Dores dos Santos, Salomé ou a exaltação do milagre
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No romance O Milagre segundo Salomé, logo na primeira frase, o narrador esboça
o retrato de um jovem, e define-lhe, desde logo, o futuro: Tinha dezasseis
anos, e a sombra dum buço na carantonha lorpa, talhada a enxó na matéria-prima
de que ao tempo se faziam marçanos, conselheiros, deputados e bispos ( )
(Miguéis, 1974, vol. I: 11). Ainda sem identidade, mas já com uma visão crítica
do indivíduo e da sociedade, o narrador vai avançando na descrição daquele que
pensamos, por ora, poder vir a ser o protagonista da história: Severino
Zambujeira. Severino aumentou de peso, diz-nos o narrador, e a carantonha
luzente de gordura e saúde ganhou-lhe expressão menos desconfiada e boçal.
Tinha nos olhos uma vivacidade que alternava entre humilde e curiosa. Mas nada
lhe escapava. (Idem, 23); ( ) Severino acariciou [as notas], cheirou-as com
volúpia, e tornou a guardá-las (Idem, 24). As descrições, sugestivas de
interpretações, impulsionam no leitor o desejo de começar a construir a
identidade desta personagem e a querer desvendar o seu lugar no universo
romanesco. Segundo Vincent Jouve o fenómeno explica-se pelo intérêt que nous
éprouvons pour les personnages [qui] ne vient [ ] pas de ce que nous y
reconnaissons de nous-mêmes (...), mais de ce que nous y apprenons de nous-
mêmes (1992: 235). E é no compasso de espera criado pelo narrador que o leitor
vai alimentando a sua imaginação.
Enquanto artefacto do criador, esta entidade masculina abre o romance para
revelar a intenção do autor: por ora, fazer-nos pressentir a presença da visão
psicossocial do narrador e, de seguida, dar o lugar àquela que realmente
assumirá o protagonismo da história ' Dores-Salomé. Cada frase, cada parágrafo
onde Severino Zambujeira aparece é, pois, fruto de um querer, de um pensar
autorais.
Miguéis, ao começar a sua obra com esta personagem masculina, estabelece um
compromisso com o leitor, orientando-o desde logo no sentido de este
reconhecer, nesta representação masculina, a figuração de um anti-herói.
Inspirando-se nas raízes oitocentistas, e relembrando, mais concretamente, a
estratégia diegética flaubertiana, o romancista aponta para interpretações e
ajuda o leitor a formalizar uma imagem mental sobre a / da personagem. Guia-o e
indu-lo, quer pelo contexto, quer pela linguagem do romance, a compreender que
Severino, apesar da sua densidade e da sua complexidade, não será o
protagonista deste romance.
1. Dores dos Santos: a virgem humilde
Ora, se Miguéis, ou o narrador, tinham dedicado o primeiro capítulo, com o
título paradoxal Onde trinta anos vagarosos passam depressa, a Severino
Zambujeira, eis que, no segundo capítulo, chamado O pão da fome, surge uma
figura feminina, que parece beneficiar logo da simpatia do narrador:
O sol envolveu-a no seu cobertor radioso de ternura e calor. ( )
Calada e fiel, prestável, um palminho de cara sem cor, os modos
acanhados, a cintura frágil, os braços delgados. ( ) Mas ela, Dores
dos Santos não tinha a quem pudesse convencer. (Miguéis, 1974, vol.
I: 25, 26 e 27)
Parece estar em uníssono com a natureza e possuir todos os atributos da
personagem romântica: é doce, frágil, pura e tem por nome um dos plúrices
títulos pelos quais a Igreja Católica venera a Virgem Maria: Dores.[1] Mas a
ligação da personagem à religião e ao sagrado prolonga-se no apelido, dos
Santos, como se o autor pretendesse que o leitor estabelecesse de imediato
contacto com as dimensões divina e fantástica da personagem.
Ora, de seguida, o narrador parece se ter esquecido do seu apelido e faz apenas
uso do nome, Dores, quando narra a sua juventude miserável. Encontramos
representada a personificação da mulher-anjo, que tem fé no Outro e no futuro e
que, por isso, sempre que a vida lhe sorri, vive numa espécie de entressonho,
à margem da realidade (Idem, 36). O narrador, por sua vez, enceta o caminho do
hétero-conhecimento e tece o seguinte comentário: Há destas naturezas, que da
mais pequena coisa tiram partido: uma gota de água lhes mata a sede, uma
migalha as nutre (Idem, 39). Dores sofre as vicissitudes da pobreza, a
exploração do homem pelo homem. No entanto, o sofrimento parece fortalecer-lhe
a alma e a fé que tem no ser humano. No limiar do divino, ou pelo menos do
sobre-humano, Dores aceita o Outro, por mais vil, mais desumano que ele possa
ser e é essa característica, que se vai manter ao longo de todo o romance, que
vai permitir que se lhe atribua a classificação de heroína.
Dores parece querer assumir o papel tradicional feminino: nascida para sofrer,
entrega-se ao homem para encontrar aquilo que ela pensa ser a felicidade. Pela
sua natureza romântica, pelo seu aspeto angelical e ao mesmo tempo sensual, a
personagem vai-se tornar objeto admirável de desejo e simultaneamente ser
inalcançável, no tocante à nobreza de alma da personagem. Virgem humilde,
anjo, ficá-lo-á para sempre, mesmo quando se encontra nas chamas do Inferno
(Idem, 84). Para que esta pureza e esta inocência sejam aceites pelo leitor, a
descrição do seu corpo surge, pela primeira vez, segundo o ponto de vista da
dona Rosa, a proprietária do bordel onde ela vai trabalhar:
E quando finalmente o seu corpo surgiu, radioso de alvura na fraca
luz de saleta, estátua de pudor e timidez, Vénus inconsciente da sua
divindade, o rosto afogueado a esconder-se nos cabelos soltos, um
braço em curva tentando encobrir os seios polidos, a mão esquerda a
proteger a fonte da vergonha e da desgraça, um joelho sobreposto ao
outro em pose que ela nunca vira, a dona Rosa não pode disfarçar um
sobressalto e ficou muda de admiração. Só passados uns instantes
conseguiu dizer:
- É uma escultura uma Salomé!
Sabedora do ofício e sensível à beleza, tinha um nó na garganta: só
uma mulher pode talvez aliviar todo o poder de sedução num corpo
feminino. Imóvel no seu canto, Dores era a incarnação da pureza e da
voluptuosidade, do pudor que, resistindo, mais aguça o desejo e a
vertigem da posse. (Idem, 85-86)
Autoexilada do mundo que a rodeia, esta mulher evolui de forma complexa, como
se, na sua busca da felicidade e, consequentemente, de identidade,
promiscuidade, devassidão e misticismo se conjugassem perfeitamente com
ingenuidade, pureza e realidade.
2. Salomé-Dores/Dores-Salomé: virgem ou prostituta
O narrador intervém sempre que surge a necessidade de enaltecer os valores
morais da personagem, sempre que ele quer partilhar a grandiosidade espiritual
desta mulher com o leitor:
O ofício horrorizou-a: não tanto por julgá-lo pecado ' as subtilezas
da Moral e da Teologia estavam fora do seu alcance ' nem sequer
degradação social, de que não tinha uma ideia bem clara; nem mesmo
pela submissão a que se condenara: mas pelo espectáculo do macho
egoísta e guloso, que não lhe podia entender a inocência nem o pudor.
(Idem, 87)
A cada intervenção, o narrador revela estar do lado desta personagem, partilhar
com ela princípios, sentimentos e dor. O leitor penetra na consciência de
Dores, agora também Salomé, por via do olhar, da perceção do próprio narrador,
que também sabemos ser personagem. Do domínio do possível, esta entidade
feminina resulta da combinatória do interior e do exterior e, por tal facto,
ela vai sofrendo uma evolução, que a vai tornando cada vez mais densa e
complexa.
Ora, este percurso para a heroicidade é marcado por experiências e vivências
que, aos olhos de uma sociedade religiosa e conservadora, são anti-heroicas:
envereda pelo caminho da depravação e da imoralidade, o da prostituição, para
fugir à miséria e à tristeza. Contudo, o narrador escolhe uma linguagem poética
para sensibilizar o leitor e para lhe provar que a personagem se mantém
espiritualmente imaculada, como se o corpo não tivesse conseguido vencer o
espírito, como se a lascívia nunca lhe tivesse corroído a alma: ela continuava
a ser uma flor impoluta boiando num paul. O sonho e a pureza, como dois anjos
invisíveis, sustinham-na no espaço, sobre o abismo, sem cair (Idem, 105).
Consegue resistir à provação amando o filho que traz no ventre, e o narrador,
de forma a prender o leitor neste meio-termo identitário, chama-a Salomé-Dores:
está presa entre a promiscuidade, a devassidão e a inocência, a pureza. Esta
mulher passa por realizações catárticas que a enriquecem sem nunca a
transformarem.
Sempre que a personagem se encontre numa situação de autenticidade afetiva e
moral, o narrador faz uso do nome composto, utilizando ora Salomé-Dores, ora
Dores-Salomé, consoante a liderança da identidade. A dupla identidade surge
quando a personagem confraterniza com as suas colegas da desgraça, quando se
abre e quando tem um discurso mais intimista:
A dona Rosa pôs-lhe médico à cabeceira, tratou-a com desvelo, cuidou
do enterro, fez tudo. Felizmente, o feto estivera morto pouco tempo
no útero, e Salomé-Dores restabeleceu-se depressa.. ( ) percebeu
vagamente que, por vezes, sujeitar-se é mais fácil do que rebelar-se
em vão. E como havia de lutar, se não tinha nem conhecia ninguém além
da senhora Engrácia, da dona Rosa, da Mouca, das companheiras que a
amparavam; nem outro refúgio, fora dali, senão a morte? (Idem, 87-88)
Perfeita de formas e bonita a valer, a Mouca não era triste nem
desbragada. ( ) Era com ela que Dores-Salomé se abria um pouco ( ).
' ( ) Eras uma tapadinha. Atão não vistes logo ó que ele andava? ( )
Olha como t'ele soube levar ó castigo, a fingir-se de santinho! E no
fim deixou-te co'a barriga cheia e passou-te a palheta! Caístes como
um passarinho na rede. ( ) Mas tu tão séria, criatura! Credo, andas
nesta vida, e é como se nunca tivesses conhecido um homem. Atão não
é? ' rematou ela com pena. Aquela Salomé tinha um ar de santa. (Idem,
93-94)
A alma fica exposta e, por tal facto, a dupla identidade desta personagem é
evidenciada, vencendo, por vezes a Dores, outras, a Salomé. Ora, o facto é que
o leitor ainda não consegue superar as suas indecisões, optar por uma ou por
outra das identidades, completar os espaces d'indétermination (Jouve, 1992:
34) deixados voluntariamente pelo criador.
3. Salomé: a milagreira
Mas eis que o narrador esclarece que a personagem feminina decide abdicar do
seu nome de nascença ' que lhe conferiu, ao longo de muitos anos, uma
identidade, que a mantinha ligada a um passado ' para assumir um outro,
Salomé, um nome para batalhas de amor-fingido (Miguéis, 1974, vol. I: 89), e
que, doravante, lhe irá servir de armadura defensiva (Ibidem). Perde o nome
Dores para proteger a alma: Alguns valentões obstinados tentaram despertá-la,
pervertê-la, convertê-la ao prazer: acabavam por desistir, esgotados. A fama
correu: diziam-na sempre-virgem, que nenhum homem a pudera desflorar (Idem,
91).
Miguéis escolhe Salomé, a divindade mais afortunada do eterno feminino, a
figura que, no Novo Testamento, no capítulo 14 (6-11) do Evangelho de São
Mateus, no capítulo 6 (21-28) do Evangelho de São Marcos, pela sua dança
sensual, encanta Herodes, o seu padrasto, que acaba por lhe prometer o que ela
quiser. Ela, influenciada por sua mãe, Herodíades, pede a cabeça de João
Batista. Herodes atende ao seu pedido pelo facto de este ter sido feito em
público e dá-lhe a cabeça de João Batista numa bandeja de prata, que ela
oferece à mãe.
Na Idade Média, a história de Salomé aparece entre representações da vida de
São João Batista, e a dançarina torna-se o símbolo do ideal de beleza da forma
humana. Nos séculos posteriores, Salomé adopta a forma de mulher fatal e torna-
se tema recorrente. A figura assume o plano central de dramas e não mais o
papel secundário que a narrativa bíblica lhe tinha reservado: o mito é
retratado por Caravaggio, Gustave Moreau, J. K. Huysmans, Gustave Flaubert,
Stéphane Mallarmé, Jules Laforgue, Oscar Wilde, Richard Strauss, etc.
Tal figura tem a transgressão, o mistério e simboliza, ao mesmo tempo, coisas
paradoxais. Mexe com os sentidos humanos, causa ebulição, provoca um sentimento
de inquietude e estranhamento, a sensualidade do seu corpo tornando-
a contraditória: é mulher / animal; é ser humano / ser divino; é ser natural /
ser artificial; é mortalidade / imortalidade; é sagrado / profano. Em suma,
Salomé ultrapassa os limites do real.
José Martins Garcia diz-nos que a escolha do nome das personagens, enquanto ato
criador, é fonte de preocupação para o escritor, pois pode estar relacionado
com o devir de quem o porta e, assim, possuir uma forte carga simbólica. O nome
é, para Miguéis, a certidão de nascimento da máscara (2001: 111), por isso
conferiu o nome Salomé a esta sua criação feminina.
Com o nome da meretriz, a personagem feminina de Miguéis desempenha um papel,
mas continua, efetivamente, a agir em função de um devir no qual mantém a fé '
deixar essa vida e ficar ao lado de um homem que a trate bem e ter filhos ',
não perspetivando mais ter o amor de que sempre sonhara ao seu lado. O narrador
emite, mais uma vez, uma impressão, que coloca a personagem numa dimensão outra
que a realidade palpável, como se a natureza deste ser estivesse cada vez mais
perto do divino e do sagrado: O sonho e a pureza, como dois anjos invisíveis,
sustinham-na no espaço, sobre o abismo, sem cair (Miguéis, 1974, vol. I: 105).
Salomé recalca o seu sofrimento, aceita-o enquanto provação, ponte a transpor,
porque, tal como nos explica Florence Godeau, l'intériorisation de la loi
morale et la prégnance des processus morbides de culpabilisation déterminent
des stratégies inconscientes d'autoflagellation et des processus de repli
interdisant l'épanouissement initialement escompté (Godeau, 2010: 3). É, por
isso, imprescindível que nos debrucemos sobre o ponto de vista de outras
personagens, que analisemos o olhar que elas depositam sobre essa mulher.
Com efeito, embora falemos dela como de uma personagem-herói, pela resistência
ao mundo do pecado e da devassidão, também outras personagens, com o seu
percurso existencial, satélite ao do herói, propiciam essa atribuição: Severino
Zambujeira e o narrador-personagem, Gabriel Arcanjo.
Ora, descobrimos que, ao lado de Severino Zambujeira, Salomé deixa cair a
armadura que a protege, habitualmente, dos homens e que se abandona pela
afeição que nela nasce. A voz do narrador faz-se ouvir para nos envolver no
sentimento nascente da personagem: o Zambujeira, como um génio dos contos de
fadas, mandou-a reconduzir ao jardim de São Pedro de Alcântara, e ela voltou à
Travessa da Queimada julgando pisar um colchão de molas ou de interrogações
(Miguéis, 1974, vol. I: 155). Tal como a heroína, pressentimos que esta figura
masculina vai fazer parte do seu futuro próximo. Contrariamente aos outros
homens, este soube ler no mais íntimo do ser desta mulher: A Salomé é
diferente das outras. Os seus modos E não é só isso: alguma coisa que tem lá
dentro, e não mostra, e que eu julgo adivinhar, sabe? (Idem, 161).
As escolhas narrativas do romancista ajudam-nos a mergulhar na consciência de
Severino Zambujeira ' e, consequentemente, de Gabriel, o narrador-personagem '
e, assim, a descobrir a visão que ele tem dela. Maria Angelina Duarte
acrescenta, por isso, o seguinte sobre esta técnica de Miguéis:
Quando se começa a examinar a descrição dessas mulheres na obra de
José Rodrigues Miguéis, fica-se imediatamente surpreendido pelo facto
de não se conhecer a forma de pensar ou de sentir delas. A primeira
pessoa, ou a perspectiva narrativa da omnisciência limitada utilizada
em toda a obra de Miguéis, possibilita apenas ao leitor ver as
mulheres através do olhar dos narradores masculinos ou protagonistas
masculinos. Consequentemente, as verdadeiras motivações das mulheres
não são conhecidas ( ). O resultado é o leitor ficar com a sensação
incómoda de nunca chegar a conhecer estas mulheres. (Duarte, 2001:
130)
Mais próxima de Maria, a mulher-redenção, Salomé sabe não ser esse O homem, o
amor e a felicidade que ela procura, no entanto, aceita acompanhar Zambujeira e
esforça-se para o fazer feliz. O narrador parece querer que aceitemos o lado
mais obscuro desta personagem feminina e que a passemos a ver como um ser
ambivalente cuja lógica existencial é a busca do equilíbrio. O mal reforça a
sua fé, o bem intensifica a sua revolta[2]: ela é, pois, uma personagem densa,
complexa e bipartida. Luta contra as vicissitudes da vida com o sonho,
acreditando, ainda com mais convicção, no poder redentor do amor verdadeiro:
Porque o sonho, nela, era só de modéstia e obscuridade. Queria ter o
seu homem, e tinha apenas um amigo; em vez da vida simples e
laboriosa, a vacuidade mundana; em vez do amor ( )
Nunca tinha conhecido em criança o amor. Iludira-se na sua dedicação
ao velho. Retraída diante da função profissional, recusara-se a ter
em conta essa força soberana da natureza, teimara em prescindir dela:
deviam bastar-lhe o carinho e o prestígio do amante, a segurança e
protecção. E via agora que isso não bastava a si mesma, com dúvida e
tristeza, se poderia vir a amá-lo um dia: e sentia uma pedra pesar-
lhe no lugar do coração. (Miguéis, 1974, vol. I: 208).
A angústia começa a dominá-la e a impedir que a sua vida quotidiana siga o seu
rumo: não vendo, no dia a dia, nenhum futuro, volta-se para o passado, para
aquilo que perdera, na esperança de lá encontrar a sua própria identidade.
Michel Maffesoli compreende a angústia da seguinte forma:
A angústia ( ) é um elemento essencial do mecanismo da violência. Não
se pode prescindir dela. E isto porque ela é, stricto sensu,
intuição do nada. O nada, neste sentido, é algo a viver. E é
vivendo-o que se pode chegar a sobreviver, a um mais viver. A
angústia atormenta o criador. Seja este profeta, revolucionário,
artista ou pensador, ele fez deste conhecimento as bases da sua
construção ou da sua reconstrução. Eu disse intuição: visão do
interior. Porque é, somente, do interior que uma força se pode impor.
Donde o seu aspecto doloroso. (Maffesoli, 2002: 63)
A intuição de Salomé leva-a a voltar-se para as origens, em busca de algo que
nunca tivera ' ou que muito cedo perdera ', à espera de um milagre na sua vida.
Dirige-se, pois, para Meca, a aldeia que, outrora, fora o marco da sua
existência. O narrador esclarece que ela passou como uma visão ( ), que lhe
cabia bem o nome de visão: sobre a seda fosca do vestido, branco como um de
Chopin, a ampla capa de veludo azul com forro de cetim rosa-pálido tinha
reflexos cariciosos ( ) ela tinha razões inconscientes para viajar assim ( )
(Miguéis, 1974, vol. II, 14).
A narrativa toma, então, uma dimensão mística, parecendo querer inspirar-se na
Aparição da Senhora, na Cova da Iria, em 1917. Gérald M. Moser esclarece que o
episódio da aparição de Salomé às três crianças poderia servir como
interpretação racional e plausível (2001: 221) do Milagre de Fátima. Mas
vejamos o que nos diz o Auto da Aparição de Gabriel Arcanjo:
Caso é que ' rezam solícitos correspondentes ' a treze de Abril e
sexta-feira, ao sol-pôr, estando pesados e plúmbeos os céus, três
crianças cujos nomes são de uma bíblica simplicidade: Jaquina,
Maria e Manel, andavam a apascentar umas ovelhas no cerro de Lapa
d'Ursos, sobranceiro ao lugarejo de Meca, quando, um pouco acima
delas, no alto das rochas e sob as ramarias dum velho sobreiro que
ali vingou crescer e afrontar os séculos e os temporais, se
aperceberam de um clarão sobrenatural. Erguendo os olhos, avistaram
uma figura de radiosa beleza, na qual sem hesitar reconheceram a
benta imagem da Senhora das Dores, padroeira da freguesia,
fervorosamente adorada na região. (Miguéis, 1974, Vol. II: 63)
Apesar da aproximação entre a Aparição da Cova da Iria e a da Lapa d'Ursos ser
inequívoca, de sabermos que Miguéis, enquanto ateu, anticlerical e Republicano,
pretendia criticar a igreja e a sociedade, há que refletir sobre o lado mais
interessante do Milagre segundo Salomé: este mais da ordem do humano que do
divino. Enquanto todas as outras personagens foram incapazes de desvendar o
segredo do Milagre de Meca, Gabriel desvenda o verdadeiro prodígio do
acontecimento: a própria Salomé.
Ser perspicaz ' que partilha, com o escritor, os ideais políticos e sociais '
Gabriel valoriza o Homem, enquanto ser uno e coletivo, e procura ler para além
do percetível. Entende, pois, que o Milagre segundo Salomé é o do amor:
' Foste tu que fizeste o Milagre os pastorinhos viram em ti a Virgem
mãe de Deus, a encarnação da pureza, da virtude e do amor, e
adoraram-te. Viram-te como eras ' e és ' através do luxo de
Zambujeira e de tanta miséria: boa, virgem, maternal! ( ) Tu és o
único e o autêntico milagre. Deste-lhe a realidade física e não
metafísica, como queria o filósofo deputado! Enquanto os outros
tiraram dele a riqueza e o poder, tu colheste nele a redenção pelo
amor o nosso amor! Haverá maior milagre? (Idem, 341)
Diminuída pela vida, enaltecida pelo homem, Salomé passa pela estigmatização
moral sem um só golpe: enquanto heroína, ela é o resultado de uma simbiose
misteriosa entre o bem e o mal, e é com o Milagre que estes dois valores morais
se fundem e geram sentimentalidade. Michel Maffesoli escreve que A partir do
momento em que se experimenta [o mal], integra-se um acréscimo de vida e isto
em todos os aspectos desta e que reconhecer o aspecto estrutural do mal é
participar, no sentido místico do termo, na força das coisas e no poder da
vida (Maffesoli, 2003: 53). Ao lado de Gabriel, Salomé encontrou o sentido da
sua vida, e vice-versa, sendo, então, o milagre o da própria existência humana.
José Rodrigues Miguéis, no segundo volume do romance O Milagre segundo Salomé,
retrata a evolução psicológica desta personagem feminina, enquanto descreve,
com toda a minúcia, os acontecimentos históricos que a rodeiam. Ora, o facto é
que só a descobrimos por via do olhar masculino, ou do narrador-personagem
Gabriel Arcanjo ou dos outros protagonistas homens que, em algum momento,
cruzaram a sua vida, e ficamos, por isso, com a impressão incómoda de que
nunca chega[mos] a conhecer [essa] mulher (Duarte, 2001: 130). Mas o
importante é que a protagonista feminina foi sujeita a um processo dinâmico de
construção e é sob o nome de guerra, Salomé, que recupera a dignidade humana,
que encontra o verdadeiro amor: meretriz pelo corpo, anjo pela alma, a fé num
homem-redentor, capaz de a salvar pelo amor, alimenta-lhe a alma e purifica-lhe
o coração. Encarnação da pureza, Salomé dá realidade física à Virgem mãe de
Deus pela força do seu ser e torna-se, então, O milagre da humanidade.