Memória e identidade alicerces da construção do eu na tetralogia de Luísa
Beltrão
"Move-me sim a vontade de entender o fio condutor que nos transporta ao que
hoje somos"(BELTRÃO, 1997a:11) afirma Luísa Beltrão em Os Bem Aventurados
(terceiro volume da tetralogia). Desejo esse espraiado numa extensa diegese de
dois séculos dividida em quatro volumes (dois dedicados ao século XIX – Os
Pioneiros (idem, 2004) e Os Impetuosos (idem, 2000) – e dois ao século XX – Os
Bem-Aventurados (idem, 19971) e Os Mal-Amados (idem, 1997b).
A história da família Teixeira e seus descendentes vai propiciar a reflexão não
só sobre a forma como a identidade nacional foi construída, remodelada,
sintetizada e/ou mantida ao longo desses dois séculos, mas também sobre o
percurso efetuado pelo homem-indivíduo e o homem-social para progredirem ao
longo de uma determinada conjuntura, qual ou quais o(s) fio(s) condutor(es)
subjacente(s) à construção de uma identidade pessoal, no fundo, à explanação do
trajeto efetuado para se ser "[transportado] ao que hoje somos". Por isso
mesmo, a autora vê na tetralogia uma função pedagógica:
Depois do 25 de Abril as novas gerações passaram por um corte muito
grande, devido a uma revolução de costumes a todos os níveis. A
evolução social implica qualquer coisa que vem detrás, porque nada
acontece que não esteja ligado ao passado que se projecta no futuro.
Nessa linha creio que as novas gerações perderam um pouco das suas
referências e estes livros foram uma reflexão em termos de história
recente, onde teve início a nova mentalidade da democracia. (BELTRÃO,
s/d)
Para encontrar o homem-indivíduo é necessário não escamotear o facto de ele
estar imerso num coletivo, de a sua identidade pessoal ser construída a partir
da social/nacional e das suas diversas flutuações. Como salienta Fernando Gil,
"Identificamo-nos a nós próprios através da nossa experiência porque cremos
descobrir nela uma continuidade que conservamos e que nos conserva. O passado
exige ser apercebido como uma linha ininterrupta de existência e não como uma
sequência de acontecimentos instantâneos." (GIL, 2003: 41)
Em face dessa perceção, as diferentes nações incentivaram a crença na
ancestralidade de cada comunidade, tornando clara a manutenção de um conjunto
de valores, ideologias e saberes culturais habilmente perpetuados pela escola,
meios de comunicação social, pelas artes, entre outros.
Essa linha dorsal da identidade coletiva só persiste porque a sociedade tem
memória ou, pelo menos, procura cultivar um determinado tipo de memória social
e histórica. Sem ela, o homem perde a noção de pertença a uma comunidade que o
antecede e se projeta inelutavelmente no futuro, ficando imerso no caos e nas
dúvidas.
Assim, em determinados períodos da História nacional, o poder político
construiu, manipulou, subverteu e/ou manteve uma determinada memória da
identidade portuguesa, dos agentes envolvidos na sua construção, dos itens a
serem expurgados por poderem contaminar com falsas visões os portugueses ou a
serem mantidos por se adequarem aos objetivos estabelecidos pelo poder
político. Não é por isso de estranhar o facto de a identidade nacional surgir
como uma espiral de memórias valorativas e de rasuras ou silêncios, à
semelhança de um rizoma (onde todos os veios se intersecionam sem nenhum ser o
primordial, segundo a conceção de Deleuze e Guattari (DELEUZE e GUATTARI, 1980:
13-31), razão pela qual nem sempre é fácil particularizar uma imagem una da
identidade nacional. Apesar de ela se alicerçar em diversas linhas
continuamente em interseção, muitas vezes, o poder instituído procurou
sobrevalorizar uma delas ou atrofiar outras consoante a imagem de português que
pretendia difundir num determinado momento temporal.
Decorrente dessa contínua oscilação, Miguel Real (REAL, 2007) explora a
construção da identidade nacional a partir da alternância de quatro complexos
culturais: o viriatino e o vieirino (associados à atuação dos grandes heróis e
à perpetuação das suas façanhas, como é o caso de Viriato e a sua luta contra
os romanos ou a fundação e o milagre de Ourique), o pombalino e o canibalista
(inerentes à demonização de certos acontecimentos ou figuras históricas – a
dinastia de Bragança, a primeira República, o período do Estado Novo – e à
aceitação do país como pequeno, periférico e dependente da civilizada Europa).
Esses quatro complexos acabam também por emergir da identidade pessoal de cada
português forçado a conviver com os mitos e glórias do passado, a pequenez
geográfica do país face aos restantes congéneres europeus, a consciência de
existirem em si próprio tempos diversos, personalidades e objetivos distintos.
Tal decorre do facto de a denominada identidade pessoal corresponder a uma
espécie de elo entre os discursos e as práticas que interagem com o sujeito de
forma a ele poder incluir-se num determinado mundo social. Dessa perspetiva,
"As identidades serão, (…), construções relativamente estáveis num processo
contínuo de actividade social" (MENDES, 2005: 490); no entanto, são maleáveis
às fricções, tensões e flutuações da conjuntura.
A construção da identidade processa-se numa espécie de diálogo plurivocal entre
um eu e os outros, no qual intervêm forças centrípetas e centrífugas, numa luta
contínua entre a vontade de se aproximar do outro e o desejo de se afastar dele
para regressar ao eu, havendo um recentramento; recria-se, desse modo, uma
espécie de universo polifónico tal como foi apresentado por Bakhtine (BAKHTINE,
1990 e 2001).
Relativamente ao polígono evidente no conceito de identidade nacional e pessoal
dos portugueses, há ainda a perceção da alternância de dois grandes fulcros: o
lado heróico e o lado dominado pela passividade e aparente nulidade. Ambos
perpetuados pela rememoração de um passado vivido, aprendido e intuído. Como
salienta Fernando Catroga, "recordar é em si mesmo um ato de alteridade.
Ninguém se recorda exclusivamente de si mesmo, e a exigência de fidelidade, que
é inerente à recordação, incita ao testemunho do outro" (CATROGA, 2001: 45). É
a hierarquização dessas recordações na memória coletiva ou pessoal a condição
imprescindível à construção de um sujeito pensante uno e coerente, apesar das
mutações conjunturais.
Para não ocorrer a perda da memória, é necessária a atuação dos "contadores de
histórias", isto é, de todos os que transmitem os ensinamentos do passado às
gerações futuras. Sem esses aedos, o ser humano perde as raízes, torna-se num
ente à deriva em busca de respostas capazes de o elucidar sobre quem é, qual o
seu destino, quais os objetivos a traçar para o futuro. Essa busca incessante
de um Eu que renegou o passado/a memória é corporizado, na tetralogia, pela
personagem Conta. De igual modo, a prima Gena viverá uma profunda crise de
identidade ao ser forçada a optar por uma imagem de si associada aos princípios
basilares da sociedade salazarista e outra, ainda em construção, que lhe
permita integrar-se no Portugal democrático.
Constança corresponde ao ser humano ávido de construir uma identidade pessoal
distinta da imposta pela família; rejeita as raízes, nega-se a aprender com os
acontecimentos do passado; para além disso não aceita pertencer a um país onde
os habitantes parecem estar fossilizados e presos num tempo inexistente. Ao
assumir essa posição, Conta sentir-se-á durante grande parte da sua existência
como um ser sem raízes, sem capacidade para se integrar plenamente numa
comunidade, sempre em busca de algo indefinível e inalcançável:
Desde que lhe viera a consciência, concebera-se como um ser
extraviado e anguloso, errando por entre as geometrias previsíveis da
classe a que pertencia por direito de berço e a que ansiava pertencer
de facto. Imagem incómoda que a levava a procurar suportes jamais
encontrados, num desequilíbrio amargo entre o plano maleável do
imaginário e o plano rígido da realidade (…) (BELTRÃO, 1997b: 57).
O seu processo de crescimento e consolidação de ser adulto será pautado pela
incapacidade em fugir ou responder à pergunta "Quem és tu?". Daí, ao relembrar-
se da intervenção do Romeiro do Frei Luís de Sousa, ver na sua resposta uma
"Frase bombástica que se tatuava nela como uma praga incontornável." (Ibidem:
61)
À semelhança de qualquer indivíduo, Constança deambula pelo mundo em busca de
respostas, deseja saber quem é, muito embora não queira, ainda, compreender só
ser possível encontrar uma ao assumir a pertença a uma comunidade com um
passado, que molda o indivíduo, apesar de lhe permitir edificar a sua
individualidade. Tal decorre do facto de, segundo José Mendes, "... as
identidades [serem] baseadas em significados que derivam da pertença a certas
categorias ou a aspectos da biografia pessoal culturalmente significantes. As
identidades são signos do valor pragmático do indivíduo, variando de acordo com
os contextos, podendo induzir respostas e expectativas erradas, ou levar a
ambiguidades." (MENDES, 2005: 494)
A errância da personagem terminará ao aceitar fazerem parte do seu EU o passado
e a antecipação do futuro, a tradição e a inovação, as diversas faces da
conjuntura circundante e a capacidade para fazer opções. Esse reencontro
consigo própria e com a memória familiar surgir-lhe-á como uma espécie de
aparição, será o surgimento "do puro ser vivo, subitamente erguido à [sua]
frente, separado de [si] enquanto precisamente [vive e pensa]" (FERREIRA, 2004:
88). Como enfatiza Vergílio Ferreira "se a individualização de um ‘eu’ implica
o ‘outro’, negando-o, a verdade é que na afirmação irrecusável de quem somos
estamos falando de algo que de certo modo nos transcende, sendo nós e por
transposição (não por contraste) os outros." (Ibidem: 88)
Em plena democracia, quando lhe compete auxiliar a família a redescobrir-se num
Portugal distinto do passado, Conta compreende a importância dos erros, da
reflexão sobre modelos, da necessidade de nada rasurar: "Devagarinho, intuía
que finalmente talvez fosse encontrar o que sempre procurara, não de repente
nem de rompante, mas numa grande espiral onde se encontrava há muito sem o
saber. Uma longa espiral que subia a níveis cada vez mais altos." (BELTRÃO,
1997b: 98)
Esta personagem poderá, desta perspetiva, simbolizar os portugueses do período
democrático aos quais foram amputadas as raízes, foi negada a memória do
passado como se ela fosse improdutiva e nefasta. Por isso, têm dificuldade em
assumir uma identidade pessoal coerente visto dela não fazer parte o passado,
como se ignorá-lo permitisse começar do zero. No entanto, como enfatizara
Isabel, a mãe da personagem, "O ser humano precisa de referências para as poder
contestar." (BELTRÃO, 1997a: 240), de coordenadas para não se perder no
multiperspetivismo e na pluralidade das opções possíveis.
Conta é, assim, mais uma portuguesa em busca de uma identidade pessoal
unitária, à espera de uma revelação ou, como diria Boaventura de Sousa Santos
(SANTOS, 1994: 49-50), à espera do regresso do Encoberto para poder assumir-se
enquanto Eu autónomo, uno e coerente. No entanto, acabará por perceber estar a
sua indefinição associada à denegação do passado, à vontade de rasurar séculos
de vida comunitária, independentemente de ela ter sido mais ou menos profícua.
Será essa a grande descoberta da sua vida, o motor do reencontro consigo
própria, com o seu país e com os afetos familiares rejeitados. A personagem
escapa à bruma do mito do Encoberto e aceita ser a súmula de vários fragmentos,
valores, perspetivas. Ao aceitar a multiplicidade do presente e a imutabilidade
do passado, a coexistência da tradição e da inovação, da importância da
manutenção de uma memória social continuamente transmitida pelas contadoras de
histórias, as avós, Conta deixa de ser perseguida pela resposta do Romeiro do
Frei Luís de Sousa. À pergunta "Quem és tu?", ela sabe agora responder com as
diversas e inarmónicas camadas da sua densa identidade pessoal e social.
Sendo um termo ambíguo e complexo, a noção de identidade implica a aceitação
das dicotomias a ela subjacentes, tal como são enfatizadas por Gaulejac
(GAULEJAC, 2009: 59): similitude/diferença, singularidade/alteridade,
individual/coletivo, unidade/distinção, objetividade/ subjetividade. Nesse
contexto, o sujeito só pode definir-se a partir da invenção de um Eu assente no
conhecimento daquilo que ele próprio é (idem: 60). Tal como Conta compreenderá
no final da sua busca, o homem só se torna livre ao aceitar quem é,
reconstruindo-se a partir das vivências prévias, e não ao tentar negar o
passado e a memória (idem: 195).
Quer ela quer a prima Gena serão forçadas a edificar/remodelar a identidade
pessoal em função da consciência de que o passado (caracterizado pela
segurança, equilíbrio, noção de pertença a uma comunidade repleta de heróis)
desapareceu para dar lugar, no final do século XX, à ausência de memória e à
perda de referentes, cerceadoras da completa elaboração de uma identidade
apreendida como consistente e perpetuável (SANTOS, 2011 e REAL, 2012). No
fundo, ambas surgem inseridas na contemporaneidade, definida por Gaulejac como
a era da "hipermodernidade", dominada por uma sociedade cada vez mais líquida,
dado as metanarrativas estarem em crise. Desse modo, o sujeito "hipermoderno" é
forçado a lutar contra o desencanto e a desilusão através de um extenso
processo de bricolage de valores e práticas sociais (GAULEJAC, 2009: 15-16).
Gena foi educada em conformidade com o modelo de mulher em vigor desde o século
XIX: deveria utilizar a sua beleza para concretizar o objetivo de vida de
qualquer mulher portuguesa – o casamento –, não manifestar qualquer tipo de
aptidão intelectual e dedicar-se à família. Tendo interiorizado esses itens
como linhas centrais da sua identidade pessoal, a personagem entrará em
depressão, em plena democracia, ao ver o seu papel de mãe e esposa questionado
bem como a organização social em que se inseria.
Durante algum tempo, Gena cindir-se-á em duas faces antagónicas e
inconciliáveis, impeditivas da reformulação da identidade pessoal da
personagem. Crê só poder inserir-se na nova estrutura social se rasurar o
passado, encarar como inválidos todos os princípios inerentes à sua formação
enquanto indivíduo. Quando compreende não ser necessário abdicar do passado e
de quem foi, precisar apenas de reajustar, reformular, (re)hierarquizar os
valores do passado com os do presente, a personagem reencontra-se e, juntamente
com o marido, optará por adaptar-se aos tempos modernos, fazendo concessões,
mas sem negar ou esquecer o passado. Por isso, transmitem aos filhos valores,
princípios e formas de estar aparentemente anacrónicas, mas que lhes
possibilitarão nunca se perder no emaranhado das imensas possibilidades
trazidas pela democracia.
– A Gena é muito boazinha. (...). É importante que ela exista tal
como é. Coerente, estética, virtuosa. (...)
– (...) É uma virtude ingénua, herdada. Conserva aquilo que foi posto
em causa e que talvez volte com outras embalagens. Simpática, bem-
intencionada, esforça-se por transmitir aos filhos o que recebeu, sem
mudanças mas também sem distorções.
– E acha que os filhos vão conseguir viver com essas referências
anacrónicas?
– Olhe, Madalena, se quer que lhe diga sou capaz de achar que sim,
embora não tenha a certeza. (BELTRÃO, 1997b: 261)
Consciência da importância da memória como elo de ligação na imensa cadeia
temporal, como raiz da construção da identidade têm outras personagens da
tetralogia: o conde de Aguim (com uma existência confinada ao século XIX) e a
tia Elisinha (uma senhora de 100 anos, cuja vida iniciou na última década do
século XIX e se prolongou até ao período democrático).
O primeiro é um político incorruptível, verdadeiramente interessado no
progresso do país. Valoriza os ensinamentos do passado dado apreender a
história não como a sucessão de acontecimentos irrepetíveis, mas como a
ocorrência de situações equivalentes, muito embora adaptadas às novas
conjunturas. Segundo ele, a humanidade andaria em círculos viciosos gerados
pela sua incapacidade em aprender com os erros do passado, razão pela qual os
volta a repetir, muito embora em novos contextos e com outras proporções. Por
isso mesmo, assume gostar de ouvir as vozes dos grandes pensadores da
antiguidade visto eles serem um ótimo instrumento pedagógico para compreender o
presente.
(...) gosto tanto dos clássicos. Horácio, Ovídio, Séneca. Eles
ensinam-nos a relatividade das coisas. Há quase dois mil anos viviam
e pensavam com as mesmas intenções, os mesmos conflitos, os mesmos
desejos que nós continuamos a ter, embora pensemos que somos únicos e
diferentes. Ensinam-nos que aquilo que nos acontece não é uma ilha
isolada no oceano. As notas são sempre as mesmas, a melodia é que
muda. Os sábios antigos ensinam-nos a não cair na tentação do
absoluto. (BELTRÃO, 2004: 109)
À semelhança de Giambattista Vico (VICO, 1963 e 1977), o conde encara o devir
humano como uma imensa teia de vivências e revivências, de fluxo e refluxo, de
renascimento contínuo, muito embora os acontecimentos nunca sejam cópias uns
dos outros, visto não serem equivalentes. Para ele, o futuro só pode ser
edificado a partir de alicerces estáveis e fortes e esses estão associados ao
passado e à tradição: "acho que a tradição é essencial, é ela que nos dá a
lucidez necessária para construir o progresso. Repare que só com raízes fortes
uma árvore pode crescer. O passado e o futuro." (BELTRÃO, 2004: 108) Tal como a
árvore, a sociedade e o homem constroem a sua identidade a partir de uma base
que os alimenta – o passado, as raízes –, se ela se deteriorar ou for amputada,
tal como a árvore, fica débil, seca e morre, não havendo construção nem de um
presente nem de um futuro.
O conde de Aguim é, assim, defensor da coabitação da tradição e da inovação,
das memórias do passado imprescindíveis à manutenção de uma identidade social e
pessoal coerente e una, muito embora sujeitas a flutuações epocais. Dominado
pela sabedoria dos antigos, a personagem sabe não valer a pena começar do
início, salvo se houvesse critérios claros e bem definidos; contudo, essa
possibilidade não é viável visto a sociedade funcionar a partir da manutenção,
rejeição ou adaptação de valores e princípios de épocas anteriores. Decorrente
dessa postura, toda a sua atividade política é balizada pela vontade de inovar
sem destruir abruptamente a tradição, contribuir para o progresso do país sem o
fazer perder a sua identidade, corrigir os erros de forma a não voltar a
cometê-los, quebrando, assim, o ciclo vicioso em que a história nacional se
tornou.
Já a tia Elisinha representa a voz dos negligenciados, dos silenciados pela
história. Ao nascer nas últimas décadas do século XIX, vê toda a sua vida
norteada pelos preconceitos associados ao género a que pertence. Por isso, foi
uma "mulher de segunda" porque nunca casou, não concluiu a instrução primária,
não pôde brilhar através de um marido. Durante parte da diegese, a personagem
desempenha um papel secundário e, por vezes, quase irrelevante, para, com a
instauração da democracia, ver o seu papel social significativamente alterado.
Dado ter uma memória prodigiosa, gostar de contar as histórias da vida dos
outros (visto a sua ser monótona e insignificante), conseguir concatenar as
vivências privadas com as públicas, a tia Elisinha desempenhará o papel das
contadoras de histórias, dos aedos. As suas histórias "ligavam os novos aos
velhos" (idem: 102), muito embora, o fio condutor parecesse estar partido visto
ninguém a querer ouvir.
Todavia, com a perda de referências típicas do período democrático, com a
urgência em redefinir identidades e funções sociais, a nova geração da família
Teixeira recorre à tia Elisinha, ela é a memória, só ela lhes permitirá
descobrir/redescobrir a linha aparentemente ininterrupta entre passado e
futuro. Como enfatiza o neto Francisco: "O presente é apenas um ponto numa
longa linha que vem de trás e se continua." (Idem: 260)
Apesar da sua aparente falta de instrução, a tia Elisinha é detentora duma
capacidade extraordinária para captar o mundo e as suas transformações sociais
sem as julgar. O seu ecletismo mental decorre não só da sua longa existência
(um século), mas também de não ter esquecido todas as mutações, todos os
percursos efetuados pelos diversos membros da família Teixeira e ter
desenvolvido a consciência de não haver mundos melhores e piores, cada um deve
inserir-se na conjuntura que o rodeia, muito embora mantendo vivo os
ensinamentos do passado.
Em virtude de não denegarem o passado, o conde de Aguim e a tia Elisinha não
têm problemas de identidade. Adequaram-se às expectativas epocais,
desempenharam os papéis que lhes foram atribuídos e souberam evoluir porque não
esqueceram, optaram por manter viva a memória das épocas passadas sem nunca
ficarem prisioneiros delas.
No fundo, a generalidade das personagens constatará por experiência própria ou
mediada a importância da manutenção de elementos conservadores, de não rasurar
o passado (tenha ele sido heróico ou doloroso), de encontrar uma solução de
compromisso entre o passado e o presente dado este último ser movido pela
necessidade de transformar o primeiro. Desse modo, a tradição, a memória, o
passado são os motores da inovação.
Ao longo da extensa diegese, a generalidade das personagens aprende a valorizar
a memória e a identidade como alicerces da construção do sujeito pensante,
assim como a desvalorizar uma visão maniqueísta do mundo (os bons e os maus, a
sociedade tradicional versus a moderna, a tradição versus inovação). Tal como a
tia Elisinha, aprendem a relativizar o presente e o passado, dado em cada época
poderem coexistir os quatro complexos apresentados por Miguel Real, muitas
vezes, no interior de uma mesma sociedade ou indivíduo. Assim, constatam não
poder assumir apenas os lados positivos de um passado recente (associado à
ditadura salazarista com a apologia dos heróis do passado) e os negativos do
presente (o Portugal democrático pautado pela perda de memória e pelas
inovações contínuas); urge relembrar a estagnação e apatia da sociedade em
plena ditadura e a rápida adaptação de uma sociedade atrasada às exigências de
uma Europa desenvolvida.
Como referiu Nietzsche em A Gaia Ciência (NIETZSCHE, 1998: 17), é
imprescindível "o regresso da charrua do mal" para haver evolução; no entanto,
ela só ocorre se o homem tiver consciência de ser autor e ator de uma
determinada sociedade, de ser o resultado de uma história que o antecede e
precede. Como realça Gaulejac: "Vouloir être sujet, c’est avant tout comprendre
en quoi il est originairement assujetti." (GAULEJAC, 2009: 26)