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EuPTHUHu0807-89672014000300003

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National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0807-8967
Year2014
Issue0003
Article number00003

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Na cinqüentenária Luuanda: o doloroso retrato de dois jovens

Como se fora uma epígrafe, pergunto: é possível ainda falar de uma obra que nos acompanha por tanto tempo e na qual sempre acabamos por descobrir algo que ainda nos surpreende, por sua atualidade e pertinência? Respondendo a mim mesma, eu diria que, em meu caso pessoal, gostaria de deixá- la quieta, sem interferir em seu infinito jogo de sedução, embaçando-a com meu próprio texto de escrevente. Assim, sem compromisso, seria possível mergulhar, outra vez, no puro prazer do texto de que fala Roland Barthes (1975). Mesmo sabendo disso, porém, tentarei, aqui e agora, retomá-la, pois essa senhora, embora cinqüentenária, não perdeu seu viçoso brilho de juventude e continua a nos seduzir, sem remissão, pelo que se torna uma cobra esperta, sempre a nos olhar com aquele seu jogo de mostra-esconde, pelo qual nunca a conseguimos capturar.

Para dar início, pois, a essas breves reflexões sobre tal obra, começo por dizer que o não menos esperto autor de Luuanda sempre gostou de nos apresentar retratos do povo que habitava e / ou habita sua amada cidade, daí, por seu pacto fundante com ela, fazer-se José LuandinoVieira. Mais que produzir as fotos, ele também sempre se esforçou por pendurá-las em nosso imaginário leitor, dele fazendo uma galeria a que sempre voltamos com o mesmo deslumbramento do primeiro dia. Repare-se que, ainda nos anos 50, Luandino desejava falar de Luanda, daí o poema que a retrata como sendo uma " QUITANDEIRA NEGRA A QUEM VESTIRAM PANOS AMERICANOS DE VÁRIAS CORES" (Vieira, 1958).

A abertura do texto, estiletada pelo uso da caixa alta, meio que desconcerta o leitor aficionado por poesia, sobretudo quando ele se preparou para ouvir uma "Canção para Luanda", o que o faz perguntar-se: "Como assim? Uma cidade negro-africana vestida de panos americanos?". Não resistindo, este leitor imerge, aflito, no texto, para tentar encontrar uma resposta apaziguadora e, desse modo, fazer frente ao desafio da decifração.

No poema, aqui citado a partir do Boletim Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império (Vieira, 1958) é lançada uma pergunta, " Luanda onde está?", pergunta esta que esbarra no

Silêncio nas ruas Silêncio nas bocas Silêncio nos olhos (Idem, 27)

O sujeito lírico, de partida, demonstra sua dificuldade em encontrar a resposta, pois todos aqueles a quem a interrogação se dirige são trabalhadores muito ocupados. Assim, ele, um quase flâneur, continua a indagar, chamando tais trabalhadores por seus nomes e profissões, pelo que indica conhecê-los bem de perto. Ficamos sabendo, a seguir, o motivo de sua aflição, ou seja, que ela deriva do fato de não mais encontrar

As casas antigas O barro vermelho As nossas cantigas [...] Meninos nas ruas [...] (Idem, 28)

elementos afetivos e composicionais da paisagem física, cultural e humana da cidade antiga. Ao final do poema, ele recebe a resposta das três mulheres, Rosa, Maria e Zefa, que, com "A esperança nos olhos / A certeza nas mãos", os panos a cobrirem seus corpos gastos e apontando para o coração lhe respondem: " Luanda está aqui!" (Idem, 29; negrito meu).

em Luuanda, escrita em 1963 e publicada em 1964, não mais se encontram a "Mana Rosa peixeira", a "Mana Maria quitandeira" e/ou a prostituta "Zefa mulata / O corpo cubata / Os brincos de lata" (Vieira, 1958: 28), ou, ainda, o "Mano dos jornais", mas um novo tipo de gente que tem de suportar a fome; a privação; a guerra; as prisões; a espoliação; etc.. Fazem-se outros, pois, os retratos pintados na obra e que se penduram na parede de nosso próprio imaginário leitor.

Em especial e, para comprovação dessa mudança no modo de sentir e pensar Luanda, por parte do seu arquiteto de palavras, escolho dois desses retratos, ou seja, o de dois jovens habitantes dos musseques da cidade, jovens que são vítimas de todo um processo histórico, político e social que os esmaga, impedindo que os sonhos, tão importantes nessa época da vida, sejam postos de . Trata-se de Zeca Santos e de Garrido Kam’tuta, respectivamente personagens do primeiro e segundo contos, e que, apesar de criados 50 anos atrás, nos remetem a muitos outros rapazes que, até hoje, subsistem em desesperança nos nossos países, considerados por muitos como pertencentes a um terceiro mundo, portanto, como algo fora do lugar.

Os que assim nos nomeiam não lembram, ou não querem lembrar, que nossos países são a resultante da mesma ação imperialista, que poucos de nós acreditam ter deixado de existir no novo mundo em que vivemos. O manto do neocolonialismo, tempos, ocupou o espaço do colonialismo clássico, como previsto por Amílcar Cabral (1980), dentre outros, e continua a exercer a mesma força predadora.

É importante notar que os narradores dos dois contos "Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos" e "A estória do ladrão e do papagaio" , máscaras sob as quais se esconde o rosto do autor, apresentam esses jovens com características físicas e sociais muito próximas. Ambos são desvalidos, sendo que o segundo o é fisicamente, pois atingido pela poliomielite. Também se fazem sujeitos amantes que não conseguem concretizar seus desejos amorosos, justamente por não terem o que oferecer aos objetos de seu amor, Delfina e Inácia, mulheres muito diferentes entre si. Desse modo, os dois são retratados como vítimas do desemprego e da discriminação de uma sociedade ainda presa nas fortes teias coloniais.

Não vou aqui recontar as histórias de vida de Zeca e Garrido, tão nossas conhecidas, mas tão somente tentar mostrar a ternura que o autor de Luuanda demonstra sentir por esses dois quase-meninos, moradores de velhas cubatas e disseminados pelos espaços habitados pela população desvalida da cidade, outrora sede do poder colonial e que, depois de 1961, quer tornar-se apenas angolana e sediar uma nova nação, daí a razão de sua luta.

Começo, portanto, ressaltando as semelhanças entre os dois personagens, como nos mostram, por exemplo, as cenas em que ambos quase conseguem realizar fisicamente seus desejos amorosos, momentos estes em que eles como que se animalizam, ora um rastejando pelo chão, ora o outro a andar, como um símio, com as mãos sobre a terra. Resgato fragmentos das duas cenas, lembrando que a de Garrido é muito mais dramática, em todos os sentidos que a de Zeca, e chega a beirar mesmo o trágico:

Zeca Santos ficou um tempo deitado de barriga a chupar um capim, sem falar nada, e depois começou rastejar parecia era sardão [...].

(Vieira, 1964: 29) Com as lágrimas quase a chover, [Garrido] baixou a cabeça, estendeu os braços magros e pôs as largas mãos no chão. Nem precisou dar balanço nem nada, o corpo ficou pendurado para baixo, uma perna no ar, a outra fina, aleijada, enrolou logo no pescoço. (Idem, 61)

É interessante que Inácia se comova e reaja, com histeria e por raiva de si própria, insultando Garrido, enquanto Delfina, mesmo agredindo o rosto do outro rapaz e apesar de também insultá-lo, profere uma frase que acaba por revelar seu carinho por ele, ao contrário da outra.

Do mesmo modo os jovens se aproximam pela "foto" de seus rostos. O de Zeca é mostrado, em primeiro plano, como sendo uma face marcada pelos "riscos teimosos as fomes tinham posto na cara dele, de criança ainda" (Idem, 35). o narrador do segundo conto, ecoando o primeiro e dizendo, ao contrário deste, que conta o que lhe tinha sido contado, vai ressaltar, ao focalizar o rosto de Garrido, sua "pele lisa [...] cheia de riscos em todos os lados, a fome não enchia as peles e a tristeza punha-lhe velhice, mesmo que era um mais novo." (Idem, 56). A fome, assim iluminada, como navalha fina e afiada, escarifica ambas as faces, envelhecendo-as precocemente.

As diferenças entre Zeca e Garrido, chamados de "monandengues" pelos dois contadores da letra, são igualmente significativas. Basta que se veja, por exemplo, a questão do choro e das lágrimas. Garrido é mostrado, naquela cena com Inácia, como alguém que "quase chora", enquanto Zeca desfaz-se em pranto desde sua primeira entrada na cubata, quando ele diz à avó não ser ladrão e, depois, mais calmo, dá-se conta de que a esperta mais-velha confunde, pela fome, raízes de dália com "mandioca pequena" (Vieira, 1964: 16). Essas lágrimas dolorosas retornam, por fim, na cena final em que o narrador, seu cúmplice na dor, diz que ele "[...] nada mesmo que [...] podia fazer , encostou a cabeça grande no ombro baixo de vavó Xíxi Hengele e desatou chorar um choro de grandes soluços parecia era monandengue [...]" (Idem, 35).

Outras duas diferenças se fazem, também, elementos fundamentais para demarcar a fronteira da personalidade dos dois jovens. Trata-se da forma como seus corpos se vestem, por assim dizer. Para Zeca, o que importa é a sua bonita e cara camisa, embora seu sapato, que ninguém , esteja roto e o incomode profundamente. Isto demonstra seu desejo de ser identificado pelo que, na verdade, não é e, assim, fazer-se um jovem de sua época.

Enquanto isso, pouco sabemos sobre o modo como Garrido se veste, o que demonstra que ele é construído como alguém que se volta mais para dentro de si mesmo, vivendo sua luta diária contra seu próprio corpo que, pela deficiência física, não tem como esconder. Faz-se, por isso, vítima do escárnio até de um velho e sujo papagaio, cuja dona é Inácia, também ela sempre a chamá-lo, aos gritos, de aleijado.

A segunda distinção é que Zeca acaba por aceitar sua derrota, daí concordar, embora a contragosto e envergonhado, com o trabalho escravo que lhe é oferecido pelo "feitor", negro como ele, a lembrar os brancos dos velhos tempos. Garrido, mesmo que, pela atitude aviltante de Inácia, deixe escorrer rapidamente pelo rosto o "cacimbo das lágrimas" (Vieira, 1964: 62), decide não fazê-lo mais e enfrentar a vida e as humilhações de frente e sem medo. É o que nos mostra a cena em que ele desafia a força de João Miguel, pedindo para que este o espanque; sua decisão de roubar o papagaio, sempre a insultá-lo, para, em seguida matá-lo, o que não faz, e, por fim, o rebelar-se contra o quase pai, Dosreis, quando este o acusa injusta e mentirosamente de ter participado do roubo dos patos, daí ser preso também.

Não é por acaso que, no retrato de Garrido, sobressaiam seus olhos azuis que, de doces, se tornam metálicos, passando a amedrontar seus oponentes. Também suas ações, por sua vez, sempre marcadas pelo amor respeitoso dedicado ao outro, inclusive à Inácia, ganham força e deliberação. A meu ver, um novo sujeito se levanta em Garrido Kam’tuta, ao contrário daquele que se entrega em Zeca Santos e precisa do apoio da avó para sustentá-lo.

Talvez o autor, mascarado de narrador de segundo grau, queira que vejamos, no quadro por ele pintado em "A estória do ladrão e do papagaio" em que o coletivo se faz maior que as relações individuais , ser possível que um corpo físico em desconcerto busque força para lutar, como se dava naquele momento, com o da própria nação rebelada. Garrido Kam’tuta, assim, e pelo convívio que terá com Xico Futa, que o conhece até então apenas superficialmente, talvez venha a ouvir a estória do cajueiro e de sua resistência e, um dia, se possa fazer, como o outro, um sujeito lúcido, apaziguador, sereno e consciente de sua força moral.

Desse modo, no futuro, e uma vez vitoriosa a luta, talvez Garrido Kam’tuta possa, ao contrário de Zeca Santos, rechaçar os "panos americanos" da camisa que veste e dizer, como as três mulheres do poema vestidas, em diferença, com seus "[...] panos pintados / garridos / caídos [...]: Luanda está aqui!" (Vieira, 1958: 29).


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