Interiors and Narrative: The Spatial Poetics of Machado de Assis, Eça de
Queirós and Leopoldo Alas
VIEIRA, Estela, Interiors and Narrative. The Spatial Poetics of Machado de
Assis, Eça de Queirós and Leopoldo Alas, Plymouth: Bucknell University Press /
Rowman: & Littlefield, 2013, 249 pp.
Orlando Grossegesse*
*Coordenador Ciências de Literatura CEHUM, Universidade do Minho, Braga,
Portugal.
ogro@ilch.uminho.pt
No panorama anglo-saxónico internacionalizado da Ciência da Literatura, o
estudo de Estela Vieira tem, desde já, o inegável mérito de despertar o
interesse da comunidade científica para três autores e obras que, por razões da
persistência do cânone literário ocidental, têm tido pouca oportunidade até à
atualidade de serem protagonistas' de uma abordagem comparativa. O objetivo
declarado são reflexões e definições aplicáveis à poética narrativa das últimas
duas décadas do século XIX, prescindindo do peso' dos respetivos cânones
nacionais de Brasil, Portugal e Espanha em que Machado, Eça e Clarín (Leopoldo
Alas) se destacam, e partindo de analogias importantes na sua abordagem da
escrita realista:
Their technique relies on a basic analogy between the novel and the
interior space. In these novels the representation, context, and
content of the domestic settings have meta-fictional qualities. In
other words, for all three authors the furnishing and experiencing of
an interior was something akin to the writing of the novel. (p. 3-4)
Indo além das considerações políticas que fizemos de entrada, e que ecoam no
que a própria autora escreve (p. 3; 76), esta tese inicial centrada numa
semelhança entre mobilar um espaço e escrever um romance não torna muito
transparente o que motivou a escolha precisamente destes três autores e destas
três obras, em várias ocasiões denominadas de clássicas ou poderosas. Por
outras palavras: qual o contributo para a história literária, entre realismo /
naturalismo e modernidade, em termos de representação e semantização simbólica
do espaço portas adentro? Ao longo do estudo, o leitor procurará respostas em
afirmações como: If in The Maias there is an excess of divans and its
derivates, and Quincas Borba is full of emblematic mirrors, La Regenta is
obsessed with balconies (p. 200), e ficará satisfeito, contudo não totalmente.
Em diversas ocasiões, refere-se o denominador comum de romances de declínio,
dissolução e fragmentação, evitando ' com acerto ' o foco em semelhanças
narrativas, nomeadamente do adultério (vd. p. 49), para não se desnortear do
objetivo. No entanto, não se chega a uma análise das representações de espaços
repletos de objetos que espelham o Eu narcísico e que indiciam ao mesmo tempo
uma rutura com o mundo exterior, em termos de decadentismo ou esteticismo, por
estes serem conceitos ausentes deste estudo.
Surgem dúvidas se a dimensão metaficcional (tal como a intertextual ou
intermedial) deve ser considerada per se indicadora de uma transcendência do
paradigma realista-naturalista para the modern search for an inner life (p.
14). Na parte introdutória, dados biográficos, contextualizados em termos
socio-históricos, são utilizados para definir qual o papel do espaço interior
para e na escrita literária. Por exemplo, no caso de Machado, the interior
space acts as the point of departure for both the development of ideas and of
the story (p. 22). Esta abordagem biografista é sem dúvida a parte mais fraca,
aliás pouco articulada com os três capítulos principais intitulados Furnishing
the Novel, Interiors and Interiority e Discourse of Interiors.
Perguntamos: como se pode comprovar um nexo mais específico entre a mobília dos
lugares de criação literária e a representação de mobília, bem como a sua
funcionalização simbólica no seio dos romances em questão? A repetição de
fiction meets reality, life greets death (p. 14; p. 41) como frase final de
subcapítulos pode ser vista como camuflagem retórica desta aporia, ainda
diluída pela análise de três quadros (Vermeer, Lamson Henry, Ramón Casas:
também na capa) que ilustram este nexo e que, por representarem mulheres,
poderiam insinuar uma abordagem no âmbito dos gender studies. Inevitavelmente,
a autora tinha de ter em conta o vasto património científico na esteira do
Spatial Turn que diz respeito ao relacionamento entre espaço e sexo feminino na
História após o Iluminismo; e que se tornaria especialmente relevante ao
analisar o comportamento duma protagonista tão complexa como Ana Ozores no
romance clariniano, centrada no seu dormitório, na sua cama (pp. 143-147).
Ana's bed is the site where life greets death ( ) (p. 144) é uma frase que
nos soa familiar... De facto, ela revela-se, noutro sentido do título, a
Regenta do seu Room of One's Own ' nomeadamente na qualidade de sonhadora,
leitora e até escritora.
Não se entende como este estudo despacha tão rapidamente a questão da
organização espacial conforme o sexo (pp. 34-35, notas 11 e 24) sob o argumento
de Private dwelling becomes one's main form of existence and self-identity
regardless of gender, although it is first and primarily governed by feminine
traditions (p. 9), para enveredar a via benjaminiana de Passagenwerk / The
Arcades Project, presente ao longo do estudo.[1] Somente muito mais adiante, a
autora explora a releitura feminista dos romances oitocentistas sob invocação
de Virginia Woolf, aplicada ao caso de Sofia em Quincas Borba (p. 178),
continuando todavia a insistir na negação do gender specific (p. 177).
Contudo, é neste mesmo estudo que se realça (partindo da análise de Rubião) a
não-obediência das personagens masculinas à divisão tradicional de privacidade,
ao se aproximarem de representações típicas de mulheres: what strikes us about
the male protagonists in that interior is how a sense of privacy pervades the
way of thinking and feeling of these male characters (p. 110). Por isso, em
vez de defender o indivíduo moderno como creature of the interior, regardless
of gender (p. 121), teria sido melhor situar-se decisivamente na linha dos
gender studies pós-feministas, tal como, por exemplo, Milette Shamir (2006) em
relação à narrativa americana do séc. XIX.[2] Deixando uma afirmação invertida
do calibre Sensitivity to decorate detail, apparently the duty of both
narrator and dandy, is also a woman's talent (p. 135) meramente retórica (ao
falar sobre Maria Eduarda e a Condessa Gouvarinho), significa desperdiçar a
oportunidade de uma abordagem da escrita queirosiana no âmbito do dandismo
(conceito não indexado neste estudo) e, com isto, a discussão sobre o discurso
narrativo no caminho para a modernidade.
Se no início nos interrogámos sobre os motivos da escolha destes três autores e
destas três obras, devemos, em segundo lugar, perguntar pelo critério da
sequência: será a data de nascimento dos três autores, Machado (* 1839), Eça de
Queirós (* 1845) e Alas (* 1852)? Curiosamente, as datas de publicação em livro
das três obras escolhidas para análise vão justamente no sentido contrário:
Quincas Borba (1891), Os Maias (1888) e La Regenta (1884-85). Colocar o autor
brasileiro em primeiro lugar, depois o português e o espanhol por último terá
tido o intuito de contrariar não só o eurocentrismo da filologia tradicional,
persistente quando se trata de literatura oitocentista, mas também terá
procurado, ao prescindir de um autor francês, mais especificamente, evitar o
galocentrismo, cujo prestígio os próprios autores sentiram como condição muitas
vezes incómoda da sua escrita. Seria um esforço inglório tentar escamotear o
peso desta receção, emulativa ou produtiva, tanto de arquitetura, mobília, moda
e, em geral, estilo de vida como da própria literatura vinda de Paris ' Ville
lumière tantas vezes elogiada, ironizada e repudiada como centro do mundo
civilizado na segunda parte do século XIX. Inevitavelmente, esta relação de
cultura importada' que se sobrepõe como inautêntica' às tradições da terra,
não escapa à crítica de nenhum dos três autores. Neste sentido, a escolha de
Quincas Borba como objeto de análise não poderia ter sido mais acertada (vd. p.
50). No entanto, uma vez que esta questão permeia as três grandes vertentes
analíticas deste estudo, era de esperar que merecesse maior atenção e reflexo
na sua própria estrutura.
Apesar de logo as primeiras notas se referirem a Balzac e Flaubert (ao lado de
Henry James), este fenómeno de receção que inclui as próprias realist and
naturalist traditions não é tema: pois, neste estudo, afirma-se
perentoriamente um excesso' da funcionalização de rooms and furnishings,
indo além de their traditional functions of representing a symbolic background
or an important extension of a character's persona (p. 39). A autora fica a
dever a prova deste excesso', interpretável ou como signo de uma realização
própria do realismo / naturalismo, ou como anúncio de modernidade (própria),
sem com isto cairmos num discurso apologético que as historiografias literárias
nacionais de Brasil, Portugal e Espanha repetiram até à exaustão. Também não
reclamamos a necessidade de integrar na análise comparativa um autor / um
romance francês da época. Mas as breves referências a Père Goriot (1854),
guiadas por Auerbach e Genette (p. 101), tendem a esquematizar uma complexidade
interna da praxis literária que, para o tema que aqui interessa, um romance
como Pot-Bouille (1882) facilmente é capaz de demonstrar, até na dimensão meta-
discursiva.[3]
É surpreendente como este estudo pode ignorar categorias da história material,
cultural e intelectual tais como bibelot, que demonstra uma mobilidade'
intrínseca ao longo do século XIX através de espaços aristocráticos, artísticos
e burgueses[4], ou como o orientalismo (vd. n'Os Maias; cit.: p. 135) e, ainda,
o diletantismo, tal como o dandismo, já referido, fulcral para o entendimento
da época. Nomeadamente estes dois últimos conceitos teriam instruído com muito
maior força a análise: veja-se o exemplo de Carlos da Maia e João da Ega que
consume themselves with interiors ( ) and do not succeed in involving
themselves with their reality or in contributing to the world around them (p.
124). Percebe-se toda a (auto-)ironia de Ega, ao receber o seu príncipe por
primeira vez no humilde tugúrio do filósofo (citando Herculano ao receber o
Imperador D. Pedro II), na sua Villa Balzac, lugar de adultério chic com a
esposa do banqueiro Cohen em vez de criação literária revolucionária, e quando
proclama que eu não tolero o bibelot, o bric-à-brac, ( ), essas mobílias de
arte Que diabo, o móvel deve estar em harmonia com a ideia e com o sentir do
homem que o usa! (cit.: p. 132), reivindicando uma correspondência substancial
entre o espaço e quem o habita que sabe irremediavelmente perdida. Por isso,
não deixa de surpreender como o estudo pode prescindir da analogia entre
mobília, vestuário e estilo de vida sob o sistema alienante da moda, para
analisar a representação de espaços interiores unable to separate themselves
from the larger corrupt society and hence ( ) not capable of affording a true
sense of independence of the individual from the outside world (p. 56). Nem
uma única nota dedicada ao romance À Rebours (1884), chamado, num estudo
recente, la subversion systématique du discours des grammaires des arts
décoratifs, por se centrar numa encenação narcísica excessiva do Eu[5], uma
encenação com a qual os aposentos parisienses de Jacinto supercivilizado,
estranhamente ausentes deste estudo, entram em diálogo: a acumulação de todas
as verdades, novidades e comodidades causam a maladie de la volonté (Paul
Bourget) ou despertam aquela profunda Melancolia alegorizada na famosa gravura
de Albrecht Dürer (curiosamente, um espaço interior, repleto de objetos e
virado para fora). No epílogo, não teria sido uma melhor opção A Cidade e as
Serras finissecular a contracenar com Candide, ou l'Optimisme de Voltaire? em
vez de introduzir em duas escassas páginas D. Evaristo Feijoo, proveniente de
outro universo narrativo de la literatura espanhola realista, o de Benito Pérez
Galdós.
Concluindo, havia muitos pontos de referência para argumentar com maior
critério, em vez de repetidamente invocar a modernidade destas narrativas
evident not only in the turn toward the individual's search for interiority,
but also in their contemporary sociological reading of the impossibility of
separating the private from the public, afirmando que estes romances go
beyond the realist talent of invading and making public the mundane private
world of bourgeois characters (p. 57). Não comparto esta certeza. Podemos
continuar a perguntar, em que medida a passagem da poética do tempo para a
poética do espaço, observada nomeadamente em Os Maias e La Regenta (vd. p. 199,
com extensa nota 39), definem já uma passagem para a modernidade, como a autora
repetidas vezes afirma, tal como questionámos a afirmação de the modern search
for an inner life (p. 14). Falta aqui uma diferenciação da práxis realista-
naturalista de tendência decadentista e esteticista que parte precisamente dos
pequenos objetos em espaços interiores ou de transição entre fora e dentro,
interligada com a procura duma nova linguagem da interioridade ou da aura
perdida ' daí uma escolha feliz dos alicerces teóricos centrados em Gaston
Bachelard e Walter Benjamin. A marginalização de Bakthin, uma decisão legítima,
teria de ser melhor explicada, nomeadamente quando há conceitos como
threshold (soleira) em jogo, adquirindo ' e com toda a justeza ' um papel
central, tal como as varandas ou sacadas, nomeadamente em La Regenta, romance
analisado de forma mais integrada do que Os Maias por se entender Vetusta como
arquitectural whole in the sense that the entire city can be conceptualized as
one interior (p. 207). Não será isto também o caso do high life lisboeta,
representado num circuito fechado (mesmo dentro da cidade) e reduzido a poucos
lugares, parecido a um Big Brother dos Famosos?
A ideia de que Estela Vieira não está sozinha é comprovada pelo volume editado
em 2011 por Subha Mukherji com um título Thinking on Thresholds: The Poetics of
Transitive Spaces (Anthem Press), que também teria ficado bem a uma parte do
seu Interiors and Narrative. É nomeadamente nesta dimensão analítica que se
revela claramente a razão de ser deste estudo, não obstante os nossos
comentários críticos. Talvez o aspeto mais forte seja a leitura da semantização
colonial dos espaços interiores, a meu ver, pela primeira vez feita de uma
forma comparativa entre romances de proveniência brasileira, portuguesa e
espanhola: mantemos a sequência escolhida pela autora que sugere uma visão de
Provincializing Europe. É só ao longo do estudo que o leitor se vai
apercebendo, passando de Machado para Eça e Clarín (Leopoldo Alas), da boa
escolha dos romances para serem analisados, pela sua riqueza de detalhes. O
livro de Estela Vieira possui, indubitavelmente, a virtude de despertar a mente
para a relevância dos espaços interiores, representados, imaginados e
metaforizados nas arquiteturas narrativas do fim do século XIX.
Notas
[1] Cf. uma exploração semelhante em Julia Prewitt Brown (2008), The Bourgeois
Interior: How the Middle Class Imagines Itself in Literature and Film.
Charlottesville / London: University of Virginia Press (não referida em E.
Vieira, 2013).
[2] Análise de Melville, Beecher-Stove, Hawthorne e Thoreau, em Milette Shamir
(2006), Inexpressible Privacy: The Interior Life of Antebellum American
Literature, Philadelphia: Univ. of Pennsylvania Press.
[3] Vd. o capítulo Zola's Restless House, em Sharon Marcus (1999), Apartment
Stories: City and Home in Nineteenth-century Paris and London. Berkeley / Los
Angeles: Univ. of California Press, pp. 166-197. Em E. Vieira (2013), Zola está
ausente.
[4] Cf. por exemplo, a análise diferenciada da passagem da poética de Balzac
para Flaubert, Maupassant, Gautier, Huysmans, os Goncourts, Jean Lorrain e
Proust, em Janell Watson (1999), Literature and material culture from Balzac to
Proust: the collection and consumption of curiosities. Cambridge, UK: Cambridge
University Press.
[5] Bertrand Bourgeois (2006), À rebours des grammaires des arts décoratifs,
Image & Narrative, nº 16, referindo os livros de Charles Blanc, La
grammaire des arts décoratifs. Décoration d'intérieur de la maison (Paris,
1882) e Henri Havard, L'art dans la maison. Grammaire de l'ameublement (Paris,
1884).
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