As estórias dentro da história: construções ambíguas da memória em O Olho de
Hertzog de João Paulo Borges Coelho
1. A ambiguidade e o leitor implícito
Já as três epígrafes indicam o que o leitor deve esperar deste romance: afirma-
se o relato de "actos (…) reais, embora se suspeite que a realidade não passa
de uma massa de contornos imprecisos"; levanta-se a dúvida acerca da veracidade
da história a partir do momento que se questiona a linearidade do tempo,
descobrindo "que todos os momentos do tempo existiram simultaneamente" (W.G.
Sebald) e, finalmente, substitui-se a perceção direta da realidade pela leitura
incerta de signos (Italo Calvino). A ambiguidade, no leque de interpretações
inaugurado pelas epígrafes, será portanto um conceito central nas duas
narrativas que são apresentadas alternadamente, não se podendo falar de uma
ação principal, mas de duas, mesmo estando elas intrinsecamente relacionadas: o
que diz respeito à guerra é contado por um narrador autodiegético, Hans
Mahrenholz, um oficial alemão que participou na campanha militar do general
LettowVorbeck. A outra ação, contada pelo narrador extradiegético, refere-se à
estadia do mesmo Hans – entretanto assumindo outra(s) identidade(s) – na cidade
de Lourenço Marques, privilegiando-se a focalização a partir da sua perceção e
consciência, nomeadamente quando percorre as ruas da cidade e como ouvinte de
estórias contadas por outras personagens. Todas as narrativas, principais e
secundárias, complementam-se no caminho da procura do ‘Olho de Hertzog’, nome
dado ao lendário diamante.
A primeira epígrafe, ao contrário das seguintes, sem indicação de autoria,
refere-se às pessoas que praticam os atos "reais ou não", chamando-as de
"animais que não existem". Esta denominação identificada como paráfrase de
"Durrell" parece iniciar, desde logo, a ambiguidade ao nível de nomes e
identidades que carateriza todo o romance: em vez de Lawrence Durrell, o autor
de The Alexandria Quartet, deve tratar-se do irmão Gerald e, provavelmente,
duma alusão irónica à autobiografia romanceada da infância deste popular
naturalista em Corfu, entre 1935 e 1939, sob o título My Family and Other
Animals (1956). No fundo, O Olho de Hertzog constitui uma vasta galeria de
personalidades, caraterizada por um excesso de nomes, que exige a participação
do leitor na procura da ‘verdade’ sobre acontecimentos e identidades,
característica da investigação, policial e historiográfica – o que constitui
uma confluência fundamental para o género híbrido da própria obra que cumpre à
perfeição o que Elisabeth Wesseling diz sobre o romance histórico
autorreflexivo, entendido como "synthesis between the detective and historical
fiction" (Wessling, 1991):
Both are concerned with "understanding the past through
interpretation", although in self-reflexive historical fiction this
interpretative process is not concluded by a solution as univocal as
that in the regular whodunit. (Ibidem)
O leitor implícito, entendido no sentido hermenêutico no processo da leitura
(Iser, 1976) como alguém interessado em preencher lacunas e resolver
ambiguidades criadas pela justaposição de perspetivas no texto, é claramente
prefigurado, no seio da ficção, por "Hans Mahrenholz, aliás Henry Miller"
(Borges Coelho, 2010: 18). A impressão instantânea de, ao chegar à cidade de
Lourenço Marques, estar de volta ao Hamburgo da sua infância, por causa da
mesma "chuva miúda mas inclemente" (Idem, 13), "Hamburgo às cegas" (Ibidem) no
entanto, evoca Walter Benjamin e, concretamente, o famoso início do texto
autobiográfico Berliner Kindheit um 1900, ao aludir a um regresso à cidade da
infância como errância específica: "Desorientar-se numa cidade não quer dizer
nada. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta, exige
alguma aprendizagem".[1] Hans não regressa a Hamburgo, é só uma ilusão fugidia.
Contudo, em ambos os casos surge um alheamento (Entfremdung) que dinamiza a
aprendizagem do lugar, ao vaguear pelas ruas e praças:
Olha esta praça, afinal distante de Hamburgo, povoada de gentes tão
distintas, moldada pelos caprichos de quem a foi edificando, que a
salpicou de pequenos quiosques, estranhas construções encimadas por
minaretes de ferro forjado, chinesices. (Borges Coelho, 2010: 19)
A própria disposição irregular dos edifícios na Praça 7 de Março, bem como a
forma eclética que estes assumem, em conjunto com o movimento apressado das
pessoas, os "eléctricos, vagorosos", a "vozearia" e os "cheiros fortes e
desconhecidos" (Ibidem) são todas impressões que não conseguem disfarçar a
superioridade que Hans sente enquanto alemão e europeu, o que acrescenta à
visão benjaminiana uma dimensão de reposicionamento no contexto colonial. No
entanto, a narrativa refere outro alheamento que implica precisamente uma
inversão das categorias de civilização europeia e urbana vs. vida selvagem
africana: é a vivência no mato – em Berliner Kindheit um 1900 só comparação
abstrata – que dificulta, ironicamente, ao alemão Hans a reaprendizagem da
cidade após ter andado com as tropas de Lettow-Vorbeck:
O tempo que passou no mato foi demasiado para que pudesse agora olhar
em volta e ver simplesmente uma cidade. Os arbustos da savana
espalhavam vultos e ameaças; os charcos, sempre que chovia, traziam
mil olhos à superfície; a luz da lua lambia os canos das espingardas.
É isso que ainda vê nestes edifícios, nos postes, nos sofridos corpos
que são as árvores urbanas, no inquietante padrão repetitivo das
cercas de ferro forjado e da calçada, nas mensagens ocultas que os
dizeres dos anúncios e dos cartazes calam: perversidade,
dissimulação. (Idem, 20)
Esta visão entra também em diálogo com a epígrafe de Le città invisibili
(1972), retirada do primeiro capítulo de la sequência "Le città e i segni": o
viajante entra na cidade de Tamara vindo do mato onde não se questiona a
correspondência inequívoca entre signo e objeto como ferramentas para lidar com
o mundo. Nesta cidade, isto é impossível, porque o olhar fica preso numa cadeia
de operações de atribuir significado que nunca chega a uma identificação
substancial, portanto:
L’occhio non vede cose ma figure di cose che significano altre cose:
(...) Lo sguardo percorre le vie come pagine scritte: la città dice
tutto quello che devi pensare, ti fa ripetere il suo discorso, e
mentre credi di visitare Tamara non fai che registrare i nomi con cui
essa definisce se stessa e tutte le sue parti. (Calvino, 1972)
Apesar de a citação na epígrafe acabar em "o olhar percorre as ruas como
páginas escritas" (Borges Coelho, 2010: 11), a construção discursiva do espaço
Lourenço Marques segue à risca instruções posteriores de não fazer nada além de
registar os nomes com os quais a cidade se define a si própria e todas as suas
partes, dando somente a ilusão de uma visita. A presença massiva dos anúncios
publicitários e letreiros que povoam as ruas desta cidade ‘Lourenço Marques’ e
a sua constante leitura, obedecendo ao olhar indeterminado do neófito Hans,
apontam – paradoxalmente na sua aparente precisão – para "a massa de contornos
imprecisos" (Idem, 7) que constitui a realidade, quando o sujeito que olha e lê
não seleciona e constrói significado. Não é por acaso que esta aprendizagem de
não se deixar iludir pelos signos bem visíveis é inaugurada pelos nomes dos
navios fundeados no porto, culminando na leitura da palavra Herzog (que faz
Hans estremecer) por debaixo de Beira, "nome pintado de fresco por cima do
outro" (Idem, 14). O narrador avisa que a variante Hertzog vai levar a outra
história, não a deste velho navio.
Por isso, a acumulação aparentemente indiferenciada dos letreiros e da
publicidade não se esgota no effet de réel (Barthes, 1968) de uma
reconstituição de Lourenço Marques do pós-guerra 14-18 que, conforme Eduardo
Pitta, "tende a dificultar a leitura por parte de leitores não-familiarizados
com a realidade local", acrescentando: "O raciocínio continuaria válido se um
inventário com o mesmo tipo de anúncios estivesse reportado a Lisboa ou a
Londres" (Pitta, 2010). Discordamos, porque a leitura urbana de Lourenço
Marques, de estrutura antagónica como todas as metrópoles coloniais, desafia o
eurocentrismo da própria memória da Grande Cidade (cf. Brugioni, 2012: 395),
propondo ao leitor uma deslocação e um reposicionamento que terão dinâmicas
diferentes conforme a sua própria perspetiva e identidade, europeia ou
africana. Quanto à europeia, o perfil do leitor implícito é prefigurado pelo
percurso e pela ambiguidade identitária das personagens que abandonam a Europa
porque foram ‘chamadas’ para mergulhar no espaço africano. Os seus caminhos
entrecruzam-se em Lourenço Marques. Neste sentido, Hans Mahrenholz cumpre um
papel duplamente privilegiado, como protagonista e narrador / personagem-
refletor, contracenando com personagens que, não sendo menos ambíguas na sua
definição, representam a identidade moçambicana, tal como Rapsides e João
Albasini, este último caraterizado pela condição de assimilado.[2] A certa
altura, Hans interroga-se: "Finalmente, não será até a sua raça – nem branco
nem preto – ela própria uma ambiguidade?" (Borges Coelho, 2010: 383).
No perfil de Hans ecoa a sobreposição de dois projetos, da flânerie e da
arqueologia[3], que encontramos em Benjamin e que revela precisamente a
problemática do lugar da aprendizagem, paisagem urbana real ou memória:
No âmbito dos conceitos do flâneur como mnemotécnico, a arqueologia
serve de metáfora para caracterizar o trabalho do flâneur que se
refere ao passado. No entanto, esta metáfora revela também o dilema
que caracteriza estes conceitos, porque ao contrário do arqueólogo, o
flâneur encontra só em casos raríssimos o passado nos vestígios
materiais.[4]
Em Berliner Kindheit um 1900, os lugares indicados nos títulos dos breves
capítulos emergem do campo da memória e não da paisagem urbana experimentada na
flânerie (Neumeyer, 1999: 377-78). No romance de Borges Coelho, surge uma
sobreposição mais complexa e até antagónica entre (1) a focalização em Hans, um
alemão disfarçado de inglês vagueando por um Lourenço Marques para ele
desconhecido e evocando as suas memórias, e (2) o narrador extradiegético, não
só portador discreto do ‘presente vivido’ desta cidade do pós-guerra 14-18,
"quase totalmente rasurado do espaço urbano contemporâneo" (Brugioni, 2012:
395), mas também fonte do saber capaz de articular esta memória com história e
ficção, re-funcionalizando de forma criativa este arquivo menor, além do effet
de réel.
Basta citar o parêntesis inicial que refere "Fernando Pessoa (…) de regresso a
uma pátria desconhecida" (Borges Coelho, 2010: 15) e, numa espécie de
complemento final, o letreiro "A. O. Salazar, Contabilista, Espírito de missão,
(…)." (Idem, 438). No entanto, o encontro de Hans com aquele contabilista de
"nariz aquilino" e "voz afeminada" (Idem, 439) já faz parte da sua visita a um
prédio "que não se lembra ter visto antes" (Idem, 436). Só repara na sua
frontaria fantasiosa, bem ao estilo das Cidades Invisíveis de Calvino, quando
sentado na cadeira cromada da Barbearia e olhando "o espelho que tem na frente"
(Ibidem). A sua errância, caraterizada ao longo do romance pela interação entre
o real e o imaginário, nem sempre com delimitações unívocas, acaba
significativamente no esquecimento, na incapacidade de nem sequer se lembrar
mais "de uma certa praça de Hamburgo, fustigada por uma chuva inclemente"
(Idem, 439).
Portanto, em vez de o discurso narrativo afirmar uma ilusão referencial
consistente, o leitor está confrontado com o problema de filtrar os signos
espalhados pelas ruas e praças e atribuir-lhes significado, participando assim
na própria construção discursiva da realidade e, consequentemente, da História.
Hans vagueia pelos "labirintos de uma cidade de espelhos onde os acontecimentos
que pareciam definitivos não passam afinal de um mero reflexo de verdades
sempre novas, escondidas dentro dele" (Idem, 291). Fiel a esta imagem, que mais
uma vez lembra Calvino, estabelece-se uma articulação, de contiguidade e
analogia, entre a flânerie e a atividade de detetive ou arqueólogo: em vez de
afirmar o percurso unívoco e sintético da História (history as written), o
leitor está confrontado com a ambiguidade e a desordem. Terá que lidar com a
pluralidade de nomes achando-se perdido, tal como Hans, na "maré das
interrogações" (Idem, 356) sobre o passado (past as lived)[5]; passado esse que
abrange o leque de ações, decisões e oportunidades que ficaram na sombra
daquele que é sintetizado na ‘grande narrativa’ da História. A crise de
interpretação que carateriza a flânerie e a investigação de Hans prolonga-se
até na reduplicação do objeto cobiçado – o diamante: o ‘Olho de Hertzog’
representa a oportunidade de alterar o rumo da História. No entanto, ela é
desaproveitada no meio dos acasos, encontros e eventos revelados ao longo das
diversas ‘estórias’ que Hans escuta, compreendendo só aos poucos a sua
articulação – um detetive inexperiente, um leitor ignorante do passado.
Por exemplo, ele confessa que não sabe quem é o general Koos de la Rey, levando
Natalie Korenico, de proveniência inglesa, a contar "a saga do general tal como
os africânderes a contam" (Idem, 232): "Montado no seu cavalo branco, De la Rey
escapou a todas as armadilhas, surgiu sempre onde menos o esperavam" (Ibidem).
Contrasta com este heroísmo idealizado a guerra total e destrutiva dos
invasores ingleses, não poupando a população civil e levando-a a campos de
concentração. É Natalie que lhe tem que contar o que ele deveria saber: o
general De la Rey é obrigado a assinar, a 31 de maio de 1902, o Tratado de
Vereeniging, entre o Reino Unido e as repúblicas do Transvaal e do Estado Livre
de Orange, ficando, a partir daquela data, todo o território sob domínio dos
vencedores, sendo denominado União Sul-Africana.
Longe de ficar pelos factos, esta revisitação do passado, aparentemente
ingénua, procura as possibilidades alternativas, introduzindo assim uma
paradoxal dimensão messiânica, correspondendo à contradição inerente da
"history as prophecy" (Wesseling, 1991) que carateriza o romance histórico
autorreflexivo. Contudo, também esta dimensão messiânica não é afirmativa nem
unívoca, porque surge não só como uma pluralidade de projeções sobre o futuro
(para o leitor implícito: o passado) mas também como a possibilidade de uma
leitura irónica. Por exemplo, basta pensar no encontro final de Hans com aquele
contabilista de nome Salazar, cujo letreiro promete "Projecto de futuro
alicerçado em sólidos valores. Ordem e Progresso" (Idem, 438). Hans lê este
letreiro numa "última porta, mais austera, sem os arabescos que ornamentam as
restantes. Uma porta incongruente num prédio como aquele, e todavia de algum
modo cheirando a futuro" (Ibidem).
Dissemos que aquele prédio que Hans não se lembra ter visto antes, faz lembrar
as Cidades Invisíveis de Calvino. No entanto, o leitor também se deve lembrar
daquela outra cidade que Hans tinha sonhado numa ocasião prévia:
Entrávamos por uma cidade quase europeia, não fosse a cor da sua
miséria. Na frente, o kommandant montado num cavalo branco e
envergando o uniforme de gala, comigo por perto nas minhas nóveis
funções de adjudante-de-campo. (Idem, 271)
Este devaneio da entrada triunfal do general Lettow-Vorbeck, com "as companhias
de askaris alemães, impecavelmente uniformizadas e alinhadas, de espingarda ao
ombro" (Ibidem), é facilmente reconhecível como aquela verídica, em 2 de março
de 1919, na capital derrotada do antigo Império Alemão, cidade a mergulhar numa
miséria quase não-europeia sob as severas sanções impostas pelo Tratado de
Versalhes. Tal como o general Koos de la Rey, imbatível na sua campanha contra
os ingleses, Lettow-Vorbeck, ele também montado num cavalo branco, será arauto
de outro salvador messiânico. Entende-se a dupla ironia de Berlim como "cidade
quase europeia", na qual entram os "askaris alemães": uma inversão que deve ser
vista no âmbito deste projeto narrativo que empreende um reposicionamento de
África, e em concreto da História de Moçambique e de Lourenço Marques, perante
a Primeira Guerra Mundial, habitualmente narrada numa perspetiva eurocêntrica.
Este projeto implica também uma abordagem das consequências da Segunda Guerra
dos Bóeres, tal como a analogia entre Koos de la Rey e Lettow-Vorbeck já
insinua.
2. Entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra dos Bóeres – uma
perspetiva ex-cêntrica
Uma parte da ação centra-se nos acontecimentos relacionados com um marco
emblemático da ‘grande narrativa’ civilizacional europeia: a Primeira Guerra
Mundial. Hans Mahrenholz apresenta os combates travados pela Schutztruppe[6] no
território africano, onde se encontra com LettowVorbeck e posteriormente
Sebastian Glück, personagem que acabará por definir o desenrolar dos
acontecimentos.
O que a ‘grande narrativa’ marginaliza é o facto de a Primeira Guerra Mundial
também ter marcado "uma viragem social e económica mas sobretudo política em
África" (M’Bokolo, 2007: 385). Borges Coelho faz uma crítica à perspetiva
eurocêntrica tradicional, resgatando ao mesmo tempo uma História de Moçambique.
A historiografia ocidental (europeia e norte-americana) só recentemente tem
abandonado a visão periférica de África neste conflito, considerando o seu
próprio "maelstrom":
Indeed Britain and Germany did not formally agree to cease
hostilities in East Africa until two weeks after the Armistice was
signed in Europe in November 1918; and in the intervening four years
Britain, India, South Africa, Belgium, Portugal and Germany were
sucked into a maelstrom which radically altered the lives of millions
of Africans and would result in a complete redrawing of the map of
colonial Africa. (Paice, 2010: 21)
Este romance histórico autorreflexivo procura trazer para o domínio público a
importância que "a luta entre as potências europeias" assumiu no território
africano, pondo em causa "a suposta primazia do homem branco e, logo, um dos
alicerces da própria colonização" (M’Bokolo, 2007: 385). Conforme Brugioni
(2012: 399), "Borges Coelho situa a narração do conflito a partir de um espaço
/ tempo ex-cêntrico, baseando a sua afirmação em Bhabha (1995) e, no que diz
respeito "à especificidade do conflicto mundial no território africano", em
M’Bokolo (2007).[7] Propomo-nos articular esta abordagem com o conceito de uma
perspetiva "ex-cêntrica" contra o poder autoritário do discurso único
(Hutcheon, 1988: 12) e com a organização dialógica ou polifónica do romance
(Bakhtin, 1981).
Explorando-se um pouco mais esta ideia, pode-se verificar que, ao longo da
narrativa, surgem várias versões que vão sendo contadas acerca do mesmo facto.
Atente-se, a título de exemplo na misteriosa personagem de Sebastian Glück.
Quando o coronel aparece junto ao exército alemão, surge como alguém
enigmático, de identidade ambígua. Assim, Hans fica curioso relativamente ao
passado e começa a relatar supostas aventuras vividas pelo oficial, reveladas
pelos seus companheiros. O médico Gasparini, o major Matthaus, o ajudante de
cozinheiro Santana, entre outros, contam extraordinárias e fantasiosas
histórias sobre o misterioso coronel, que parece ser ora uma figura quase
mítica ora um criminoso psicopata.
Além deste exemplo, podem-se também referir o testemunho do padre Sacramento da
vida de Rapsides, as histórias de amor e intriga misturadas com as críticas à
injustiça social do jornalista Albasini, entre outras. Esta combinação de
vozes, que contam estórias e não escrevem a História, poderia sugerir a ligação
do romance com a tradição oral da literatura africana, se não fossem sobretudo
as personagens femininas vindas da Europa e da África do Sul as contadoras mais
ativas: Florence, Natalie e Wally. Esta polifonia fica associada a uma
revisitação do passado que explora as possibilidades que ficaram na sombra da
‘grande narrativa’, introduzindo assim uma paradoxal dimensão messiânica. Esta
não se afirma de forma unívoca e até às vezes parece ironizada, tal como
acontece no referido devaneio da entrada triunfal do general Lettow-Vorbeck,
parodiada por outras versões:
Klopper talvez se visse a si próprio montado no cavalo branco de
Lettow, respondendo aos acenos da multidão com uma mão, com a outra
consultando o seu relógio, seguido do seu ajudante-de-campo, o
reverendo corcunda Jozua Naudé, de manto escuro drapeando ao vento;
(…). (Idem, 271-72)
Estas fantasias surgem na sequência de um plano de mudar o rumo da História,
conferindo um novo sentido à fuga das tropas de LettowVorbeck, uma vez que a
guerra já estava praticamente decidida em território europeu: "Lettow marcharia
com a sua força sobre Joanesburgo!" (Idem, 265). O artífice é Sebastian Glück
que ainda fala da hipótese remota de a presença alemã na África Austral "ditar
o curso dos acontecimentos na Europa" (Ibidem). O plano do misterioso Glück (em
alemão: ‘sorte’) previa uma audaz confluência de diversas visões messiânicas,
‘nacionais’ no sentido lato, contra o poder opressor do Reino Unido. Este ‘D.
Sebastião’ não só queria juntar a Jong Zuid Afrika que apoiava o general
Hertzog, "o único político com coragem e valores para se bater pela causa do
seu verdadeiro povo" (Idem, 270), mas também os africanos que sonhavam de
recuperar o antigo império de Macombe: Glück reuniu-se com um dos herdeiros,
Nongwe-Nongwe, acompanhado por Mbuya, "uma feiticeira muito jovem, encarregado
de receber de Kabudu Kagoro, o grande Deus local, as mensagens que transmitia
aos combatentes" (Idem, 262): "(…) nessa noite tivera um sonho, um sonho em que
vinham de longe grandes guerreiros para os ajudar a vencer o Diabo" (Ibidem).
Embora todo este plano – que tem movimentações historicamente documentadas como
base – tenha ficado reduzido a uma construção geopolítica imaginária perante o
Não categórico de Lettow-Vorbeck que não se deixa manipular por Glück, o seu
valor para uma historiografia alternativa, aberta às oportunidades
desaproveitadas é inegável. O general alemão, focado na Europa, nega a
possibilidade de uma união entre os Bóer dissidentes da União, os askaris
alemães e os povos da Zambézia contra a hegemonia britânica, o que teria tido
como consequência um reposicionamento de Moçambique para uma maior
centralidade, entre Europa e África do Sul. É uma alternativa aliciante perante
a História colonial portuguesa que, no outono de 1917, declara concluída "a
‘pacificação’ da Zambézia, desta vez de forma definitiva – até à moderna guerra
pela independência" (Alexandre, 1998: 190).
É nesta encruzilhada da História entre a pluralidade dos poderes e a
consolidação da hegemonia britânica que a reduplicação do objeto cobiçado – o
‘Olho de Hertzog’ – adquire significado político por representar a esperança de
alterar o rumo. No entanto, é a noite "daquele fatídico 16 de Setembro" (Borges
Coelho, 2010: 234) que deita as ilusões por terra. Por um acaso ou pelo destino
[8], mais uma questão de interpretação, acontece um singular cruzamento entre a
trajetória final de um gang de ladrões que se tornou famoso na África do Sul e
a movimentação de militares da nação africânder, contrária à ‘grande narrativa’
da União Sul-Africana. O general Koos de la Rey, talvez no caminho de se juntar
à revolta contra a União (Idem, 288), procurando a aliança com as forças alemãs
em vez de entrar ao lado dos britânicos no Sudoeste Africano Alemão, e o
bandido Bill Foster com os seus companheiros, após o cerco policial finalmente
acurralados dentro de uma gruta em Joanesburgo, morrem na mesma noite de 15
para 16 de setembro de 1914. "Os dois enterros ocorreram no mesmo dia, quase em
simultâneo. Um envolto em pompa e circunstância, o outro mais modesto,
assistido apenas pela família Korenico" (Idem, 289).
Este cruzamento revela-se como um dos maiores nós na teia das biografias, todas
elas caraterizadas por um milagre, um renascimento ou uma segunda vida que se
acrescenta a identidades historicamente documentadas. Portanto, uma componente
de missão ou predestinação perpassa todas as narrativas. Por um motivo ou
outro, todos eles recebem a ‘chamada’ de se encontrar em Lourenço Marques,
neste centro periférico (cf. Brugioni, 2012: 392) no eixo entre Europa e África
do Sul, tornando-se "uma cidade de espelhos onde os acontecimentos que pareciam
definitivos não passam afinal de um mero reflexo de verdades sempre novas,
escondidas dentro dele" (Idem, 291).
Natalie é quem melhor encarna o renascimento que o romance confere a algumas
das personagens. Nascida como Martina Korenico em Brighton, apaixona-se na sua
juventude por William Foster, futuro líder de um gang de ladrões. Juntamente
com John Maxim e Carl Mezar leva a cabo um conjunto de assaltos que acabariam
por ditar o seu fim dentro da mencionada gruta em Joanesburgo. Decidem então
pôr fim à sua vida. Não sem antes Bill pedir para ver uma última vez a sua
esposa, agora Peggy Foster. É então que se ouvem fora da gruta três tiros e,
após entrarem, os polícias encontram os corpos de Foster, Maxim, Peggy e Carl
que foi o primeiro a ser alvejado por Maxim, a seu pedido. Os pais de Peggy, ao
saberem do sucedido, pedem ao detetive para levarem o corpo da filha de volta
para casa, para poder ser sepultada. O detetive acede e na viagem para casa dos
Korenico descobrem que Peggy afinal estava viva. É aqui que a narrativa lhe
confere a tal segunda vida, pois nos relatos oficiais (vd. Davie, 2003) esta
tinha realmente falecido conjuntamente com todos os outros membros do Foster
Gang, como ficou conhecido em Joanesburgo. Após o sucedido, nasce a nova
identidade de Natalie Korenico que acaba por viajar para Lourenço Marques, tal
como o seu amante sempre tinha desejado.
Este exemplo mostra como o romance questiona, de forma criativa, a relação
entre a representação e os factos. Tudo isto vai de encontro ao que Hayden
White refere na sua obra Metahistory (White, 1973). A sua conceção de obras
históricas como narrativas literárias, sem serem declaradas como tal, funde a
distinção entre História e ‘estória’, pois enquanto as narrativas históricas
são construídas a partir de factos reconhecidos, precisa-se necessariamente de
se recorrer à imaginação para organizar esses mesmos factos numa história
coerente, sempre tendo em conta as estratégicas metafóricas e ideológicas
utilizadas para explicar o passado (Munslow, 1997: 9). Daí White referir que a
ciência histórica falha quando o seu objetivo é a reconstrução objetiva do
passado. Com a estratégia narrativa de um cruzamento entre a História e
biografias parcialmente inventadas, o Olho de Hertzog aproxima-se também do
conceito de "metaficção historiográfica" apresentado por Linda Hutcheon (1988:
97).
O romance procura passar a ideia de que a História não pode ser vista nem
construída de uma forma tão unívoca e linear, e ao extrapolar todas as
narrativas, quer com pessoas, quer com acontecimentos, O Olho de Hertzog
redefine o lugar de Moçambique na História. No seguimento desta ideia, é
oportuno referir a introdução intertextual de narrativas que vão fornecendo
informações que se assumem como fundamentais para a construção do romance, como
se os testemunhos, conforme apresentado por Beatriz Sarlo (2005), se provassem
fundamentais para a construção das chamadas narrativas dominantes. É o caso das
memórias do general Lettow-Vorbeck[9] que se tornaram populares sob a versão
encurtada Heia Safari! Deutschlands Kampf in Ostafrika (1920). Sob a perspetiva
que aqui desenvolvemos, a nota prévia das memórias é elucidativa:
Os meus próprios apontamentos perderam-se em grande parte, e faltou-
me tempo livre (…) para debruçar-me em pormenor sobre a campanha em
África Oriental. Assim só posso fornecer indicações incompletas. No
essencial, tenho que confiar na minha memória e no que eu próprio
vivi. Alguns erros são inevitáveis." (Lettow-Vorbeck, 1920: VI)
Nos anos trinta, proliferam ficções historiográficas em torno das lutas dos
alemães na África Oriental, nomeadamente do escritor popular Friedrich Wilhelm
Mader.[10] Nas memórias de Lettow-Vorbeck não aparecem nem Sebastian Glück nem
Hans Mahrenholz. Desconhecemos se o fazem num destes romances.
3. O jogo das identidades e o reposicionamento
De facto, quando se lê O Olho de Hertzog, as dúvidas são constantes. Quem é
Hans Mahrenholz e o que procura? Que segredos esconde Rapsides? De que forma é
que as histórias de todas as personagens se interligam entre si e de que modo
necessitam umas das outras para fazerem sentido?
Veja-se, a título de exemplo, o caso do protagonista e narrador da história:
Hans Mahrenholz, antigo oficial alemão, membro da Schutztruppe, surge em
Lourenço Marques como Henry Miller. Primeiro, como empresário à procura de
oportunidades de negócio e, posteriormente, como jornalista do Rand Daily Mail,
com vista a elaboração de uma reportagem sobre as condições de recrutamento dos
trabalhadores das minas.
Sabe-se que existiu historicamente um oficial alemão com o nome de Hans Marholz
que fez parte da missão do Afrika Luftschiff, sob o comando de Ludwig Bockholt,
apesar de ser oriundo de Königsberg e não de Hamburgo. É dois anos mais velho
do que o próprio capitão Bockholt, também presente no romance.
O romance confere a esta personagem uma reincarnação sob um nome ligeiramente
diferente, uma nova vida, cujo destino é de se integrar numa História
alternativa centrada no continente africano. A viagem apócrifa do Afrika
Luftschiff é paradigmática no sentido do reposicionamento que o romance
empreende e pode ser entendida como narrativa inaugural deste estratégia,
depois repetido com outras personagens.
Depois de um primeiro voo de teste, o embarque de Mahrenholz / Marholz ocorre
em Jamboli, na Bulgária, "a base alemã mais próxima do continente africano"
(Borges Coelho, 2010: 51), em 21 de novembro de 1917, para uma viagem
oficialmente sem regresso: "Em África não havia condições de reabastecer o
Afrika Luftschiff de combustível e gás para tornar possível a viagem de
regresso. [...] O aparelho seria desmantelado à chegada" (Idem, 49).
Já estas indicações, historicamente documentadas, deixam entrever a intenção de
re-funcionalizar um episódio secundário no contexto geral do desastroso
desempenho militar dos dirigíveis do Império Alemão que, no início da Grande
Guerra, tiveram a fama de ‘arma milagrosa’. Tal episódio torna-se ocasião –
historicamente possível – para a ‘iniciação africana’ de um dos tripulantes:
Hans Marholz ficcionalizado em Hans Mahrenholz. O projeto de uma viagem sem
regresso para África adquire para o Eu nesta ficção historiográfica uma
"natureza mais profunda, ganhando características de verdadeira partida, um
definitivo mergulho na escuridão" (Idem, 49). Esta imagem de "mergulho"
reaparecerá continuamente ao longo da narrativa da missão – historicamente
abortada – de abastecer as forças dizimadas e exaustas de Lettow-Vorbeck na
África Oriental com armamento e medicamentos: "Quanto a mim, o que é também de
algum modo estranho, sentia cada vez mais forte a vontade de seguir em frente,
de mergulhar" (Idem, 53). Esta vontade entra em conflito com a versão histórica
do voo a partir do momento que o rádio recebe do Almirantado o comando de
regressar, por não haver condições de realizar a missão de apoio às tropas de
Lettow-Vorbeck. Esta mensagem já deveria ter chegado antes, porque a decisão
foi tomada três horas e meia após a partida do L-59 (assim o nome de fábrica do
dirigível). No entanto já era impossível transmiti-la a partir de Jamboli,
havia necessidade de utilizar a potente estação-rádio de Nauen, perto de
Berlim, que só na noite do dia 22 para o dia 23, às 0.45 horas, conseguiu
transmitir o telegrama.[11]
Em vez de obedecer "a voz roufenha de Nauen apelando a que regressássemos a
casa" (Idem, 57), conforme a versão histórica, o comandante Bockholt do romance
"continuava a pretender levar a missão até ao fim" (Ibidem), mesmo perante a
insubordinação de uma parte da tripulação. É neste momento, que surge
Mahrenholz (já não idêntico com o Marholz histórico) "ao lado do comandante":
"Como disse, há muito a minha decisão estava tomada, nada me faria voltar
atrás" (Idem, 59). Mahrenholz consegue convencer Bockholt em prosseguir "em
direcção ao sul por mais seis horas, após o que eu saltaria com algum
equipamento e eles dariam meia volta, de regresso a casa ainda em condições de
serem bem-sucedidos" (Idem, 60). Este salto de paraquedas de facto estava
previsto no projeto inicial da viagem, a ser executado por outro tripulante,
Emil Grussdorf, que se voluntariou para esta missão muito arriscada: uma vez na
mata, ele deveria procurar entrar em contacto com as tropas de Lettow-Vorbeck e
preparar, junto com os soldados, o local de aterragem. No romance, é Mahrenholz
que assume esta "operação estranha" (Idem, 62), disfarçando de heroísmo militar
o seu projeto pessoal ainda difuso de ficar em África: "(…), e finalmente, com
um aceno geral de despedida, mergulhei no espaço" (Ibidem).
Este voo de seis horas – historicamente indocumentado, no entanto imaginável –
transforma o L-59 numa "espécie de navio fantasma sobrevoando um espaço que não
constava nem na geografia nem sequer no tempo" (Idem, 62). A prolongação,
contrária da versão oficialmente comprovada (fig.1), possibilita uma
articulação do espaço geográfico e do tempo histórico de Moçambique com uma
Europa que sente a atração de África como novo centro e como oportunidade de
uma segunda vida, como demonstram as biografias inventadas de outras
personagens, nomeadamente Valerie "Wally" Neuzil, a primeira modelo e musa de
Egon Schiele. À imagem de Hans, também esta pintora austríaca, tradicionalmente
vista na sombra de Schiele, teve direito a uma ‘segunda vida’, sentindo a
chamada de África, no seu caso através de um quadro de Picasso, supostamente
influenciado pela arte africana (Idem, 243).
Fonte: http://www.frontflieger.de/fflgfoto/2-l059_afrika.jpg
Portanto, esta prolongação do voo inaugura o reposicionamento do qual falámos.
No romance, o regresso do zepelim L-59 – que na História militar alemã completa
o episódio, tradicionalmente mitificado como façanha em termos tecnológicos e
afirmação nacional (vd. Goebel, 1925, entre outros) – simplesmente deixa de ter
relevância[12], porque o que interessa é o ‘mergulho’ de Mahrenholz como
entrada sem regresso em África. Ao mesmo tempo, isto significa uma articulação
ex-cêntrica entre modernidade europeia e mundo africano colonial, não só no
sentido de Homi Bhabha, mas também de Bakhtin: Mahrenholz pode ser visto como
protagonista de uma ‘estória’ na tradição satírica de Icaromenipo, tal como o
Padre Bartolomeu com a sua passarola sobrevoando as obras da construção do
Convento de Mafra no romance Memorial do Convento. Tal como no caso do romance
de Saramago, interessa como a perspetiva ex-cêntrica é capaz de interrogar a
narrativa dominante, reinterpretando-a através da extrapolação do
historicamente imaginável: como procurámos comprovar, o voo do zepelim não é
simplesmente o elemento fantasioso ou misterioso que complementa, num sentido
romântico, o "plano da realidade" (Saraiva, 2010: 237) da guerra na África
Oriental, cumpre sim o papel inaugural de um reposicionamento que abrange toda
a metafição historiográfica. Há uma coincidência histórica perfeita: as tropas
de LettowVorbeck atravessam o Rowuma na manhã do dia 25 de novembro de 1917
(Lettow-Vorbeck, 1920: 207). A chegada de Hans junto do general imbatível é
entendido como "duplo milagre" (Borges Coelho, 2010: 46), abrindo a dimensão
messiânica retomada por Sebastian Glück (Idem, 366-67), quando confia ao
jornalista Henry Miller a missão da procura do ‘Olho de Hertzog’.