A Confissão de Régio
Neste diário […] Régio lega-nos […] a certeza de um saco de segredos para
sempre sepultados.
Eugénio Lisboa
O nome de José Régio sugere não só uma reflexão sobre a chamada geração da
presença como também sobre uma obra polifacetada onde todos os géneros
literários têm assento. Contudo, esta diversidade não obsta a que seja mantida
uma intransigente coerência, a nível de temas e motivos, expressa por uma
estilizada retórica do eu que acentua a conflitualidade, sua marca distintiva.
Desde jovem, Régio, na Coimbra de antanho, onde desembocou vindo de Vila do
Conde para se formar em letras, manifestou inclinação para a coisa literária
defendendo de forma intransigente os seus ideários. Colaborador habitual de
revistas (e.g. Bysâncio), funda, com João Gaspar Simões e Branquinho da
Fonseca, a presença (1927-1940) onde cooperam jovens de diferentes faculdades
da Universidade, ligados pelo gosto da boémia, e amantes da tertúlia literária
que, à data, acalorava o ambiente de cafés, pastelarias – neste caso a Central
– e outros microcosmos congéneres. Um pouco na senda da “Bande à Gide” da
Nouvelle Revue Française, passando à margem das vanguardas do início do século
sem as ignorar, surge, nesta Folha de Arte e Crítica – subtítulo da presença –
uma interessante proposta de equilíbrio que é “uma bandeira, um grito de
revolta, uma risada na paspalhona da cara da nossa literatura nacional” (Régio,
1993a: 19). Tal como Schlumberger proclama, logo no primeiro número da NRF, a
independência de espírito e a procura de verdade e sinceridade em arte, apenas
condicionada pelo génio individual, também Régio, no número um da presença, em
1927, escreve:
Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém
da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima de uma
personalidade artística. […] Literatura viva é aquela em que o
artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a
viver de vida própria.(Régio,1993d: 1)
Reitera esta ideia posteriormente, assegurando: “Reduzir a literatura a uma
espécie de produto coletivo, monótono e uniforme de uma sociedade […] – eis,
precisamente o que mais detesto” (Idem, 1965: 143), defendendo assim o
individualismo pois, “na Obra de Arte, o mundo existe através da
individualidade do artista”(Idem, 1993c: 2). A afirmação da originalidade e do
individualismo como base da criação é reiterada em “Lance de Vista” (Idem,
1993b: 5), artigo provocatório – como provocatória é toda a obra regiana – em
que afirma ser a arte o resultado da seguinte fórmula: “o HOMEM + o ARTISTA + a
REALIDADE = a ARTE”; admite, no entanto, que o valor da parcela homem deverá
ser superior ao da parcela artista.
Enquanto principal mentor do chamado 2.º Modernismo, o autor de A Velha Casa
não só defende intransigentemente os princípios acima referidos, como convoca
uma visão ecuménica da Arte, albergadora da literatura – todas as formas de
literatura –, das artes plásticas, da música, da 7.ª arte... Neste sentido,
privilegia a receção e divulgação do pensamento e das artes estrangeiras, a fim
de disseminar um espírito novo que reivindique uma necessidade urgente de
renovar não só a literatura como tudo aquilo a que chama “Arte” e cujas
técnicas, ainda que diversificadas, convergem para um mesmo fim.
Mas a arte, enquanto criação, necessita de uma reflexão, surgindo assim a
crítica que, com ela, forma um binómio indissociável. Esta explica, afinal, o
porquê e para quê da criação artística, e procede, em última análise, à sua
avaliação de forma apartidária e incomplacente. “A crítica presencista, para
além de apregoadamente individualista, é também espiritualista” (Ponce de Leão,
1996: 75). A obra é o produto da elaboração de algo, só acessível à
inteligência por um ser transcendental, distinto do vulgus, sociologicamente
inexplicável. Segundo Régio (1993e: 2), num artigo sobre Proust, a obra de arte
eleva-se do particular ao universal, do efémero ao permanente, por virtude da
sua intuitiva complexidade, originalidade e autenticidade. Esta dupla atividade
da presença, desde logo anunciada no seu subtítulo – Folha de arte e Crítica,
revela-se eficaz em textos críticos que, se individualistas e espiritualistas,
representantes de todo o ideário, não se apresentam, por isso, escassos em
isenção e em idoneidade, conferidas estas, também, pelo facto de os críticos
serem simultaneamente artistas.
A passagem de Régio pela presença não se pode dissociar do conjunto da sua obra
posto que a revista tenha sido génese de princípios e preceitos posteriormente
continuados. Assim, uma panorâmica da obra do autor da Confissão de um Homem
Religioso é por demais demonstrativa da originalidade, individualismo e
provocação anunciados na revista. Também o confessionalismo e a essência do eu,
quase sempre expressos em clima de grande conflitualidade, são manifestos. A
isto acresce a diversidade de géneros que a enformam, onde o ensaio crítico tem
similarmente papel relevante, bem como o culto do desenho e da pintura. Tendo
sido um dos principais mentores do 2.º Modernismo, toda a obra mantém um clima
de intransigente coerência que também se aplica à vida.
Quando, em 1994, foi publicada postumamente a obra Páginas do Diário Íntimo, e
apesar de aí haver uma forte argumentação justificativa de José Alberto dos
Reis Pereira em “Notas à Primeira Edição do Diário de José Régio”, que ainda
assim mostrava a sua apreensão “sobre como situar este inédito no conjunto de
uma obra exemplar” (Pereira, 1994: I), quando isto aconteceu, dizia, insurgi-
me, mormente pela publicação ser truncada por critérios de subjetividade
extrínsecos ao autor e por uma certa devassa da intimidade. Mesmo a afirmação
do seu herdeiro: “Régio sabia que estas páginas íntimas acabariam, um dia, por
vir a ser publicadas” (Idem, 1994: III), não me sossegou de imediato.
Nada garante, apesar da opinião do herdeiro de Régio, que as Páginas do Diário
Íntimo almejassem publicação. Assim se levanta o problema da publicação
póstuma; se, ao não ser feita, se arrisca a remeter ao silêncio verdadeiras
obras de arte, também prenuncia, como cumpre, o respeito que ao seu autor é
devido. No caso de autores com vasta obra publicada, como José Régio, poder-se-
á tornar despiciendo e, porventura, temerária a publicação de um diário
aparentemente íntimo.
Contudo – mudo propositadamente de parágrafo apesar da adversativa – vários são
os motivos que me foram obrigando a aceitar esta publicação. Desde logo o
testemunho de Eugénio Lisboa –
Quando, em 1954, conheci pessoalmente José Régio, em Portalegre, foi-
me dito pelo poeta, logo nos primeiros tempos do nosso convívio, que
mantinha, com notável irregularidade, um diário. E logo advertiu, a
explicar o seu errático arquivar de desabafos, ideias, emoções, que o
diário lhe não era um género literário muito próprio (Lisboa, 1994:
V).
– é demonstrativo de que não havia, por parte de Régio uma intenção de
ocultação; ainda porque o próprio autor amite, ao longo da obra, uma hipotética
publicação por “alguém que porventura encontre estes cadernos, se eu morrer
antes de me afirmar...” (Régio, 1994: 29); depois, porque sendo Régio um homem
de teatro, muito naturalmente gostaria de subir a um plateau ascendendo a
protagonista da sua própria história; finalmente porque se trata de “um
repositório variado de temas, preocupações, ideias, sondagens, emoções,
confissões, e reações que o vão tornar referência obrigatória para qualquer
futuro estudante de José Régio e da sua obra” (Lisboa, 1994: XIII). E apesar do
autor de Benilde se questionar sobre a valia do seu Diário e sobre o porquê da
sua elaboração, pondo em causa a sua prossecução – “Para deixar mais um livro?
Para deixar qualquer coisa inédita depois da minha morte? Mas isto presta, este
diário cobarde?” (Régio, 1994: 352) –, a verdade é que ele configura um
imprescindível documento para todos os que se interessem pelo homem e pela
obra.
O Diário de Régio[1]
não é tão só fruto de um isolamento, outrossim uma capitalização de vivências,
um exercício intelectual, um armazém epistolográfico que assume uma função
terapêutica, sobretudo no que diz respeito à postura da crítica na receção às
obras do autor. “Logo, se torna num lugar de interiorização e,
concomitantemente, exteriorização, uma vez que não é rejeitada a publicação, e
o seu conteúdo acaba por ser divulgado, quebrando-se assim a intimidade que
parecia caracterizá-lo” (Ponce de Leão, 2003: 573). Por outro lado, não obedece
a uma determinada periocidade, apresentando-se descontínuo e fragmentado.
Interessantemente, o tempo que o autor passou em Coimbra constitui um hiato
nesta escrita diarista. Entre 25 de Julho de 1925 e 17 de Abril de 1937 – tempo
mais ou menos coincidente com a época da publicação da presença (1927-1940) –
não há qualquer registo (pelo menos publicado), assim declinando
obrigatoriedades temporais e estruturais.
Seguro é que Páginas do Diário Íntimo abrem portas para toda a obra regiana.
Quando Régio diz “este pobre diário, se algum interesse ainda pode oferecer, é
o de, sobretudo, ser o Diário dum escritor. ” (Idem 1994: 376), põe,
modestamente embora, em evidência o contributo que este microtexto dá à
destrinça do seu macro texto. É que a obra regiana, enforma um continuum de
temas e motivos aqui também sobrelevados. Acresce que este diário é um precioso
documento caracterizador de tendências estéticas, literárias e culturais de uma
época, de onde sobressai o papel da crítica, sobretudo a literária, e também a
postura e a dignidade do autor ao analisá-la.
Fazendo fé em Montherlant, todo o homem grandioso atua, e escreve em torno de
duas ou três ideias. Tal se passa com as intransigentes coerências e
fidelidades do autor de O vestido cor de fogo que faz da sua obra um exercício
de autoconhecimento, uma procura de solução para um problema que aqui
denominarei conflitualidade. O conflito é o seu, amargamente assimilado, que
gere o jeito confessionalista em que o pudor se converte num exibicionismo “à
Cristo” (Idem, 1970: 85). A profunda consciência de si, a demanda de uma auto
resolução gera uma relação conflituosa consigo e com “o(s) outro(s)” que
propaga através das suas angústias amorosas, existenciais e religiosas.
As contradições amorosas / sexuais, convertidas em permanente conflito, são as
mesmas que perpassam a sua poesia, o seu teatro, a sua ficção, o seu desenho.
[2] Homem místico por natureza, nele se instala a oposição carne / espírito
para a qual nunca alcançará um projeto conciliatório. Tragado por um desejo de
absoluto, luta contra a escravização da carne, denegrindo as práticas amorosas,
e vendo no amor terreno uma insatisfação permanente e uma colossal limitação do
género humano. Contudo, o arrebatamento carnal nunca o abandona e, por tal,
surge o conflito irresolúvel: a entrega com inocência é utópica; o desejo
carnal é condenável. Ocupando a mulher em toda a sua obra um lugar de destaque,
debate-se numa impossibilidade de posse total que exacerba o desejo, fomentando
procuras arbitrárias e até, por vezes, pouco seletivas. Por tal, depois de
anunciar nas Páginas do Diário Íntimo que a castidade faz parte do seu ideal de
vida – “A sexualidade continua em mim poderosa e violenta. Por isso é meritória
a castidade em que vivo” (Idem, 1994: 260) –, recorrentemente refere a sua
“potência sexual” (Idem, 1994: 336), advinda, sobretudo, em crises de dores
alérgicas, ou mesmo a sua “perversão sexual” (Idem, 1994: 369) chegando a
admitir: “Ontem, domingo, estive numa casa de raparigas.” (Idem, 1994: 12).
Todavia, sistematicamente se penaliza tornando a contenda insolúvel: “Em
Lisboa, recaí na sexualidade que procuro vencer” (Idem, 1994: 296), afirma; tal
como o faz em “Carta de Amor”: “Querida!,/ Porque te chamo. / Mas amar-te?! /
Não!, minha vida” (Idem, 1970: 86).
Também o seu problema existencial se põe com acuidade ao longo destas páginas.
Existência e coexistência, vivência em isolamento, e o ser necessariamente
intramundanal dividem-no entre a facticidade e a trivialidade ou a
autenticidade, onde, fruto de uma aturada introspeção, se encontra consigo
próprio ensaiando irresolúveis conflitos. O confronto eu individual / eu
social, a não aceitação do mundo, a recusa do convencional, o absurdo da
existência e a questão da liberdade são problemas sistematicamente levantados,
que reclamam um poder decisório, o que arrasta Régio a um temerário confronto
consigo próprio, muitas vezes na figura de um duplo que o espelho projeta.
Reconhecendo a necessidade de comunicação com o mundo, deixa que se sobrepuje o
seu individualismo e a sua independência, geradores de automarginalizarão,
ainda que, concomitantemente, propiciadores de autoanálise que o levam a
afirmar:
Eles têm a força da violência, eu tenho a força da insinuação; eles
têm os privilégios da saúde, eu tenho os privilégios da doença; eles
são desejados pela sensualidade das mulheres, eu sou desejado pela
sensibilidade das mulheres; eles, quando vencem, deixam atrás de si
revoltados – eu, quando venço, deixo atrás de mim agradecidos; eles
são fortes, eu sou delicado; eles podem ter a beleza, eu, tenho a
graça; eles são alma feita corpo, eu sou corpo feito alma. (Idem,
1994: 29)
Não lega, de facto, Régio, esperança nem otimismo, já que, ao questionar-se e
questionando os outros sobre o enigma da existência, não obtém soluções
capazmente satisfatórias mas, paradoxalmente, e paradoxal e antinómica é toda a
arte regiana, gera expectativas de indefinidas e infinitas respostas. Assim se
reconhece nas Páginas do Diário Íntimo “um doido que por acaso nasceu com
juízo” (Idem, 1994: 18), confessando: “Bem cedo me resignei a ser só – e a amar
seja quem for nos seus momentos de humanidade dolorosa e alta... ou mesquinha e
lastimável. O que sou, afinal, é um pobre ser essencialmente humano,
conscientemente humano...” (Idem, 1994: 34).
Por demais conhecido é o conflito religioso de Régio sublimemente sintetizado
no verso “Nascido do amor que há entre Deus e o Diabo” (Idem, 1965: 52),
prenunciador da tão dilemática metáfora da encruzilhada. Tentando interpretar o
sentido e o alcance da vida, muitas vezes se resigna face ao criador, numa
atitude de impossança e desespero de quem não encontra outras soluções. Vendo-
se sistematicamente dividido entre duas forças antagónicas configuradoras do
bem e do mal – Deus / Diabo, Céu / Inferno, Ascese / Queda – remete-se,
assazmente, para posturas de um titanismo religioso humanizador do divino e
divinizador do humano. Esta ambiguidade traduz-se no conformismo com que a
criatura, presa à terra, aceita a supremacia divina, questionando-se, todavia,
com alguma inquietude, sobre a quota-parte de deidade que lhe parece ser
devida. Aceitando a divindade, não raro se revolta contra o que nela há de
recôndito que lhe confere uma serena supremacia, sendo justamente esse
recôndito gerador de conflitualidade. Daqui nasce a explicação de uma obra
dual, prenhe de teatralidade, em que as máscaras ocultam as tensões internas,
cujos polos são Deus e o Diabo, justificadoras de adesões e recusas que
configuram as personae que nele coexistem e que deixam antever o homem de
teatro. A busca da totalidade, feita de ausências e presenças da entidade
divina, ilustradoras de uma vocação teatral, é, então, base do místico conflito
regiano. Por tudo contesto Luiz Piva quando afirma que “Na luta com Deus, sai
vencido o Poeta” (Piva, 1977: 49). Não sai, de facto, vencido mas convencido.
Convicção baseada em lutas íntimas, em agressivas obstinações, em oposições e
dúvidas sofridas, mas, por isso mesmo, mais fortalecido, convicto e, porque
não, quase convertido como o confirma nas Páginas do Diário Íntimo : “Continuo
sempre a verificá-lo: Creia ou não creia, não posso viver sem Deus. Deus é a
minha força, o meu refúgio, a minha companhia. E nada sei sobre Deus, – nem
mesmo se existe.” (Régio, 1994: 394). Escreve no primeiro aniversário da morte
de sua mãe: “Mandei dizer uma missa pela Sua alma. Pude chorar e rezar na
Igreja” (Idem, 1994: 87).
Para além da conflitualidade regiana, este Diário é, como atrás referi, uma
porta aberta para a obra e respetiva receção em que a crítica não o poupa nem é
poupada.
O seu carácter rebelde e autêntico, a sua natureza independente e original, tal
como sempre se afirmou na presença, afastam consensos e fazem dele e,
concomitantemente, da sua obra, uma figura que extrema posições de amor e ódio.
Sentindo-se ignorado e injustiçado pelos críticos, são recorrentes multímodos
desabafos que o distanciam da crítica com quem mantém uma relação de
desconfiança e, não raro, de desprezo. Assim afirma: “A maior parte das
críticas que me fazem os popularizados críticos – não estão ao nível das minhas
obras.” (Idem, 1994: 105), e mais adiante: “Que sofro, humanamente, por não ser
compreendido, – é um facto. Mas também é um facto o meu profundo sentimento de
desprezo (porventura também ainda humano) pela superficialidade da maioria dos
críticos” (Idem, 1994: 136). O sofrimento a que alude é um sofrimento real por
não ser compreendido, pela mediocridade de que se crê cercado, mas também por
aquele misto de complexo de inferioridade / superioridade, visível na sua
produção literária.
A revolta perante a crítica assume posturas dolorosas quando se trata do seu
teatro. Régio foi, como atrás referi, antes de mais, um homem de teatro. A
necessidade de interlocutor, a retórica do eu, o tutear sistemático, põem-no em
cima de um palco onde exibe todas as suas antinomias. Tudo isto transparece ao
longo das obras poética e ficcional afirmando-o claramente o próprio autor em
carta a Adolfo Casais Monteiro: “sei que nasci para fazer teatro, e que devo
lutar pelo meu teatro, até com armas que, propriamente não sendo minhas, o
teatro exige” (Idem, 1994: 165); reafirma-o, posteriormente, numa outra carta a
Robles Monteiro: “o teatro continua no primeiro plano dos meus sonhos” (Idem,
1994: 169). A sua obra dramática merece-lhe, se possível, maior acuidade, logo,
se incompreendida, a insurreição é maior. Na senda de Wagner, concebe o teatro
enquanto “arte autónoma” (Idem, 1994: 119) porque através dela se procura “uma
expressão integral lançando mão de vários recursos vindos de vários ramos de
arte” (Idem, 1994: 119). Assim, considerando embora que a literatura é o seu
componente primordial nega o teatro enquanto género literário, porque prefere
olhá-lo como uma conciliação de todas as artes em movimento:
A verdade é que o meu teatro até hoje realizado tenta conjugar
elementos diversos como a poesia ou a literatura e a música, a
mímica, a oratória ou declamação, o bailado rudimentar, o cenário, os
efeitos de luz, a indumentária, etc.; – embora, está claro, fique
sendo ou continue sendo o poeta dramático o mestre da orquestra: o
mantenedor da unidade da obra. (Idem, 1994: 119)
São multímodos os passos de Páginas do Diário Íntimo que demonstram o traço
quase obsessivo com que Régio se refere à sua obra e às críticas de que é alvo.
As referências à poesia são confessamente escassas – “Dantes vinham-me os
versos às catadupas. Agora, só de longe em longe.” (Idem, 1994: 361) – não
deixando, contudo, de referir quer problemas com as editoras,[3] quer com a
incompreensão dos críticos: “Continuam a louvar a minha poesia pelo seu aspeto
dramático, violento, gesticulante, por vezes declamatório, (porventura
esquecendo o que nela haja de mais rico e secreto)” (Idem, 1994: 117).
Quanto à ficção, ombreia com o teatro – “Estou na fase do romance e do teatro”
(Idem, 1994: 117) – chegando, em entrada datada de 5 de Outubro de 1952, a
fazer o seguinte levantamento:
Sou autor de seis volumes de ficcão, não falando de quaisquer
inéditos: Jogo da Cabra Cega, romance; O Príncipe com Orelhas de
Burro, “história para crianças grandes”; Davam Grandes Passeios aos
Domingos…, novela; Uma Gota de Sangue e Raízes do Futuro, primeira e
segunda partes do romance A Velha Casa ; Histórias de Mulheres,
novelas e contos. […] Ora parece que todas estas obras são medíocres,
ou não interessam o público contemporâneo (Idem, 1994: 117)
Ao longo do Diário, lamenta a apreensão do Jogo da Cabra Cega[4] mesmo
considerando-o “um livro cheio de defeitos técnicos” (Idem, 1994: 48);[5]
queixa-se da crítica feita por Gaspar Simões a Histórias de Mulheres; [6]
exulta, cautamente, com a génese da Confissão dum Homem Religioso – “Terei
coragem de escrever este livro como o sonhei?” (Idem, 1994: 374). É, todavia, A
Velha Casa que merece referências quase obsessivas, quer queixando-se da
crítica, acusado que foi, por Guibour de Vasconcelos, de plagiar Les Thibault
de Martin du Gard, obra que desconhece “por completo” (Idem, 1994) 101), quer
mostrando a sua predileção por esta autoficção, segredada em carta a Adolfo
Casais Monteiro, a propósito de Os Avisos do Destino :
Decerto, além do estilo do analista […] também n’ A Velha Casa há o
estilo do poeta, do narrador, do realista… Mas como renunciar na
minha obra capital, – A Velha Casa !! Grande romance em 7 partes, ou
sejam 7 volumes,[7] cada um dos quais pertence ao todo e forma um
livro à parte!! – como renunciar nela a qualquer das tendências
fundamentais que são parte integrante da minha originalidade… (Idem,
1994: 344)
Trata-se, de facto, de uma obra-prima, do chamado romance longo, na senda de
Balzac, Tolstoi ou Eliot, “uma espécie de testamento, como log-book de uma
longa viagem de aprendizagem” (Lisboa, 2010: 36), que configura, como escrevi
noutro local,[8] um não menos longo processo de autognose, para o qual são
convocados elementos e personagens que, pertencendo ao mundo real, entram, por
direito próprio, no ficcional, sem qua sua identidade seja desvirtuada. Casa
que nem o tempo envelhece, uma casa intemporal, porque albergadora de
multímodas gerações, alheias a modas ou costumes da ribalta, mas profundamente
conscientes de uma ampla missão / dimensão estética e humana indiciadora da
coerência da obra regiana.
Interessantemente, não há referências à sua obra plástica, ainda que atravesse
o Diário “a paixão pelas antiguidades” (Régio, 1994: 67) e um interesse por
todas as artes manifesto não só na maiusculação sistemática da palavra Arte, na
senda dos postulados da presença, como nas recorrentes tentativas de definição
de Arte para quem esta “é a intimidade simpática de tudo” (Idem, 1994: 24).
Considerando-se embora um “desenhista
de domingo” reconhece “que poderia ser um artista plástico original se a isso
se dedicasse” (Idem, 2001: 36); mesmo não se dedicando, como afirma, quero crer
que a sua obra plástica tem, para além de outras, a virtude da coerência com a
sua obra literária como facilmente é verificável em muitos desenhos com que
ilustrou alguns dos seus livros.[9]
Ainda que a escrita diarista, seja por Régio considerada um género secundário,
pelas características remáticas – descontinuidade discursiva e fragmentarismo
–, pelo registo de um dia-a-dia trivial, pelo próprio nível de língua usado e
pela
dificuldade quase invencível que tenho em manter um diário – é que,
gostando muito de falar de mim, gostando demasiado, me não interessa,
todavia, falar diretamente de mim senão através duma obra literária.
Mas um Diário não é uma obra literária; ou os Diários que o são
deixam de ser Diários. (Idem, 1994: 385),
a verdade é que Páginas do Diário Íntimo longe de corresponder a uma fase de
menos inspiração do autor, acompanha toda a sua criação literária ao longo de
43 anos, tornando-se num precioso apoio para a sua compreensão e para a
descoberta do seu “eu profundo”; não lhe será, pois, alheio um certo egotismo,
uns veios narcísicos e o desejo de autoconhecimento já anteriormente
anunciados:
Sim, foi por mim que gritei. Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.
[…]
Sofro, assim, pelo que sou,
[…]
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!
[…] (Régio, 1970: 107-108)
Apesar de tudo, súmula e síntese de toda a produção regiana, estas Páginas do
Diário Íntimo configuram as preocupações latentes na obra do escritor e
enunciam a intransigência, o rigor, a autenticidade, a coerência e a quase
autopunição que sempre reclamou e que veiculou em toda a sua produção
artística.
Quanto à componente humana, o próprio autor afirma que ele está “cheio de
insinceridades, ou, pelo menos, semi-sinceridades” (Idem, 1994: 254)
acrescentando: “há particularidades da minha natureza e recantos da minha
biografia que prefiro fiquem desconhecidos de todos” (Idem, 1994: 258). Ganha
assim consistência a afirmação de Eugénio Lisboa que tomei como epígrafe
acicatando-se o desejo de continuar a estudar as confissões de Régio.