A psicologia e o Centro de Saúde do século XXI
A psicologia e o Centro de Saúde do século XXI (*)
José A. Carvalho Teixeira (**)
A PARTICIPAÇÃO DO ISPA NA FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE CENTROS DE SAÚDE
Através do seu Departamento de Formação Permanente, desde há mais de uma década
que o ISPA, reconhecendo a relevância e mais valia das equipas multi-
profissionais, colabora e participa na formação contínua dos profissionais dos
Centros de Saúde (CS), numa perspectiva de integração das contribuições
específicas da psicologia para o desenvolvimento das competências profissionais
e sociais de técnicos de saúde de vários grupos profissionais.
Para além das actividades formativas regulares frequentadas por muitos técnicos
de saúde em áreas de formação diversificadas (psicologia da gravidez e da
maternidade, VIH/SIDA, alcoolismo e toxicodependências, aconselhamento de
saúde, psicopatologia, violência doméstica, abuso sexual de crianças, psico-
oncologia, geriatria, intervenção familiar, promoção de competências parentais,
entre muitas outras), importa referir as seguintes parcerias e colaborações:
-Parceria com o antigo Instituto de Clínica Geral da Zona Sulem numerosos
cursos de formação para médicos de família sobre aconselhamento VIH/SIDA e
aconselhamento de adolescentes
-Parceria com a Coordenação do Internato Complementar de Medicina Geral e
Familiar da Zona Sulpara uma actividade de consultoria e formação de
Orientadores de Internato relacionadas perfil de competências de orientadores,
liderança de equipas, coaching, técnicas de entrevista de acompanhamento e
metodologias de trabalho cooperado
-Colaboração com vários Centros de Saúdeem formação sobre saúde mental nos
cuidados de saúde primários e promoção da adesão medicamentosa
-Parceria com a Sub-Região de Saúde de Lisboa(ARSLVT) em múltiplas acções de
formação sobre trabalho em equipa para equipas de CS e sobre promoção do clima
organizacional para Directores de Centros de Saúde
-Colaboração com o Departamento de Formação da Associação Portuguesa dos
Médicos de Clínica Geral(APMCG) em acções de formação na área do aconselhamento
de saúde nos CSP e aconselhamento de grávidas e pais de crianças na primeira
infância
-Colaboração na fase de implantação de Unidades de Saúde Familiares(USFs) em
formação sobre trabalho em equipa e sobre atendimento personalizado para
funcionários administrativos
-Colaboração com a Associação Portuguesa de Psicólogos dos Cuidados de Saúde
Primários(APPCSP) na realização de um curso avançado de psicologia nos Centros
de Saúde, destinado a psicólogos dos CS, de longa duração e organizado de
acordo com as recomendações internacionais.
Estamos disponíveis para continuar a colaborar na formação contínua dos
profissionais das USFs e dos novos Centros de Saúde, nomeadamente organizando
formação “à medida” nas áreas prioritárias que estão definidas pela Missão para
os Cuidados de Saúde Primários – trabalho em equipa, liderança e gestão,
comunicação – mas também noutras áreas, tais como: trabalho em parceria, gestão
do tempo, gestão de recursos humanos, gestão do stress, prevenção do burnout,
criatividade e inovação, comunicação e relações públicas e áreas técnicas
variadas que envolvam comportamentos relacionados com a saúde e as doenças em
várias fases do ciclo de vida.
A PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA
O envolvimento e participação da comunidade nos cuidados de saúde primários
(CSP) são hoje considerados estratégicos pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) e uma exigência de movimentos e forças sociais diversificadas, em termos
de participação da comunidade no planeamento, funcionamento e controlo dos
serviços, de melhoria da utilização dos serviços e de complementaridade com os
esforços dos profissionais na melhoria da eficiência e da eficácia na prestação
dos cuidados de saúde. É um processo paralelo à melhoria da qualidade e da
eficiência dos CSP que deve ser considerado fundamental e prioritário em
qualquer reforma dos cuidados de saúde primários.
O que se prevê é manifestamente pouco e, sobretudo, não considerado
prioritário. Na reforma em curso, a participação dos utentes e da comunidade é
prevista através de conselhos consultivos (ou estratégicos) dos Centros de
Saúde, das Ligas de Amigos e Voluntariado e do desenvolvimento da ajuda mútua.
É manifestamente pouco e não altera nada: mantém o poder dos profissionais
intocável e o tradicional predomínio da planificação e orientação dos serviços
realizada pelos profissionais. Os cidadãos querem mais do que isso. Querem ser
ouvidos e participar, responsabilizando-se. Querem mais poder e querem
contribuir para a definição de prioridades, para o planeamento das actividades,
para o controlo dos processos e para a avaliação dos resultados. São um
elemento-chave para a melhoria da eficiência e da qualidade em saúde.
O que seria importante acontecer de forma clara e permanente seria a
participação das comissões locais de saúde, das comissões de utentes, das
autarquias locais e das associações de desenvolvimento local. Defendemos também
a participação de representantes dos utentes nos gabinetes do utente e nas
comissões ou grupos de qualidade.
Só com essa participação será possível atingir um objectivo central: nos CSP,
os aspectos psicológicos e sociais e culturais devem estar ao mesmo nível que
os problemas biológicos e a qualidade técnica dos cuidados de saúde que são
prestados.
Só dessa maneira será possível conciliar realmente as pressões para a
eficiência e a produtividade com a promoção da qualidade dos processos de
relação e de comunicação nas consultas, no atendimento ao público e em todas as
interacções sociais do Centro de Saúde com os cidadãos.
A PSICOLOGIA NOSCUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS
A psicologia nos cuidados de saúde primários é a prestação de serviços
psicológicos aos indivíduos, famílias e comunidades, incluindo a promoção da
saúde e a prevenção das doenças e a função assistencial. Esta prestação de
cuidados realiza-se na perspectiva da psicologia da saúde (que utiliza os
modelos biopsicossocial e hermenêutico-discursivo aplicados à saúde), integra-
se nas equipas de cuidados de saúde primários, orienta-se pela colaboração
inter-profissional e pressupõe uma concepção holística e multi-dimensional dos
processos de saúde e doença.
A intervenção da psicologia nos cuidados de saúde primários engloba vários
tipos de serviçosque podem ser prestados pelos psicólogos:
-Actividades de promoção da saúde e prevenção da doença– Integração nas equipas
de programas e projectos de intervenção na saúde da comunidade: saúde infantil
e do adolescente, saúde oral, saúde escolar, saúde materna, saúde do idoso,
prevenção do tabagismo, prevenção das ISTs, prevenção da depressão, entre
outros
-Consulta de psicologia– Consulta de referência para os médicos de família e
para os diferentes programas e projectos
-Participação nos cuidados continuados– Integração como recurso nos programas
de cuidados continuados
-Participação em actividades de humanização e qualidade em saúde– Participação
em grupos e comissões de qualidade nos CS, gabinetes do utente, estudos de
satisfação dos utentes.
- Investigação-acção participada
-Intervenção na comunidadeem programas e projectos desenvolvidos em parceria
com outras organizações
-Actividades formativas– Formação de estagiários de psicologia. Participação na
formação de técnicos de saúde, de funcionários administrativos e de
voluntários.
A intervenção da psicologia nos cuidados de saúde primários assenta igualmente
num conjunto de valores, assunções e práticas, a saber:
-Em relação aos utentes: Promover a autonomia e participação activa e
envolvimento dos utentes nos cuidados de saúde, focando nas suas capacidades,
competências e auto-determinação; Promover a saúde e contribuir para a mudança
de comportamentos que previne doenças; Respeitar a confidencialidade, o
consentimento informado e diferentes identidades sociais e culturais; Evitar
reduzir o comportamento à patologia e promover a auto-ajuda
-Em relação aos outros técnicos de saúde– Actuar mais como um recurso de
colaboração do que como perito; abertura a diferentes perspectivas diferentes
sobre saúde; aceitar a interdependência, os objectivos das equipas e os limites
do saber; facilitar a comunicação nas equipas e entre as equipas e os utentes;
sensibilizar e formar sobre aspectos psicológicos da saúde; colaborar na
modificação das atitudes dos profissionais da saúde em relação à comunicação
com os utentes
-Em relação à organização– Definir claramente objectivos e prioridades para a
sua própria intervenção e trabalhar com plano de actividades; avaliar
sistematicamente a actividade da psicologia com indicadores de processo e de
resultados; avaliar a satisfação dos utentes da psicologia; participar em
actividades de melhoria contínua da qualidade do Centro de Saúde
-Em relação à comunidade– Promover a participação da comunidade nos cuidados de
saúde primários; desenvolver o trabalho em parceria com grupos e organizações
da comunidade; promover a ajuda mútua.
O psicólogo dos Centros de Saúde não é um técnico de saúde mental. A sua área
de intervenção não é a psicopatologia nem a doença mental. Pelo contrário, a
sua área de intervenção é a saúde global do indivíduo ao longo do ciclo de
vida, da família e da comunidade, focalizando na promoção do bem-estar
psicológico, nos comportamentos relacionados com a saúde e com as doenças, na
mudança de comportamentos, nos processos de adaptação às doenças, na adesão
medicamentosa e aos auto-cuidados e nos comportamentos de utilização dos
serviços e recursos de saúde. O trabalho psicológico realiza-se não com a
patologia mental, mas sim com todas as experiências, comportamentos e
interacções relacionadas com saúde e doenças, em indivíduos saudáveis e
doentes. Implica um envolvimento pró-activo em programas e projectos de saúde e
a perspectiva de que o cidadão e as comunidades são agentes activos da sua
própria saúde.
Desejamos que o Centro de Saúde para o Século XXI seja um Centro de Saúde que
continue a contribuir para a melhoria da saúde dos Portugueses, assente em
equipas multi-profissionais coesas que prestam cuidados acessíveis,
humanizados, personalizados, eficientes e com continuidade, disponibilizem
médico de família a todos os cidadãos.
Mas também que entenda qual o Serviço Nacional de Saúde os cidadãos querem,
promova a participação comunitária nos cuidados de saúde primários, invista na
investigação-acção participada e desenvolva a formação contínua dos
profissionais. E que tenha mais psicólogos.
(*) Texto que serviu de base à participação do ISPA no Forum “O Novo Centro de
Saúde: Com os profissionais, para os cidadãos”, realizado na Aula Magna da
Reitoria da Universidade de Lisboa em 13 de Março de 2007.
(**) Director do Departamento de Formação Permanente do Instituto Superior de
Psicologia Aplicada, Lisboa.