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EuPTHUHu0807-89672014000100015

EuPTHUHu0807-89672014000100015

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0807-8967
Year2014
Issue0001
Article number00015

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Mecanismos não-verbais e paraverbais na construção do ethos em L’étranger de Albert Camus

1. Introdução O presente artigo baseia-se no trabalho de dissertação de mestrado intitulado A Construção do Ethos em L’étranger de Albert Camus, apresentado em novembro de 2013 à Universidade do Minho, no âmbito do curso de Mestrado em Linguística Portuguesa e Comparada.[1] Enquadrado no estudo de produções linguísticas autênticas, e uma vez que engloba um complexo de mecanismos e estratégias discursivas rico e variado, selecionámos o discurso literário como objeto de investigação.

Embora, no quadro teórico proposto pela Análise Linguística do Discurso, comece a (re)surgir um interesse na articulação das Ciências da Linguagem e da Literatura, estas duas áreas permanecem ainda demasiado autónomas, o que nos motivou para o estudo do discurso literário, numa perspetiva linguística. Os contributos da Linguística no domínio literário ultrapassam o simples fornecimento de ferramentas de análise e, neste quadro de investigação, são capazes de abarcar o discurso literário na sua multiplicidade e na sua diversidade e, como tal, propor e fundamentar novas linhas de leitura/ investigação literárias.

O romance L’étranger[2] de Albert Camus, além de constituir um marco no panorama literário do século XX, compreende mecanismos verbais, mas também mecanismos não-verbais e paraverbais[3], que concorrem para a construção de uma multiplicidade de imagens distintas do protagonista, Meursault, fundamentais para a organização narrativa da obra.

Na investigação que está na base deste artigo, procedemos à análise qualtitativa de excertos que abrangem a globalidade da obra, e cuja seleção teve em conta a ocorrência de discurso relatado, enquanto estratégia global ao serviço da construção do ethos. Partimos do pressuposto de que a elaboração do ethos se encontra presente em qualquer interação (ethos discursivo) (Maingueneau, 1999), mas, em particular, na história comum dos interlocutores e no imaginário doxal vigente numa determinada sociedade (ethos pré-discursivo) (Amosy, 1999, 2010).

A análise realizada foi estruturada em duas partes centrais que correspondem a dois momentos nucleares da obra: o episódio do funeral e o episódio do julgamento. Esta organização procura articular dois pontos de vista relativamente aos eventos que sucedem à morte da mãe do protagonista, designadamente, o ponto de vista de Meursault e o ponto de vista das restantes personagens. Como tal, tivemos em consideração dois processos que participam na elaboração das imagens do protagonista: a heteroconstrução e a autoconstrução.

Na análise das imagens das personagens construídas num texto literário, que considerar que todo o ethos é, necessariamente, discursivo. Contudo, no universo ficcional da obra, estabelecemos algumas distinções, de forma a tornar mais explícito o tipo de relação construída entre determinadas imagens e o desenvolvimento da intriga. Desta forma, consideraremos, a nível global, que, na primeira parte do romance, a imagem disfórica do protagonista construída pelas outras personagens nos diálogos com Meursault vai constituir-se como um ethos pré-discursivo desta personagem relativamente à segunda parte (o episódio do julgamento), onde esta imagem é convocada e possui um papel determinante no desfecho da intriga.

Para o presente artigo selecionámos os excertos que contribuem para a heteroconstrução desta imagem pré-discursiva disfórica do protagonista.

Centrar-nos-emos nos mecanismos não linguísticos[4] (não verbais e paraverbais) em correlação com os linguísticos enquanto marca da elaboração desta imagem.

Assim, analisaremos o modo como as interações do protagonista com as outras personagens se encontram organizadas, o contexto sociocultural particular destas interações na sua ligação com certos estereótipos invocados e, especialmente, o recurso a determinados mecanismos não linguísticos, nomeadamente, o contacto ocular, o silêncio, a intensidade articulatória e a organização proxémica da interação. Pretendemos mostrar a influência que exercem no curso da interação e o modo como contribuem para a elaboração de uma imagem disfórica do protagonista.

2. Algumas questões teórico-metodológicas 2.1. O conceito de ethos enquadramento teórico O conceito de ethos, tal como é teorizado atualmente no quadro proposto pela Análise Linguística do Discurso, decorre essencialmente dos contributos da retórica aristotélica e da perspetiva interacionista goffmaniana.

Com efeito, é na sua obra dedicada à Retórica que Aristóteles vai apresentar o conceito de ethos, inscrito na tríade de estratégias argumentativas (ethos, logos e pathos) das quais o orador deve fazer uso de forma a alcançar a adesão do auditório. O orador persuade, pois, através da sua argumentação no discurso (logos), da sua capacidade de emocionar o auditório (pathos) e pelo caráter mostrado (ethos). Embora a prova pelo ethos se encontre claramente ligada ao orador, ethos refere-se, não ao ser empírico, mas à imagem que o orador constrói de si no seu discurso, tal como afirma Aristóteles, Persuade-se pelo carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de (Ret. I: 1356a). O importante aqui é que a imagem elaborada pelo orador no discurso revele os traços de caráter necessários para persuadir o auditório num dado contexto.

O ethos constitui, então, uma noção essencialmente discursiva, ou seja, encontra-se ligada ao uso da palavra em contexto, como afirma Eggs (1999: 33) Le lieu qui engendre l’ethos est donc le discours, le logos de l’orateur, et il ne se montre qu’à travers les choix effectués par l’orateur.

Para a tradição retórica romana, a prova pelo ethos centra-se, por outro lado, no caráter do orador, ou seja, numa imagem anterior ao discurso, construída ao longo da vida do orador, através dos seus comportamentos, da sua formação e das suas atitudes. Esta problemática é retomada na Idade Clássica com o renovado interesse na arte oratória[5].

No quadro da Análise do Discurso, esta questão será recuperada em termos de ethos discursivo e ethos pré-discursivo, mas sempre na relação que o locutor estabelece com o alocutário.

A problemática do ethos articula-se ainda, e na perspetiva do interacionismo simbólico, com o conceito de imagem de si desenvolvido pelo sociólogo Erwing Goffman (1967, 1973). Os seus trabalhos sobre os rituais de interação social evidenciam a importância da construção da imagem de si nas interações verbais, nomeadamente, através dos conceitos de face e de presentation of self que estabelecem uma relação estreita com a noção de ethos.

Para Goffman, toda a interação social, como the reciprocal influence of individuals upon one another’s actions when in one another’s immediate physical presence (1973: 26), implica que os seus participantes efetuem, consciente ou inconscientemente, uma apresentação de si, ou seja, the individual will have to act so that he intentionally or unintentionally expresses himself, and the others will in turn have to be impressed in someway by him (idem: 14). A regulação da interação tem, entre outros objetivos, a preservação da face.

Goffman (1967:5) define face enquanto the positive social value a person effectively claims for himself by the line others assume he has taken during a particular contact. Face é, então, uma image of self delineated in terms of approved social attributes albeit an image that others may share, as when a person makes a good showing for his profession or religion by making a good showing for himself (ibidem).

Considerando a divergência dos conceitos, mas, sobretudo, a sua confluência, Ruth Amossy (2010) propõe a assimilação da noção de ethos à de présentation de soi, na sua conceção alargada, ou seja, estendida, além das interações reais face a face, a todas as trocas verbais. Consideraremos, pois, o conceito de ethos na proposta de Amossy (idem: 26):

Cette notion de présentation de soi, on le voit, est étonnamment proche de la notion aristotélicienne d’ethos : il s’agit d’une construction d’image qui s’effectue dans un échange social déterminé, qu’elle contribue largement à réguler.

No domínio das Ciências da Linguagem, O. Ducrot (1984) introduz, no quadro da sua teoria polifónica da enunciação, o termo ethos, embora sem grandes desenvolvimentos posteriores[6]. De acordo com Ducrot, o ethos é perspetivado, não como uma condição pré-existente ou extralinguística, mas como construção inerente ao discurso, quer ao momento da sua produção, quer aos momentos discursivos que o antecedem. Esta conceção de ethos encontra-se no prolongamento da de Aristóteles, sublinhando a centralidade da enunciação na construção da imagem de si.

No quadro teórico da Análise do Discurso[7], Dominique Maingueneau (1984, 1991, 1998, 1999) é o primeiro a elaborar e a desenvolver uma verdadeira teoria do ethos num quadro linguístico. Maingueneau recupera o conceito de ethos aristotélico, vinculando esta noção à de enunciação. É, essencialmente, a conceção de ethos enquanto instância intrinsecamente enunciativa que Maingueneau recupera da retórica aristotélica. Contudo, o investigador procura distanciar-se do domínio da retórica, recentralizando o seu foco no quadro da Análise Linguística do Discurso.

Assim, Maingueneau apresenta duas reformulações nucleares relativamente ao conceito aristotélico de ethos: 1) o conceito de ethos não se encontra circunscrito apenas à oralidade, estende-se igualmente à escrita e 2) a presença do ethos não se restringe ao discurso argumentativo, pelo contrário, está presente em todas as trocas verbais.

Ligado intimamente à noção de ethos discursivo, encontramos o conceito de ethos pré-discursivo (ethos préalable na denominação de Ruth Amossy), enquanto imagem que o auditório constrói/tem do locutor no momento em que este toma a palavra: podendo ser um ethos coletivo (por exemplo, o que se espera da intervenção de um médico ou de um político, etc.), ou um ethos individual, ou seja, as imagens que circulam sobre o locutor, num determinado espaço e tempo, imagens estas que os destinatários de um dado discurso atualizam.

A imagem individual pré-discursiva do locutor engloba, assim, segundo a mesma investigadora: 1) o estatuto institucional do locutor, as funções ou a posição social que ocupa e que conferem legitimidade ao seu discurso, 2) a imagem que o auditório constrói da pessoa antes de esta tomar a palavra, que corresponde às representações coletivas ou estereótipos que lhe estão associados. Assim, a imagem pré-discursiva é entendida, segundo Amossy (2010:73), como

l’ensemble des données dont on dispose sur le locuteur au moment de sa présentation du soi se compose donc d’aspects divers. Il comprend la représentation sociale qui catégorise le locuteur, sa réputation individuelle, l’image de sa personne qui dérive d’une histoire conversationnelle ou textuelle, son statut institutionnel et social.

Esta representação do locutor encontra-se, como defende R. Amossy (1991,1994, 1997), em parte, assente em estereótipos. Amossy articula a análise argumentativa e o conceito de ethos, desenvolvendo uma linha de investigação em torno desta noção, em que propõe que a imagem pessoal se encontra ancorada em estereótipos e que o processo de construção da imagem é central na construção identitária.

Nesta perspetiva, a investigadora vai introduzir na análise da construção do ethos o conceito de estereótipo, que define como une représentation collective figée, un modèle culturel qui circule dans le discours et dans les textes (Amossy, 2010: 46). Por outras palavras, estereótipo é um conjunto de representações coletivas que pré-definem, em parte, a imagem do locutor numa determinada cultura e numa determinada época.

Estas representações coletivas constituem uma parte integrante de um dado imaginaire sociodiscursif e, nesta medida, encontram-se inseridas numa doxa, um ensemble d’opinions, de croyances, de représentations propres à une communauté et qui ont à ses yeux valeur d’évidence et force d’universalité (idem: 48). O conceito de estereótipo é, então, perspetivado como uma categoria indispensável aussi bien en termes de construction d’identité qu’en termes de communication efficace (idem: 44). O ethos constrói-se a partir destas representações que pré-existem no imaginário coletivo. Nesta conceção, o estereótipo é uma construção de leitura, na medida em que o alocutário reconstrói, tendo por base elementos díspares contidos no discurso, a imagem do locutor em função de um modelo cultural pré-existente e o seu próprio conhecimento do mundo. Esta perspetiva salienta a dimensão dialógica do discurso através da qual todo o enunciado retoma e responde necessariamente à palavra do outro.

Nesta ótica, Amossy propõe que l’ethos discursif est toujours une réaction à l’éthos préalable ma présentation de soi se fonde toujours sur l’idée que mon interlocuteur se fait d’ores et déjà de ma personne (idem:75). Ou seja, o ethos que o locutor constrói no discurso inclui sempre a imagem que o interlocutor poderá fazer dele, tendo como base a sua inserção numa representação pré-existente ao discurso, mas que poderá não coincidir com a imagem que o interlocutor efectivamente faz dele.

2.2. Mecanismos não-verbais e paraverbais A construção do ethos é, pois, um processo complexo e que mobiliza dispositivos linguísticos e discursivos de natureza diversa que contribuem para a sua elaboração. Contudo, como as interações assentam fundamentalmente na multicanalidade, quer dizer, além da atividade verbal dos interlocutores, existem igualmente elementos não-verbais que integram o discurso, devemos considerar também os mecanismos não-verbais e paraverbais que concorrem para a construção da interação.

Em relação aos principais contributos para fomentar o interesse do estudo dos mecanismos não-verbais e paraverbais nas interações sociais, encontramos como nomes mais relevantes o antropólogo Edward Hall (1966) e a sua teoria da proxémica. Hall propõe que a perceção humana do espaço, embora decorrente do domínio sensório, é, em última instância, moldada pelo meio sociocultural. O antropólogo propõe diferentes categorias de forma a concetualizar o espaço pessoal, nomeadamente, o espaço intímo, o espaço social e o espaço público.

Segundo Hall, a distância ou proximidade física definida, pelas expectativas culturais, para cada uma das categorias apresenta um elevado grau de variação, tendo em conta a zona geográfica, o que pode originar falhas comunicativas em ambientes multiculturais. Os trabalhos de Hall tiveram um impacto científico considerável, nomeadamente, na área da Antropologia, Sociologia, Psicologia e Geografia. Da mesma forma, as propostas de Hall contribuiram para o interesse linguístico pelo papel de elementos não-verbais, não proxémicos, mas também paraverbais, nas interações sociais.

Também na investigação em Psicologia está presente o interesse por estas dimensões não-verbais. J. Cosnier (1984, 1989, 1996), que dedicou diversos trabalhos à comunicação não-verbal e aos gestos comunicativos, afirma que: On sait aussi que, comme le canal verbal, le canal kinésique va être impliqué dans l’expression d’un contenu autrement dit dans une activité référentielle, mais peut-être plus encore dans la manifestation d’une "relation", autrement dit dans une activité "interactionnelle" () (1996 : 1) Apresenta três funções principais dos gestos nas interações verbais, das quais consideraremos apenas a terceira[8], que se relaciona com a empatia e com a comunicação afetiva. A comunicação afetiva compreende a comunicação emocional, referente a manifestations spontanées des états internes, (riso, choro, tremores) e a comunicação emotiva que resulta de uma elaboração secundária e permite a apresentação controlada dos afetos sejam estes reais ou não.

É precisamente a função afetiva dos gestos que, na nossa análise, constituirá um dos mecanismos de construção do ethos. Como afirma Cosnier (1996:3), a problemática da comunicação afetiva aponta para a quarta das questions de parleur”[9]: Qu’est-ce qu’il en pense?. Ou seja, o que é que o interlocutor acha do que o locutor diz e do que faz, ou melhor, qual é a imagem que o interlocutor cria do locutor através do seu discurso. Com efeito, elementos não-verbais, como o olhar, mímicas faciais, a postura, entre outros, podem constituir indícios, não de uma relação, mas igualmente de um ethos.

Dado o papel sociocultural e afetivo dos elementos não-verbais e paraverbais nas interações sociais, importa considerar a comunicação não-verbal inserida num quadro teórico, que categorize e defina os seus constituintes e a sua natureza.

Atualmente existe um número significativo de trabalhos consagrados à análise de mecanismos não-verbais e paraverbais, enquanto constituintes por direito da interação. Mencione-se os artigos de Gardner e Levy (2010) sobre a coordenação de fala e ação, de Yu (2011), que, numa análise multimodal, abordam a demonstração de frustração nos argumentos e os textos de Holler e Wilkin (2011) que desenvolveram um trabalho experimental sobre o grau de quantidade de gestos na comunicação em correlação com o feedback dos interlocutores.

De acordo com Ephratt (2011), diversos modelos[10] foram propostos para categorizar a comunicação não-verbal, sendo que todos estes sistemas assentam na experiência corpórea (quer seja pelos diferentes sentidos, canais de perceção ou orgãos físicos). Contudo, como afirma o investigador, os estudos consagrados à comunicação não-verbal

[] exclude verbal language, so their attempts to subcategorize communication are made only in nonverbal communication. No matter which criteria they use, the language component is not accounted for.

This results in non-exclusive criteria yielding a non-inclusive picture.

Procurando contrariar esta tendência, Ephratt (2011) propõe um modelo que, embora estruturado também nos cincos sentidos de perceção, inclui a comunicação verbal. Este modelo assenta essencialmente em dois domínios: o domínio exclusivamente relacionado com o corpo humano (Human body exclusively) e o domínio do além do corpo humano (Beyond the human body).

Como referido, estas duas esferas encontram-se subordinadas aos cinco sentidos.

Assim, encontramos, ao nível da perceção visual, o olhar e as expressões faciais inseridas no domínio exclusivamente ligado ao corpo humano e, por seu turno, a aparência e o vestuário inseridos no domínio do além do corpo humano.

Nesta perspetiva, a comunicação verbal inscreve-se no domínio do corpo humano, ao nível da perceção auditória, assim como elementos paraverbais (e.g.

intensidade articulatória). elementos como a proxémica (a distância entre dois corpos) inserem-se nos dois campos, uma vez que, no caso da proxémica, a distância ou proximidade é, simultanemante, física e sociocultural. Por seu turno, o silêncio, enquanto elemento multifuncional, poderá decorrer de qualquer um dos campos, tendo em consideração o tipo de silêncio em questão.

No quadro da Análise do Discurso, a dimensão do não-verbal e do paraverbal constitui, por um lado, uma parte integrante do contexto[11], na medida em que certos elementos participam do quadro espacio-temporal, tal como a organização proxémica do espaço, enquanto outros, como a aparência e o vestuário, são características próprias dos participantes. Por seu turno e de acordo com Kerbrat-Orecchioni (1990), os elementos não-verbais e paraverbais fazem parte, a par do verbal, do material semiótico indispensável às interações.

Tal remete-nos para questão da multicanalidade da interação. Como refere a investigadora (idem:150) La communication est multicanale: elle exploite un matériel comportemental faits de mots, mais aussi d’inflexions, de regards, de gestes, de mimiques (). Assim, nas interações verbais, além da atividade discursiva ou verbal dos interlocutores, existem igualmente elementos não- verbais que integram a estruturação discursiva, o que significa que, no curso da interação, uma relação de complementariedade entre os diferentes canais:

Les unités paraverbales et non verbales ne viennent pas s’ajouter aux unités verbales, mais les différents modes de communication sont intégrés les uns aux autres () (idem:153).

Na sua reflexão sobre o funcionamento dos elementos não-verbais e paraverbais, Kerbrat-Orecchioni elenca diferentes aspetos desta dimensão que se revelam fundamentais para o desenvolvimento da interação, entre os quais sobressai a necessidade de fornecer as condições necessárias para o início, o desenvolvimento e o fim da interação. Os interlocutores têm que se encontrar a uma determinada distância de forma a possibilitar a comunicação, no curso da interação é necessária a manutenção sistemática do contacto ocular e, para que esta possa terminar, os interlocutores têm que se distanciar uns dos outros, uma vez que as fórmulas de despedida, por si, não são suficientes para marcar o fim da interação. Ao nível da estrutura da interação, aponta como principais usos a regulação do sistema de alternância de vez, através, sobretudo da prosódia, e da organização da interação em unidades hierarquizadas, uma vez que certos marcadores prosódicos e modificações de postura podem assinalar as mudanças de sequência (idem: 145). , no que diz respeito ao conteúdo da interação, a investigadora afirma que os elementos não-verbais e paraverbais contribuem para a sua determinação, por exemplo, na deteção de conteúdos implícitos ou na realização de certos atos verbais indiretos. A dimensão não- verbal, de acordo com a investigadora, pode igualmente fornecer indícios de contextualização, especialmente, no que concerne as características biológicas, psicológicas e sociais dos participantes, como acima mencionámos. Os elementos não-verbais podem ainda constituir marcas de uma determinada relação interpessoal, seja esta de familiariedade, de distância ou de assimetria.

3. Análise: mecanismos não-verbais de construção do ethos Analisaremos, então, os mecanismos não-verbais e paraverbais na sua correlação com os elementos linguísticos, como parte integrante da organização discursiva das interações sociais em questão. Assim, é importante considerar o tipo de organização que caracteriza as interações em que o protagonista, Meursault, participa, uma vez que apresentam uma estrutura particular.

O esquema abaixo mostra o lugar ocupado pelos participantes nas diversas interações:

1. Interlocutor de Meursault: intervenção iniciativa 2. Meursault: intervenção reativa não preferencial [nova sequência iniciativa/ reativa] 3. Interlocutor: intervenção avaliativa não-verbal, podendo ser acompanhada por elementos verbais, que marcam o fim da interação

Pretendemos mostrar como o recurso a mecanismos não-verbais e paraverbais está ao serviço da construção de uma imagem do protagonista e como estes elementos desempenham um papel fucral no curso da interação. Em relação a esta questão, é importante considerar também o tipo de intervenções que caracteriza os enunciados do protagonista: intervenções reativas curtas, insuficientes para favorecerem a gestão colaborativa e a manutenção da interação verbal, mas também social. A incapacidade de manutenção e cogestão da interação, marcada pelo caráter meramente reativo das intervenções de Meursault e pelas suas respostas demasiado curtas que anulam a possibilidade de conversação, contribuem para a construção de um ethos disfórico.

Consideraremos ainda os mecanismos não-verbais na dimensão social e afetiva, acima verificada, tendo em conta o contexto sociocultural no qual se inserem os excertos selecionados. Concretamente, analisaremos o episódio do funeral da mãe do protagonista como um espaço social ritualizado[12] que, como tal, se encontra regido por normas específicas e é objeto de determinadas expectativas culturais. Enquanto espaço social, o funeral favorece, ou impõe mesmo, a partir do imaginário doxal vigente na comunidade, uma determinada conduta[13].

Ora, no episódio do funeral, Meursault apresenta determinados comportamentos verbais e não-verbais que vão contra as normas sociais deste ritual, como por exemplo, tomar café, dormir, fumar durante o velório, desconhecer a idade da mãe e recusar-se a ver o corpo da defunta. , a partir destes comportamentos, uma derrogação do estereótipo de filho em luto, desencadeador de um conflito social, na medida em que os laços familiares inserem o protagonista neste estereótipo, mas a sua conduta, e, por conseguinte, a imagem que constrói de si, não se coaduna com o esterótipo.

Como este espaço social particular acarreta, ao nível das expectativas doxais, um determinado estado emocional (luto, sofrimento, angústia), teremos igualmente em consideração o aspeto afetivo da comunicação. Dado o contexto fúnebre e o grau de parentesco próximo que o protagonista partilha com o defunto, existe a convocação de determinados valores sociais e afetivos, que podem ser parafraseados por enunciados doxais do tipo Mãe uma, Os filhos amam as mães, A perda da mãe é um acontecimento trágico e marcante para os filhos.

Considerando estes valores, as transgressões de Meursault, relativamente às expectativas sociais do que deve ser o comportamento de um filho em luto, serão interpretadas pelos seus interlocutores como índices de ausência de afetividade. Será, pois, esta divergência entre a imagem prevista nesta situação, o estereótipo de filho enlutado, especialmente, no que diz respeito ao estado emocional, e a imagem que Meursault constrói de si mesmo que origem a um ethos disfórico.

3.1. Algumas funções do contacto ocular O contacto ocular, nos seus diferentes tipos (olhar fixo, relance, ausência de contacto ocular, entre outros), pode, acompanhando elementos linguísticos, desempenhar um papel relevante na interação social.

Janney (1999) apresenta, como exemplo da interação entre gestos físicos e enunciados, o caso do debate televisivo entre Geroge Bush, Bill Clinton e Ross Perot, durante as eleições presidenciais de 1972, em que um relance de Bush em direção a Clinton no momento em que este enuncia um comentário geral negativo é entendido e recuperado pelos seus interlocutores como um ataque dirigido a Clinton.

Mas a importância e a função do contacto ocular constituem uma problemática controversa entre os investigadores da comunicação não-verbal. Segundo Kerbrat- Orecchioni (1992:42), a teoria clássica (apresentada por Argyle & Dean, 1965) sustenta que quanto maior é o grau de proximidade dos interlocutores maior será o número de contactos oculares; mas esta teoria é contestada por investigadores, como Swain et al (1982), que defendem que quanto maior for a distância entre os interlocutores, maior é a sua necessidade de se assegurarem das reações do outro.

Assim, dependendo da teoria, o contacto ocular pode aumentar em relações de proximidade ou aumentar em relações de distância, atendendo, claro, a funções diferentes. Parece-nos que, quer num caso quer noutro, falta a consideração da dimensão sociocultural que determina estes comportamentos. Deste modo, é importante ter em consideração o contexto, de forma a interpretar e categorizar o aumento ou a diminuição dos contactos oculares durante a interação, uma vez que, na verdade, são sobretudo questões socioculturais que devem ser consideradas.

Em L étranger, o primeiro contacto de Meursault com o cenário do funeral é marcado por uma interação onde o contacto ocular tem papéis distintos, em articulação com dados proxémicos e emocionais: (1) À ce moment, le concierge est entré derrière mon dos. Il avait courir.

Il a bégayé un peu : "On l’a couverte, mais je dois dévisser la bière pour que vous puissiez la voir". Il s’approchait de la bière quand je l’ai arrêté. Il m’a dit: "Vous ne voulez pas?" J’ai répondu: "Non." Il s’est interrompu et j’étais gêné parce que je sentais que je n’aurais pas dire cela. Au bout d’un moment, il m’a regardéet il m’a demandé : "Pourquoi ?" mais sans reproche, comme s’il s’informait.

J’ai dit : "Je ne sais pas." Alors tortillant sa moustache blanche, il a déclaré sans me regarder: "Je comprends." [14] [pp.14][15] O papel do contacto ocular nesta interação tem de ser enquadrado, primeiramente, no conflito introduzido por um conjunto de trocas verbais (e não verbais) entre o protagonista e o porteiro.

Assim, a interação é iniciada por um ato não-verbal[16] de oferecimento, acompanhado da deslocação do porteiro em direção ao caixão, e um ato reativo, também não-verbal, de recusa do protagonista. O ato de recusa encontra-se marcado como não preferencial[17], especialmente, no contexto fúnebre, uma vez que, o ato de ver o corpo de um familiar se encontra previsto nas expectativas sociais do ritual lutuoso[18]. A ausência de qualquer ato secundário de justificação acentua a disforia da resposta. O desenvolvimento da interação é modelado por este facto. Com efeito, as sequências não preferenciais são, segundo Kerbrat-Orecchioni (1990: 272), mais elaboradas que as dos encadeamentos não marcados, porque elle[s] s’accompagne[nt] généralement de certaines précautions rituelles (pré, excuses, justifications, formulation indirecte, adoucisseurs divers), c’est-à-dire que les enchaînements non préférés sont plus coûteux linguistiquement (ils consomment davantage de matériel signifiant), mais aussi sans doute cognitivement, et psychologiquement.

A primeira troca verbal encontra-se na sequência do conflito introduzido pela recusa. Esta é composta por um pedido de confirmação da recusa[19]: (Vous ne voulez pas?) e pelo ato de confirmação (Non.). Mais uma vez, a resposta do protagonista não apresenta qualquer tipo de précautions rituelles: a ausência de justificação aponta precisamente para uma falta de esforço psicológico que sugere uma ausência afetiva. Com efeito, as respostas de Meursault são demasiado curtas (geralmente constituídas por um ou dois lexemas), insuficientes para assegurar a continuação da conversação.

Sendo a recusa um ato não preferencial, e como não existem marcas linguísticas ou não linguísticas de atenuação, a segunda troca verbal é iniciada por um pedido de explicação (Pourquoi?), introduzido pelo verbo introdutor de discurso relatado demander, acompanhado por um elemento não-verbal (il m’a regardé). Neste caso, o contacto ocular e o ato de pergunta estabelecem, assim, uma relação de complementaridade.

Este conflito provoca um desvio face às possíveis reações expectáveis neste tipo de interação, tornando-a menos previsível. O contacto ocular constitui uma reação a este conflito, agravado pelo facto de o diálogo ocorrer entre dois estranhos. Ora para Kerbrat-Orecchioni (1992:43) Plus les locuteurs sont étrangers l’un à l’autre, et plus ils ont besoin de s’assurer des réactions d’autrui, pour en quelque sorte compenser l’incertitude que crée cette méconnaissance. Por outras palavras, a imprevisibilidade da recusa obriga o interlocutor a um esforço acrescido na manutenção da interação, uma vez que o curso previsto da interação não se concretiza.

A resposta de Meursault, modalizada epistemicamente por um valor de desconhecimento (J’ai dit: "Je ne sais pas." ), no contexto particular do funeral e na sequência dos pares adjacentes precedentes desloca este valor epistémico de desconhecimento para um plano afetivo-axiológico.

Isto é, a recusa em cumprir as expectativas normativas do ritual, aliada à ausência de uma explicação provoca a transferência do valor epistémico de desconhecimento do contexto do par adjacente para uma dimensão afetiva: são os sentimentos de Meursault em relação à sua mãe que se esvaziam de certeza.

Como tal, o valor do contacto ocular expresso no sintagma sans me regarder difere daquele que apresentámos para a expressão il m’a regardé: a relação entre o enunciado e o contacto ocular não é de complementaridade. Embora o enunciado Je comprends seja indicativo de uma relação de solidariedade, a ausência (ou mesmo o evitamento) de contacto ocular constitui uma manifestação de distância: o locutor distancia-se na relação interlocutiva. Neste movimento de distanciação uma recusa de adesão, no sentido que Maingueneau[20] (1999) lhe confere, um univers de sens que difere do de Meursault.

No episódio do julgamento, o contacto ocular reforça os valores comunicacionais que acabámos de apresentar. Embora confinado ao estatuto de participante não ratificado (Goffman, 1981), a presença de Meursault enquanto ouvinte, o relato das interações em que este participou no curso do funeral, mas sobretudo a recuperação do ethos pré-discursivo disfórico do protagonista, aduzem, no discurso das testemunhas, o mesmo valor negativo do contacto ocular, reforçando a construção efetiva deste ethos disfórico.

O exemplo (2) mostra, mais uma vez, uma recusa em estabelecer contacto ocular que, acima atribuímos a uma expressão de distanciamento, sobretudo de caráter socio-afetivo.

(2) En arrivant, le concierge m’a regardé et il a détourné les yeux.Il a répondu aux questions qu’on lui posait. Il a dit que je n’avais pas voulu voir maman, que j’avais fumé, que j’avais dormi et que j’avais pris du café au lait.[21] [pp.136]

Também em (3) existe esse movimento de distanciação através da referência à direção do olhar da personagem.

(3) À une autre question, il a répondu qu’il avait été surpris de mon calme le jour de l’enterrement. On lui a demandé ce qu’il entendait par calme. Le directeur a regardé alors le bout de ses soulierset il a dit que je n’avais pas voulu voir maman, je n’avais pas pleuré une seule fois et j’étais parti aussitôt après l’enterrement sans me recueillir sur sa tombe.[22] [pp.135]

Contudo, neste caso, a manifestação de distância não é a um nível físico, mas é, principalmente, em relação ao objeto do discurso (os comportamentos anómalos de Meursautl); aliás a referência ao olhar desviado para le bout des souliers acompanha o verbo dire introdutor do discurso relatado.

A transgressão das expectativas doxais relativamente à atitude de um filho em estado de luto constitui um comportamento anómalo, cujas repercurssões sociais (e na construção de uma imagem de si) se assemelham às de um estigma[23].

Assim, o contacto ocular, ou melhor, a ausência/ recusa de contacto ocular constituem uma marca da heteroconstrução de um ethos disfórico do protagonista, uma vez que manifestam um desejo de distanciamento das restantes personagens- interlocutores, ao nível físico, emocional e social.

3.2. Aspetos prosódicos: intensidade articulatória A intensidade articulatória, tal como o contacto ocular, constitui um elemento importante no que diz respeito à manifestação do tipo de relação interpessoal na qual os interlocutores participam. Kerbrat-Orecchioni (1992: 43) o exemplo dos sussurros e de ce que les phonéticiens appellent la voix de la proximité que se encontram associados a uma relação de intimidade. M.

Grosjean (1991), (apud Kerbrat-Orecchioni, ibidem) por seu turno, concluiu, através das suas experiências, que a voz desempenha um papel fundamental na marcação da distância psicológica e social:

Principal système de communication à distance [], la voix serait ainsi un signe fondamental du lien, en ce qu’il apparaît être le support idéal pour traduire par homologie notre distance psychologique et sociale à l’autre.

Com efeito, a intensidade articulatória dos interlocutores é relevante na definição das relações interpessoais, mas é-o também em diferentes e variados aspetos da interação.

Os trabalhos experimentais de Prieto e Nadeu (2010) e Prieto et al. (2012) mostram o papel da prosódia (entoação, intensidade articulatória, qualidade vocal) em correlação com expressões faciais e gestos, na perceção da incredulidade e na adoção de estratégias de cortesia, no curso da interação.

A variação articulatória[24] tem um lugar de destaque em (4), na sequência de mais uma interação não colaborativa:

(4) Voulez-vous auparavant voir votre mère une dernière fois ?" J’ai dit non. Il [le directeur] a ordonné dans le téléphone en baissant la voix: "Figeac, dites aux hommes qu’ils peuvent aller."[25] [pp.23]

A intensidade articulatória expressa pelo sintagma en baissant la voix, que acompanha o verbo introdutor de discurso relatado ordonner, constitui uma marca de distanciação social, bem como, psicológica: a recusa em ver o corpo da mãe é tratada como um assunto interdito ou tabu.

A temática deste excerto prolonga a sequência que analisámos em (1). O tópico é retomado, mas desta vez com um novo interlocutor. Por isso, (4) deve ser analisado à luz do precedente, uma vez que a pergunta que inicia este excerto vem no seguimento do ato de recusa anterior. E permite a possibilidade de reconciliação com as normas, adquirindo um caráter de urgência mostrado no uso do sintagma une dernière fois. Ou seja, existe ainda a oportunidade de cumprir a expectativa doxal, de reparar os danos causados à imagem do protagonista pela recusa inicial e, por conseguinte, reintegrar-se na imagem estereotipada do filho enlutado. A nova recusa do protagonista vai consolidar a imagem disfórica criada na interação precedente.

A redução do tom de voz por parte do interlocutor poderá também constituir uma tentativa de colocar Meursault fora da interação verbal, como um mecanismo de distanciação afetiva do conteúdo e das implicações do enunciado, isto é, a recusa em ver o corpo da mãe que evoca valores paradoxais, como O filho não ama a mãe ou O filho não se quer despedir da mãe. Ou seja, o movimento de distanciamento ocorre em dois níveis diferentes: um distanciamento relativamente ao objeto do discurso e um distanciamento relativamente a Meursault.

Assim, o afastamento da postura e dos comportamentos estereotipicamente expectáveis de um filho em estado de luto conduz à heteroconstrução de um ethos de caráter claramente negativo, a partir do distanciamento, físico e emocional, dos interlocutores relativamente a Meursault.

Retomando o contexto do julgamento, o exemplo (5) mostra também a intensidade articulatória como marca de construção de um ethos disfórico.

(5) L’avocat général a dit qu’à suite des déclarations de Marie à l’instruction, il avait consulté les programmes de cette date. Il a ajouté que Marie elle-même dirait quel film on passait alors. D’une voix presque blanche, en effet, elle a indiqué que c’était un film de Fernandel.[26] [pp.142]

Neste excerto, o procurador pede a Marie, namorada de Meursault, para revelar o nome do filme a que ambos assistiram, após uma tarde passada nas piscinas, no dia seguinte ao funeral. Uma vez que o género do filme (uma comédia) se torna inadequado relativamente ao estado emocional esperado de um filho enlutado, a descrição do tom de voz de Marie como d’une voix presque blanche, isto é, uma articulação sem timbre ou sem entoação, revela uma atitude de relutância em realizar o ato que poderá equivaler a um ato de admissão de culpa por associação. Com efeito, a relutância de Marie implica a consciência de que no seio da comunidade uma discrepância entre um estado emocional de tristeza socialmente previsto de um filho em luto e uma disposição lúdica para a visualização de um filme, o que reforça a construção do ethos disfórico do protagonista.

3.3. Multifuncionalidade do silêncio Em contexto interacional, o silêncio possui um papel preponderante e pode desempenhar diferentes funções. Michal Ephratt (2008: 1911) afirma, a propósito do trabalho de Bilmes (1994), que

Bilmes (1994) adheres to his view that where the rule is Speak, not speaking is communicative (78), writing that conversational silence is the absence of talk (or of particular kinds of talk) where talk might relevantly occur (79).

Ou, por outras palavras, numa interação social, o silêncio pode desempenhar uma função comunicativa, cuja importância interativa pretendemos comprovar na análise do seguinte excerto: (6) J’ai demandé deux jours de congé à mon patron et il ne pouvait pas me les refuser avec une excuse pareille. Mais il n’avait pas l’air content. Je lui ai même dit : "Ce n’est pas de ma faute." Il n’a pas répondu. J’ai pensé alors que je n’aurais pas dire cela. En somme, je n’avais pas à m’excuser. C’était plutôt à lui de me présenter ses condoléances.[27] [pp.9/10] Em (6), o silêncio do destinatário é provocado, dado o tópico e o contexto, pelo comentário reativo de Meursault Ce n’est pas de ma faute dirigido ao patrão. Esta ausência de reação verbal é perspetivada como um ato avaliativo por Meursault. O comentário metadiscursivo decorre da avaliação que Meursault faz do silêncio do seu interlocutor: o marcador discursivo alors com valor temporal e consecutivo estabelece uma relação de causalidade entre os dois enunciados (J’ai pensé alors que je n’aurais pas dire cela).

Assim, o silêncio vai adquirir um papel central nesta interação, que é entendido como um ato avaliativo e, como tal, provoca a reinterpretação, por parte do protagonista, do enunciado Ce n’est pas de ma faute como um faux pas, isto é, um comentário que socialmente não é adequado ao contexto em questão. Pois, embora este excerto não se encontre inserido no espaço do funeral, o contexto da morte da mãe, com os valores doxais que acarreta, abarca todas as interações sociais inscritas numa proximidade temporal do evento, quer seja esta anterior ou posterior ao próprio funeral.

Johannesen[28] (1974: 29 apud Kurzon, 2007: 1674) apresenta um elenco de vinte possíveis significados do silêncio, entre os quais, podemos considerar como passíveis de categorizar o tipo de silêncio em análise The person is avoiding discussion of a controversial or sensitive issue out of fear, The silence expresse[s] disagreement, ou, até mesmo, The person’s silence is a means of punishing others, of annihilating others symbolically by excluding them from verbal communication. Seja qual for o grau de desacordo (da simples evasão até à punição ativa), o valor avaliativo negativo do silêncio encontra-se claramente presente.

No contexto particular do funeral, o silêncio ocorre nas interações também com um valor marcadamente negativo, o que contribui para a construção progressiva da imagem disfórica do protagonista.

Ainda a propósito dos tipos de silêncio, Dennis Kurzon[29] (2007: 1675) recupera a distinção, desenvolvida em trabalhos anteriores (1998), entre silêncio intencional (intentional silence) e silêncio não intencional (unintentional silence) referindo-se ao trabalho supracitado de Johannesen (1974). Partindo desta distinção, podemos observar em (7) a progressão e mesmo dinamismo do silêncio na interação.

(7) Il s’approchait de la bière quand je l’ai arrêté. Il m’a dit: "Vous ne voulez pas?" J’ai répondu: "Non." Il s’est interrompuet j’étais gêné parce que je sentais que je n’aurais pas dire cela. Au bout d’un moment, il m’a regardé et il m’a demandé : "Pourquoi ?" mais sans reproche, comme s’il s’informait.[30] [pp.14]

No que diz respeito a il s’est interrompu, podemos classificá-lo como um silêncio não intencional, na medida em que constitui uma reação espontânea à intervenção de Meursault. Segundo Kurzon (2007), Berger (2004) conclui, como resultado de um trabalho experimental, que uma das principais causas do silêncio se centra na tomada de conhecimento de unexpected information/ deviant behaviour (Kurzon, 2007: 1675). Como atrás observámos, a recusa de Meursault em ver a mãe é, no contexto fúnebre, uma reação não preferencial que se liga a índices de ausência de afetividade. A reação não preferencial de Meursault introduz, pois, na interação um comportamento desviante do expectável para o estereótipo de filho enlutado. Por conseguinte, o reação do porteiro integra-se nas conclusões de Berger (2004).

Relativamente a au bout d’un moment, podemos inseri-lo na categoria dos silêncios intencionais. A interrupção espontânea inicial agora lugar a um silêncio prolongado e intencional. Retomando a lista de Johannesen (1974: 29 apud Kurzon, 2007: 1674) The person is carefully pondering exactly what to say next. Visto que a imprevisibilidade da recusa de Meursault obriga, como vimos, a um esforço adicional na manutenção da interação, o silêncio constitui, neste caso, uma marca desse esforço acrescido.

, em (8), o silêncio marca o fim da interação e comporta um juízo axiológico negativo.

(8) Un peu après, il m’a demandé : "C’est votre mère qui est ?" J’ai encore dit: "Oui Elle était vieille ?" J’ai répondu : "Comme ça", parce que je ne savais pas le chiffre exact. Ensuite, il s’est tu.[31] [pp.28]

Como a intervenção reativa de Meursault se encontra modalizada epistemicamente com o juízo de desconhecimento, esta constitui uma reação não preferencial, que o desconhecimento de um dado pessoal, como a idade, de um familiar próximo sugere um distanciamento ou uma ausência de afetividade.

Ainda de acordo com Johannessen, podemos concluir que, no caso do empregado de cerimónias fúnebres, The silence expresse(s) disagreement. Entenderemos aqui desacordo como uma recusa de adesão (Maingueneau, 1999), ou seja, existe um movimento de distanciamento que determina o encerramento da interação.

No julgamento, o silêncio ocorre igualmente como reforço da construção do ethos disfórico do protagonista:

(9) L’avocat général a dit qu’à la suite des déclarations de Marie à l’instruction, il avait consulté les programmes de cette date. Il a ajouté que Marie elle-même dirait quel film on passait alors D’une voix presque blanche, en effet, elle a indiqué que c’était un film de Fernandel. Le silence était completdans la salle quand elle a eu fini.[32] [pp.142]

Em (9), o silêncio encontra-se na sequência da revelação de Marie de que o filme a que assistiu com o protagonista no dia seguinte ao funeral era uma comédia. Como acima referimos, o género cómico não se coaduna com o estado de espírito de uma pessoa em luto. Esta divergência emocional invoca a negação dos valores doxais ligados à figura da mãe, atrás mencionados, ou seja, Este filho não ama a mãe, A morte da mãe não afetou/ é indiferente ao filho, A mãe não tem importância para este filho. É esta esfera de valores desviantes que concorre na construção do ethos disfórico do protagonista.

O silêncio que predomina após o testemunho de Marie, mais do que a simples expressão de desacordo, invoca um estado de estupefação, ou mesmo de horror perante a apresentação/construção da imagem marcadamente negativa de Meursault.

De acordo com o trabalho Johannesen (1974:29, apud Kurzon, 2007:1674), poderimos afirmar que a audiência se encontra in awe, or raptly attentive, or emotionally overcome.

Assim, o movimento de distanciamento, presente no silêncio, e igualmente nos mecanismos não-verbais e paraverbais que temos vindo a analisar, constitui uma marca/consequência da construção, por parte dos interlocutores do protagonista, de um ethos disfórico de Meursault.

3.4. Marcas proxémicas de distanciação Os indícios corporais, como os gestos, a postura ou a orientação do corpo e distância entre os interlocutores, podem constituir igualmente um meio de expressão de emoções, de juízos, de uma solidariedade entre os interlocutores ou de um afastamento emocional.

O exemplo (10) mostra o dinamismo da organização proxémica no desenvolvimento da interação. Contextualizando o excerto: a ação narrada ocorre no dia seguinte ao funeral, quando o protagonista encontra Marie Cardona, uma antiga funcionária da empresa em que trabalha, nas piscinas.

(10) Quand nous nous sommes rhabillés, elle a eu l’air très surprise de me voir avec une cravate noire et elle m’a demandé si j’étais en deuil. Je lui ai dit que maman était morte. Comme elle voulait savoir depuis quand, j’ai répondu: "Depuis hier." Elle a eu un petit recul, mais n’a fait aucune remarque.[33] [pp.33]

Em (10), o vestuário serve de instigador da troca verbal, dado que o vestuário de cor preta é marca na sociedade ocidental de um estado de luto. Tal provoca uma reação de surpresa em Marie, que o contexto recreativo em que os interlocutores se encontram inseridos diverge da disposição emocional que o estado de luto pressupõe.

Desta forma, a reação de Marie conduz a um ato reativo/iniciativo de pergunta (elle m’a demandé si j’étais en deuil). A resposta afirmativa de Meursault desencadeia a segunda troca verbal que introduz o conflito na interação: a proximidade temporal com a morte da mãe. Como referimos, a proximidade temporal relativamente à morte da mãe inscreve esta interação na mesma esfera de valores doxais acima referidos.

O movimento de distanciação que observámos nos excertos anteriores adquire, neste caso, uma corporalidade, uma manifestação física. O sintagma petit recul circunscreve em si a expressão de uma reação corporal cujo caráter espontâneo é indicativo de uma emoção primária: a surpresa, ou até mesmo, a repulsa.

Mais uma vez, estamos perante o confronto de duas imagens divergentes. Com efeito, na sociedade ocidental, uma pessoa em luto não se envolve em atividades lúdicas, como ir à piscina, nem inicia relacionamentos amorosos no período de luto, uma vez que o estado emocional previsto não se coaduna com o empreendimento de atividades recreativas. O estado emocional estabelece-se, então, como fator decisivo na construção deste ethos.

Considerando a proposta de Hall (1966), este afastamento constitui uma tentativa de sair do espaço pessoal comum aos interlocutores, pela sua relação de intimidade. Inserida neste espaço pessoal, Marie Cardona participa, por associação, no comportamento desviante do protagonista.

4. Considerações Finais Perspetivamos o nosso trabalho sobre o ethos ou imagem de si no quadro de investigação da Análise Linguística do Discurso, revendo brevemente o percurso histórico deste conceito. Além do complexo de estratégias linguísticas e discursivas que envolve a construção das imagens, centrámos a nossa análise na correlação entre mecanismos discursivos e mecanismos não-verbais e paraverbais que participam na co-construção da imagem do protagonista.

Os elementos não-verbais e paraverabais podem desempenhar diferentes funções sociais, e podem, em particular, constituir marcas de uma comunicação afetiva entre os interlocutores. São mecanismos que fazem parte integrante do material semiótico da interação, marcando dimensões comunicativas que apontam a centralidade do contexto e a natureza multicanal da interação.

Na construção do universo discursivo de L étranger, o contexto sociocultural no qual se insere a ação dos excertos selecionados, nomeadamente, o contexto fúnebre, molda de forma inegável o curso das interações. Tal verifica-se no confronto de duas imagens: a imagem prevista no imaginário doxal das personagens que interagem com o protagonista, isto é, o estereótipo de filho enlutado e a imagem que as personagens constroem de Meursault, em reação ao seu discurso e à sua conduta (num processo de heteroconstrução do ethos). É, pois, deste confronto que surge o ethos disfórico de Meursault, construído pelas demais personagens A presença de elementos não-verbais e paraverbais variados nas interações analisadas, tais como, o contacto ocular, a prosódia, o silêncio e a organização proxémica da interação reforçam a esfera da negatividade, e, por consequência, implicam um juízo axiológico: evitamento ocular, diminuição do tom de voz, silêncio são marcas do fim da interação e de distância física. Tal sugere um movimento de distanciação social, física e emocional das personagens que participam em interações sociais com o protagonista. Este movimento recorrente de distanciação das personagens aparece como reação à postura e comportamentos anómalos do protagonista e consequente construção de um ethos disfórico.


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