Luuanda: a traição bem-vinda
Não há Robinson Crusoé na literatura, e a elite é o primeiro conglomerado
social em que um criador se integra.
Angel Rama
A frase de Angel Rama que escolho para epígrafe foi extraída do seu notável
ensaio "Dez problemas para o romancista latino-americano" (Rama, 2001). Nele, o
arguto estudioso de aspectos culturais da América Latina aborda a emergência da
literatura no continente em um quadro marcado pelo código colonial, alertando
para o peso da contradição e as manifestações da violência que, sendo
estrutural, tem seus reflexos, inclusive, na hierarquização linguística e, por
decorrência, na constituição da vida literária. Ao discutir aquela dinâmica
social, tendo em conta a força das injunções históricas, Rama traz à luz os
condicionalismos e as respostas que a escrita oferece, situando-se em terrenos
perigosos, instada em certos momentos a acender velas a diferentes deuses. Nas
suas finas observações delineia-se um olhar mediado pela modulação
retrospectiva, uma vez que no momento em que ele escreve os países focalizados
já somam décadas de independência, e integram um universo de nações nas quais a
vida institucional decorre dentro de uma relativa normalidade, a despeito da
manutenção daquilo que Alfredo Bosi identifica como complexo colonial de vida e
de pensamento (Bosi, 1980: 13). Quando transitamos para o continente africano,
respiramos outras atmosferas, sacudidas por um conjunto de fatores que tem em
comum a remissão a um ambiente selado pela divisão e pela instabilidade.
Pensada sob o céu de Angola nos anos 60, por exemplo, quando a ficção narrativa
ganha densidade, a frase ganha contornos especiais. Estamos ali sob o signo da
voragem: naquele contexto já convulsionado pela guerra que desvelou o absurdo
do processo colonial – prolongado para além da própria dinâmica do capitalismo
que o acionara –, a vida nacional é uma espécie de miragem a que os vento das
utopias tentam dar corpo. Os eventos de 4 de fevereiro de 1961 em Luanda e de
13 de março no Uíge não deixariam dúvidas quanto à verticalidade da crise. Em
um terreno tocado por contradições abertas, o ato de escrever não poderia
sequer sonhar com a inocência a que, em certos cenários, se pode ao menos
aludir. Sob uma chuva de estilhaços a cair sobre a vida diária, os contornos da
relação entre o escritor e o ‘conglomerado social’ que o cercava ganhava certos
complicadores. O quadro da exclusão social e econômica, temperado pela
discriminação racial, multiplicava as indagações: como falar com a camada que
ditava a ordem das coisas ou dela se beneficiava? Como distinguir entre as
elites os segmentos que poderiam alterar o jogo e suas regras? Se o acesso à
escrita era, ao mesmo tempo, um privilégio e uma condenação, como conduzir a
interlocução?
O peso de tais questões aponta a superação das fronteiras do texto literário
para o exame de processos como o que se projeta sobre um livro como Luuanda e
toda a obra de José Luandino Vieira. Como o fez Rama, é fundamental examinar as
redes constitutivas do contexto e perceber a sua projeção no percurso de quem
escreve e na produção literária que surge desse jogo. Em outras palavras, sair
do texto para ir à vida das pessoas que os produzem aqui não significa um
desvio, mas abre a possibilidade de observar de que modo ela é trazida e
transformada nas páginas que ainda hoje nos inquietam a consciência.
Filho de colonos pobres, morador das franjas dos musseques, mas, ainda assim,
aluno do Liceu Salvador Correia de Sá (o colégio da elite colonial), de acordo
com o próprio escritor em sessão realizada na Balada Literária de 2007 na
cidade de São Paulo, o jovem estudante, ao chegar ao fim da adolescência,
angustiou-se diante da percepção da diferença de alguns itinerários. Onde
buscar explicação para a imposição de percursos tão diferentes àqueles com quem
ele tinha partilhado a infância? Aos leitores da Literatura Angolana a
declaração de Luandino traz à memória os versos de António Jacinto:
Naquele tempo
A gente punha despreocupadamente os livros no chão
Ali mesmo ao lado naquele largo – areal batido de caminhos passados
Os mesmos trilhos de escravidões
Onde hoje passa a avenida luminosamente grande
E com uma bola de meia
Bem forrada de rede
Bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves
Em alegre folguedo, entremeando cassambulas
... a gente fazia um desafio ...
O Antoninho
filho desse senhor Moreira da taberna
era o capitão
e nos chamava de ó pá,
Agora virou doutor
(cajinjeiro como nos tempos antigos)
passa, passa que nem cumprimenta
– doutor não conhece preto da escola.
.....................................................................................
E o Venâncio? O meio-homem pequenino
Que roubava mangas e os lápis nas carteiras
Fraquito de fome constante
Quando apanhava um pinhão chorava logo!
Agora parece que anda lixado
Lixado com doença no peito.
Nunca mais! Nunca Mais!
Tempo da minha descuidada meninice, nunca mais! (Jacinto, 1985: 52)
A citação, um tanto longa, do belo poema "O grande desafio", traz-nos um pouco
do clima da Luanda dos anos 50, época em que a cidade conhece alterações
significativas em sua fisionomia. A preocupação física espelhará o processo de
marginalização dos colonizados, incluindo os assimilados, na composição de um
retrato da nova fase da empresa colonial em Angola, conforme assinala Tania
Macêdo:
(...) nos fins dos anos 1940, quando ocorre o "boom" do café e com
isso Luanda, cujo porto é a via de escoamento de uma das maiores
riquezas de Angola naquela quadra, recebe o impacto da modernização e
a sua população negra é deslocada cada vez mais para longe da
"Baixa", o centro urbanizado, branco e próximo do mar. A "elite
crioula" é definitivamente apeada do poder já que um número crescente
de metropolitanos chega à cidade e toma os melhores postos de
trabalho e as melhores terras. (Macêdo, 2008:116)
Em tais mudanças figura-se a inviabilidade de uma coexistência amena,
agudizando-se a certeza da violência que engendra a sociedade colonial. É tempo
de perder qualquer réstia de inocência, ensinam os poemas de Jacinto e de Aires
de Almeida Santos, por exemplo, nos quais o adeus às ilusões associa-se ao fim
de uma época, o da infância. Sem dúvida, o sentido desses versos Luandino lia
também nas ruas de areia e de alcatrão que desenhavam a cidade, caminhos em que
se compõe um roteiro delineado pelas referências culturais e humanas que
participaram de sua formação.
A força da experiência mistura-se ao que lhe chega das leituras, formando uma
mescla cujos ecos reverberam no primeiro conto do primeiro livro: "Encontro de
acaso", de A cidade e a infância, trata precisamente de um improvável
reencontro entre adultos que, tendo convivido na infância, foram apartados pelo
código das desigualdades sociais. O uso da expressão "meninice descuidada" na
primeira fala do narrador propõe uma ligação direta com o poema de Jacinto e é
senha que nos pode levar a tantas narrativas nas quais encontramos, e muito bem
trabalhado, esse universo. Aquele mundo de "fisgas" e "fugas", de "peixe frito"
e "quicuerra", de "pássaros" e "sardões" em contraste com o território povoado
de "fazenda e nylon" e "sapatos bem engraxados" repercutiria na memória de quem
fez da angústia um móvel de criação. A partir do diálogo entre literatura e
experiência, elemento fulcral em seu projeto literário, Luandino sintetizaria
as questões com que se defrontou em duas perguntas: "O que a vida fez de mim?"
"E o que eu posso fazer do que a vida fez de mim?"[1]
O alto preço pago, inclusive como habitante do sinistro e famoso Tarrafal de
Chão Bom, na Ilha de Santiago, durante oito anos, confirmaria as escolhas
feitas e os rumos tomados. Mobilizando o empenho político e social, essas
perguntas produziram respostas correspondentes no itinerário do escritor, que,
ao investir na transformação da narrativa angolana, impõe alterações profundas
na prosa em português e se reconstrói também como personagem na história do
país. Pela militância e pelo exercício da escrita, como sabemos, ele se
converteria em José Luandino Vieira.
Vivendo física e culturalmente na zona de fronteira, Luandino faz a opção pela
travessia na direção da cidade dos excluídos, cortando, assim, o cordão com as
identificações na base da raça, e dos laços que ela automaticamente criava. É
preciso não esquecer que mesmo em Angola, onde a segregação racial não atingia
o grau registrado em outras colônias, a cor da pele constituía um poderoso
capital. Malgrado o esforço do discurso lusotropicalista e seus sucedâneos, há
uma sucessão de evidências que não nos deixam duvidar de Fanon: "o mundo
colonial é um mundo compartimentado":
A zona habitada pelos colonizados não é complementar à zona habitada
pelos colonos. Essas duas zonas se opõem, mas não a serviço de uma
unidade superior. Regida por uma lógica puramente aristotélica, elas
obedecem ao princípio de exclusão recíproca: não há conciliação
possível, um dos termos é demais. A cidade do colono é uma cidade
sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada,
onde as latas de lixo transbordam sempre de restos desconhecidos,
nunca vistos, nem mesmo sonhados. (Fanon, 2010: 55)
As latas de lixo transbordantes de "restos nem mesmo sonhados" compõem uma
poderosa imagem da incomunicabilidade entre esses polos que formam a cidade. A
Luandino esse fenômeno não passaria despercebido, e teria sua figuração na
espacialidade que elege como fonte de significados. É na contraposição entre a
cidade de asfalto e os fecundos musseques que fixa um dos eixos de sua obra.
Essa forma de ver as arestas que separam os homens coloca em causa a hipótese
de uma terceira margem em momentos de crise aberta. Contra a possibilidade de
qualquer condescendência com o colonialismo, o escritor privilegiaria a
contradição, antecipando a problematização do conceito de entrelugar, que viria
ocupar tanto espaço nos estudos pós-coloniais e na imaginação crítica de alguns
estudiosos. Da vivência em áreas intersticiais ele incorporou a situação de
fronteira, mas compreendendo-a como zonas de contato, isto é:
[E]spaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se
entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações assimétricas
de dominação e subordinação – como o colonialismo, o escravagismo, ou
seus sucedâneos ora praticados em todo o mundo (Pratt, 1999: 27)
O conceito de fronteira na perspectiva de Luandino escapa, pois, àquela noção
de espaço em que as clivagens se dissolvem e se recriam livremente referências
constitutivas de identidades móveis. Estamos mais perto do sentido de
encruzilhada em que se reforça a lei da exclusão e se enrijecem os interditos.
A impossibilidade da conciliação era lição de todos os dias.
O foco nas assimetrias em que se baseavam as relações de poder na sociedade
colonial faz com que do conceito de ‘entrelugar’ Luandino retenha sobretudo a
dimensão conflitual a que Homi Bhabha também alude, recusando a possibilidade
consensual que as leituras de inspiração lusotropicalista preferem salientar
(Bhabha, 2001: 21). De frente para as asperezas do contato entre o universo do
colonizador e o mundo do colonizado, ele foge às hesitações e coloca-se com
nitidez no centro do embate, trazendo para a sua narrativa o olhar insubmisso
de quem se associa ao excluído, impondo movimentos que elegem a marca da
contradição – espelho e contraface da ruptura – como selo de sua obra até ao
presente.
Já em A cidade e a infância, acima referido, a configuração de um espaço – a
cidade – conjugado a um tempo – o da infância – anuncia a sua migração para um
dos lados da Luanda dividida. No título insinuam-se as pistas de um projeto
cuidadosamente desenhado: Luanda seria o locus primordial, construída sob o
signo de uma infância, que transforma a comunhão sugerida pelos versos de
Jacinto em alimento para uma necessária mudança. A referência ao passado,
entretanto, recusa a tentação da nostalgia, acenando talvez ao propósito de
desnaturalizar o presente que massacra. Nesse espaço-tempo, insere-se uma
imagem dupla a se oferecer como metonímia de um território em ebulição, que
seria uma das recorrências da obra em tela.
Tal posição, prenunciada no livro de estreia, será radicalizada em Luuanda,
livro fundamental na produção de Luandino e na história da Literatura Angolana.
Escritas, como sabemos, no pavilhão prisional da Cadeia de São Paulo em Luanda,
as três estórias, como lhes chamou o autor, representaram interna e
externamente uma virada fundamental na tradição literária africana em língua
portuguesa, com reflexos na cena contemporânea.
Vale a pena retomarmos a produtiva reflexão de Rama, e observarmos a validade
do seu conceito de transculturação em três níveis (o linguístico, da
estruturação que opera na economia de suas narrativas e o da cosmovisão que
move o seu projeto estético) para a análise da ficção de Luandino. Emprestado
de Fernando Ortiz, que, por sua vez, foi buscá-lo a Malinovski, o conceito de
transculturação para o crítico uruguaio expressa melhor o processo transitivo
de uma cultura a outra, potencialidade acionada por alguns escritores africanos
como base da proposta de fazer da literatura um lugar de contestação do código
colonial e um espaço de formação do novo país, ainda a caminho (Rama, 2001:
215-7).
Em Luandino, a eleição dos musseques como cenário preferencial das narrativas é
um dado que altera o eixo em que se sustenta a literatura produzida na então
colônia. É preciso não esquecer que se no campo da poesia já se consolidava um
movimento de viragem, com a opção por temas vinculados a um projeto de
rompimento com a literatura metropolitana e a literatura colonial, e também por
uma concepção poética centrada na valorização de aspectos da cultura local,
incluindo as matrizes da oralidade, na narrativa, sobretudo na narrativa longa,
predominavam o viés colonial, com algumas incursões na área da
"autoetnografia", para usar a expressão denominada por Mary-Louise Pratt
(1999). A título de ilustração podemos citar o romance Uanga, de Óscar Ribas.
Voltando as costas ao exercício etnográfico, Luandino dispensa-se das
descrições informativas, e coloca em cena personagens que, habitando fora do
reino dos privilégios, desvelam a Luanda que não se mostra nos álbuns
fotográficos que ainda hoje (talvez principalmente hoje) se editam na
metrópole.
Na visibilidade que confere à cidade ocultada, o escritor afasta as sombras da
idealização e procura ver tais personagens em confronto com suas misérias e
grandezas. Se por um lado, é patente a referência a pares dilemáticos que
podemos identificar como metrópole / colônia, colonizado / colonizador,
oprimido / opressor, português / quimbundo, musseque / asfalto, tradição /
modernidade, por outro lado, pode-se perceber que no desenvolvimento dos
enredos, o confronto entre os lados não revela alianças indestrutíveis entre
aqueles que a priori poderíamos ver como parceiros. Na primeira estória, "Vavó
Xíxi e seu neto Zeca Santos", a esperada aliança entre os dois personagens que
lhe dão nome, ambos situados no plano da exclusão, não é plena. Nem mesmo a
força do laço de parentesco predetermina a diluição das tensões no jogo das
provas que a dura vida impõe.
Na "Estória do ladrão e do papagaio", as trapaças são protagonizadas por
habitantes do mesmo ‘lado’. O peso da opressão ora converte os homens em
parceiros, ora lhes desperta sentimentos menos nobres, tornando-os aliados do
outro lado. As cumplicidades que pretenderíamos tácitas são desfeitas e
refeitas na dureza dos dias. O efeito surpresa que atinge as personagens
desencantadas com a atitude daquele que de algum modo sente como um igual é
trabalhado como um fator que desencadeia a crença na possibilidade e na
necessidade de construção de uma rede capaz de fazer emergir outros jogos de
poder. Ao olharmos as três estórias como partes de uma longa narrativa, podemos
perceber na sua sequência a alusão a uma cadeia de expectativas que o
aprendizado favorece. Nesse aspecto, aprende a personagem e aprende o leitor,
ambos confrontados com um mundo móvel, tal como resume Maria Aparecida
Santilli:
Como próprio de um universo instável, deslocavam-se, também de
funções, as personagens aliadas e/ou oponentes dos heróis-heroínas,
durante o percurso destes-destas, em demanda dos seus objetivos. Tal
mobilidade parece tipificar o tipo de tensões criado na obra. A
ambiguidade de posições assumidas por certos colaboradores-
adversários é para os personagens mais marcantes o grande obstáculo
atravessado na consecução de seus desejos, já que é para elas (no
plano da narração) o fator imponderável, como será para o leitor (no
plano da leitura) o imprevisível. (Santilli, 1980: 260)
O enquadramento do espaço periurbano sob o signo da mobilidade, em contraste
com a sua apreensão mediada por uma perspectiva exotizante seria um índice de
contestação suficiente para colocar sob suspeita a escrita de Luandino Vieira.
Entretanto, sua radicalidade mostrar-se-ia mais intensa e, naturalmente, mais
perigosa. Ele mistura os processos de transculturação, pois a base da economia
narrativa se alimenta nitidamente das operações no plano linguístico e na
constituição da cosmovisão, instâncias que verticalmente se associam. Ao
mesclar as estações, o salto é ainda mais fundo. De tal maneira que dessa
coletânea pode-se dizer que nas estórias que ele reúne também constrói-se uma
história dentro da História: a revolução interna desenvolvida no plano da
escrita detonou uma crise que atingiria o coração do Império. Refiro-me,
evidentemente, ao tristemente célebre episódio da premiação do livro e do
fechamento da Sociedade Portuguesa dos Escritores pelo Estado Novo em 1965.
Acerca do concurso, Michel Laban, em volume chamado Luandino, inclui um
esclarecedor artigo de Manuel Ferreira e depoimentos de Jorge de Sena e
Ferreira de Castro que integraram o recurso judicial interposto por Edições 70
quando da apreensão do livro (Laban, 1980). Interessa-nos aqui recordar um de
seus sinistros complementos: o programa da Rádio Televisão Portuguesa,
produzido para legitimar a indignação do regime diante da escolha de Luuanda
pelo júri. Moderado por José Mensurado, um funcionário da RTP, do programa
participaram Amândio César (autor, entre outros do volume Contos da Literatura
Ultramarina), José Redinha (etnólogo radicado em Angola) e dois escritores
angolanos residentes em Portugal: Geraldo Bessa Victor e Mário António (que
havia, inclusive, integrado a famosa Geração da Mensagem). A intenção dos
promotores do programa era inequívoca: desqualificar literariamente o livro e,
com isso, comprovar o caráter provocatório da premiação apenas que teria
merecido as respostas que o poder lhe impusera.
Com a legitimidade de homens ligados à cultura e a Angola, os intelectuais
cumpriram o papel que os representantes da ditadura salazarista e colonialista
lhes tinham confiado. Foram enfáticos na desqualificação da obra, contrariando
a opinião de vários críticos portugueses como Luisa Dacosta, Alexandre Pinheiro
Torres e Urbano Tavares Rodrigues, que pela imprensa haviam saudado o
aparecimento do livro. Asseguravam dessa maneira apoio à tese defendida pelo
governo de que a atribuição do prêmio a um ‘terrorista’ era a expressão de um
ato político que urgia combater.
Deixando de lado as questões éticas que a posição implicava, podemos nos ater
ao pronunciamento de alguns membros para confirmarmos a força da proposta
artística das narrativas. Curiosa e ironicamente, em sua diatribe contra o
volume, Bessa Victor, oferece-nos elementos que apontam a energia renovadora da
obra. Em sua avaliação, tratava-se de um atentado à língua portuguesa. O
escritor, que por razões imperiais, também tem seu nome na história das letras
angolanas, alertava para a mudança no comportamento do autor:
Mas a partir de 61, em 61 e em 62, ele passa a escrever de outra
forma, no livro que depois se publica em 63, 64. Como é possível que
um escritor, embora jovem, mas que andou a vida a escrever numa
linguagem tradicional da literatura portuguesa, passe de repente a
escrever de outra forma, como se vê, por exemplo, por esse
apontamento? Ele passou a escrever assim: "Vou pôr a estória com
bicho e pessoa. Não posso jurar só verdade mesmo, não assisti os
casos como se passaram." (Laban, 1991: 920)
Estava, naturalmente, certa a avaliação de Bessa Victor. Recorrendo à sabedoria
popular, poderíamos dizer que ao atirar no que viu, ele acerta no que não viu.
No que talvez não tenha querido ver. Tão surpreendido e irritado, julgou
deficiência o que se afirmou como marca de qualidade. Mostrou-se incapaz de
perceber o alcance da mudança na profundidade das razões que teriam conduzido o
escritor. Ou, quem sabe, desconfiou do significado da proposta e temeu
convalidar. O que é certo é que efetivamente não pôde pressentir que essa
verdadeira torção à Língua Portuguesa seria objeto de muitos estudos.
Reconhecendo a dimensão da proposta, Irwin Stern indica, em artigo publicado em
1980, a abrangência dos procedimentos adotados pelo autor. O movimento quebrava
a espinha dorsal da língua imperial e a refazia literariamente em jogos de
aproximação com idiomas africanos. A aproximação com o quimbundo é um dos
instrumentos e se dá não apenas na utilização de vocábulos, como monandengue,
cassumbula, mataco, etc.. Ela é mais profunda no domínio léxico-semântico, com
"o uso do processo de reduplicação, comum às línguas africanas para exprimir o
conceito superlativo de ‘muito’ (por exemplo, ‘muito velho’)" (Stern, 1980:
195). No campo morfológico, pode-se notar a utilização de morfemas do português
para registrar a ideia do infinitivo e outros tempos na conjugação em verbos
que vêm do quimbundo, como xacatar.
A verticalidade da proposta se evidencia no domínio da sintaxe. Porque reflete
uma outra maneira de ordenar a linguagem, portanto, atualiza uma outra maneira
de ordenar o mundo. É aí, como se vê no exemplo destacado por Bessa Victor que
o problema ganha força. "Não posso jurar só verdade" é construção que escapa
completamente à norma e sugere um outro sistema. No conjunto desses gestos,
Stern vê o fenômeno da "aculturação linguística" (Idem, 193). Contudo, tendo em
conta a consciência do gesto, o conceito de transculturação na linha de Rama e
Ortiz, também utilizado por Mary-Louise Pratt, parece mais adequado.
O choque provocado pelo trabalho de Luandino irritou a oficialidade. Toda a
fúria do poder e a cumplicidade de quem não pôde ou não quis saudar o novo
manifestaram-se refletindo o cinzento panorama daqueles anos. A atitude
literária do escritor angolano maculava a língua, manchando portanto uma das
bases do sagrado imperial. Nas palavras de Salvato Trigo:
Carnavalizando a norma social da língua portuguesa transposta para
Angola, o escritor procura minar, em surdina, a sociedade que a
institucionaliza e, consequentemente, a ideologia que a sustenta. O
seu discurso torna-se, portanto, separatista e as suas obras assumem-
se como subsidiárias de um combate político-institucional travado
noutras frentes. (Trigo, 1980: 241)
Sob o foco de muitos olhares desde o lançamento de suas primeiras narrativas, a
linguagem do escritor angolano permanece inquietando os leitores e fazendo
emergir instigantes reflexões a respeito. Em A dupla tradução do outro cultural
em Luandino Vieira, Conceição Lima explora o que chama de maleabilidade na
língua em que o autor cria suas estórias (Lima, 2009: 50), constatando que:
Da alternância entre o normativo e o criativo, surgem materiais
linguísticos e estilísticos inovadores; sintaxe popular, calão de
Luanda, arcaísmos, quimbundismos, e, sobretudo, neologismos. Ao criar
uma língua dentro da língua, o escritor exprime a sensibilidade de um
povo não europeu. (Idem, 51)
No gesto de Luandino patenteavam-se indícios de um projeto, à época
revolucionário, de construir uma ideia de nação. Se hoje, como alertam tantos,
do nacionalismo podemos apreender faces perigosas e até insuficientes ou
improdutivas para a constituição das utopias, não podemos esquecer que entre o
fardo do homem negro, na curiosa formulação de Basil Davidson, precisamos
computar a necessidade de investir em processos que outras partes do mundo já
podiam colocar em discussão. O conceito de nação é um deles. Empenhado na
consolidação dessa ‘comunidade imaginada’, na conhecida formulação de Anderson,
Luandino ancora na tradição literária de Angola sua busca e investe numa
relação produtiva com a elite que o precedeu:
E percebi que o gesto quase involuntário de alterar a língua
portuguesa que me acontecia quando as punha a falar, era o caminho
para as tornar credíveis. A linguagem dos bairros populares onde
cresci, era parte integrante e definidora da identidade das minhas
personagens e portanto, o caminhar por aí. Essas personagens já
estavam na literatura angolana: desde os finais do século XIX em
romances e depois em contos, por exemplo, de Corchat Osório, de A.
Jacinto e já havia neles também a introdução de outras línguas e
arranjos no português. Só que estas personagens nunca tinham sido
personagens centrais, isto é, aquelas em função das quais tudo se
articula. (Vieira in Ribeiro, 2006)
Na intenção e nos gestos, desenha-se a coerência do projeto. A aproximação
entre narrador e personagens, que já podíamos detectar em A vida verdadeira de
Domingos Xavier, em Luuanda evidencia-se, traduzindo uma cumplicidade que se
manifesta para além das páginas publicadas. Compreendendo que a proposição de
um novo ponto de vista para a leitura da história exigia procedimentos
consentâneos, Luandino percebe que povoar a linguagem dos personagens dos
romances com palavras típicas não só seria insuficiente como os reduziria ao
terreno do pitoresco. Convertêlos em passageiros de ilhas idiomáticas lhes
encolheria a carga de humanidade que neles era fundamental reconhecer,
inclusive como resposta ao universo de valores disseminados pela literatura
colonial. Tratava-se efetivamente de romper o inaceitável, do seu ponto de
vista, isto é, a hierarquia entre os personagens e o autor situado acima de
suas criaturas.
Procurando a ruptura como chave de um processo criativo, sem pretender
dissociar-se do universo dos excluídos que elege como referencia do mundo a ser
criado na forma de um novo país, que deve surgir da superação da cadeia
colonial, Luandino não renuncia ao diálogo com o que se fazia e se pensava
noutros espaços culturais. Tributária da literatura que desde o século XIX se
fazia em Angola, sua obra também encontrará espaço para um diálogo que, de
Jorge Amado a James Joyce, incorpora a energia que vai buscar em autores como
Shakespeare, Vieira, Camões... O enraizamento africano dialeticamente se compôs
com as marcas de outros códigos culturais.
Passados tantos anos e vencidas tantas crises, renovadas outras, o projeto
nacional em Angola permanece em processo. E podemos, pela análise da realidade
de sua população, reunir razões para pôr em discussão a justeza dos caminhos
escolhidos. Os trilhos da política não lograram as metas prometidas pelas
sedutoras palavras de ordem, é fato. Entretanto as curvas sinuosas da
literatura se redesenham sugerindo uma dose muito mais luminosa de acerto. Em
se tratando de Luandino e de sua Luuanda, alguns testemunhos parecem dar conta
da profundidade das escolhas do escritor. A renovação que propôs e atualizou, e
ganha força nos livros que voltou a escrever, revela que para Luandino Vieira
distanciar-se de um certo conglomerado social implicou a instituição de um
outro e, assim, criar novas direções para um projeto literário iniciado ainda
no século XIX. Inscrevendo-se numa linhagem particular, ele trai a elite a que,
por critérios de origem e raça, deveria pertencer, e faz da própria recusa um
método para sua formação. Desse modo, ele pode alimentar outra tradição. É o
que podemos aferir na declaração de um outro escritor, também ele nascido fora
de Angola, também ele passageiro de uma especial viagem na direção de um
destino. Falo de Ruy Duarte de Carvalho que declara:
Com a carga emotiva de um sobressalto e de um sublime encontro, a um
livrinho que dois ou três anos antes, em 1963, tinha por dois ou três
dias aparecido à venda em Luanda. O livrinho em questão chamava-se
Luuanda, e era da autoria de José Luandino Vieira. Ora a esse
livrinho e a alguns versos de Viriato da Cruz e de Aires de Almeida
Santos, bem como a algumas crônicas de Ernesto Lara Filho, eu devo o
golpe da consciência, pela via do arrepio, de uma alma angolana que
então em mim se veio acrescentar à consciência prévia de uma razão
angolana e foi responsável pela minha conversão à condição de
Angolano. (Carvalho, 2006: 8)
Se o passado é escrito pelo futuro, a fala de Ruy Duarte de Carvalho define a
legitimidade de uma reinvenção que está indiscutivelmente associada a uma
história maior que a do próprio autor. Uma história que permanece repercutindo
no presente e no passado de um país. E que torna mais significativo o lugar da
literatura na ordem e na desordem dos dias.