Sombrias manobras do amor: (in)evidências em Alanis Morissette
Andamos em tormenta como em mar,
com outrem, e connosco em diferenças
Sá de Miranda
Se ver para crer define, por excelência, a atitude desconfiada de alguns
céticos em matérias que primam pelo seu défice de objetividade, ler para crer
poderá, de algum modo, servir de mote para o caso das autobiografias e dos
autorretratos literários: ler para crer, não numa confessada sinceridade
autoral (que a palavra, por mais que se queira, apenas consegue figurar e
desfigurar), mas na precedência existencial desse autor, dessa pessoa e,
enquanto pessoa, desse magma de intensidades, experiências únicas e sentidos
intraduzíveis. A existência precede a ontologia. Neste sentido, a escrita
íntima comporta, na sua definição mais lata, os gládios da sua execução técnica
versus o espelhamento de um pressuposto si interior: recuperando Jean-Luc
Nancy, escrever é ex-crever (que, por sua vez, recupera o ex-time heideggeriano
via Lacan, a não coincidência do sujeito consigo mesmo, ao dizer que tem um
corpo e não que é um corpo, etc.) e a intimidade, vista por si mesma, é apenas
o que é, esse id sensível, anterior à linguagem e a outros lenitivos da
simbolização. Falou-se de espelhamento do eu, reencenando Narciso vendo-se /
lendo-se na água / página do texto ' mas a própria noção de espelho é, por si
só, outro tópico embaciado por sombras e polémicas: pense-se apenas no nosso
reflexo que só existe na medida em que o / nos vemos invertido(s). O eu que aí
se vê e assim se crê (como um eu) está encurralado, segundo as conhecidas teses
lacanianas, num plano meramente imaginário: daí as neuroses, as psicoses, toda
uma angústia a tentar consolar o desejo de uma identificação que, levada às
últimas consequências, jamais teve ou terá lugar neste mundo.
Para o efeito, polémicas e dissensos categoriais à parte, assumir que Alanis
Morissette é uma cantautora autobiográfica tem, pelo menos para a própria,
benefícios consoladores: entre as infinitas definições líquidas que circulam
entre os textos da pós-modernidade, achar uma só que lhe sirva de repouso é, no
mínimo, eticamente salutar, ainda que para os críticos académicos isso soe a
algo esteticamente infecundo.[1] Se o termo autobiografia convoca a noção de um
eu e de uma interioridade emocional, para Alanis Morissette a escrita de
canções recobre circunstâncias episódicas deste género: I feel (sometimes
exhaustingly) attuned and affected by the subtle exchanges that pass seemingly
benignly between us as human ships (Morissette, Dec. 5, 2011) ' e eis, então,
que surge uma pulsão para a escrita, feita de snapshots e outros materiais
condutores de fugacidade.
Detenhamo-nos, assim, na natureza das suas próprias palavras: escrever
pressupõe uma existência viva de si mesma e em si mesma; essa existência é
inevitavelmente performativa (acontece pelo simples facto de já existir, não
pode escapar a essa condição); ademais, incarna-se (existir é ter corpo, com
tudo o que a fenomenologia sobre ele escreveu e continuará a escrever; ter
corpo é sentir ' I feel); a consciência de si sofre, por vezes, um excesso
dessa natureza de ser um ser sensível, senciente e sentido ' de sofrer,
portanto, de hiperconsciência (sometimes exhaustingly); envolve empatia,
contacto, afetos, deixando marcas em si e nos outros (attuned and affected);
nem tudo é da ordem do objetivo ou do inteligível (the subtle exchanges), nem
sequer da ordem da diafaneidade absoluta (os laços sociais são paranoicos,
suspeitam sempre das primeiras intenções e muito mais das segundas: that pass
seemingly benignly); a sociabilidade implica mediação, uma zona de
interfacialidade (cf. Sloterdijk, 2002)[2] que não está em mim ou em ti, mas
nesta química impercetível, neste campo de forças, que é o que abre este espaço
para a nossa relação acontecer (o entre: between us); uma relação que é,
portanto, química, volátil, imprevisível, pródiga de coisas subjetivas '
memórias, piadas, obsessões, fotografias, parcelas (os mitemas barthesianos) ',
que existem na qualidade de diferenças puras, em permanente travessia ou em
fluxo, como todo o relativismo transiente encapsulado em forma humana (as human
ships; note-se o as comparativo, que inquina um evidente desajuste ontológico,
o da persona/ máscara, que Agamben qualifica de especial, que vem de uma
species, de um uso ou de um gesto).[3]
A intimidade é, então, extremamente sensível ao toque (ou à visão, que é
háptica), mas não lhe é subsumível: vive de uma tensão constante, de um entre.
De modo análogo, a escrita íntima ' ou, simplesmente, a escrita ' envolve
tensões, intenções e intencionalidades; se equiparável ao toque, opera a
consciência de uma distância conceptual, topologizando a materialidade do corpo
e determinando, assim, aquilo que Jean-Luc Nancy define como a sua arealidade
(Nancy, 2000: 42-43). Tocar um corpo, diz Nancy, é um gesto impossível: o tocar
não absorve; limita-se tão-só a mover-se ao longo das superfícies e texturas
que inscrevem e excrevem um corpo. Daí que a condenação ao simbólico possa ser
/ parecer intransponível: não se pode tocar o corpo sem evitar significá-lo ou
obrigá-lo a significar, mas tal precocidade ou convencionalidade de resposta,
segundo Nancy, esconde a evidência mais fulcral, que é o facto de escrever não
ser significar: não adianta perguntar como tocar (n)o corpo? ou como
tocar?; é preferível asseverar logo que sim, que tal acontece na ex-crição, ou
seja, numa escrita endereçada ao corpo-fora, a uma escrita que de escritura não
tem nada.[4] Por isso, o recentramento na euidade do sujeito e na sua massa
referencial, desde as Confissões agostinianas à fotografia de perfil de um
usuário do Facebook, passa necessariamente por uma reconfiguração do real
subjetivo, por muito que a mitologia romântica (a do eu refletido na sua obra)
figure ainda como a imagem mais familiar ao senso comum (jargão: a poesia
exprime sentimentos porém, mesmo um ready-made de Duchamp, feito à medida para
cortar com a aura museológica, pode ainda assim ser emocionalmente neutro?).
Como assinala Claire Legendre, Le réel ' dont le soi et l'intime sont les
corrélats irréductibles ' n'est pas intrinsèquement noble ou abject, mais il
est matière à uvres, transcendées ou non (in Le Magazine Littéraire, 2013:
47).
Volte-se ao ver para crer. Alanis Morissette nasceu e cresceu na plenitude da
hipervisibilidade e da emancipação universal da imagem. A sua música tem um
rosto: o seu, cartografado de diferentes maneiras, maquilhado com estas ou
aquelas cores, mas sempre reconhecível nos vários videoclipes que acompanharam
a sua promoção comercial. Se durante muito tempo a imagem fora demonizada, tal
se deveu, como nota Marie-José Mondzain (2009: 16), ao facto de ela ter sido
(con)fundida com um sujeito, logo passível de ser vilificado com uma culpa
(ecos cristológicos da Paixão, do verbo feito carne que é depois desfeito na
cruz): a iconocracia leva-nos a crer nas imagens como potências que impulsionam
crimes, alienação e suicídios (o ícone mortifica o referente e, à parte estes
preciosismos da semiótica, acaba matando a própria pessoa à qual se reporta a
referência: pense-se em Marylin Monroe via Warhol e ainda em Jimi Hendrix, Kurt
Cobain, Amy Winehouse ou Whitney Houston ' gente da música, cuja voz fora
simultaneamente devorada pelos ouvidos e pelos olhos, pela premência da imagem
forçada a tornar-se pública e a exasperar). Guy Debord fizera juízos
reprovadores em relação à sociedade do espetáculo, pensando a exterioridade
como a encenação de um vazio que fora usurpado às consciências individuais,
súbitas marionetas movidas sem fios: a exterioridade devém a própria essência.
Debord resume o caráter nefasto do olhar contemplativo na posição ocupada pelo
espetador, que assiste, impávido, comfortably numb (à la Pink Floyd), a uma
representação daquilo que lhe é negado e subtraído: a posse da sua própria
essência, aplainada na forma de sombras projetadas (plus il contemple, moins
il vit, Debord, 1992: 16). O discurso de crise encontra, neste exemplo, uma
parte da vasta cultura psicopatológica, refém do seu próprio luto pela morte
de Deus', depois pela morte do autor' e, enfim, pela morte de tudo o que antes
se julgava ser uma base segura de sentido (as meta-narrativas).
No entanto, pensadores como Omar Calabrese, Mario Perniola, Jacques Rancière,
Eduardo Prado Coelho ou J. A. Bragança de Miranda têm uma vasta produção
crítica, de pendor filosófico, no sentido de não condescender
aproblematicamente com a tanatologia fácil hodierna (herdeira
descontextualizada do pessimismo adorniano), que perpetua a desilusão do
progresso iluminista e decreta todas as plataformas multimodais (nomeadamente,
a questão do digital) como a encarnação própria do Maligno. A questão é que o
ser humano ' o de agora e o de sempre, a deslizar o dedo num ebook ou a cravar
o sílex num menir ' vive de representação e por ela se mediatiza, construindo a
sua versão de autenticidade mediante condições epistémicas flexíveis, que estão
em consonância com o tempo em que se aplicam. Desmistifique-se, portanto, a
essência de uma linguagem de puros referentes a que encostaríamos ofegantes o
nosso corpo e a nossa alma, uma linguagem anterior ao domínio simbólico e à
força gravítica das paixões humanas e da predicação: Nós estamos
simultaneamente fora e dentro da realidade tal como a realidade está fora e
dentro de nós ' e nesse mecanismo dificilmente há lugar para um espectador e um
espectáculo, agora incorporados na imanentização de tudo (Coelho, 2004: 56).
[5]
Mario Perniola afirma que a sua investigação filosófica é animada não pela
imagem de um mundo vazio ' kénosis ', mas pela imagem de um mundo pleno, em que
tudo está disponível ' pleroma (coadunável com a fruição intensíssima de
imagens que subjaz ao conceito de museu imaginário, a partir de André Malraux).
Desdobrando este mundo, num gesto evocativo da plideleuziana fecunda em enigmas
(cf. Deleuze, 1988), Perniola insiste numa filosofia do presente, ou seja,
num pensamento que dá cor ao presente contraposto ao ausente, como um
pensamento do presente e da presença, sem cair na ufania do passado, e na
consequente obesidade nostálgica, nem numa noção esfumada de esperança, como a
que anima os utopismos: daí que o simulacro, ao invés de ser demagogicamente
aviltado como sinónimo de mentira ou de engano, mereça, pelo contrário, ver
reconhecida a sua qualidade de garantia da dignidade da cópia, do seu direito
a durar, no facto de acentuar e sublinhar a presença física do passado no
presente (Perniola, 1994: 73-74).
Neste âmbito, pense-se a imagiologia centrada em Alanis Morissette, cuja música
vem acompanhada por imagens, as mesmas que, em 1995, dominaram o canal MTV com
os vídeos de You Oughta Know, Hand in My Pocket ou Ironic, elevando o seu álbum
de estreia internacional, Jagged Little Pill, a um fenómeno de histerismo que
os críticos compararam ao de Elvis Presley ou dos The Beatles. Segundo
Perniola, o modo como a videoarte se institucionalizou, precisamente, como
arte, com aura e solenidade, por contraste com a visualidade neutra e
homogeneizante das emissões televisivas, deve a sua força argumentante àquilo
que, anteriormente, enformara as ambiguidades técnicas e ontológicas inerentes
ao intimismo da escrita autobiográfica: Se a televisão oferece a imagem do
mundo externo, o vídeo proporciona-nos a imagem do eu: tratar-se-á de uma
espécie de confessionário, através do qual o autor se confronta directamente
com o espectador (idem, 46). O que parecia estar intrinsecamente associado a
um eidos tecnológico-eletrónico, e por isso constituir uma ameaça à tradição
subjetiva da cultura ocidental, assume-se como a sua legítima herdeira (cf.
ibidem).
Outro tópico a reter é o de uma certa continuidade ontotecnológica substancial
que revê nos vídeos os traços que, noutros tempos, paradigmaticamente
literários, descreviam o espiritualismo confessional e introspetivo de gérmen
agostiniano, depois a ensaística de Montaigne, as Confissões de Rousseau, até à
generalização do habitus diarístico. Para o estudioso francês Raymond Bellour,
mencionado por Perniola, a obra vídeo tende a criar não uma autobiografia '
como na tradição clássica das escritas do eu ' mas sim um auto-retrato do
artista: já não conta uma história, mas oferece uma imagem do eu (idem, 46);
a passagem da autobiografia literária para o auto-retrato vídeo estaria isenta
de fracturas (idem, 47), condensando assim a solenização desta nova forma de
materialização artística, com um alcance extraordinário a nível de difusão
mediática (motivo, portanto, para a sua demonização, no seguimento da lógica
adorniana a respeito da indústria cultural e da cultura de massas). A
arealidade do corpo-vídeo ' expeausition (Nancy, 2000: 33) ' , do corpo como
lugar imanente, amplia as margens de indecidibilidade fractal, o tal excesso de
presença, segundo Perniola, que impossibilita que o apreendamos numa só visão:
a própria vista aí se distende, aí se apaga, não abarcando a totalidade dos
aspectos (Perniola, 1994: 44); um défice háptico que, no entanto, contribui
para a glória da presença local (idem, 63).
Posto isto, não parecerá abusivo apreender afinidades entre as letras de Alanis
Morissette e a sua transposição fílmica, sob a forma de videoclipes de natureza
promocional, na medida em que escrita e imagem (sendo que a própria escrita é
liminarmente um dispositivo gráfico, que a poesia visual, do Barroco aos
concretistas, procurou pôr em relevo) contêm um mesmo reduto psicológico,
passível de uma inscrição naquilo que o arqueólogo do íntimo, Peter Sloterdijk,
em Écumes (2005), denominou como egotécnicas: formas mediais silenciosas da
escrita e da leitura, que impulsionaram o diálogo interior, o exame de
autoconsciência e a documentação íntima, como a rotina ligada ao diário pessoal
(o eu como célula ou camera silens).[6] Eis, portanto, a pedra-de-toque sobre o
qual se alicerça, primeiro, a interpretação de Unsent, segunda faixa
promocional do álbum Supposed Former Infatuation Junkie (1998), e cujo vídeo
fora realizado pela própria Alanis Morissette; segundo, a interpretação do tema
Surrendering, o penúltimo do terceiro disco de originais da artista, Under Rug
Swept (2002), cuja análise se justifica pelo teor do seu conteúdo semântico,
que tece estreitas aproximações com o do outro tema proposto. Em resumo, a
resignada (mas insistente) experiência de incomodidade, de quem seguiu a sua
vida abdicando, porém, de um eu manifestamente presente e alinhado consigo
mesmo: em Unsent e Surrendering, subsiste, entre linhas e entre notas, um travo
de melancolia, esse temperamento saturniano que o psicólogo fenomenologista
Ludwig Binswanger, na senda da sua analítica existencial (Daseinsanalytik),
define como uma perda que está consciente da sua reiterada consumação, da
estase inerente ao seu reenvio cíclico: ao contrário do pessimista, o
melancólico sabe que uma ameaça de perdas futuras apenas faz sentido se olhar
de frente para esses pressentimentos de perdas como algo que já aconteceu (cf.
Binswanger, 1987: 48).
Unsent ' uma carta chega sempre ao seu destino
Pensando-se em Freud e nas preocupações que inquietavam os seus próximos (como
Ernest Jones) face ao aparente fascínio do pai da psicanálise pelas ciências
ocultas (o fenómeno da telepatia e outros melindres paranormais) ' fascínio que
poria em causa a objetividade científica da psicanálise enquanto domínio
controlado do saber ', Jacques Derrida, em Psyché: Inventions de l'autre
(capítulo Télépathie), refere que Freud se esforçava por manter a
cientificidade do seu labor no estudo dos segredos pulsionais, da força dos
instintos e da corporalidade do psiquismo, ao mesmo tempo que retirava do
ocultismo certas ambiguidades operacionais, como o que nele se assume como
inexplicável e incerto, constatando que uma teoria do inconsciente é impensável
sem uma teoria do fenómeno telepático (cf. Derrida, 1987: 248). Neste ponto,
interessa dar ênfase à configuração teórica de estrutura de postal inerente à
comunicação (struture cartepostalée), que o conto de Arthur Schnitzler,
Fråulein Else, indiretamente expunha: segundo Derrida, o primado das forças
comunicacionais da telepatia é a razão pela qual uma carta não precisa
efetivamente de chegar ao seu destino (cf. idem, 249). Deste modo, o vínculo
teórico entre a psicanálise e a telepatia partilha, pelo menos em parte, noções
caras às teses e interesses freudianos como os de transferência, tradução,
transposição ou conversão analógica. Os mecanismos de deslocação e condensação
que (re)produzem as formações do inconsciente atuam como processos de figuração
entre a linguagem e as imagens: imagens que estão no lugar das palavras,
palavras que tinham antes em seu lugar uma representação visual do
acontecimento ' aquilo a que Rancière atribui o nome de equivalências
figurativas: sistema de relações entre semelhança e dissemelhança que põe em
jogo várias espécies de intolerável (Rancière, 2010: 140).
É no quadro de uma struture cartepostalée que as intencionalidades de Unsent
revelam ' e re-velam, fazendo jus ao prefixo de negação no título ' a sua
motivação pulsional, por um lado, e o seu virtuosismo técnico-compositivo e
performativo, por outro, justapondo essa motivação e esse virtuosismo num mesmo
plano tensional. Muito simplisticamente, este tema não passa de um conjunto de
cinco cartas endereçadas a cinco ex-namorados, cada um deles alcunhado sem
qualquer subtileza lírica: cinco epístolas profanas que podem ser lidas na
íntegra, sem que isso condene a canção a sofrer baixas de sentido. O título,
como nota McDonald (1998), torna-se subitamente obsoleto, tendo em conta que a
canção existe, isto é, existe como canção e, por ser uma canção, é tornada
pública, devindo uma partilha com o mundo.[7]
O título atinge uma dimensão quase metafísica: se as cartas não são enviadas, o
mesmo não se pode dizer das mensagens e do secretismo que, supostamente, as
mesmas resguardariam (a tal turbulência telepática sondada por Freud e
explanada por Derrida). De igual modo, as imagens do videoclipe não seriam mais
do que vislumbres rememorativos, fulminações íntimas que não existiriam a não
ser na mente do sujeito (e toda a memória autobiográfica, assim o diz Proust e
a neurobiologia do fenómeno consciente, é feita de verdades subjetivamente
condicionadas, algures entre o real e o irreal, entre o vivido, o sentido e o
desejado, a longas expensas com o que, entretanto, se recalcou ou se esqueceu).
A existência fílmica de Unsent corrobora, do ponto de vista técnico, a
dissidência ontológica que está na origem do próprio tema musical (neste
sentido, o vídeo é um meta-vídeo), da mesma maneira que o título da canção
insinua que a mesma jamais deveria ter existido (isto é, publicamente). As
cinco cartas foram desengavetadas, mas a canção impõe-se performativamente com
direito próprio, engendrando um espaço irreal que só a si pertence, espaço esse
no qual as cartas podem simular um pacto de confidencialidade, como se fossem
remetidas a si mesmas e o título mantivesse literalmente o seu sentido: o
fantasma de um eterno presente, semelhante ao que se congela na e pela imagem
fotográfica (as snapshots), vagamente hipnótico.[8]
A alienação é intentada pelo próprio vídeo: ao captar cenários, falas e tempos
dispostos de forma dessincronizada em relação ao texto da letra musical, cria-
se uma espécie de clima de irrealidade, uma atmosfera de sentido nostálgico por
uma experiência que, mais do que verdadeiramente vivida, parece uma criação
imaginária do sujeito, uma ficção produzida pela máquina do desejo, como uma
errância onírica e impressionista (vê-se o vídeo e, simultaneamente, sente-se
como é ver aqueles cinco microcosmos pelos olhos de quem os recupera pela
memória; capta-se, assim, uma ambiência sensitiva, e não propriamente uma
conversão de sujeitos em objetos). Para o efeito contribuem a orquestração
musical, os enlevos dos sintetizadores, o dedilhar intimista e experimental das
guitarras acústicas, a percussão subtil e convidativa, a coincidir com o tom
narrativo da voz emissora, entre a serenidade constativa e a impaciência
triste, a ténue angústia de quem falhou em cinco relacionamentos sem perceber
ao certo porquê. De facto, em cada uma das situações inter pares, persiste uma
ambivalência duvidosa e não uma segurança afetiva (que corresponderia por alto
à imagem arquetípica do sentimento amoroso entre amantes ideais): de um modo
geral, as cinco cenas insinuam a ameaça ou a consumação resignada (embora
parcialmente em suspense) do fim da relação amorosa. Por ordem: primeiro, Dear
Matthew.
Dear matthew I like you a lot I realize you're in a relationship with
someone right now and I respect that I would like you to know that if
you're ever single in the future and you want to come visit me in
california I would be open to spending time with you and finding out
how old you were when you wrote your first song
Na primeira cena do vídeo, as legendas apresentam interjeições, reticências e
monossílabos ' cool!, hmmm , ok ' ao serviço de uma impaciência e falta de à-
vontade entre os dois, que se salvam pela porta de saída, desfocada e deixada
em último plano (é o vazio último do que resta de pessoalidade na relação: sob
o espectro do desconforto, resta um beijo de despedida, um goodbye e mais
nada). As falas da protagonista atestam sentimentos de incerteza e insegurança:
formas de cortesia inerentes a I guess ou I feel like I already have
[interrupted you much] tendem a aliviar o outro da responsabilidade infernal de
proferir diretamente a sua vontade de abandonar aquele impasse, minimizando
assim os efeitos demolidores da linguagem.
Segundo, Dear Jonathan. Num café (tons cromáticos mais carregados e escuros,
adensados pelo fumo do cigarro de Jonathan, aquele namorado), trava-se uma
conversa pautada pela desconfiança da mulher perante os compromissos do amante,
que parecem votá-la à exclusão. É notório que o plano do rosto feminino seja
progressivamente ampliado, com as falas do par projetadas sobre si, sobre o seu
silêncio no momento em que o outro lhe responde, impingindo-lhe, falicamente,
esses arremessos incondicionais: isto é, o silêncio distendido nas pausas, que
permitem ao outro ter espaço e tempo disponíveis para falar, reveste-se de uma
conotação simbólica política, no quadro das distribuições posicionais do
género. Não se trata, portanto, apenas de silêncio, mas igualmente da condição
de ser silenciada: o feminino devém um objeto de palavra sem, de facto, lhe ter
direito. No final, lê-se nas legendas o facilitismo a que ela se entrega no
sentido de agir o mais convenientemente possível perante as agendas masculinas;
um caso prototípico de submissão feminina ao convencional sexo forte, que fuma
ociosamente o seu cigarro, indulgente, sabendo-se, por imunidade sociocultural
e simbólica, no direito de não ter de dar satisfações sobre a sua vida privada
(deixando, assim, antever o motivo pelo qual a relação não perduraria).
Dear jonathan I liked you too much I used to be attracted to boys who
would lie to me and think solely about themselves and you were plenty
self-destructive for my taste at the time I used to say the more
tragic the better the truth is whenever I think of the early 90's
your face comes up with a vengeance like it was yesterday
Terceiro, Dear Terrance. A cena, ao ar livre, é idealmente a mais romântica:
sol, beira-rio, risos. A pensar na esteira de Mario Perniola e daquilo que o
filósofo italiano entende como a visualidade egípcia ou enigmática da videoarte
contemporânea, a rememoração de Terrance, o destinatário da terceira missiva
postal, partilha mais fortemente a emanação coisal que define o devir-paisagem
das singularidades humanas. Antes de mais, uma diferença a assinalar: coisa não
é o mesmo que objeto, que, à letra, designa algo que fica sempre aquém do nosso
alcance, continuamente arremessável e indisponível (ob-jecto). Por coisa,
entende-se a evidência intacta de uma presença, a sua exterioridade pura (cf.
Agamben), à semelhança indiscernível das coisas entre as coisas no mundo
natural, ao qual pertencemos (antropomorfismos, prometeísmo da consciência e
humanismos ensimesmados à parte) por coabitarmos uns com outros e com outras
coisas. Perniola estriba-se em Rainer Maria Rilke (poeta-fetiche de Morissette,
por sinal): a ideia de que ao devir-paisagem não fica implícita uma menorização
do indivíduo, que perde a sua centralidade no mundo fenomenal, mas antes a
intenção de tornar o indivíduo mais amplo ' ( ) isto é, segundo Rilke,
arriscar-se para o espaço aberto, ter a morte atrás de si e não à frente, sair
do tempo concebido de modo rectilíneo e, pouco a pouco, tornar-se espaço
(Perniola, 1994: 80).
A revisitação do passado, parcelado e consubstancializado na pessoa / paisagem
de Terrance, encontra aqui plausíveis pontos de contacto: parece longínquo, com
um misto de incompreensibilidade (reforçada pela dúvida final: what was wrong
with me?), que inquieta na justa medida em que se a-presenta impassível para
fazer feedback das minhas projeções românticas sobre ele, devindo puro ecrã,
tal como qualquer paisagem ou qualquer imagem, no sentido liminarmente
superficial da sua ontologia, ou seja, paisagem ou imagem enquanto realidade(s)
plena(s) impenetrável(eis).
De facto, estamos habituados a pensar que atrás de qualquer gesto existe um
acto de vontade: a paisagem, pelo contrário, não quer nada. Com os homens '
escreve Rilke ' não costumamos intuir muito através das suas mãos, e muitíssimo
através do rosto, no qual, como num quadrante, estão visíveis as horas que
regem e pesam a sua alma no tempo. A paisagem, pelo contrário, não tem mãos,
não tem cara ' ou então é só cara.' Do mesmo modo, a civilização da coisa e do
look não tem cara, ou então é só cara. Nem sequer a visão do cadáver evoca tão
fortemente a impressão de uma vida tornada coisa, pois remete para uma dimensão
temporal que foi interrompida. Só a múmia egípcia evoca uma vontade tão radical
de tornar-se coisa. (idem, 87-88)
Dear terrance I love you muchly you've been nothing but open hearted
and emotionally available and supportive and nurturing and
consummately there for me I kept drawing you in and pushing you away
I remember how beautiful it was to fall asleep on your couch and cry
in front of you for the first time you were the best platform from
which to jump beyond myself what was wrong with me
Na letra, o polissíndeto encavalga a ondulação do delírio rememorativo,
tentando listar à toa as virtudes do namorado num encómio que se pretende,
apesar das motivações selvagens do desejo (de qualquer desejo, mas sobretudo
deste tipo particular de desejo, o amoroso), minimamente disciplinado, para não
soar abusivo nem embaraçar o alvo a que se destina: you've been nothing but
open heartedandemotionally availableandsupportiveandnurturingandconsummately
there for me. No vídeo, trava-se um diálogo amistoso, com uma dose substancial
de cinismo (da parte da figura feminina), que usa o sentido de humor para
traçar os contornos do âmago do problema conjugal (aquilo que, na sua aceção,
impediu a relação de continuar) e, desse jeito, contornar o próprio âmago do
problema e o modo como isso a afeta. O tema é o medo, ou a ambivalência entre
amor e medo (quiçá, a sua consubstancialidade), no sentimento de entrega que
subjaz a toda e qualquer forma de intimidade que se deseja correspondida,
mutuamente partilhada, sob um desígnio de confiança absolutamente disponível.
Afetivamente, no texto epistolar, a protagonista assume a sua ambivalência
insuperável, passível de ser comparada ao relaxamento lúdico do neto de Freud
que, lançando para longe um carrinho ' Fort! ' e logo de seguida puxando-o de
volta para si ' Da! ', orientou o mentor da psicanálise no sentido de
edipianizar esse jogo, vendo nele a substituição da ausência materna ' Fort! '
pela sua presença imaginariamente substituída ou compensada ' Da!. Em Unsent,
este jogo de ausência / presença de Terrance resume-se numa linha: I kept
drawing you in and pushing you away.
Na transposição fílmica, as legendas amplificam a imperscrutabilidade do
impasse, que resiste à predicação. Depois de lhe perguntar se ele tenciona
visitá-la futuramente, ao qual ele denega pelo humor (faz-se de difícil, mas de
forma a tornar sobressaliente o fazer-se e não o difícil), riem-se os dois (a
distensão permite-lhes uma unidade telepática; a gargalhada autentifica o uso
partilhado do mesmo código: ambos se sentem nervosos, logo ambos se esquivam
pelo riso); de seguida, ela comenta: whatever [faz as verdades flutuarem,
aliviando o peso gravítico ' que o riso denega ' do que antes se enunciara],
you're probably scared to spend that much time with me in close quarters. I can
completely appreciate that [aplaude a coragem do outro por assumir
generosamente a não-correspondência amorosa, o facto de ele não mascarar a
vulnerabilidade que tateia, por dentro, a confiança imperiosa em deixar que
alguém ' ela, fenomenologicamente intrusiva, pelo simples facto de ser ex-
cêntrica ao centro ontológico dele ' entre no seu mundo mais íntimo, mesmo que
essa entrada viesse apenas confirmar a impossibilidade de ele ceder às
resistências que definem a sua condição de ser vulnerável]. Terrance responde-
lhe à letra, ainda que adornando o discurso com risos, e, nesse sentido, isto
é, pela confissão literal, dá visibilidade à espessura que o medo o retrai de
tentar esvanecer: o medo de desproteger a sua vulnerabilidade, cedendo-a ao
desejo do outro ' I am, quite frankly. You frighten me (ou seja, sim, o teu
amor incomoda-me, tu estás demasiado a mais em mim). O risco da proximidade
excessiva passa, portanto, pela impossibilidade de concretizá-la. O repto de
Terrance possui a qualidade de um performativo: o seu significado coincide com
o ato de ser enunciado. Assim, estar in close quarters na própria linguagem
devém uma condição animicamente insustentável, na medida em que não permite uma
mediação, seja da ordem de um conceito, seja da ordem de uma representação (o
sujeito masculino não tem como se proteger do amor não solicitado: como um
insulto, este amor é uma pura experiência da linguagem) (cf. Agamben, 2013:
12).
No momento em que soa what was wrong with me, distendendo as sílabas tónicas de
wrong e de me (o que, em termos de equivalência semântica, daria azo a um
autorretrato psicopatológico, irrealizável: o eu como algo que está/ é errado,
ontologicamente falível e falhado), a câmara enfoca no plano do rosto de
Terrance, sorrindo: a lembrança deste rosto, assim iluminado pela ambiência
natural da paisagem, acentua a sua perfeição (sempre idealizada,
subjetivizada), ao contrastar, precisamente, com a tal pergunta que serve de
epílogo a esta terceira carta. Um rosto masculino sereno, que a técnica
cinematográfica deixa em suspenso, como o flash decisivo pelo qual a aura de
alguém conquista a sua derradeira representação, ainda que bordejada de uma
certa flutuação mental derivativa, como uma orla de sentido: recorda-se de
intimidades da ordem do assim e do qualquer agambenianos, isto é, as
singularidades puras evocadas na sua absoluta irreparabilidade ' a
experiência, absolutamente não-coisal, de uma pura exterioridade (Agamben,
1993: 54), como a beleza de adormecer on your couch [o sofá, não a cama, que é
o lugar simbolicamente designado para esse efeito; o sofá sonda o imprevisto, a
inocência de um erotismo muito mais delicado, quase transcendente] ou a beleza
em ter chorado in front of you for the first time [no sentido em que uma mulher
que chora apenas quer dizer isso, que se sente momentaneamente frágil, em busca
de um certo refúgio defensivo e consolador, e longe de quaisquer insinuações
ideológicas tentadas a desconstruir, à força, a imagem do feminino como
equacionável à languidez emocional]. Tal idealização de Terrance apenas reforça
a sua inacessibilidade, que a queixa amorosa afere no remate inquisitivo. Em
jeito de rebaixamento da autoestima e de proposição autoacusatória, sou levada
a crer, portanto, que o problema está em mim. Este perplexo what was wrong with
me ' o tempo verbal pretérito torna omnipresente o passado ' inquina a vida
psíquica do eu, confinado numa culpa irremediável, o que distorce a construção
da sua temporalidade, segundo Binswanger, estrangulando momentos estruturais
dessa construção: vivência do presente, retensão do passado, protensão voltada
para o futuro, que fica desenraizada da experiência sensível do presente (cf.
Binswanger, 1987: 33).
Quarto, Dear Marcus.
Dear marcus you rocked my world you had a charismatic way about you
with the women and you got me seriously thinking about spirituality
and you wouldn't let me get away with kicking my own ass but I could
never really feel relaxed and looked out for around you though and
that stopped us from going any further than we did and it's kinda too
bad because we could've had much more fun
Regressam os cromatismos quentes, em parte simbolicamente associáveis a um
momento erótico mais intenso, entre quatro paredes de uma sala, junto à
lareira, onde os dois protagonistas se beijam: ela, uma jovem cauta, com
maneirismos de inocência, e ele, com um ar desinibidamente másculo, virilmente
sabedor de tacticismos da sedução. O que parecia estar a correr bem é quebrado
pela inquietante estranheza ' Freud e o célebre Das Unheimliche (1919) ' de um
comentário masculino: I'm so proud of you. O assentimento do dito, preso à sua
literalidade, poderia ser motivo de congratulação consoladora: eu estou a agir
bem, logo isso é positivo, logo devo sentir-me feliz. Porém o não-dito é
contextual: aqui encena-se, de novo (e a repetição ou o duplo inscrevem-se no
quadro freudiano da mencionada inquietante estranheza dos déjà-vu's
familiares), o perfil falogocêntrico explícito de um homem que, seguro do
efeito apaziguador do seu paternalismo, diminui a condição daquela jovem mulher
pensando estar, às avessas, a engrandecê-la, comparando a sua disponibilidade
(tão rara) para mergulhar em novas águas (tradução livre do que a legenda
afere) com o que outras mulheres recusariam fazer. O que é elogiado como
audácia é sentido pela elogiada como uma dissociação de si mesma: por outras
palavras, ela não se revê no discurso do outro ' e esse espelho linguístico
embaciado apenas lhe devolve o sentimento de total incompreensão. Quando Marcus
remata as suas opiniões com you know, esta expressão confirmativa, de valor
neutro quanto à sua expressividade, não abre espaço à discussão: ela é invadida
pela sobreposição do outro, pelos pressupostos dele, sendo-lhe negado, no
fundo, o direito à palavra, a uma margem de liberdade onde pudesse reivindicar
a sua pessoa, com um punch do género no, I don't(know) (que acabaria por
arruinar a performance ilocutória de Marcus e, em geral, qualquer performance
comunicativa).[9] Na letra, este dissenso, mais do que intrínseco à linguagem,
é do foro da ontologia, é anterior ao dito, logo da ordem do sentido (e do
agir), como se deduz a partir de you wouldn't let me get away with kicking my
own ass but I could never really feel relaxed and looked out for around you
though.
Por outras palavras, a relação não funciona: não há comunicação desvelada entre
amantes, há apenas máscaras performativas ' e ela acabou de perceber que ele
lhe havia imposto uma, da qual ela nunca suspeitara. Tal anagnórise vem
reforçada pelo movimento ascético da câmara: se no início o plano da imagem
alberga o par, centrado, à medida que Marcus vai fazendo os seus comentários
falsamente inofensivos a câmara assume uma posição cada vez mais distanciada
dos dois, filmando-os do alto e acentuando, por via de uma distância
cambaleante (o efeito amadorístico é transversal aos cinco cenários de Unsent),
a isolação crescente sentida pela personagem feminina.
Quinto e último, Dear Lou.
Dear lou we learned so much I realize we won't be able to talk for
some time and I understand that as I do you the long distance thing
was the hardest and we did as well as we could we were together
during a very tumultuous time in our lives I will always have your
back and be curious about you about your career about your
whereabouts
A última cena do vídeo é, de todas, a mais silenciosa: o namorado estaciona o
carro, de noite, ela entra, o carro arranca, cumprimentam-se (um hi recíproco,
mera formalidade) e nada mais dizem um ao outro (nada que seja legendável,
portanto). Observando atentamente os gestos do par, nota-se que os seus olhares
evitam a reversibilidade do contacto, embora inconscientemente: há uma
dessincronização de timing, porque, quando ele lentamente lhe dirige o olhar,
ela tem o rosto voltado de frente; quando é a vez dela de o espiar com
subtileza, ele cumpre a sua função de condutor, dirigindo o olhar para a
estrada, os espelhos do carro, alguma sinalética rodoviária. A certa altura,
percebe-se que ele tenta colocar o braço nas costas do banco da acompanhante,
na iminência de poder tocá-la, gesto que de imediato ela retalia com alguma
brusquidão corporal, como se essa aproximação gestual pesasse pela ousadia ou
pela insinuação de um resgate de intimidade que, naquele preciso momento, já se
mostra desgastado e inconveniente.
O facto de não se manifestar diálogo, justificando-se assim a ausência de
legendas, permite que a audição da letra constituinte da última carta não fique
obstruída por qualquer desvio de atenção ou colateralidade informativa. A
música, em sentido lato, cumpre momentaneamente uma função parecida com a de
uma banda sonora: acompanha um desfile de imagens, posto ad oculos, distanciado
mas emancipado, com o assentimento de Rancière, implicando uma gestão
emocional do desejo de ouvir a voz da imagem, ou seja, de lhe atribuir um
rosto que fala (a função da prosopopeia, cf. Mondzain, 2009: 68-69). Deste
modo, asserções como I realize we won't be able to talk for some time ou we
were together during a very tumultuous time in our lives tornam-se filmicamente
visíveis, coordenando-se assim a palavra com a imagem, ou vice-versa. A
resolução, porém, acresce-se de périplos muito ténues, mas suficientemente
fortes para que tal resolução, pelo menos interiormente, não se dê como
consumada.
O vídeo termina com uma questão feita por Lou à personagem de Morissette ' what
are you thinking? ', compreensível, por um lado, tendo em conta o silêncio e o
efeito desconfortável que o mesmo intensifica (compreensibilidade que, por isso
mesmo, não justificaria quaisquer meditações em torno dessa pergunta); mas, por
outro lado, incompreensível, se nos colocarmos na pele da figura feminina,
aliando essa posição ao discurso final da letra ' I will always have your back
and be curious about you about your career about your whereabouts(uma
curiosidade que mantém próximo um objeto do desejo que, na verdade, se
desejaria resolvidamente longínquo e esquecido) ' e ao facto de a interrogação
de Lou coincidir com o desfecho da imagem, como uma questão que fica no ar (de
novo, a eternização fantasmática do presente, pulsão capaz de enigmar as
imagens gravadas nas fotografias).[10] A última carta de Unsent funcionará, a
seu modo, como uma possível resposta a esse tapa-buracos metafísico, embora não
deixe de ser uma resposta inconclusiva. Entre essa indagação metafísica final
(namorado) e o sentimento incontrolado de uma persistência nostálgica (o
advérbio always a tingir o presente de continuidade com o passado e o futuro,
em I will always have your back and be curious ), aquilo que resta é, porém, o
fulminar de uma assombração ' e é só no final que os rostos do par se olham nos
olhos um do outro, em silêncio, depois da pergunta ter sido levantada, ficando
os dois em suspenso, numa imagem (do mundo de fora, do mundo interior) sem
legenda, ou seja, sem uma interpretação sugerida ao expectador, logo agenciando
o imaginário e, neste sentido, as reticências que perfilham uma angústia de
saber irresolvível, ou o ser humano como uma aporia profunda, que as situações
mais quotidianas ou as coisas mais redundantes fazem por se (de)volver enquanto
resistência de uma cifra.[11]
Considere-se, assim, o vídeo de Unsent e as suas especificidades ' em súmula, o
desajuste na correspondência fiel ou unilateral entre a imagem (com legendas
próprias) e a palavra das lyrics ' à luz dos seguintes critérios, juízos e
consequentes efeitos:
( ) os video-clips mais interessantes são aqueles em que o cantor
quase nunca aparece, e as figuras humanas, destituídas da voz, dão
uma impressão de alheamento e de objectualidade espectral, pois
parecem adquirir o estatuto de coisas. O efeito da video-music é
radicalmente diverso daquele do cinema mudo: a música do video-clip
mergulha a figura no silêncio a que, desde sempre, as coisas já se
encontram abandonadas, enquanto (sic) a falta da palavra no cinema
mudo não faz senão exaltar a eloquência e a expressividade da figura
humana. (Perniola, 1994: 82-83)
Faz sentido, portanto, retomar Prado Coelho ou Rancière quando eles procuram
vincar o facto de uma palavra ou de uma imagem não serem um duplo de algo real,
como a tradição herdeira da alegoria platónica nos faz ainda crer. Uma
representação, seja ela verbal ou imagética, é antes um jogo complexo de
relações entre o visível e o invisível, entre o visível e a palavra, entre o
dito e o não-dito (Rancière, 2010: 139). É esse entre, ponto que não é nem de
partida nem de chegada, mas uma fuga por onde as interpretações não alcançam um
refúgio ou uma estase cristalizáveis, que possibilita um comentário como o que
se segue, de Glenn McDonald, fazendo assinalar o que iek lê como o caráter
obsidiante do amor, o seu aspeto intolerável e asfixiante, quando um sujeito se
sente invadido ' ex-timado ' por um amor que não solicitou.[12]
I know, from having sent some letters like this, and like the others
in the song, that not everybody thinks they are a good idea. Does
your best friend really want or need to know that you're in love with
them? Possibly they don't even want to know that they're your best
friend. I understand the objection, but I guess I feel, in the end,
that we are, most of us, the objects of few enough helpless desires
in our lives that letting one go by without being aware of it is
unacceptably tragic. ( ) The most amazing thing, to me, is that
Alanis manages to make a coherent folk/ pop song out of her
confessions. Sparkling acoustic guitar, sawing synthesizers,
percolating drums and springy bass could have just been disguises,
but she finds ways to make the words and the music connect, letting a
line skitter off, syncopatedly, across the floor at the end of one
musical phrase, and then catching it up again in the next one.
(McDonald, 1998)
As cartas de Morissette encenam, às avessas, a leitura iekiana do conhecido
relato de Freud sobre as brincadeiras do neto: o Fort! Da!, em vez de ser a
recriação imaginária da mãe ausente que a criança deseja manter por perto,
corresponde à válvula de escape que possibilita ao filho libertar-se
temporariamente da asfixia maternal, isto é, do facto de ele ser o objet petit
a da ternura ubíqua da mãe, do seu gozo (cf. iek, 2006: 75). Neste sentido, o
papel de Morissette corresponderia ao desse superego maternal, que reaviva o
espectro de um amor que a autora das cartas ainda deseja tornar público,
insinuando que, à imagem do neto de Freud, ainda puxa as cordas do seu
brinquedo ' dear Matthew, dear Lou ' para bem perto de si, demasiado perto.
Surrendering ' a beleza das possibilidades vazias
Numa das cenas de bastidores do DVD Feast on Scraps (2002), Alanis Morissette
está sozinha no estúdio, em frente ao piano, a compor a música de Surrendering,
tentando dispor harmonias para os primeiros versos do refrão. Ciente ou não
disso, há uma câmara, imóvel, a gravar tudo, incluindo o momento em que
Morissette, rendidamente vulnerável, começa a chorar, oprimida por palavras e
tons musicais que insuportam animicamente aquilo que, por ser anímico, não se
apazigua com pormenores técnicos, como os que estão na origem de qualquer
suporte simbólico e simbolizador (a arte). O choro irrompe de uma carga ' da
alma, dir-se-ia, e por isso intolerável ' que os ombros da escrita suportam
apenas por fingimento. O processo de edição, a dado momento, corta aquele
momento frágil e passa de repente para a artista, mais aliviada, a dialogar com
alguém que estará, porventura, do outro lado do vidro (ainda que não seja
visível), ao qual informa que terá de ir para outro sítio de maneira a
conseguir terminar a letra, a mesma que admite ser uma das mais difíceis de
cantar. O canto, então, não possibilita um salto para fora da dor, desse pathos
arrancado à rede dos outros sentimentos e que ocupa todo o espaço anímico do
sujeito (devindo uma espécie de categoria ontológica). A voz move-se na dor,
mesmo que a escrita musical e o canto ' que são técnicas, próteses, placebos,
mecanismos defensivos ' sustentem uma zona de cognoscibilidade, na qual o eu se
sabe consciente de si e do que sente e, nessa medida, perfaz um pacto especial
de distanciamento e de reconfiguração, que lhe assegura a (sobre)vivência. Os
versos libertam as lágrimas reais do seu ónus afetivo, daquele choro cerrado
que a câmara filmou, reorientando o pathos ' paixão', sofrimento', mas também
caminho', de path ' do sujeito: My songs always change my life ' if I'm not
all off my proverbial path, as soon as I start to write songs, it gently pushes
me back on. I'm afraid of it sometimes (Morissette apud Wild, 2001).
you were full and fully capable
you were self sufficient and needless
your house was fully decorated in that sense
you were taken with me to a point
a case of careful what you wish for
but what you knew was enough to begin
and so you called and courted fiercely
so you reached out entirely fearless
and yet you knew of reservation and how it serves
and I salute you for your courage
and I applaud your perseverance
and I embrace you for your faith in the face of adversarial forces
that I represent
so you were in but not entirely
you were up for this but not totally
you knew how arms length-ing can maintain doubt
and so you fell and you're intact
so you dove in and you're still breathing
so you jumped and you're still flying if not shocked
and I support you in your trusting
and I commend you for your wisdom
and I'm amazed by your surrender in the face of threatening forces
that I represent
you found creative ways to distance
you hid away from much through humor
your choice of armor was your intellect
and so you felt and you're still here
and so you died and you're still standing
and so you softened and still safely in command
self-protection was in times of true danger
your best defense to mistrust and be wary
surrendering a feat of unequalled measure
and I'm thrilled to let you in
overjoyed to be let in kind
A terceira carta de Unsent, remetida a Terrance, a par das legendas que
acompanham a rememoração visual (recorde-se: you're probably scared to spend
that much time with me in close quarters. I can completely appreciate that),
poderia dispor-se como um dos painéis em que Surrendering seria a outra metade
do díptico, sob o signo deste remate (o mesmo onde Morissette ficara em
suspenso, no estúdio, repetindo para si até chorar): and I embrace you for your
faith in the face of adversarial forces/ that I represent. Atente-se no liame
aliterativo que, por sua vez, ao invés de unir assinala a fratura: your faith
in the face, uma espécie de efeito de eco que, porém, não nos devolve a nossa
voz, supostamente reconhecível, mas uma perplexidade solitária, que fica a
ressoar sozinha. O eu assume-se como a representação de forças adversárias ou
de forças ameaçantes contra as quais ' ou face às quais (jogando-se com a
homonímia dos termos: a face/ rosto a que fazemos face, entre prostração e
bloqueio) ' o outro é encorajado, não a perpetuar uma insistência (a provar a
tudo o custo que a ama), mas precisamente o oposto, a desistir de o fazer (a
provar irresolutamente que não sente amor pelo eu). De novo, à imagem da imagem
de Terrance, este tu surge nimbado de um encanto natural que desperta, por ser
assim, uma orla quase suprassensível: nas três primeiras estâncias, a
reiteração das formas full e fully (e o efeito em eco transformante: you were
full and fully capable) desenha um indivíduo altamente pós-moderno, uma
autêntica ilha ou célula, segundo Peter Sloterdijk (2005), que, numa perspetiva
sociopsicológica, tende a plasmar este confinamento atómico do sujeito em
células habitacionais ego-esféricas (o single que, como reza o dito anedótico,
em vez de casar e ter filhos, opta por um cão e um espaço bem mobilado ' you
were self sufficient and needless / your house was fully decorated in that
sense).[13]
O tema progride no sentido de indiciar in crescendoos avanços na partilha da
intimidade continuamente ameaçados pela sombra de um recuo preventivo, de um pé
atrás (o do tu). Sob o signo da prudência ' a case of careful what you wish for
' o desejo interpõe entre si e o objeto a intransponibilidade, como um véu que,
amiúde, vai sendo revelado para ser, de novo, re-velado, restituído à sua
qualidade obstruente, à exterioridade absoluta que resiste a gestos amigáveis
como os que so you called and courted fiercely e so you reached out entirely
fearless pretendem sugerir, no sentido de minar as fórmulas e manuais de
reservation. A tensão alimenta a energia do desejo: a cedência absoluta de um
par, à imagem do yin / yang cósmico, é da esfera da idealidade; a não cedência
ditaria um outro tipo de registo introspetivo, na esteira das queixas de amor
não correspondido, do pranto individual, etc.. No entanto, este you cede e não
cede, avança e recua, permite e interdita: not entirely, not totally,
consciente do regime de ambiguidade tensional que advém da sua postura (you
knew how arms length-ing can maintain doubt); engendra modos de se esquivar, a
cosa mentale da sublimação (artística) que coloca a intolerabilidade do real
bruto à margem de si mesmo (you found creative ways to distance / you hid away
from much through humor / your choice of armor was your intellect). De facto,
esta postura, sob os auspícios da teatralização', já havia sido notada por
Freud em relação aos dissídios agónicos entre o Ego e o Id, como atesta o
recurso às piadas para transformar uma realidade incómoda: não sendo possível
negá-la, o you denega-a, com humor e inteligência, adelgaçando os seus espinhos
e debilitando o adversário ' and so you softened and still safely in command
(plano do oximoro: o ameaçado que sub-repticiamente ascende ao lugar de
ameaçador).
Lido sob um prisma de amplitude ideológica, o gesto de Surrendering,
cinicamente louvado pelo eu, é por igual cinicamente louvável, nestes tempos de
obrigatoriedade inquisitorial do gozo acéfalo capitalista, que rebusca tudo e
tudo transgride, angustiado pela ausência de interditos que lhe barrem o
confronto direto com aquilo que deseja (cf. iek, 2006: 70). Louvável,
precisamente, porque teoriza em modos líricos acerca desse desleixe
hipermoderno que obriga o indivíduo a gozar freneticamente. Por outras
palavras: Morissette desvela que desvelou o bluff do outro e, por arrasto, das
armadilhas sufocantes pós-ideológicas (e, acrescentaríamos, o bluff do seu
próprio gozo masoquista, o seu objeto petit a, por amar quem não a ama,
aplaudindo-o pela renúncia). Se antes o erotismo era tabu, o que estimulava a
economia psíquica no plano da fruição imaginária (o fruto proibido como o mais
apetecível), agora a pornografia é um dever, que prescinde de apelos
individuais para que dela obtenham uma quota-parte, já que ela própria se
oferece e se impõe ao nosso consumo (e o fruto, de tão permissivo que se
tornou, apodrece sem que ninguém lhe toque). O gesto de Surrendering é,
portanto, louvável dado que o eu, num sentido verdadeiramente revolucionário no
plano do desejo, em vez de ceder à tentação de desejar ver os seus sonhos
satisfeitos (ama-me, entrega-te a mim, etc.), obedece à Lei simbólica (a
castração lacaniana: a Lei Paterna, barrando o sujeito, salva-o do abismo que
seria estar demasiado próximo daquilo que deseja). O eu não goza, e nesse não
gozar esconde perversamente do olhar do Outro o seu íntimo gozo secreto. Glenn
McDonald comenta Surrendering nos seguintes termos: Promises are cheap and
easy; stopping the world is an offer you could make to a magazine cover, so how
could making it to a person ever be anything but insulting? But congratulating
them for not letting you drive them off, that is heroic (McDonald, 1998).[14]
Este heroísmo ético do desejo refreado é explanável por recurso a um exemplo de
iek: supor que, no filme de Clint Eastwood, As Pontes de Madison County
(1995), Francesca (Meryl Steep) descobrisse que o marido, camponês modesto e
sem grandes ambições, tinha estado desde o início ao corrente da sua
infidelidade com o fotógrafo da revista National Geographic (Eastwood) e,
compreendendo a importância dessa relação para a esposa, se mantivera em
silêncio durante toda vida para não a fazer sofrer. O estatuto paradoxal de um
saber do saber do Outro lacaniano reside neste enigma:
( ) como é possível que toda a economia psíquica de uma situação mude
radicalmente não pelo facto de alguém descobrir directamente qualquer
coisa que ignorava (um segredo há muito abafado), mas por acabar por
descobrir que o outro(suposto saber) estava ao corrente desde o
início e fingia nada saber só para salvar as aparências? Haverá
situação mais humilhante do que a do marido que descobre subitamente
que a sua mulher esteve sempre ao corrente da sua infidelidade, mas
que sempre se absteve de lhe falar do assunto por uma questão de
delicadeza ou, pior ainda, por amor por ele? (iek, 2006: 58,
itálicos do autor)
Na canção, o render-se do outro a mim é aclamado como a feat of unequalled
measure, ou seja, o reverso de self-protection mas não o seu exato contrário.
Ficar rendido é também uma modalidade do distanciamento. Desta forma,
Morissette desempenharia o papel do marido de Francesca, com o seguinte nó
ético obscuro: eu sei que não me amas, sei de tudo o que se passou, mas faço de
conta que nada sei por amor a ti ' até ao momento em que componho uma canção
sobre este assunto, tornando-o público, e, assim, tu ficas finalmente a par da
seguinte fórmula ainda mais perversa que a do sujeito-suposto-saber: eu sei
(agora, divulgada a canção) que tu sabes que eu sei que tu sabes ' o que
aumenta ainda mais a intensidade do meu gozo.
O regime desta poiese morissetteana não é tanto metafórica, mas mais
metonímica, porque ao serviço de atos do discurso, pragmaticamente entendidos.
O que liricamente é sugestivo de uma constrição emocional que, embora
intrinsecamente agónica, comove e delicia o eu que canta, já o arranjo musical
tende a dissimular essa atitude de verismo e lucidez apaziguada: um pop aéreo,
um toque pânico inicial (de Pã, flauta, nuance tribal), como que anunciando uma
manhã de luz coincidindo com uma iluminação' íntima, devendo-se a certas
guarnições sonoras que reenviam para um subtil toque oriental (o mesmo que
Morissette importou para os mantras do álbum precedente, Supposed Former
Infatuation Junkie, composto no fim de uma viagem à Índia). Segundo McDonald
(1998), both the vocal melodies and guitar hooks swoop up and down scales as
if gravity itself militates against any progress but one step at a time. Em
suma, voz, ritmo e arranjo musical produzem um efeito feliz' revelado, mas que
re-vela uma causa (elegíaca) que sustém o masoquismo do eu: and I'm thrilled to
let you in / overjoyed to be let in kind, ouve-se no fim, com um arranque
energético musicalmente avassalador, antes de o tema insistir duas vezes no
refrão e terminar.[15]
Neste contexto (que implica aquele outro sempre de vigília a respeito da
escrita morissetteana: o da autobiografia), considere-se Mladen Dolar e a voz
como um espelho acústico, uma forma rudimentar e ludibriosa de narcisismo e
transparência:
It [the voice] is the first self-referring' or self-reflective'
move which appears as a pure auto-affection at the closest to
oneself, an auto-affection which is not re-flection, since it appears
to lack a screen that would return the voice, a pure immediacy where
one is both the sender and the receiver without leaving one's pure
interiority. (Dolar, 2006: 39)
Singing, segundo Dolar, is bad communication (idem, 30), no sentido em que
a voz se sobrepõe à mensagem (um motivo que conduz, por exemplo, ao jargão
segundo o qual muito do que se faz na música pop tem muita parra e pouca uva,
sobretudo quando se tenta aportuguesar o que, em inglês, soa bem).
Surrendering, em particular, usa e abusa desse handicap (o equivalente
psicanalítico da castração): a voz como medium faz ecrã sobre a voz como
mensagem, com um determinado conteúdo simbólico. É nessa medida que adquire um
duplo papel paradoxal: é fetichista (tem-se como o seu próprio objeto) e também
é signo de jouissance (a voz como objet petit a). Dolar explica o paradoxo e a
sua ambivalência: music evokes the object voice and obfuscates it; it
fetishizes it, but also opens the gap that cannot be filled (idem, 31). O ato
de sentir prazer em falar, em cantar (voz-objeto-fetiche), encobre do olhar do
Outro o gozo perverso do eu no prolongamento masoquista do seu gesto de amar
(um surplus de voz-efeito ' afinal, overjoyed e não simplesmente joyed ' sobre
a sua voz-causa).[16] Deficiências estruturais imanentes à palavra do discurso:
são percetíveis the infinite shades of the voice, mas esta excede
infinitamente o sentido (cf. idem, 13). Fonocentrismo e logocentrismo: do
mediador mais materialmente dispensável, por contraste com a idealidade
atribuível ao pensamento (o conteúdo transcendental que a voz veicula, por
analogia com o Verbum divino que incarna numa mera vítima sacrificial), o que
Surrendering simultaneamente revela e re-vela é uma voz que, enquanto e porque
voz, equivale a um ato de fala, in the same moment as need is transformed into
desire; it is caught in a drama of appeal, eliciting an answer, provocation,
demand, love (idem, 28; neste contexto, pense-se no trocadilho lacaniano a
respeito do grito: o cri pur, grito puro, inarticulado e a-significante, é
convertido em cri pour, uma mensagem com destino, cf. ibidem). A
autossuficiência narcísica é por essência disruptiva:
( ) for psychoanalysis, the auto-affective voice of self-presence and
self-mastery was constantly opposed by its reverse side, the
intractable voice of the other, the voice one could not control. If
we try to bring the two together, we could tentatively say that at
the very core of narcissism lies an alien kernel which narcissistic
satisfaction may well attempt to disguise, but which continually
threatens to undermine it from the inside. (idem, 41)
Pôr à prova o confessionalismo morissetteano na tentativa de testar a
eficiência da sua sinceridade' autobiográfica é desvirtuar a ilusão de que
este género de textos precisa para efervescer a sua tensão eidética. Ensaie-se,
antes, pensar as palavras e as imagens a partir dessa precaridade material que
ambas partilham, isto é, o facto de serem só palavras e imagens, e, no fim,
talvez fique a sensação de que as manobras elusivas do eu cantado por Alanis
Morissette são tão credíveis quanto as nossas, tão incongruentemente
familiares, que até custa perceber como é que alguém do mundo artístico pode
ser tão despretensioso ao ponto de fazer disso a matéria dos seus textos e, por
breves instantes, sugerir que a vida até pode fazer sentido de todas as
maneiras.