio justo. Viver numa sociedade justa molda o carácter justo.
É certo que, num determinado momento do diálogo, Sócrates admite que, mesmo se
não for possível construir a cidade justa, cada um pode tentar construi-la para
si mesmo. Mas eu sempre associei essa construção da vida boa e justa à Ética e
não à Filosofia Política. Esta trata antes de mais das condicionantes
institucionais. Ela não é substituível pela Ética. Por isso não estou de acordo
com a eticização da política, ou com um certo reducionismo da política à
reflexão sobre a virtude dos cidadãos ou mesmo dos governantes. Este é um ponto
no qual já divirjo de Platão, quando este esperava que a sociedade se tornasse
justa quando o rei se tornasse filósofo ou o filósofo se tornasse rei. Esta
ideia passa ao lado do carácter específico da política e da vida social, bem
captado por uma perspectiva mais institucional.
A segunda fonte do meu próprio institucionalismo são as Ciências Socias,
especialmente a Sociologia e a Antropologia tal como foram desenvolvidas no
século XX. Com efeito, a ideia de uma Filosofia Política centrada no estudo da
virtude dos cidadãos e governantes, sobretudo de inspiração aristotélica,
depois cristã, depois ainda maquiaveliana (com a substituição da virtude cristã
pela antiga virtù), parece-me ultrapassada com a ideia de que existem
instituições, formais (como as regras da Constituição) e informais (as regras
da cortesia, por ex.) e que as interacções socias são compreensíveis e
explicáveis nesse quadro institucional. As Ciências Socias estudam esse quadro,
as interacções individuais, os seus efeitos não intencionais, por vezes mesmo
perversos e em todo o caso independentes face às intenções e virtudes dos
agentes. Se o desenvolvimento das Ciências Sociais nos ensinou alguma coisa foi
precisamente a necessidade de olhar para a estrutura e não apenas, ou não
primeiramente, para o indivíduo e para as suas qualidades de carácter. Da mesma
forma, uma Filosofia Política que assuma a sua dimensão política ou societal
não pode deixar de se centrar nas instituições e não, pelo menos prima facie,
nos indivíduos e nas suas virtudes.
Em suma: não desejo certamente desvalorizar a importância da reflexão da ética
das virtudes, do cuidado de si e da formação do carácter. No entanto, creio
que não é essa a missão primeira da Filosofia Política. Recusar o
institucionalismo, como parece sugerir Giuseppe Ballacci, para substituí-lo por
uma reflexão sobre o carácter corresponde a uma Filosofia Política que se
demite do seu papel fundamental.
O meu segundo crítico, o Doutor Roberto Merrill, incide a sua interessante
análise na conceptualização da igualdade de oportunidades por mim realizada no
capítulo III. Merrill aceita, pelo menos inicialmente, a minha inserção da
questão da igualdade de oportunidades no tema mais vasto da justiça para as
instituições, assim como a distinção que proponho entre quatro concepções:
igualdade de oportunidades formal, equitativa, real e perfeita. No entanto, não
parece compreender plenamente a ideia de igualdade de oportunidades real ' sem
dúvida porque a minha própria explicação é insuficiente ', na medida em que a
vincula exclusivamente a esquemas do tipo rendimento básico universal. Não é
esse o meu entendimento.
É certo que esquemas como o rendimento básico (Van Parijs) ou a herança
social de cidadania (Ackerman) podem contribuir para uma tendência igualitária
da sociedade ao estabelecer um mínimo social elevado. No entanto, a concepção
de igualdade real é mais lata e não abarca apenas esse tipo de esquemas. O
princípio da diferença (maximização da posição dos que estão pior à partida),
por exemplo, é uma outra e talvez melhor forma de realizar uma igualdade real,
ou seja, uma igualdade de oportunidades que vá para além das oportunidades
equitativas que se conseguem propiciar através do sistema de educação e
formação profissional. Ao minimizar as desigualdades ' sem aboli-las ', o
princípio da diferença permite que mais indivíduos acedam a mais oportunidades.
Com efeito, numa sociedade altamente desigual as oportunidades tendem a ser mal
distribuídas, ainda que o sistema educativo seja acessível a todos. As grandes
desigualdades de riqueza tendem a subverter a igualdade de oportunidades gerada
a outros níveis da estrutura básica.
No entanto, grosso modo, a interpretação que Merrill faz das minhas quatro
concepções é perfeitamente aceitável e rigorosa. As suas três objecções mais
importantes são substantivas e não meros aclaramentos conceptuais. Passo agora
a endereçá-las brevemente.
Em primeiro lugar, considera o meu crítico que eu estabeleço uma inaceitável
equivalência moral entre as visões que se propõem corrigir aquilo que é
moralmente arbitrário ' englobáveis numa concepção de igualdade real ' e
aquelas que consideram que aquilo que é arbitrário não deve ser corrigido '
englobáveis numa concepção formal. Com efeito eu afirmo, no seguimento de
Rawls, que a concepção da igualdade equitativa é intrinsecamente instável
porque permite corrigir em boa medida a arbitrariedade da lotaria social, mas
não corrige a lotaria natural (a lotaria de talentos) ' que é igualmente
arbitrária de um ponto de vista moral. Em contraposição, tanto a concepção
formal como a real são coerentes. Uma não corrige nem a lotaria social nem a
natural, a outra corrige ambas. Mas a equivalência não se fica por aí.
Como nota a justo título Merrill, eu considero que os fardos do juízo ' de
que falei acima ' explicam e até certo ponto justificam não apenas o pluralismo
das concepções do bem e das doutrinas compreensivas (como acontece em Rawls),
mas também o pluralismo das próprias visões da justiça social, incluindo as
concepções de igualdade de oportunidades. Assim, eu poderia ser levado a um
relativismo acerca das concepções da justiça e considerar que nenhuma delas
pode ser melhor justificada do que as outras. A minha posição, no entanto, não
é essa. Ela pode ser descrita como falibilista, mas não relativista.
Aquilo que eu sugiro é que, num balanço de razões feito por qualquer cidadão de
uma sociedade democrática, alguns podem ser levados a preferir viver num
enquadramento institucional que procura rectificar os factores naturais e
sociais da desigualdade pelos quais os indivíduos não são moralmente
responsáveis. Porém, outros poderão preferir não rectificar esses factores por
qualquer razão adicional de ordem moral (e.g., individualismo extremo,
concepção libertarista da propriedade de si mesmo à la Nozick, etc.). Nestas
circunstâncias é necessário recorrer aos mecanismos processuais da democracia
(eleições, referendos, etc.), para que seja possível decidir sobre aquilo que a
todos vincula através da lei e do Estado. Em muitas situações sociais a
Filosofia, entendida como teoria da justiça, não tem a última palavra. Esta
pertence às instituições procedimentais da democracia, de modo a permitir que
as decisões sejam tomadas num contexto de desacordo, não apenas sobre a vida
boa mas também sobre a própria justiça.
Porém, como não deixa de notar Roberto Merrill, eu próprio considero que estas
duas concepções ' formal e real ' não têm igual peso moral. Isso conduz-nos à
segunda objecção por ele colocada. Considera o meu crítico que as razões
invocáveis por uma visão formal, nomeadamente o gosto individual pelo risco, a
que podíamos acrescentar a oposição ao maior poder do Estado que é uma
consequência de qualquer lógica rectificadora, são pouco relevantes. Em vez
disso, ele atribui especial importância à questão da responsabilidade.
Exprimindo uma posição que na Filosofia Política contemporânea costuma ser
designada por igualitarismo da sorte (luck egalitarianism), Merrill
argumenta no sentido de mostrar que o peso moral da responsabilidade deve levar
à opção por uma visão de igualdade de oportunidades real. Neste aspecto, são
particularmente importantes os casos de má sorte bruta (uma doença ou
deficiência grave, por ex.) pelos quais os indivíduos não são moralmente
responsáveis e que devem ser corrigidos através dos mecanismos distributivos
que geram uma igualdade de oportunidades real. Por outro lado, os casos em que
a desigualdade resulta de escolhas individuais pelas quais os indivíduos são
moralmente responsáveis (suponho que caberiam aqui coisas como, por exemplo, os
gostos caros, e.g., alguém que considera essencial para si beber champagne
francês todos os dias) não devem levar a qualquer correcção.
Eu sou sensível às objecções do igualitarismo da sorte, ou seja, à necessidade
de afinar as nossas concepções de justiça de modo a torna-las mais sensíveis
aos factores de pura má sorte e menos sensíveis aos factores que resultam de
escolhas individuais conscientes, incluindo, por exemplo, a escolha de não
trabalhar e de não se envolver em qualquer tipo de actividade produtiva, social
ou cultural. No entanto, as razões pelas quais eu atribuo maior peso moral à
concepção da igualdade real estão a montante das objecções do igualitarismo da
sorte e têm a ver, muito simplesmente, com os resultados da lotaria social e
natural.
Isto é, ainda que as objecções do igualitarismo da sorte não colhessem, a
concepção de igualdade real seria mais forte em termos de peso moral ' mesmo
concedendo algum peso moral à concepção formal ' porque só ela permite
rectificar os factores de lotaria social (a família em que se nasce) e natural
(as características e talentos) pelos quais cada indivíduo é afectado à partida
independentemente de quaisquer escolhas responsáveis e mesmo não sendo atingido
por factores de pura má sorte. A lotaria social e natural condiciona os pontos
de partida dos indivíduos e tem sempre um peso relevante no seu percurso de
vida.
O senso comum tende a dar grande importância aos factores da lotaria social,
mas tende também a negligenciar a lotaria natural. Ou seja, toda a gente
reconhece que os diferentes pontos de partida sócio-culturais condicionam em
parte o percurso de vida dos indivíduos e que só com mais oportunidades '
nomeadamente através do sistema educativo ' é possível rectificar parcialmente
as desvantagens de partida. Porém, poucos reconhecem que a lotaria natural deve
também ser corrigida e que para isso são necessários esquemas distributivos
mais amplos (Rawls tem a vantagem de ter atendido aos dois aspectos). Assim, a
correcção de factores arbitrários do ponto de vista social e natural confere
desde logo maior peso moral à concepção de igualdade de oportunidades real.[1]
A terceira e última objecção levantada por Merrill é especialmente
interessante. No capítulo aqui em apreço eu considero que existe uma outra
concepção de igualdade de oportunidades ' para além das concepções formal,
equitativa e real ', a que chamo igualdade de oportunidades perfeita. Esta
implicaria não apenas rectificar, na medida do possível, as desvantagens
naturais e sociais pelas quais os indivíduos não são moralmente responsáveis
(ao que poderíamos acrescentar os factores de pura má sorte), mas anular
verdadeiramente essas desvantagens. Ora, isso poderia implicar, no que concerne
à lotaria natural, uma intervenção muito forte na própria herança genética e o
uso controlado pelo Estado de todas as técnicas disponíveis de melhoramento
humano. Não vale a pena insistir aqui na indesejabilidade desta via. Mas também
não é isso que eu refiro no livro. Uma forma de gerar a igualdade perfeita
excluindo à partida a intervenção genética e o melhoramento humano e intervindo
apenas na lotaria social consiste na abolição da família (como já notara
Platão, ao aplicar tal receita aos guardiões da sua sociedade ideal). Com
efeito, a diversidade das famílias, do seu estatuto sócio-económico, mas também
da estrutura motivacional que desencadeiam nos filhos independentemente desse
estatuto, é a grande responsável pela diversidade dos pontos de partida
sociais.
Ora, a minha tese consiste em dizer que a igualdade de oportunidades perfeita é
indesejável na medida em que interferiria com outros valores igualmente
importantes, como a liberdade de constituir família e o respeito pelos laços
familiares (assim como pelas relações pessoais especiais em geral, incluindo as
das famílias não biológicas). Ou seja, eu defendo que a igualdade real é o
nosso melhor ideal. Roberto Merrill discorda.
Ele considera ' correctamente ' que a igualdade real apenas permite mitigar e
não neutralizar as desigualdades de base. Mas em vez de aceitar esse facto como
limitativo daquilo que uma concepção de igualdade de oportunidades pode
defender, considera que esta deve não apenas mitigar mas antes neutralizar as
desigualdades de base. No entanto, para que tal seja possível, para que a
igualdade perfeita seja pelo menos intentada, é necessário interferir no plano
das relações familiares e pessoais e não apenas no plano institucional geral no
qual se situa a aplicação da igualdade real.
Roberto Merrill sabe bem que uma intervenção nesse domínio por parte do Estado
seria iliberal e, em última instância, autoritária. Mas não é isso que ele
propõe. O que considera necessário é complementar o plano institucional por um
ethos da justiça ' o que me faz pensar no influente trabalho de G.A. Cohen '
que agiria, por assim dizer, no plano intrafamiliar e interpessoal. Por
exemplo, se alguém favorece uma igualdade perfeita de oportunidades não deve
enviar os seus filhos para colégios privados uma vez que isso cria
desigualdades de partida entre as crianças. Mas essa tem de ser uma atitude
pessoal e não uma imposição institucional.
A minha resposta a esta crítica permite-me retomar o que acima disse acerca do
meu institucionalismo (em resposta a Giuseppe Ballacci). Parece-me certamente
interessante a linha de pensamento que gira em torno do desenvolvimento de um
ethos de justiça, tal como a corrente ética mais geral que se costuma designar
por ética das virtudes. No entanto, não é esse o centro e o cerne da
Filosofia Política. Esta deve resistir à sua moralização, ou seja, à sua
transformação num conjunto de exigências morais dirigidas aos indivíduos em si
mesmos. A Filosofia Política tem certamente uma dimensão Ética. Mas não é a
mesma coisa que a Ética. À Filosofia Política cabe antes de mais pensar as
instituições às quais estamos obrigados e sobre as quais temos de tomar
decisões em conjunto ' no caso aqui em análise, as instituições que podem
realizar a igualdade real de oportunidades.
A minha terceira crítica, a Doutora Maria João Cabrita, faz incidir o seu
comentário no tratamento do tema da liberdade e da sua relação com a justiça
social. Queria agradecer-lhe a análise cuidadosa e detalhada que faz do
capítulo do livro dedicado a este tema. Não me compete a mim retomar essa
análise, mas quero enfatizar os aspectos essenciais do capítulo, antes de
responder directamente às questões colocadas por Maria João Cabrita na parte
final do seu cometário.
No capítulo dedicado à liberdade e justiça social procurei sobretudo afastar
determinadas ideias comuns não apenas no discurso corrente mas também no
discurso filosófico. A tendência geral é a de distinguir entre dois tipos de
liberdade (negativa e positiva, liberdade de e liberdade para, etc.). É
certo que este tipo de distinções tem as suas raízes em autores insignes, como
Constant e Berlin, mas tende a ser caricaturada e a surgir como uma espécie de
diferenciação conceptual absoluta, como se uma liberdade fosse algo totalmente
distinto da outra. A minha própria opinião não podia ser mais contrária a esta.
Para reabilitar uma visão unificada das liberdades em termos políticos ' é
disso que se trata, não da liberdade em sentido metafísico e da oposição entre
determinismo, compatibilismo, etc. ' recorri a um autor obscuro e
negligenciado: G. MacCallum. Este autor olha para as liberdades como assentando
numa relação triádica: elas implicam sempre um agente e são sempre de alguma
coisa, a inexistência de certos obstáculos, e para alguma coisa, para
atingir determinadas acções ou circunstâncias. Isso aplica-se tanto a uma
liberdade geralmente considerada negativa ' como a liberdade de expressão '
como às liberdades ditas positivas ' como é o caso do direito à participação
política. Por isso, em termos analíticos, as liberdades do agente são sempre
positivas e negativas ao mesmo tempo. É claro que se pode sempre enfatizar mais
os aspectos negativos ou os aspectos positivos. Mas trata-se aqui de diferentes
concepções do conceito de liberdades e não de conceitos radicalmente distintos.
Para além do dualismo da liberdade, uma outra ideia corrente que procuro
criticar no mesmo capítulo é a da oposição entre a própria liberdade, ou as
liberdades, e a justiça social. É comum ouvirmos o argumento ' que em termos
filosófico-políticos se desenvolve desde Hayek a Nozick ' segundo o qual existe
uma tensão, ou mesmo contradição, essencial entre liberdade e justiça social. A
justiça neste sentido seria o caminho da servidão e a liberdade, a prevalecer,
contrariaria todos os padrões de justiça social.
Embora eu próprio aceite, em termos analíticos, a distinção entre liberdade e
justiça social, considero não apenas possível mas mesmo necessário religar as
duas ideias. Para tal, recorro ao conceito de valor da liberdade. Este
consiste na capacidade ' poder-se-ia dizer também capabilidade, para usar a
expressão de Amartya Sen ' para prosseguir os seus próprios fins dentro das
regras morais e jurídicas que estabelecem um sistema de liberdades (de
consciência, expressão, reunião, participação, etc.). Mesmo quando todos têm as
suas liberdades protegidas por um sistema de regras, isso não significa que
essas liberdades tenham o mesmo valor para todos. Por exemplo a liberdade de
deslocação pode estar garantida, mas não ter valor para quem não possui
recursos que lhe confiram capacidade para a actualizar na prática. Ora, é
precisamente a justiça social que permite conferir valor a esta e outras
liberdades.
No seguimento da sua exposição das minhas teses, Maria João Cabrita coloca-me,
então, duas questões centrais e que se poderão reformular da seguinte forma: 1)
se a justiça social aumenta o valor da liberdade dos mais desfavorecidos, o que
pensar daqueles que não estão interessados no exercício dessas liberdades? 2) e
não será que a renúncia por parte de alguns ao exercício da participação
política constitui um problema para um ideal que visa aumentar o valor da
liberdade mediante a justiça social?
Em relação à primeira destas duas questões creio ser necessário explicar que,
do meu ponto de vista, as liberdades tanto podem ser usadas como não sê-lo mas,
mesmo não o sendo, permanecem como valores políticos e sociais relevantes. Da
mesma forma, a justiça social é um valor independente e deve ser aferido
enquanto tal. Ao conferir maior valor à liberdade, a justiça social torna-
a mais robusta. No entanto, ninguém está obrigado a fazer um uso constante das
suas liberdades, eventualmente robustecidas por uma sociedade mais justa.
As liberdades são um esquema protectivo de todos e de cada um dos indivíduos. É
bom que elas existam e vejam aumentado o seu valor. Mas há sempre algumas
liberdades que muitos de nós não usarão na sua vida. Por exemplo, a liberdade
de imprensa é boa e é necessário que tenha valor, mesmo se há muitos que não a
usam para escrever em jornais, por exemplo, ou até mesmo para lê-los. Da mesma
forma, a liberdade de movimento é importante em si mesma e convém que não seja
meramente formal, até para quem não queira viajar e decida viver sempre na
cidade em que nasceu. O facto de alguns não estarem interessados em exercer
algumas liberdades não lhes retira importância nem obsta à necessidade de
reforçar o seu valor em termos sociais e institucionais.
A segunda questão é uma continuação da primeira, mas é correcto diferenciá-la
na medida em que diz respeito a algo mais específico e especialmente relevante,
a saber, a participação política, ou seja, o uso das liberdades políticas.
Devemos a Benjamin Constant a primeira intuição clara de que o contexto da
política e da sociedade modernas diminui a motivação para a participação
política e aumenta a importância da esfera privada. Mas, precisamente por isso,
para que a res publica não fique aprisionada pelos interesses particulares, é
especialmente importante dar valor às liberdades políticas.
Porém, a questão que me é colocada parece partir de uma espécie de preconceito
republicano, segundo o qual a não participação de alguns, o desejo de não
participar ainda que livre e consciente, é um mal em si mesmo. Não creio que
assim seja. Não sei se isso transforma a minha interpretação das liberdades
numa visão mais liberal do que republicana. É possível que sim e isso, em si
mesmo, constitui uma reposta à segunda questão que me foi colocada. Quando
temos uma interpretação vagamente liberal das liberdades tendemos, por exemplo,
a não favorecer mecanismos como os do voto obrigatório, ou a colocar na
participação e na deliberação todo o peso da importância da democracia. Mas
isto leva directamente às críticas levantadas por Marta Nunes da Costa à minha
concepção de democracia, de que tratarei já de seguida.
No seu erudito comentário ao capítulo do livro dedicado ao conceito de
democracia na sua relação com o liberalismo (e o anti-liberalismo), a Doutora
Marta Nunes da Costa não formula perguntas directas, preferindo explicitar
aspectos que considera fundamentais na teoria democrática contemporânea. Mas,
ao fazê-lo, está também a contrastar a sua visão com a minha, ou com o que
parece considerar em falta no meu tratamento do tema. Por isso o seu texto é
uma excelente oportunidade para que eu possa clarificar a minha posição.
No entanto, gostaria de começar por enfatizar aquilo de que a Doutora Nunes da
Costa não trata e que ocupa, em boa verdade, a maior parte do texto em causa. O
meu principal intento nesse ensaio é o de categorizar e analisar as diversas
vertentes do discurso anti-liberal com vista a mostrar que, em última
instância, uma boa parte desse discurso é também anti-democrático. Para isso
considero dois tipos de anti-liberalismo: o superficial e o profundo.
O primeiro assenta em confusões conceptuais ou numa caricatura do liberalismo
histórico que associa o liberalismo em sentido lato ' ou seja, o
constitucionalismo liberal ' a uma visão ideológica muito particular e que
também se chama correntemente liberal, ou neoliberal. Trata-se aqui de
tomar o todo por uma parte, ou melhor, por uma ideologia específica no
enquadramento liberal-democrático que o constitucionalismo propiciou.
O anti-liberalismo profundo, por seu turno, não comete estes erros. Tanto na
versão de esquerda, que tem como principal origem o pensamento marxista, como
na versão de direita, originada no pensamento reaccionário (de Joseph de
Maistre e herdeiros), ele procura atacar o âmago do constitucionalismo liberal,
acusando-o do esquecimento do bem comum, da promoção do egoísmo, de cepticismo
ou relativismo moral, etc. Estas e outras acusações são facilmente rebatíveis
de um ponto de vista liberal em sentido lato. Mas o anti-liberalismo profundo
não está muito interessado na argumentação das classes discutidoras,
preferindo antes mobilizar emoções no ataque às sociedades livres e
democráticas.
Na minha analítica do pensamento anti-liberal e anti-democrático sou sobretudo
devedor da crítica demolidora de Karl Popper ao totalitarismo ' ou ao que ele
próprio considera, não sem alguma criatividade, o pensamento totalitário ',
assim como de outros autores da mesma linha, como Raymond Boudon. Creio que
podemos utilizar as categorias por eles desenvolvidas como instrumentos de
análise para identificar certas figuras de pensamento, de revolta contra a
sociedade aberta, a razão e a razoabilidade, que se repetem desde o início da
modernidade e do constitucionalismo, tanto a nível filosófico como num registo
de senso comum. Mas regressemos agora ao fundamental.
A questão é a seguinte: os regimes democráticos que evoluíram a partir dos
modelos da revolução americana e da revolução francesa têm uma base liberal. O
ataque ao liberalismo é, neste sentido, um ataque à democracia baseada em
liberdades fundamentais e com um princípio de representação.
A minha crítica, Marta Nunes da Costa, parece considerar que eu enfatizo
excessivamente os aspectos liberais e representativos da democracia e que
esqueço outras dimensões, nomeadamente a participativa e deliberativa. De
acordo com esta linha de pensamento, ela salienta o facto da própria noção de
representação ser dinâmica e necessitar hoje de ser renovada, funcionando nos
dois sentidos, em termos de reciprocidade, entre representante e representados.
Por outro lado, os mecanismos de participação (petições populares, orçamentos
participativos, etc.) devem ser reforçados para conferir maior dinâmica à
democracia. Finalmente, também os contextos deliberativos, nos quais os agentes
podem, graças à própria deliberação, mudar as suas preferências para além da
simples expressão do interesse próprio, devem ser propiciados com vista ao
mesmo fortalecimento da democracia.
Devo dizer que há aqui talvez uma questão de ênfase, mas que eu não me oponho,
antes pelo contrário, ao aprofundamento da representação e ao desenvolvimento
dos aspectos participativos e deliberativos dos regimes democráticos. No
entanto, há com certeza algo de sintomático na ênfase que dou a alguns aspectos
da democracia em relação a outros, em especial à sua herança liberal e à ideia
de representação. Gostaria de explica-lo agora um pouco melhor.
Partindo de uma simplificação útil, podemos admitir que existem sobretudo dois
tipos de teorias sobre a legitimidade democrática (em geral, tomando em
consideração as várias dimensões já referidas da democracia). O primeiro tipo é
de carácter procedimental, enquanto o segundo é de cariz instrumental. Para as
teorias procedimentais a democracia está justificada pela qualidade dos seus
procedimentos, incluindo as regras do processo político e as liberdades
fundamentais. Já para as teorias instrumentais aquilo que legitima a democracia
são os seus resultados, por exemplo medidos em termos de bem-estar agregado, ou
numa qualquer métrica de justiça social (realização de direitos sociais,
capabilidades, etc.).
É claro que há também teorias que combinam os dois aspectos, mas é provável que
exista geralmente uma tendência para se centrar mais nos resultados, ou mais
nos procedimentos. Pois bem, a minha própria visão da democracia é mais
procedimental e há razões claras para isso. Como o leitor já se apercebeu, o
meu entendimento dos conceitos políticos é pluralista num sentido profundo e
parte de uma reflexão sobre a sua contestabilidade essencial. Ou seja, eu
considero que não é possível encerrar a discussão, por assim dizer, de uma vez
por todas sobre conceitos como a justiça social, igualdade de oportunidades,
liberdade, etc. Como referi de início, a Filosofia Política é uma forma de
pensamento conjectural, baseado em razões, mas não uma forma de episteme. Ora,
a partir do momento em que se enfatiza esta realidade do desacordo político ' e
não apenas do desacordo sobre o bem ', então é necessário valorizar os
mecanismos ou procedimentos que nos permitem tomar decisões colectivas num
contexto de inultrapassável pluralismo. Para isso serve, antes de mais, a
democracia (pelo menos na minha interpretação desse conceito).
Por outras palavras: parece-me que a justificação última da democracia baseada
nos resultados não está disponível numa sociedade pluralista precisamente
porque os resultados a obter são aquilo acerca de que discordamos. Assim,
enquanto que as nossas concepções da justiça, da igualdade de oportunidades, da
liberdade, etc., são de primeira ordem (fazem parte da nossa teoria ideal), a
democracia é uma questão de segunda instância, i.e., ela permite tomar decisões
apesar do desacordo político moral existente nas sociedades que nasceram do
constitucionalismo moderno. A minha própria concepção de democracia adapta-se
ao pluralismo conceptual da teoria-ideal.
Aquilo que me parece é que a Doutora Marta Nunes da Costa favorece uma
concepção mais instrumental da democracia ' ou pelo menos mais instrumental do
que a minha. Assim, ela estará menos preocupada com os próprios procedimentos
da democracia representativa ' baseados nas liberdades básicas que os tornam
possíveis ' e mais empenhada em reforçar os aspectos deliberativos e
participativos. Como diz no final do seu texto, a democracia visa a realização
das várias gerações de direitos humanos. Ora, eu penso que devemos realizar as
várias gerações de direitos humanos, mas que os mecanismos democráticos têm,
antes de mais, uma função independente desses e de outros resultados que possam
produzir.
Não posso terminar sem deixar claro que, na minha opinião, entre mim e os meus
quatro críticos são mais os aspectos em comum do que aqueles que nos afastam.
Não se trata apenas de dizer que partilhamos o entusiasmo pela Filosofia
Política e que cultivamos a crítica, o esforço e a honestidade intelectual.
Isso seria já muito e raro. Mas aquilo que nos une é ainda mais substantivo
porque se situa na aspiração comum a uma sociedade mais justa e da qual faz
parte, necessariamente, uma conversação que constantemente se retoma e renova.
Notas
[1] Roberto Merrill, neste ponto, refere também o trabalho de um outro autor,
Marc Fleurbaey. No entanto, por desconhecer este autor, não posso aqui comentá-
lo.
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