Este número da revistaAnálise Psicológicaé dedicado à gravidez e à interrupção
da gravidez.
A investigação psicológica na área da gravidez é, mesmo entre nós, uma
realidade. De uma forma sistemática temos vindo a replicar estudos realizados
noutos países, a testar hipóteses nascidas a partir da teoria ou emergentes
enquanto constatações clínicas.
Temos, ao longo dos últimos dez anos, construido uma Psicologia da Gravidez e
da Maternidade que, permanentemente informada por outros saberes e outras
disciplinas, nos vai permitindo compreender e intervir num acontecimento
fisiológico de extensas consequências psicológicas e repercursões sociais e
culturais enormes.
A forma de encarar e viver hoje uma gravidez, pelo menos nos países ditos
desenvolvidos é, em quase tudo, diferente das pungentes e minuciosas descrições
que todos os séculos, anteriores ao nosso, fornecem.
O nosso tempo desnaturalizou a gravidez. Dando às mulheres e aos casais formas
mais eficazes de anticoncepção, a raridade das gravidezes efectivas, passou a
implicar uma sobrestimação do acto de engravidar e, por extensão, do acto de
nascer.
Combateu-se ferozmente a mortalidade infantil como se combateu e continua a
combater o insucesso gravídico.
Aceitando-se como princípio, a diminuição do número de gravidezes por mulher, a
aposta parece que se dirigiu para a qualidade de cada uma dessas gravidezes.
Qualidade, não só em termos da saúde da mulher, mas também em termos da saúde
da criança a nascer.
Indisfarçavelmente esta mudança de tónica da quantidade de gravidezes para a
qualidade de gravidezes significa, na prática, uma opção na qualidade dos
filhos em vez da quantidade dos mesmos. Ou seja, significa que, a sociedade
como um todo assume claramente a preferência de que vale mais menos melhores do
que mais piores.
Esta questão, ainda que subtilmente escamoteada nem que seja pelo facto de ser
"politicamente incorrecta", sustenta, a depois consensual e
pacífica assumpção social de se poder interromper voluntariamente uma gravidez
pela legítima razão de um embrião ou um feto apresentar mal-formação ou
indiciar patologia grave.
Supõe-se que, uma criança nascida ou a nascer possa fazê-lo nas melhores
circunstâncias de forma a exponenciar as suas potencialidades.
Fazer com que uma criança recém-nascida cumpra este projecto social tão
moderno, implicaparadoxalmente que se situe a gravidez como um momento, apenas
um tempo de poucos meses, num projecto muito mais vasto e complexo: o de
Projecto de Maternidade ou Paternidade.
Projecto esse que vai entre as duas décadas e o vitalicio e que afirma, em
última análise, a responsabilidade dos pais em relação a uma criança que já
nasce cheia de direitos.
Esta parentalidade hiper-responsável desdobra-se assim num conjunto de
discursos que defendem a importância dos filhos desejados. Os filhos
conscientemente desejados, suportados por pais com condições e recursos
psicológicos, sociais e económicos que dêem garantias sobre o sucesso do
projecto. Em consequência, estimula-se o planeamento familiar e a educação
sexual das crianças e dos jovens. Em consequência, igualmente, não se estimula
maternidades e paternidades demasiado precoces ou tardias, maternidades e
paternidades de cidadãos desviantes: delinquentes, sem-abrigo ou de muito
baixos recursos económicos. O mesmo para cidadãos com doença crónica, aguda ou
ambígua: doentes mentais, seropositivos, alcoólicos, toxicodependentes, débeis,
etc., etc.
Esta valorização de adultos "competentes" quererem ter filhos
provoca por sua vez uma curiosa corrida à indústria da reprodução medicamente
assistida, à viabilização de gravidezes e crianças com recurso a aparatosas e
dispendiosas tecnologias e, também, a uma máquina complicada e complexa de
redistribuição da parentalidade pela utilização da adopção, face simpática e
bem vista de um primeiro momento que é o abandono de crianças.
A elegia da parentalidade responsável alinha assim, ou pelo menos pretendo-o,
pelo mesmo diapasão da existência de crianças felizes.
Em uníssono pretende-se manter viva a crença que pais e filhos podem e devem
ter todas as condições de sucessos afectivo e relacional.
Este cenário idílico, como se sabe, algumas vezes não é possível.
Muitos cidadãos não percebem ou não partilham esta ideia grandiosa de
parentalidade. Muitos homens nunca pensaram seriamente o que lhes é pedido para
o desempenho do papel. Muitas mulheres assustam-se com a enormidade da tarefa
que lhes é proposta quando e se a têm consciente. Outras, temem a própria
gravidez ou o parto genericamente, ou regeitam linearmente uma dada gravidez
que não quiseram nem desejaram. É aqui que cruza um tema polémico e, pelo menos
entre nós, de actualidade: a interrupção voluntária da gravidez.
As questões que se colocam a este nível são habitualmente de índole política,
moral, legal, religiosa.
Os discursos psicológicos são, entre nós, virtualmente inexistentes ou, pelo
menos, ausentes de qualquer visibilidade científica ou mediática. Há um mundo
de questões a levantar e de respostas a encontrar: Quem são as mulheres que
recorrem ao aborto? Porque o fazem? Que impacto é que essa prática acarreta?
Que consequências têm na sua vida futura? Que implicações têm noutros projectos
de Maternidade? Quem deve decidir duma i.v.g.? Por que razões? Em que tempo e
em que momento da gravidez e da história da vida se pode ou não pode abortar?
Porque é que se protela? Porque é que se entrega a decisão a técnicos,
companheiros ou familiares? Quais as consequências da clandestinidade? Ou da
liberalização em algumas ou todas as circunstâncias?
A estas e muitas outras perguntas não podemos, ainda, responder cabalmente. Mas
saber fazê-las e apresentar alguns resultados é pelo menos um caminho.
Isabel Pereira Leal