Auto-conceito e representações da vinculação no período pré-escolar
INTRODUÇÃO
Compreender a génese do funcionamento sócio-emocional dos sujeitos tem-se
definido, progressivamente, como um dos objectivos centrais da Psicologia do
Desenvolvimento. Neste contexto, a Teoria da Vinculação pode ser nomeada como
referência fundamental ao sugerir que o estabelecimento de ligações de
proximidade emocional durante a infância constitui a base do desenvolvimento
afectivo, social e cognitivo.
Para explicar a relação entre vinculação, desenvolvimento e saúde mental,
Bowlby (1973, 1980, 1982, 1988) concebe a existência de Modelos Internos
Dinâmicos (MID), componentes afectivos e cognitivos, habitualmente não
conscientes, que formam representações mentais generalizadas e tendencialmente
estáveis sobre o self, os outros e o mundo. Construídos activamente pelo
indivíduo no contexto de interacções repetidas com as figuras cuidadoras e pela
integração de experiências relacionais posteriores, actuam como guias para a
interpretação dos acontecimentos interpessoais, condicionando expectativas e
comportamentos.
Embora não atribua um carácter de determinação linear a esta relação, a Teoria
da Vinculação advoga que a noção de selfe as representações internas das
experiências relacionais vão sendo interiorizadas de forma complementar ao
longo do tempo, desempenhando a história de vinculação do sujeito um papel
essencial neste processo (Fonagy, Target, Gergely, Allen & Bateman, 2003;
Monteiro, 2008; Soares, 2007).
De acordo com Bowlby (1973), os aspectos salientes da relação de vinculação
organizam-se gradual-mente numa representação interna, à medida que a criança e
a relação real com a figura de vinculação se desenvolvem. Uma criança terá
maiores probabilidades de desenvolver uma representação positiva de si própria,
na qual o selfsurge como valorizado e merecedor de cuidados, quando as suas
necessidades de proximidade emocional, de protecção e de segurança estão
preenchidas existindo, simultaneamente, suporte para uma exploração activa e
autónoma do meio. Contrariamente, quando as interacções precoces são
caracterizadas por uma falta de adequação entre aquilo que são as necessidades
da criança e as respostas dadas pelas figuras cuidadoras, os sujeitos poderão
organizar modelos internos dinâmicos complementares em que o selfé visto como
não desejado e sem valor e em que os outros são perspectivados como
indisponíveis, rejeitantes, ou abusadores (Bowlby, 1988; Toth, Sheree,
Cicchetti & Macfie, 2000). De acordo com Bowlby (1973) e Ainsworth, Blehar,
Waters e Walls (1978) as diferenças a nível dos MID conduzem, assim, a
diferentes respostas por parte da criança, quer em situações de separação ou de
stress, quer de exploração do meio. Tal acontece na medida em que, se a figura
de vinculação for sensível, será capaz de interpretar correctamente os sinais
da criança num contexto de exploração, encorajando-a sempre que necessário a
prosseguir na realização da actividade (Grossmann, Grossmann & Zimmermann,
1999; Grossmann, Grossmann, Fremmer-Bombik, Kindler, Scheuerer-Englisch &
Zimmermann, 2002).
O auto-conceito, ou imagem de si, pode ser descrito como um julgamento de nível
cognitivo que uma pessoa é capaz de fazer sobre as suas próprias capacidades em
domínios específicos, como o cognitivo, o social, ou o físico (Harter, 1999).
Sendo uma estrutura cognitiva contextualizada, que se complexifica e
diversifica à medida que o sujeito se vai desenvolvendo e interagindo com o
meio envolvente, a importância do seu estudo advém do forte impacto que este
parece ter no comportamento (Martins, Peixoto, Mata, & Monteiro, 1995). É
de notar que, apesar de estarem relacionados, este constructo deverá ser
diferenciado da auto-estima, que constitui um julgamento de natureza afectiva
sobre o valor global que o sujeito atribui a si próprio (Cassidy, 1990).
Pesquisas recentes têm apoiado a ideia de que um sentido do self começa a
emergir já durante o período pré-escolar, em estreita associação com as
experiências de vinculação. Alguns estudos empíricos (Cassidy, 1988; Clark
& Symons, 2000) analisaram, de forma concorrente e preditiva, as relações
existentes, durante esta fase do desenvolvimento, entre o comportamento de
vinculação da criança à mãe e as representações que esta organiza acerca do seu
selftendo concluído, na sua generalidade, que existe uma associação, ainda que
moderada, entre o grau de segurança da vinculação e a qualidade afectiva da
auto-estima e da representação global que as crianças têm de si próprias. No
que ainda hoje constitui um estudo de referência, pelo seu carácter inaugural e
pela complexidade inerente à diversidade de métodos utilizados, Cassidy (1988)
debruçou-se sobre as relações existentes entre qualidade da vinculação à mãe
(inferida a partir de um procedimento de Separação-Reunião), representação do
self(utilizando uma tarefa de completamento de histórias, esta era estimada
através da imagem que, no contexto da relação com a figura de vinculação, a
criança projectava do seu selfna criança-protagonista), auto-estima (avaliada
de três formas: entrevista com a criança; resposta à sub-escala da auto-estima
contida no Harter's Perceived Competence Scale for Childrene realização
de uma entrevista com um fantoche, a Puppet Interview, criada pela
investigadora) e ainda elementos do auto-conceito (aplicação da Harter's
Scale of Perceived Competence and Social Acceptance for Young Children). Numa
amostra de 52 crianças, de 6 anos, verificou que aquelas que eram classificadas
como seguras no procedimento de Separação-Reunião, comparativamente às
classificadas como inseguras-evitantes, inseguras-ambivalentes, ou inseguras-
controladoras, tendiam a descrever-se de forma mais positiva em ambas as
entrevistas e na sub-escala da auto-estima, bem como a projectar uma boa imagem
do seu selfnas histórias narradas. Por outro lado, em todas as medidas
referidas, demonstraram ainda uma maior capacidade para admitir imperfeições em
si próprias. No que diz respeito aos elementos do auto-conceito, uma correlação
significativa, se bem que modesta, com a segurança da vinculação foi encontrada
para a percepção da aceitação social, competência percebida e valor global do
self (respectivamente, r=0,3; r=0,24 e r=0,29, com p<0,05) .
Nos últimos anos, um dos esforços dos teóricos da vinculação tem sido o de
operacionalizar e validar instrumentos capazes de captar os distintos níveis de
análise em que este constructo pode ser estudado. Mais recentemente, a atenção
dos investigadores começou a deslocar-se do nível comportamental para o nível
representacional com o estudo das narrativas a ser apontado como uma forma
válida e notável de inferir a qualidade dos modelos internos dinâmicos, tanto
das crianças (Emde, Wolf, & Oppenheim, 2003), como dos adolescentes (Granot
& Mayseless, 1998) e dos adultos (Waters & Rodrigues-Doolabh, 2004;
Vaughn, Coppola, Veríssimo, Monteiro, Santos, & Posada, 2007).
De facto, à medida que o processo de crescimento e de socialização contribui
para o aumentar das capacidades verbais e simbólicas, a produção espontânea de
narrativas por parte das crianças, que tem o seu marco inicial por volta dos
três anos (Emde, Wolf, & Oppenheim, 2003), pode ser vista como uma
tentativa progressiva para organizar, dar significado e comunicar experiências
relacionais presentes e passadas.
É de destacar, neste contexto, o esforço feito na década de 1980 pelo grupo de
investigação da Fundação MacArthur (MacArthur Research Network on Early
Childhood Transitions) para unificar e sistematizar metodologias previamente
existentes, do qual resultou a MacArthur Story Stem Battery. Esta bateria é
composta por cerca de trinta histórias que, variando quanto ao número e
temática em causa, têm sido sucessivamente utilizadas para estudar áreas tão
distintas quanto o desenvolvimento moral, a expressividade emocional, o
comportamento pró-social, a representação parental, a agressividade, o locusde
controlo, o temperamento, a natureza dos processos defensivos, a regulação
emocional, estratégias de resolução de conflitos, entre outras (Emde et al.,
2003).
Anos mais tarde, influenciadas por uma investigação de Main, Kaplan e Cassidy
(1985) que mostrou que crianças classificadas como seguras na Situação
Estranhatinham mais probabilidades de fornecer soluções construtivas em
resposta a cenários de separação e de falar das separações com maior abertura
emocional, Bretherton, Ridgeway e Cassidy (1990) basearam-se na MacArthur Story
Stem Batterypara criar um procedimento que permitisse avaliar, de forma mais
específica, as representações das relações de vinculação (Bretherton &
Oppenheim, 2003). Surgia, assim, o Attachment Story Completion Task(ASCT),
instrumento que apresenta boas taxas de concordância com medidas que avaliam o
comportamento de base-segura da criança, como é o caso de procedimentos de
Separação-Reunião análogos ao Paradigma da Situação Estranha (Ainsworth et al.,
1978), ou de observação em contexto natural como é o caso do Attachment
Behavior Q-Set(Waters, 1995).
No entanto, poucos estudos recorreram ainda a este tipo de metodologias para
avaliar concordâncias entre as representações da vinculação e as representações
do selfantes da idade escolar, sendo de destacar a tentativa feita por
Verschueren, Marcoen e Schoefs (1996) para alterar este cenário. Para
determinar a qualidade da auto-estima, os referidos autores utilizaram a Puppet
Interview(Cassidy, 1988) relacionando-a, depois, com a segurança das
representações da vinculação à mãe, estimadas a partir de uma Tarefa de
Completamento de Histórias, numa amostra de 95 crianças com cinco anos de
idade. Os resultados mostraram uma associação significativa entre as duas
medidas. Três anos mais tarde Verschueren e Marcoen (1999) replicaram o estudo
anterior, tendo introduzido novas medidas e avaliando, desta vez, de forma
separada as representações de vinculação da criança relativamente aos dois
progenitores. Verificaram que as crianças com uma representação segura da
relação com a mãe exibiam valores de auto-estima mais altos na Puppet
Interview, reportando também uma auto-percepção mais positiva das suas
competências cognitivas e físicas. Curiosamente, o mesmo não se verificou
quando a segurança da representação da relação de vinculação ao pai foi objecto
de análise (correlações não significativas). Por outro lado, o mesmo estudo
mostrou que o poder preditivo relativo da segurança da vinculação associada a
cada progenitor, diferia em função do domínio de funcionamento da criança
avaliado, com a representação associada à mãe a prever melhor a positividade da
imagem do selfe com a representação associada ao pai a ser melhor preditora de
problemas de comportamento (especificamente de ansiedade e introversão).
Mais recentemente, Toth et al.(2000) compararam um grupo normativo de 37
crianças e um grupo de 56 crianças com historial de maus-tratos no contexto
intra-familiar, ambos em idade pré-escolar, quanto à relação entre imagem do
selfe natureza das representações de vinculação emergentes, com as duas
dimensões a serem avaliadas através do Attachment Story Completion Task. À
semelhança de estudos anteriores vários autores encontraram resultados
importantes, se bem que complexos (Cassidy, 1998; Clark & Symons, 2000;
Verschueren & Marcoen, 1999; Verschueren, Marcoen, & Schoefs, 1996).
Concretamente, um dilema empírico apontado prende-se com o facto de valores
muito elevados nas representações do selfpoderem ter duas leituras distintas:
deverão ser interpretados como reflectindo uma auto-imagem verdadeiramente
positiva, ou uma tão baixa e frágil que o sujeito não pode tolerar o
reconhecimento da mais pequena imperfeição?
De facto, as crianças seguras parecem possuir uma concepção positiva, mas
crítica de si próprias, sendo capazes de aceitar as suas limitações, que não
são vistas como ameaçadoras, organizando aquilo que alguns autores apelidam de
modelo positivo do self aberto a imperfeições (Clark & Symons, 2000;
Mikulincer, 1995). De forma oposta, crianças muito inseguras tendem a
desenvolver ou uma concepção muito negativa acerca de si próprias, ou uma
representação idealizada do self, que é visto como perfeito (Toth et al.,
2000).
É de referir, também, que para além do facto de os estudos que têm relacionado
estas duas áreas serem ainda em número reduzido para que seja possível chegar a
conclusões sólidas, a maioria tem enfatizado a avaliação da auto-estima, em
detrimento do auto-conceito. Com efeito, diversos autores chamam a atenção para
a necessidade de continuar a desenvolver instrumentos que permitam avaliar
fidedignamente este constructo durante o período pré-escolar, tarefa que surge
dificultada pela necessidade de que estes sejam capazes de manter o interesse
da criança, recorrendo a estímulos específicos e concretos e requerendo métodos
de resposta simples e directos, sem estarem muito contaminados pela
desejabilidade social (Cassidy, 1990; Hassan, 1999).
Esperando contribuir para a expansão da investigação realizada até ao momento
na área, o principal objectivo deste estudo é analisar as relações entre
diferentes dimensões do auto-conceito e representações da vinculação no período
pré-escolar.
MÉTODO
Participantes
Participaram neste estudo 75 crianças (37 rapazes e 38 raparigas), oriundas de
três salas de duas instituições privadas de ensino pré-escolar do Distrito de
Lisboa. As crianças foram avaliadas entre os 64 e os 91 meses (M=6 anos e 1
mês; DP=6,90 meses). A idade das mães variava entre os 26 e os 48 anos
(M=35,39; DP=4,14) e a dos pais entre os 28 e os 63 (M=38,26; DP=5,51). O nível
de educação materno variou entre os 9 e os 23 anos de escolaridade (M=14,94;
DP=2,94) e o paterno entre os 4 e os 19 (M=14,12; DP=3,50). Todas as famílias
pertencem a um extracto social médio, ou médio-alto. As crianças entraram entre
os 4 e os 62 meses para a escola (M=15,6; DP=14,75) e passam nesta cerca de 8,2
horas (DP=1,76) diárias.
Instrumentos
Representação do Self
Para avaliar as representações acerca do selffoi utilizada a versão portuguesa
da Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance for Young
Children- PSPCSA (Harter & Pike, 1984; Mata, Monteiro & Peixoto,
2008). Podendo ser utilizada entre os 4 e os 8 anos, esta escala parte do
pressuposto que, mesmo antes do período escolar, as crianças são capazes de
realizar julgamentos sobre as suas competências em domínios específicos.
Estima, assim, a percepção que a criança tem das suas competências cognitivas e
físicas, bem como do grau em que é aceite pela mãe e pelos pares. É composta
por 4 sub-escalas - Competência Cognitiva; Competência Física; Aceitação
Materna; Aceitação de Pares - num total de 35 itens. Outras assumpções da
escala dizem respeito ao facto de a competência percebida poder ser
independente de área para área, podendo existir grande variação entre a
competência em si e a percepção da competência, tanto pelo próprio como por
parte dos outros. Finalmente, assume também uma grande variabilidade na forma
como a competência percebida numa determinada área se pode relacionar com as
medidas de auto-estima (Hassan, 1999).
Representações da vinculação
A qualidade das representações de vinculação foi avaliada através do Attachment
Story Completion Task- ASCT (Bretherton, Ridgeway, & Cassidy, 1990).
Este procedimento consiste numa entrevista de cerca de 30 minutos em que, com a
ajuda de uma família de bonecos moldáveis, são apresentados cinco inícios de
histórias susceptíveis de activar conteúdos ligados ao comportamento de base
segura. É então pedido à criança que complete cada história ilustrando os
comportamentos, as emoções e as interacções entre as personagens.
Cada história foi construída de modo a evocar uma problemática distinta: figura
de vinculação em situação de autoridade (Sumo entornado); resposta parental à
dor (Joelho Magoado) e ao medo (Monstro no quarto) da criança; ansiedade de
separação (Partida) e tonalidade afectiva da reunião (Reencontro). Uma história
adicional neutra (Bolo de Aniversário) é administrada inicialmente, para
assegurar que a criança compreende o procedimento, mas não é cotada.
Diversos estudos têm utilizado o ASCT de forma bem sucedida nos últimos anos,
em diferentes contextos e em diferentes países, tanto em populações normativas,
como em populações específicas, nomeadamente, crianças cujos pais atravessaram
um processo de divórcio (Page & Bretherton, 2003), que se encontram
institucionalizadas ou que foram adoptadas (Vorria, Papaligoura, &
Sarafidou, 2006), que assistiram ou foram vítimas de violência intra-familiar
(Grych, Wachsmuth-Schlaefer, & Klockow, 2002), situações de depressão
materna (Trapolini, Ungerer, & McMahon, 2007), entre outros cenários. Em
Portugal, apesar de haver ainda poucos estudos, investigações recentes sugerem
a validade da sua utilização em crianças do pré-escolar (Benavente, Justo,
& Moreira, 2006; Benavente, Justo, & Veríssimo, no prelo; Veríssimo,
dados não publicados).
Competência verbal
De forma a controlar potenciais efeitos em resultado de diferenças ao nível da
capacidade lexical e da compreensão verbal foram aplicados os sub-testes
verbais da versão revista da Wechsler Preschool and Primary Scale of
Intelligence(WPPSI-R), nomeadamente as provas de Informação, Vocabulário,
Aritmética, Semelhanças e Compreensão.
Procedimento
Todos os instrumentos foram aplicados de forma individual, em três ocasiões
distintas, por membros independentes da equipa de investigação. Em ambas as
instituições as avaliações decorreram numa sala disponibilizada para o efeito,
estando o entrevistador e a criança sentados a uma mesa, em situação de face a
face.
PSPCSA
Cada item foi apresentado aos sujeitos sob a forma de uma imagem de duas
crianças (do mesmo sexo do sujeito em causa) a realizar uma actividade, ao
mesmo tempo que era lida uma afirmação do género: "Esta criança é boa a
fazer puzzles e esta não é muito boa. Com qual é que tu és mais
parecida?".
Em seguida, uma maior diferenciação é solicitada sendo pedido ao sujeito que
aponte para o círculo apropriado se considerar que é muito parecida (círculo
grande) com a criança previamente escolhida, ou só um pouco parecida (círculo
pequeno). Para cada item a pontuação pode variar de 1 a 4, sendo que a 1
corresponde uma escolha de pouca competência e a 4 uma escolha de competência
elevada. Durante a aplicação os itens vão sendo apresentados pela seguinte
ordem: Competência Cognitiva, Aceitação entre Pares, Competência Física e
Aceitação Materna, repetindo-se este padrão ao longo da escala.
ASCT
O material necessário para a aplicação deste instrumento compõe-se de uma
família de bonecos moldáveis (pai, mãe, duas crianças do mesmo sexo do sujeito
avaliado) e de vários adereços capazes de recriar o ambiente de uma casa (mesa
de refeições e quartos) e de um jardim (relva e rocha). Nas últimas duas
histórias, é utilizado um boneco adicional, a vizinha, e um carro, no qual os
pais partem em viagem. Apresenta-se cada elemento da família à criança,
pedindo-lhe que dê um nome a cada um dos irmãos/irmãs, bem como à vizinha. É-
lhe depois explicado o procedimento: "Vamos fazer umas histórias com a
nossa família. Eu começo a contar e depois tu continuas, está bem?". De
modo a facilitar o envolvimento da criança na tarefa é-lhe pedido, no final de
cada história, que ajude a dispor o cenário para a história seguinte.
Todas as histórias foram gravadas em vídeo e posteriormente analisadas
relativamente à Segurança e à Coerência por um membro da equipa previamente
treinado, estranho à situação de recolha dos dados, bem como a qualquer outra
informação sobre as crianças. Para cada história, e de acordo com os critérios
propostos por Heller (2000), estes dois parâmetros foram avaliados numa escala
de oito pontos quanto à Segurança e à Coerência. É de notar que estes critérios
se afastam do método de cotação originariamente proposto por Bretherton,
Ridgeway e Cassidy (1990), de avaliação categorial das narrativas em seguras,
inseguras ambivalentes/ evitantes e desorganizadas. Esta opção por uma
avaliação das representações de vinculação num contínuo, privilegiando a
extensão em que estão ou não presentes elementos de um contínuo segurança-
insegurança, em detrimento de uma classificação categorial que pode ser
redutora (Oppenheim, 1997), parece-nos desejável, estando em acordo com as
actuais tendências de investigação na área (por exemplo, na análise de
narrativas de adultos (Waters & Rodrigues-Doolabh, 2004) e em observações
com o Attachment Q-Set(Waters, 1995).
No critério da Coerência uma pontuação acima de 6 é dada quando a história é
completada de forma consistente e unificada, com poucas hesitações e sem
desvios inapropriados. Em contraste, as histórias com pontuações iguais ou
menores que 4 não são, geralmente, resolvidas face à instrução inicial e/ou
apresentam desvios negativos, agressivos, ou bizarros, sendo desconexas e
ilógicas do ponto de vista da coerência.
A Segurança é um critério mais lato que inclui, não apenas a Coerência e a
Resolução dada (extensão em que cada problema é reconhecido e resolvido de
forma bem sucedida), mas também uma avaliação global do Comportamento não-
verbal, Representação parental, Investimento na tarefa, Fluência, Emoção geral
expressa, Conhecimento emocional e qualidade da Interacção com o entrevistador.
É também avaliada ao longo de uma escala de oito pontos, que varia de
Desorganizado(1) a Muito Seguro(8), onde estão contidos os cambiantes dos
comportamentos de evitamento e de ambivalência. No presente estudo apresentamos
a análise dos resultados da dimensão Segurança, não pormenorizando os referidos
sub-itens que a compõem.
Para avaliar a validade das cotações cerca de 60% das histórias foram também
analisadas por um de dois avaliadores adicionais, também eles estranhos à
situação da recolha de dados. O acordo inter-avaliadores foi de r=0,81 para a
coerência e de r=0,85 para a segurança.
RESULTADOS
De seguida são apresentados os principais resultados para cada um dos
instrumentos em análise.
PSPCSA
As médias e os desvios padrões para cada escala são comparáveis aos do estudo
original (Harter & Pike, 1984), bem como aos dos previamente encontrados
para a população portuguesa (Mata, Monteiro, & Peixoto, 2008). Todas as
sub-escalas apresentaram valores aceitáveis de consistência interna, com Alphas
de Cronbach superiores a 0,60. As quatro sub-escalas foram posteriormente
agrupadas em duas dimensões: Competência Percebida (sub-escalas Competência
Cognitiva e Competência Física) e Aceitação Social (sub-escalas Aceitação
Materna e Aceitação dos pares), ambas mostrando valores altos de consistência
interna, respectivamente, α=0,79 e α=0,87.
Uma análise de todas as sub-escalas e dimensões mostrou inexistência de
diferenças em função do género. Para controlar eventuais efeitos devidos a
diferenças nas capacidades linguísticas dos sujeitos foi realizada uma
correlação de Pearson entre os valores do auto-conceito e os valores do QI
verbal que se mostrou não significativa.
ASCT
As médias de cada história para a Coerência oscilaram entre 5,15 (DP=1,3), para
a história do Joelho Magoado, e 5,53 (DP=1,15), para a história do Monstro no
Quarto. No que se refere à Segurança as médias variaram entre 5,30 (DP=1,37) e
5,60 (DP=1,10), correspondendo às mesmas duas histórias os valores extremos.
TABELA 1
Estatística descritiva e fiabilidade das 4 sub-escalas
Sub-escalas MédiaDesvio PadrãoAlfa
Competência Cognitiva 3,50 0,40 0,64
Competência Física 3,40 0,45 0.71
Aceitação Materna 3,35 0,51 0.78
Aceitação dos Pares 3,60 0,50 0.78
TABELA 2
Médias e desvios-padrão das histórias quanto à Coerência e Segurança
__________________________________________________________________________
| _______________|_______Coerência______|___________Segurança___________|
|Histórias_______|_____M_____|____DP_____|_____M_____|_________DP_________|
|Sumo_Entornado___|___5,31____|___1,07____|___5,40____|________1,14________|
|Joelho_Magoado___|___5,15____|___1,33____|___5,30____|________1,37________|
|Monstro_no_Quarto|___5,53____|___1,15____|___5,64____|________1,10________|
|Partida__________|___5,23____|___1,15____|___5,31____|________1,19________|
|Reencontro_______|___5,23____|___1,38____|___5,37____|________1,41________|
TABELA 3
Correlações entre os valores de Coerência para as cinco histórias
_____________________________________________________________________________
|Histórias | Joelho Magoado | Monstro no | Partida | Reencontro |
|______________|________________|___Quarto____|______________|________________|
|Sumo_Entornado|_____0,82**_____|___0,76**____|____0,71**____|_____0,74**_____|
|Joelho_Magoado| ______________|___0,86**____|____0,79**____|_____0,81**_____|
|Monstro no | | | 0,80** | 0,79** |
|Quarto________|________________|_____________|______________|________________|
|Partida_______| ______________| ___________| ____________|_____0,84**_____|
Legenda: ** p<.01
De forma a compreendermos como se relacionam as diferentes histórias entre si,
realizámos uma correlação de Pearson entre os valores de Coerência de cada
história para cada sujeito, tendo o mesmo procedimento sido efectuado para a
Segurança. Da análise realizada, foram encontradas correlações positivas e
significativas entre todas as histórias para os dois valores, oscilando entre
0,71 e 0,86 para o primeiro critério e entre 0,74 e 0,85 para o segundo
(p<0,01).
Para cada criança as pontuações das cinco histórias foram depois agregadas num
valor sumário para os dois parâmetros, tendo a correlação entre estes sido
significativa e muito elevada (r=0,99 com p<0,01).
Não foram encontradas diferenças significativas em função do género da criança.
Mais uma vez, de modo a controlar eventuais efeitos em resultado de diferenças
nas capacidades linguísticas dos sujeitos foram realizadas correlações de
Pearson entre os valores de Segurança e de Coerência e os valores do QI Verbal
que se mostraram não significativas.
Auto-conceito e representações de vinculação
Para examinar as associações existentes entre as representações de vinculação e
o auto-conceito foi efectuada uma correlação de Pearson entre os parâmetros
globais de Coerência e Segurança das narrativas e as sub-escalas e dimensões da
escala de auto-conceito.
TABELA 4
Correlação entre os valores de Segurança nas cinco histórias
_____________________________________________________________________________
|Histórias | Joelho Magoado | Monstro no | Partida | Reencontro |
|______________|________________|___Quarto____|______________|________________|
|Sumo_Entornado|_____0,85**_____|___0,75**____|____0,74**____|_____0,77**_____|
|Joelho_Magoado| ______________|___0,84**____|____0,81**____|_____0,85**_____|
|Monstro no | | | 0,82** | 0,80** |
|Quarto________|________________|_____________|______________|________________|
|Partida_______| ______________| ___________| ____________|_____0,84**_____|
Legenda: ** p<.01
Tal como se pode verificar nas Tabelas_5 e 6, os valores de Segurança e de
Coerência estão associados, de forma significativa, com as sub-escalas
Competência Física e Aceitação dos Pares e com as dimensões Aceitação Social e
Self Global (conjunto das quatro sub-escalas).
TABELA_5
Correlações entre as sub-escalas do PSPCSA e os critérios do ASCT
__________________________________________________________________________
| ______________|___Cognitiva___|___Física___|___Materna____|___Pares____|
|___Coerência___|_____0,07______|____0,23*____|_____0,20_____|___0,27*____|
|___Segurança___|_____0,06______|____0,23*____|_____0,18_____|___0,26*____|
Legenda: * p<.05
TABELA_6
Correlações entre as dimensões do PSPCSA e os critérios do ASCT
________________________________________________________________________
| _______|Competência_Percebida|__Aceitação_Social_|___Self_Global___|
|Coerênci|_________0,02_________|________0,27*________|______0,24*______|
|Seguranç|_________0,03_________|________0,25*________|______0,23*______|
Legenda: * p<.05
Apesar de não ter sido encontrada uma correlação significativa, os valores da
Coerência mostraram uma tendência para se associar positivamente com os valores
da Aceitação Materna. Uma análise mais detalhada desta relação mostrou que,
quando apenas as histórias da Partida e do Reencontro eram consideradas, a
associação passava a ser significativa (respectivamente, r=0,26 e r=0,27,
p<0,05). Verificou-se ainda que, se três dos itens menos relacionados com a
vinculação [Mãe deixa jantar(4) e dormir(20) em casa de amigos; Mãe cozinha
comidas preferidas(12)] fossem eliminados desta sub-escala, a correlação
tornava-se significativa tanto para a Coerência (r=0,28, p<0,05) como para a
Segurança (r=0,29, p<0,05).
Realizou-se, ainda uma análise de regressão linear para determinar quais os
aspectos do auto-conceito que melhor poderiam prever a Coerência e a Segurança
das narrativas. A dimensão Aceitação Social mostrou ser, em ambos os casos, o
melhor preditor, respectivamente com F(1,74)=5.88, com um R2ajustado=0.06 e
p<0.018 e F(1,74)=5.10 com um R2ajustado=0.05 e p<0.027.
DISCUSSÃO
A presente investigação tinha como principal objectivo alargar a actual
pesquisa sobre representações de vinculação e auto-conceito durante o período
pré-escolar, um tema de análise frequentemente debatido em termos teóricos, mas
ainda caracterizado pela escassez de estudos empíricos (Cassidy, 1990).
Os nossos resultados vão no sentido da presença de conexões entre a qualidade
das representações da vinculação e a representação global que a criança tem do
seu self, com uma associação mais forte a ser encontrada com a Percepção da
Aceitação Social, dimensão que inclui tanto a Aceitação Materna como a dos
Pares.
Uma análise detalhada das diferentes narrativas mostrou uma associação mais
elevada entre a Aceitação Materna e a Segurança e Coerência nas histórias da
Partida e do Reencontro, curiosamente aquelas que mais se aproximam do
paradigma clássico da Situação Estranha (Ainsworth et al., 1978). Tal poderá
significar que estas duas histórias são as mais susceptíveis de elicitar
conteúdos representacionais ligados à vinculação
Por outro lado, a importância da aceitação dos pares para o bem-estar emocional
do sujeito e a ligação desta às experiências de vinculação, tem vindo a ser
defendida por inúmeros estudos (Cassidy, Kirsh, & Scolton, 1996; Szewczyk-
Sokolowski, Bost, & Wainwright, 2005) que, entre outros aspectos, sugerem
uma concordância entre as representações que o sujeito organiza sobre os pares
e as representações de vinculação que organiza no contexto das interacções com
as figuras cuidadoras: "the idea is that securely attached children, from
their positive experiences of the mother as helpful, sensitive, and responsive,
develop representations of her as unlikely to do anything to intentionally harm
the child and would develop similar representations of at least some
others" (Cassidy et al., 1996, p. 900).
O facto de uma correlação positiva significativa ter sido também encontrada com
a Competência Física Percebida (sub-escala que inclui maioritariamente itens
relacionados com o comportamento motor da criança no contexto do parque
infantil/ recreio) leva-nos a colocar a hipótese de que este aspecto do auto-
conceito possa estar relacionado com o desenvolvimento de confiança para
explorar o meio, capacidade complementar da segurança da vinculação no contexto
de uma relação de base segura. No entanto, mais pesquisas seriam necessárias
para se estabelecer esta relação.
Apesar de a nossa apresentação do ASCT incluir ambos os pais, não foi possível
separar as representações de vinculação da criança relativamente às duas
figuras, o que seguramente seria interessante ser analisado em futuros estudos
(Page & Bretherton, 2001, 2003; Verschueren & Marcoen, 1999). O que
acontecerá quando a relação com uma das figuras de vinculação é sentida como
sensitiva e responsiva, retribuindo à criança uma imagem valorizada do seu
self, sendo a relação com a outra figura marcada pela insegurança? Será que
esta visão conflitiva é integrada para organizar uma representação única do
self? Se sim, através de que processos, e em que extensão, poderá ter lugar
esta integração? No futuro seria, também, desejável ampliar e diversificar a
nossa amostra de forma a puderem ser exploradas distintas associações entre os
diferentes elementos do auto-conceito e as representações da vinculação.