Nota de Abertura
Nos territórios de encontro entre a Psicologia e a Saúde, o género é um dos
analisadores que emerge de forma consistente, adquirindo estatuto de variável
incontornável. Género que, diferentemente de sexo, pressupõe comportamentos e
atitudes psicologicamente motivados e inscritos numa matriz social que, ainda
que flexível e mutável, apresenta a estabilidade relativa suficiente para
permitir a construção de grandes categorias, como sempre, classificatórias e
diferenciadoras.
Estas categorias, que num olhar inadvertido parecem apenas ser uma outra forma
de designar a clássica dicotomia sexual entre machos e fêmeas, dão conta da
circunstância de a nossa espécie ser culturalmente determinada, quer dizer,
possuir a possibilidade de moldar e transformar formas de ser e fazer diversas
daquelas que já se acreditou que a anatomia e a fisiologia apontavam. Dito
ainda de outro modo: ser Homem ou Mulher, não é para nós um dado de natureza
conformado à genética mas, antes, uma complexa construção identitária, tão
subsidiária de recursos inatos como de aquisições, umas precoces e outras ao
longo de todo o desenvolvimento.
Estas identidades, que a psicologia toma como objecto de estudo, permitem ou
inviabilizam comportamentos e atitudes, uns protectores e outros de risco para
a saúde. Daí a relevância de percebermos como a modulação cultural opera, como
a formatação estereotípica activa ou amortece a identidade dos géneros, e como
as relações entre géneros se processam em diferentes circunstâncias. Daí o
interesse de, mais do que irmos dando conta das semelhanças e das diferenças,
podermos entender as especificidades que cada género apresenta.
A centralidade da sexualidade e da parentalidade na identidade dos géneros, mas
também na actual investigação no campo da saúde, justifica o conjunto de
artigos de revisão teórica e investigação empírica aqui apresentados.
Assim os artigos apresentados neste número deAnálise Psicológica propõem-se
reflectir sobre as questões de género, no que especificamente se refere aos
papéis sexuais e parentais e às crenças e comportamentos de saúde.
Situando-se no quadro da teoria psicanalítica, José de Abreu Afonso,
em"Masculino e Feminino: Alguns Aspectos da Perspectiva
Psicanalítica", apresenta e discute perspectivas sobre o processo de
construção das diferenças de género e do desenvolvimento da identidade sexual.
Segue-se a revisão da literatura de Joana Almeida e Ana Alexandra Carvalheira a
respeito das"Flutuações e Diferenças de Género no Desenvolvimento da
Orientação Sexual: Perspectivas Teóricas", dando conta das transições e
flutuações na orientação sexual dos indivíduos, assim como das diferenças de
género no desenvolvimento da orientação e comportamento sexual. Por sua vez,
Nuno Nodin, com base também numa revisão da literatura, mostra como os padrões
de género se expressam na vida sexual tal como surge nos anúncios pessoais, e
as variações de acordo com a orientação sexual, num texto intitulado"A
Vida Sexual dos Anúncios Pessoais: Uma Revisão da Literatura".O papel de
género atribuído à mulher, mas agora no que concerne os cuidados parentais, é
analogamente discutido e analisado empiricamente em"A Amamentação, o
Feminino e o Materno"por Ana Margarida Rocha, Isabel Leal e João Maroco,
que não encontram fundamentos para a assumpção generalizada da
imprescindibilidade da amamentação durante os primeiros meses de vida da
criança.
Os artigos seguintes investigam empiricamente como as diferenças de género se
expressam no comportamento parental e nas crenças e comportamentos de saúde de
mulheres e homens. Ana Conde e Bárbara Figueiredo mostram que são semelhantes e
diferem de forma semelhante as "Preocupações de Mães e Pais, na Gravidez,
Parto e Pós-Parto" , sem que se observem padrões de género neste aspecto
da parentalidade. Diferenças de género entre pais e mães foram no entanto
presenciadas por Mariana Moura-Ramos e Maria Cristina Canavarro, mas agora no
que concerne a"Adaptação Parental ao Nascimento de um Filho: Comparação
da Reactividade Emocional e Psicossintomatologia Entre Pais e Mães nos
Primeiros Dias Após o Parto e Oito Meses Após o Parto", sendo que as mães
apresentam uma reacção emocional mais intensa e mais psicossintomatologia do
que os pais, principalmente nos primeiros dias após o parto.
Nuno Correia Alves e Maria João Figueiras em"Queixas Subjectivas de
Saúde, Afectividade Negativa e Utilização de Serviços de Saúde: Diferenças de
Género"verificam que existem diferenças de género nas queixas subjectivas
de saúde e na utilização de serviços de saúde, mais frequente nas mulheres do
que nos homens. No estudo seguinte, intitulado "Crenças de Senso-Comum
Sobre Medicamentos Genéricos vs. Medicamentos de Marca: Um Estudo Piloto Sobre
Diferenças de Género"Maria João Figueiras, Dália Marcelino, Maria Armanda
Cortes, Rob Horne, e John Weinman relatam diferenças de género associadas a
crenças sobre o uso de medicamentos genéricos versus de marca: os homens
associam os medicamente genéricos a doenças que consideram menos graves,
enquanto que as mulheres associam os medicamentos de marca a doenças que
percepcionam como mais graves. Em"Género e Saúde Mental: Uma Abordagem
Epidemiológica"Cidália Rabasquinho e Henrique Pereira debruçam-se sobre
as diferenças de género relativamente à saúde mental, reportando-se em
particular à psicopatologia apresentada pela população que recorre aos serviços
de psiquiatria: à excepção do álcool, abuso de substancias ilícitas e
comportamentos sociais, mais frequentes nos homens, os valores de prevalência
quer das tentativas de suicídio, quer das perturbações de humor, das
perturbações de ansiedade, e das perturbações de adaptação, entre outras, são
mais elevados nas mulheres.
No âmbito da Psicologia da Saúde da Mulher e Homem, é apresentado um conjunto
de estudos que exploram os factores que se relacionam com a adaptação da mulher
e do homem à saúde e à doença.
Em"Menopausa, A Experiência Intrínseca de uma Inevitabilidade Humana: Uma
Revisão da Literatura" , Filipa Pimenta, Isabel Leal, e Jorge Branco
fazem uma revisão da literatura em volta da problemática da menopausa,
discutindo, entre outros aspectos, o impacto que as circunstâncias de vida da
mulher têm na experiência de menopausa e as estratégias não médicas que podem
favorecer a saúde da mulher neste período de vida.
Ana Rebelo e Isabel Leal estudam os"Factores de Personalidade e
Comportamento Alimentar em Mulheres Portuguesas com Obesidade Mórbida: Estudo
Exploratório", salientando diferenças de personalidade (em domínios como
o neuroticismo e a impulsividade), assim como maior restrição alimentar e
ingestão emocional, em relação à população feminina portuguesa em geral.
Já Margarida Varela e Isabel Leal analisam as "Estratégias de Coping em
Mulheres com Cancro da Mama",verificando que essas mulheres utilizam
estratégias de coping muito distintas para se ajustar à doença, e estão
particularmente focadas na resolução do problema e na emoção.
O efeito positivo da prática de"Actividade Física e Qualidade de Vida na
Gravidez"foi observado no estudo empírico reportado por Iva Tendais,
Bárbara Figueiredo e Jorge Mota.
As condições que dificultam a adaptação à gravidez e ao nascimento de um filho
nas mulheres infectadas pelo VIH foram estudadas por Marco Pereira e Maria
Cristina Canavarro em "Vulnerabilidade de Género e Outras Dimensões de
Influência na Adaptação ao VIH/SIDA e à Gravidez e Maternidade",
verificando uma adaptação particularmente difícil quando a mulher é solteira,
de raça negra, foi infectada por via sexual e tem uma gravidez que não foi
planeada.
Finalmente, Henrique Pereira investiga os "Determinantes do Risco e
Implicações Para a Saúde nas Práticas Sexuais de Homens que Têm Sexo com
Homens", averiguando que um elevado número tem relações sexuais sem
protecção, principalmente quando expostos a práticas sexuais coactivas,
praticam sempre sexo oral, têm a expectativa de continuar a ter uma relação
sexual mesmo sem preservativo e adoptam papéis mais activos no acto sexual.
Isabel Leal / Bárbara Figueiredo