A construção do Eu adolescente na relação com o(s) Outro(s): O igual, o
diferente e o complementar através do Rorschach
A construção do Eu adolescente na relação com o(s) Outro(s): O igual, o
diferente e o complementar através do Rorschach (*)
Isabel Maria Gonzalez Duarte da Cunha (**)
Maria Emília Marques (***)
RESUMO
No presente trabalho as autoras procuram constituir o Outro como um organizador
do processo de desenvolvimento adolescente. Através da articulação entre as
concepções sobre a adolescência e as noções de sujeito e de objecto, Eu-Outro,
foi possível constituir três dimensões do Outro durante o processo de
desenvolvimento adolescente: o igual, o diferente e o complementar.
Como método de acesso ao sujeito psicológico foi utipzado o Rorschach, inscrito
por um lado na escola Francesa, com os parâmetros Representação de Si e
Representação das Relações e, por outro lado, no modelo transformacional que
privilegia a relação de comunicação, de simbolização, de criação e de expansão.
Foram analisados protocolos de adolescentes com 13 e 17 anos, de ambos os
sexos, de modo a ser possível observar de que modo é que decorre a relação
entre o Eu e o(s) Outro(s) neste período do desenvolvimento.
Palavras chave:Adolescência, Complementar, Diferente, Relação Eu-Outro: Igual.
Rorschach.
ABSTRACT
In the present work the authors try to constitute the Other as an organizer of
the development process in the adolescence. Using the connection between the
conceptions concerned to adolescence and notions of the subject and object,
Self-Other, it was possible to constitute three dimensions along the
development process of the adolescent: the Equal, the Different and the
Complementary.
Rorschach was used as an instrument to access the psychological subject,
inserted in the French School, with the parameters, Self Representation and
Relation Representation, and secondly, the transformational model that
privileges the communication relation, the symbopzation, the creation and the
expansion. Protocols were obtained from adolescents from 13 to 17 years old, of
both genders, in the aim to observe the development between the Self and the
Other(s) in this period of development.
Key words:Adolescence, Complementary, Different, Rorschach, Relation Self-
Other: Equal.
O ESBOÇO DA CONSTRUÇÃO
A adolescência é um período de desenvolvimento e de crescimento, durante o qual
decorrem importantes transformações na relação entre o Eu e o(s) Outro(s),
vividas com grande turbulência e que impõem um processo criativo e uma relação
de ligação e de comunicação entre o interno e o externo, entre o conhecido e o
ainda desconhecido, entre o desejado e o temido. Nas concepções sobre a
adolescência, no seio da teoria psicanalítica, considerámos importante
aprofundar a dimensão Outrocomo um organizador a ser estudado no processo de
desenvolvimento adolescente.
As referências ao Outro na literatura são abundantes, reportando-nos para as
noções de sujeito e de objecto, pelo que iremos explicitá-la na teoria
pulsional, freudiana, na teoria das relações de objecto e nas teorias que se
inscrevem nos modelos do pensamento, após o que realizaremos uma articulação
entre estes modelos teóricos e as concepções sobre a adolescência.
O objectivo deste estudo foi compreender como é que durante este período do
desenvolvimento decorre a relação entre o Eu e o Outro, ou seja, entre o
sujeito e o objecto, numa articulação entre o mundo interno e o mundo externo,
numa procura do igual, mas também do diferente, numa lógica onde impera a
procura do complementar.
Para podermos aceder ao objectivo a que nos propusemos, utipzámos como
instrumento o Rorschach, depois deste ter sido exppcitado como método de acesso
ao sujeito psicológico e de ter sido inscrito nos modelos do pensamento, onde é
compreendido com o recurso ao modelo transformacional que coloca em lugar de
destaque a relação de comunicação, de simbolização, de criação e de expansão.
Procedemos, então, à análise de 8 protocolos de Rorschach: 4 de pré-
adolescentes (2 rapazes e 2 raparigas de 13 anos) e 4 de adolescentes (2
rapazes e 2 raparigas de 17 anos), tendo por base os parâmetros: representação
de si e representação das relações e os processos de transformação e de
simbolização.
A ADOLESCÊNCIA
A adolescência tem vindo progressivamente a ser tratada como um período do
desenvolvimento: por um lado, temos as concepções teóricas que possibilitam a
descrição dos processos intra e interpsíquicos e, por outro lado, aquelas que
estão mais centradas no desenvolvimento, aparecendo, então, como um processo de
transformação e de criação. Este processo adolescente ocorre com base em
diferenciações e integrações progressivas, nomeadamente no que se refere aos
processos de sexuação, que faz emergir o Outro dotado de qualidades diferentes,
levando o Próprio a construir novas representações e a realizar novos
investimentos, que levarão a uma escolha sexual definitiva, masculina ou
feminina.
A aquisição de uma identidade sexual definitiva que decorre durante o processo
de desenvolvimento adolescente, é por vários autores considerada na relação com
as figuras parentais e referem-se à necessidade do adolescente fazer o luto,
quer dos antigos investimentos e representações das imagos parentais infantis,
quer do corpo de criança (P. Blos, 1962/1998). Laufer (1984), refere-se à
integração das mudanças físicas, que decorrem durante a puberdade, que são
vividas como uma perda - perda do corpo sexualmente indiferenciado de
criança. Enquanto, para outros autores, como (Birraux, 1990), o corpo do
adolescente encontra-se em transformação - é um corpo em identificação e
em sexuação -, entre o corpo de criança, que é conhecido, e o corpo
desconhecido, misterioso, que, face às transformações durante a puberdade,
emerge agora dotado de novas qualidades e atributos. Às modificações externas
ao nível do corpo estão sempre associadas modificações do mundo interno, no que
se refere a representações e afectos.
Compreender a adolescência através de modelos que nos dão conta das mudanças,
das transformações e das integrações levam-nos a relativizar o modelo do luto e
a dar um lugar de destaque à concepção de que a adolescência é um período em
que se impõe a reapzação de tarefas, a resolução de conflitos e a redescoberta
de novos objectos.
Braconnier (1985) propõe que a adolescência passe a ser entendida através dos
processos de transformação, e não pelas anteriores designações de crises e de
rupturas. Assim, a adolescência passa a ser entendida como um processo de
transformação habitado por sistemas de acção, em que uns se continuam a
desenvolver e outros se estão a formar; as acções que se formam, e que dizem
respeito particularmente à genitalidade, implicam novos limites entre o
masculino e o feminino e a construção do ideal do Eu.
O processo de transformação da adolescência pode ainda ser exppcitado com
recurso à conceptuapzação desenvolvida por Meltzer (1973/1979, 1990) sobre o
"conflito estético" - um conflito do desenvolvimento e que
tem, no seu cerne, a capacidade do sujeito de permanecer na incerteza. Trata-se
do conflito entre o belo exterior e o enigmático interior que tem de ser
construído com a imaginação criadora -, que é retomada em Salgueiro
(1990).
O Outro desempenha um papel importante na relação com o Eu, na medida em que é
fonte de equilíbrio, mas também de desequilíbrio, o que é descrito na
literatura pelo "vir a ser", pelo "tornar-se"
adolescente a caminho de ser adulto. Marques (1999, 2005), exppcita como é que
o processo de "tornar-se" leva ao estabelecimento de uma nova
barreira de contacto entre os objectos, entre o dentro e o fora, entre o
inconsciente e o consciente. É através dessa barreira de contacto em acção e em
transformação, e da actividade de ligação e comunicação das reapdades internas
e externas, que se criam novas reapdades, reapdades estas que levam à reapzação
de novas experiências, geradoras de novas relações continente-conteúdo e de
novas significações. É através da utilização desse pmite que se pode constituir
a função interna de conter e simbopzar, que permite a (re)construção de
objectos no espaço interno e a criação de sentires e sentidos, de sujeito e de
objecto renovados. A adolescência surge, assim, como o período do
desenvolvimento durante o qual existe a necessidade de estabelecer novas
ligações e comunicações entre o Eu e o Outro, entre o mundo interno e o mundo
externo, entre o inconsciente e o consciente, pelo que é molizado o uso da
clivagem e da identificação projectiva, que, por um lado, permite a separação e
a distinção visando a construção e, por outro lado, envolve a confusão, a
indiferenciação, o esbatimento dos pmites entre os objectos.
O OUTRO: IGUAL, DIFERENTE E COMPLEMENTAR
Falar no Eu tem subjacente a necessidade de abordar o Outro, o que no modelo
psicanalítico nos reporta directamente para as noções de sujeito e de objecto,
sendo impossível falar-se de Eu sem Outro.
Nos primeiros trabalhos de Freud, aparecem acentuadas as qualidades externas do
objecto; mais tarde, em "As pulsões e as suas vicissitudes"(1915/
1989), é colocado o objecto como podendo ser interno, na medida em que o
objecto de uma pulsão é a forma através da qual esta alcança o seu alvo,
passando, deste modo, este a fazer parte do corpo do próprio sujeito.
A partir do momento em que o Eu se encontra suficientemente constituído, torna-
se possível a relação com o Outro como objecto de identificação. Na melancopa,
tal como no luto, Freud (1917/1969) descreve a identificação na relação com o
objecto perdido: trata-se de uma perda de natureza mais ideal, em que o
objecto, mesmo não tendo desaparecido, pode ter sido perdido como objecto de
amor. Mas é em "Psicologia de Grupo e a análise do Ego"(1921/1996)
que Freud se dedica à questão da identificação como um mecanismo normal:
"primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional
com um objecto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma
vinculação de objecto libidinal, por assim dizer, por meio de introjecção do
objecto no ego; e, terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma
qualidade comum compartilhada com qualquer outra pessoa que não é objecto de
instinto sexual"(op. cit., p. 117).
O conceito de objecto interno ganha uma maior evidência com os trabalhos
desenvolvidos pela teoria das relações de objecto, considerado como uma
reapdade psíquica da representação realizada pelo sujeito. Inicialmente,
durante a fase esquizoparanóide, a identificação projectiva permite negar a
separação entre o sujeito e o objecto portador das suas partes clivadas,
conservando, deste modo, a ilusão do controlar (Klein, 1946/1991). É através do
jogo entre a identificação projectiva e a identificação introjectiva que o
sujeito passa a poder reunir as suas partes clivadas, boas ou más, tal como as
projecta no Outro.
Consolida-se, assim, a ideia de que o sujeito se constrói na relação com os
objectos, mas que estes também influenciam a sua construção, o que só é
possível através dos mecanismos de introjecção e de projecção. O conceito de
identificação projectiva, que inicialmente se encontra ligado à fase
esquizoparanóide, é inseparável de uma identificação introjectiva, através da
qual o sujeito absorve em si as partes clivadas, boas ou más, tal como as
projecta no outro (Klein, 1946/1991).
Na teoria do pensamento desenvolvida por Bion (1961), o ponto de partida é a
frustração das necessidades básicas do bebé, a partir da qual existe a
possilidade de se desenvolver um aparelho psíquico para pensar os pensamentos,
o que só é possível através da utilização das identificações projectivas. Bion
elabora o modelo continente-conteúdo que se baseia no uso de identificações
projectivas, no qual é necessário que se estabeleça uma interacção dinâmica
entre continente e conteúdo, para que se produzam pensamentos. Assim, podemos
pensar na relação Eu-Outro, com base numa perspectiva dinâmica, como uma
relação continente-conteúdo, em que estão presentes movimentos de desintegração
e de integração, na qual opera a função alfa, transformadora dos elementos
sensoriais em elementos que podem ser pensados, e que passam a ser parte
integrante no crescimento que tem lugar durante o período de desenvolvimento
adolescente.
Através da ligação entre as concepções que nos dão conta do processo de
desenvolvimento adolescente e das teorias que dentro da Psicanálise nos
permitem pensar o Eu e o Outro, foi-nos possível constituir três dimensões de
análise para o Outro: o igual, o diferente e o complementar, que passamos a
exppcitar, numa relação directa aos movimentos presentes durante a
adolescência, período durante o qual tem lugar uma (re)construção do Eu, que só
é possível na relação que o Próprio estabelece com o(s) Outro(s).
No processo de desenvolvimento adolescente o Outro, na condição de igual,
encontra-se ligado ao equilíbrio que é necessário existir entre o mundo interno
e o mundo externo, numa procura de constância e de continuidade, entre o que é
do Próprio e o que é do(s) Outro(s), e que neste período se encontra
particularmente ligado ao grupo dos pares, que surge como alternativa ao meio
familiar e como meio facilitador para a consolidação da identidade do Próprio.
Assim, o Outro igualé aquele que possui uma função de (re)significação, ou
seja, é aquele que possilita (re)unir, integrar e (re)organizar partes do
Próprio, numa relação de ligação e de transformação, agora geradora de novos
sentidos e de novos significados.
Na passagem do grupo familiar para o grupo dos amigos, o adolescente depara-se
com o igual, mas também com diferenças, presentes ao nível das ideias, dos
ideais, das aspirações, das formas de estar e de ser, que são, só por si,
complexas. O grupo surge, assim, como um meio que possilita a autonomia
psíquica e a maturidade emocional, sendo o espaço privilegiado para que o
adolescente possa consopdar a sua identidade. Por mais anti-social, ou até
mesmo depnquente, que um grupo de adolescentes possa parecer aos olhos de um
adulto, ele apresenta, para Meltzer (1973/1979), um papel de sustentação dos
mecanismos de clivagem, uma vez que é no grupo que decorre a disseminação de
partes do Eu, o que alivia a confusão, a omnipotência e a ansiedade
persecutória.
Durante o processo de desenvolvimento adolescente, o Outro, na condição de
igual, é aquele que se apresenta ao mesmo nível: é igual na sua condição
geracional, o que torna possível a experiência relacional, na qual é um
continente dos conteúdos do Eu, mas onde ambos, Eu e Outro, procuram novos
significados e significações que os enriqueçam, numa relação de ligação e de
transformação do que possuem de igual, mas também do que possuem de diferente e
que procuram conhecer, numa lógica de relação e de transformação do que sendo
de Um tem relação directa no Outro.
O Outro, na condição de diferente, remete-nos para a constituição da diferença
entre o Eu e o Outro, sendo a mais evidente a do Outro dotado de outro sexo,
masculino ou feminino, com o qual existe a possilidade de se realizarem trocas
entre Um noe como Outro. Neste momento do desenvolvimento, o conflito de
gerações ganha uma nova dimensão com a necessidade de o adolescente realizar as
suas identificações, o que torna necessário o abandono da posição narcísica e
bissexual que vai permitir a constituição da identidade genital adulta pelo
encontro com o objecto heterossexual. Neste sentido, a relação com o Outro, ao
ser pensada numa lógica de diferença, acentua a tensão e a conflitualidade
entre o Eu e o Outro, entre o masculino e o feminino, no sentido em que a
diferença alarga o campo de relação, mas também torna mais evidente o que Um
tem e o que ao Outro falta.
No modelo pulsional freudiano, as transformações da puberdade dão lugar ao
aparecimento de uma sexualidade genital, com uma finapdade sexual, feminina ou
mascupna, na qual as pulsões parciais se subordinam ao primado da zona genital.
Na adolescência são notórias as modificações corporais, que vão permitir a
construção de uma imagem sexual diferenciada, o que passa por uma integração do
corpo sexuado, feminino ou masculino, através de uma escolha sexual. Deste
modo, dá-se a aquisição de uma identidade sexual definitiva, que se deve
apresentar estável no final deste período, de modo a permitir uma diferenciação
entre o Eu e o Outro e uma complementaridade entre si, de modo a que o feminino
se complete noe como masculino, ou seja, que o Eu se complete e complemente com
o Outro e vice-versa.
A relação Eu-Outro, sujeito-objecto, feminino-masculino, pode ser pensada com
recurso à relação continente-conteúdo, na qual Um se impõe perante o Outro, mas
em que Um e Outro se complementam, dando origem a um novo Eu e a um novo Outro
(re)unindo e potenciando cada um as suas capacidades, dando origem a novas
criações, que resultam da ligação entre os opostos de presença/ausência,
proximidade/distância, conhecido/desconhecido, agora organizados sob a forma de
novos objectos, os quais dão lugar a novos objectivos, ou seja, a novas
representações simbólicas.
O feminino pode ser pensado como a parte que falta ao masculino, tal como o
masculino surge como a parte que falta ao feminino. Mas, quando pensamos numa
lógica de ligação, de (re)união e de concipação de Um e de Outro, o feminino
surge, tal como Marques (2003) o descreve, como sendo um ponto inicial, a
partir do qual se podem sempre gerar novas chegadas, numa relação de Um a/com
Um, num lugar outro, uma vez que o lugar do feminino ficará disponível para
novas chegadas. O feminino é entendido como um "lugar que não é público
nem privado, nem de um nem de outro, é um lugar de expectativa, lugar de
criaçãorecriação na/da intersubjectividade".(op. cit., p. 72). A relação
decorre na relação e pela relação, desenhando ciclos intermináveis, onde o
princípio é sempre um fim, e o fim o começo de novos princípios.
A adolescência é por excelência um lugar de criação e de (re)criação, nela
decorrendo todo um movimento de transformação do antigo em novos sentidos e
significados, em que cada etapa dá lugar a uma nova etapa, e em que um novo
início só é possível pela integração do antigo transformado e (re)significado.
Na relação que se estabelece entre o Eu e o Outro, decorre uma procura daquilo
que Um tem e que o Outro deseja alcançar, pelo que se desenha um ciclo, cujo
fim a alcançar dá lugar a um novo início, abrindo o caminho para novas
procuras, para novos ciclos que possilitam novas criações e (re)criações,
dotadas de novos sentidos e de novos significados. O fim da adolescência é a
idade adulta, um novo ciclo que se inicia, com novos caminhos para desvendar,
numa procura de novos sentidos e de novos significados, do Eu com o Outro, mas
também do Eu consigo Próprio, numa relação onde se procura a complementaridade.
O Outrocomo complementar, reporta-nos para uma relação de ligação, na qual está
presente um movimento de transformação do mundo interno noe como mundo externo,
em que existe uma ligação e uma integração do antigo e do novo, do conhecido e
do desconhecido, agora (re)criado e (re)significado. A questão da
complementaridade remete-nos para a falta, no sentido em que decorre um
movimento de procura do que estando em falta num leva à procura no Outro, mas
também do que Um possui e que pode ser objecto de procura pelo Outro. Mas para
que esta relação de ligação e de troca tenha lugar, é necessária a constituição
íntegra e separada do Eu e do Outro, ou seja, do sujeito e do objecto.
Para Green (1997/2000), a bissexualidade não pode ser definida por referência a
cada um dos sexos, mas ao sexo do Outro, que ele continuaria a conter e com o
qual se estabelecem trocas, o que imppca uma articulação entre o que se passa
no Eu e no Outro. Neste sentido, defende que invocar o masculino e o feminino,
no homem e na mulher, talvez mascare a dificuldade de conceber de que modo é
que o feminino do homem e o masculino da mulher entram em relação. Assim, a
sexualidade está pgada a uma certa forma de alteridade, uma vez que imppca a
ideia de um objecto que falta ao corpo do sujeito e, deste modo, a pulsão
representa a falta.
Neste sentido, a bissexualidade não pode ser definida apenas no que diz
respeito a cada um dos sexos, mas na relação com o Outro sexo, no sentido em
que cada um dos sexos possui algo que falta ao Outro. Deste modo, "o
complementar não seria, então, um apaziguamento, uma apança, uma cedência, ou
qualquer outra coisa de ordem similar, seria, isso sim, uma concipação, uma
união, um recolocar do lugar de Um e do Outro e de Um no/com Outro"
(Marques, 2003, op. cit., p. 70).
Durante o processo adolescente, podemos pensar em ciclos, com um princípio e
com um fim, que se renovam, de modo a que o antigo dê lugar ao novo, e em que a
transformação dá lugar à integração e ao crescimento. No Eu existe uma procura
do Outro, na condição de igual, de diferente e de complementar, num ciclo que
se renova a cada procura, dando lugar à indagação, à descoberta, mas também, à
integração e à possibilidade de comunicação do novo (re)significado e
(re)simbolizado.
O RORSCHACH NO ACESSO AO(S) OUTRO(S)
O Rorschach é um instrumento privilegiado na avaliação psicológica, pelas
características muito precisas que possui no que se refere à possibilidade de
aceder ao funcionamento psicológico do sujeito e de estabelecer o diagnóstico
diferencial. Para podermos aceder à forma como o Eu adolescente se constrói na
relação com o(s) Outro(s), inscrevemo-lo, por um lado, nos referenciais que
normalmente o sustentam, e, por outro, alargamo-lo a novas concepções que
permitem entender a actividade mental do sujeito interveniente no processo de
resposta Rorschach como uma actividade de ligação, que se revela entre o
sujeito e o objecto, entre o seu mundo interno e o externo, conduzindo à
criação de um novo objecto (Marques, 1999). É neste processo de construção de
sentido(s), que opera a significação e a simbolização, inscritas numa relação
do tipo continente-conteúdo, em que a simbolização, através da criação de novos
objectos e de novas relações continente-conteúdo, revela ao Outro o pensamento
do Próprio.
Para Marques (2005), são as qualidades dos objectos externos que mobilizam e
revelam a qualidade das ligações e das transformações dos objectos internos,
numa relação recíproca, em que "é possível e é fundamental apreciar-se
como sujeito(s) e objecto(s) se ligam (e ligam), se transforma (e transformam)
se envolvem e comunicam e (re)criam as realidades e os objectos, internos e
externos" (op. cit., p. 25).
OS PARÂMETROS DE ANÁLISE
Para realizarmos a análise das diferentes dimensões do Outro no Rorschach
definimos 2 tipos de parâmetros: por um lado, os parâmetros considerados
clássicos na escola Francesa (C. Chabert, 1997/2003) para a análise e
interpretação do Rorschach, e que dizem respeito à representação de si e à
representação das relações, através dos quais pudemos constituir uma grelha de
análise composta por diferentes categorias, de acordo com cada uma das
dimensões do Outro; por outro lado, os parâmetros de transformação e de
simbolização que se inscrevem nos modelos da significação e do pensamento
(Marques, 1999) , permitiram-nos realizar uma compreensão dinâmica das
respostas Rorschach, através das quais foi possível aceder aos diferentes
movimentos da constituição do(s) Outro(s), presentes ao longo do processo de
desenvolvimento adolescente. Estes elementos estão reunidos no quadro que se
segue:
OS SUJEITOS
Para a realização deste estudo escolhemos 8 protocolos de Rorschach - 4
de pré-adolescentes (2 rapazes e 2 raparigas de 13 anos) e 4 de adolescentes (2
rapazes e 2 raparigas de 17 anos) -, por consideramos que a relação que
se estabelece entre o Eu e o Outro adquire diferentes formas ao longo do
processo adolescente. Procurámos ver a evolução e as vicissitudes do Outro, nas
dimensões de igual, de diferente e de complementar, tendo em conta o sexo e a
idade dos adolescentes. Procurámos, ainda, que se tratassem de sujeitos
"normativos", apresentando uma certa homogeneidade em termos
escolares, sem insucesso escolar, que pertencessem a famílias aparentemente
estáveis e com um estatuto sócio-económico médio e que nunca tivessem recorrido
a consultas de Psiquiatria e/ou de Psicologia.
DISCUSSÃO DOS PROTOCOLOS
Para o Outrona condição de igual, ao analisarmos o parâmetro representação de
si e representação das relações nos protocolos de Rorschach, surgem as questões
relativas à identidade e ao investimento da imagem de si. Aqui, inscrevem-se as
respostas que nos dão conta da unidade, ou seja, da existência do sujeito como
íntegro e separado do outro, mais evidentes nos cartões compactos, nos quais as
respostas dão conta de uma apreensão global da mancha e são predominantemente
de boa qualidade formal.
Nos rapazes mais novos, encontrámos presente uma acentuação de respostas em
espelho, reveladoras da construção da integridade do sujeito. Respostas tais
como: I "Parece uma cara"e VII "Duas caras, uma a olhar para
a outra", surgem ligadas à estruturação do narcisismo, que por sua vez se
encontra relacionado com o grupo dos pares, que desempenha um papel fundamental
durante a adolescência, porque se estabelecem trocas, relações de comunicação
entre as várias partes do Eu. Os objectos evocados são reveladores de uma
procura de protecção do Eu, na relação que estabelece com o Outro (I "Uma
máscara".) apontando para a necessidade de constituir um continente,
suficientemente depmitador do Eu Próprio, para que, a partir daí, seja possível
a estruturação da relação com o Outro, na condição de Igual, existindo a
possibilidade de separação entre Um e o Outro, entre o mundo interno e o mundo
externo.
Nas respostas dadas pelos rapazes mais velhos, existe uma forte presença de
objectos externos definidos de uma forma coesa, reveladores de uma maior
diferenciação entre interno e externo, ou seja, de delimitação entre o sujeito
e o objecto, o que nos revela a capacidade que o sujeito tem de se percepcionar
como íntegro e separado na relação com o Outro, com o qual passa a ser possível
estabelecer trocas, numa relação de comunicação entre o mundo interno e o mundo
externo, agora (re)criados (IV "Um carro de fórmula I").
Nas raparigas mais novas encontramos presente um maior investimento narcísico
da imagem de si, existindo, tal como nos rapazes, um predomínio de respostas em
espelho, que aqui são reveladoras de um movimento identificatório na relação
com o materno, uma vez que as respostas em espelho apresentam uma maior
incidência no cartão VII "\/... Parecem duas raparigas, assim um
bocadinho para o defeituosas". Existe também uma grande sensibilidade ao
branco, reveladora de um retraimento pulsional narcísico, o que, em termos do
desenvolvimento adolescente, está relacionado com uma procura de sustentação e
de suporte para os processos que dão lugar à constituição da identidade
psíquica. Nos protocolos das raparigas de 17 anos, existe uma menor incidência
de um movimento identificatório ao materno, assim como uma maior capacidade de
diferenciação entre interno e externo, surgindo, agora, a evocação de objectos
internos (III "Parece um coração, isto aqui vermelho").
Na dimensão do Outro igual, no parâmetro relativo aos processos de
transformação e de simbolização, nos protocolos dos adolescentes mais novos,
encontramos uma delimitação do espaço psíquico de Eu em relação ao Outro, o que
é notório por exemplo na resposta dada ao cartão IX "Um portão".
Agora, a realidade interna e externa surgem (re)ligadas e (re)criadas, numa
relação onde está presente a simbolização.
Com base nos resultados encontrados neste estudo, podemos dizer que a dimensão
do Outro igual, no início do processo de desenvolvimento adolescente, se
apresenta suficientemente definido e delimitado, tanto nos rapazes como nas
raparigas, com a diferença de que, nas raparigas, a dimensão do Outro como
igual é mais notória nos protocolos de 13 anos, o que só acontece da mesma
forma nos protocolos dos rapazes de 17 anos. A presença deste movimento nos
protocolos das adolescentes mais novas, leva-nos a pensar na constituição mais
precoce de um continente, no qual os conteúdos podem ser (re)significados, ou
seja, existe desde logo uma maior abertura para os pares, os iguais, o que só é
evidente mais tarde no desenvolvimento dos rapazes.
Ao analisarmos o parâmetro representação de Si para a dimensão do Outro
diferente,encontrámos nos rapazes mais novos uma estruturação do masculino e
nas raparigas uma estruturação do feminino (I "Uma senhora assim com
asas"). Nos protocolos dos adolescentes mais velhos, os rapazes
apresentam já uma estruturação sólida e integrada do masculino e as raparigas
do feminino, mas também dos opostos, o que significa uma integração, por parte
dos rapazes, do feminino e, por parte das raparigas, do masculino. Surgindo
assim respostas com: V "Uma borboleta sem cores, é muito
pobrezinha"nos rapazes e I "Um morcego"nas raparigas.
Encontrámos um outro dado bastante homogéneo para rapazes e para raparigas na
representação das relações, quanto à integração das imagos parentais: assim,
nos adolescentes mais novos, quer nos rapazes, quer nas raparigas, encontrámos
uma integração da imago paterna e, nos adolescentes mais velhos, surge a
integração da imago materna.
Para a dimensão do Outro como diferente, encontrámos diferenças, quer no sexo,
quer na idade, para os processos de transformação e de simbolização. Os rapazes
mais novos recorrem a respostas mais infantis, com recurso a conteúdos animais
e a temáticas mais regressivas (V - R.A. "A boca tem o formato dos
crocodilos que estão mergulhados dentro de água"), ao contrário do que
acontece nas respostas dadas pelas raparigas, em que são evocados animais mais
evoluídos e possuidores de uma maior integridade, estando associados às
banalidades dadas nas respostas aos cartões Rorschach (V "Uma
borboleta").
Ainda dentro deste parâmetro, nos protocolos dos adolescentes mais velhos,
encontramos nos rapazes e nas raparigas a possibilidade de integração do
masculino noe como feminino, ou seja, numa mesma resposta foi-nos possível
encontrar reunido o masculino e o feminino, numa relação do tipo continente-
conteúdo, onde está presente uma capacidade de transformação e de
(re)significação.
Através dos resultados encontrados para a dimensão do Outro diferente, podemos
destacar dois aspectos que consideramos pertinentes e que são: em primeiro
lugar, a possibilidade de encontrarmos uma definição, já estabelecida e
estruturada, da identidade do sujeito, na percepção do seu sexo, masculino ou
feminino, logo no início da adolescência e, em segundo lugar, uma capacidade de
estruturação e de integração do outro sexo, no decorrer deste período do
desenvolvimento, o que nos foi possível constatar através das respostas dadas
ao Rorschach pelos adolescentes mais velhos que participaram neste estudo.
Para o Outro, na condição de complementar, ao analisarmos a representação das
relações constatámos que os adolescentes mais novos, mais as raparigas, não
conseguem, numa fase inicial da adolescência, lidar com o desconhecido, pelo
que surgem respostas como I "Uma figura sombria", reveladora do
movimento de turbulência e de dispersão que tem lugar durante o processo de
desenvolvimento adolescente, no qual decorre uma (re)organização do antigo,
agora ligado e (re)criado com o novo.
Nos rapazes de 13 anos, a representação das relações apresenta dois movimentos
marcantes: por um lado, a presença de interacções recíprocas positivas e, por
outro lado, a presença de interacções activas/passivas não agressivas. Este
último tipo de interacção deu lugar ao aparecimento de outro tipo de
interacções, as acções bilaterais de carácter neutro, ou acções simples ou
postura que não implique movimento, na qual se inscrevem as respostas do tipo:
IV "Dois pinguins de costas um para o outro".
Nas raparigas, a representação das relações revela uma maior incidência em
acções simples ou posturas que impliquem movimento, principalmente entre
figuras humanas e em acções bilaterais de carácter neutro. Estas categorias
mantêm-se presentes nas respostas dadas pelas raparigas mais velhas, o que
consideramos que pode estar associado à existência de um forte dinamismo
pulsional presente ao longo de todo o processo de desenvolvimento adolescente.
Nas raparigas mais velhas, surge ainda uma inscrição acentuada na interacção
recíproca positiva (III "Isto parece que são duas pessoas que estão a
puxar qualquer coisa, e estão frente a frente").
Deste modo, assistimos a um movimento quase oposto no desenvolvimento
adolescente dos rapazes e das raparigas, ou seja, os rapazes de 13 anos e as
raparigas de 17 anos dão respostas em que está presente uma interacção
recíproca positiva, enquanto as raparigas de 13 anos e os rapazes de 17 anos
apresentam uma maior inscrição em acções simples ou posturas, ainda com a
diferença de as raparigas darem mais respostas de interacção entre figuras
humanas e os rapazes entre animais.
Quando temos em conta os processos de transformação e de simbolização,
encontramos algumas diferenças entre os rapazes e as raparigas, para a dimensão
do Outro complementar. Esta dimensão torna-se mais visível nas respostas dadas
ao Rorschach pelos adolescentes mais velhos, o que nos dá conta da adolescência
como um espaço durante o qual decorrem transformações, que por sua vez dão
lugar a novos objectos e objectivos, existindo no final a possibilidade de o
sujeito se complementar na relação que estabelece com o(s) Outro(s).
Nos protocolos de Rorschach dos rapazes mais novos, os movimentos de
transformação e de simbolização do Outro complementar estão menos presentes do
que nos protocolos dos adolescentes mais velhos. Os mais novos apresentam
respostas com temáticas de carácter mais regressivo, enquanto nos mais velhos
encontramos respostas com um carácter mais pragmático e com um simbolismo mais
transparente, nas quais está presente uma capacidade de ligação e de
articulação entre o sujeito e o objecto, existindo a possibilidade de
(re)encontro, do que estando em falta se pode complementar (III "Aqui,
nas zonas laterais, parecem duas pessoas a agarrarem emalgo, talvez um saco. É
só").
Nas raparigas mais novas, encontramos um movimento que se assemelha ao que
encontrámos nos adolescentes mais velhos, ou seja, existe a capacidade de
perceber o que Um tem e o que ao Outro falta, decorrendo um movimento de
procura, uma actividade de ligação, na qual está presente a transformação (III
"\/ Parecem dois homens, um virado para cada lado. /\ Assim, parece que
estão os dois de frente"). Nas adolescentes mais velhas, encontramos uma
maior capacidade de integração, de ligação e de transformação, reveladora de
uma capacidade de simbolização mais abstracta (III "Duas pessoas, talvez
paixão").
Os resultados encontrados na dimensão do Outro como complementar, levam-nos a
pensar o Rorschach, tal como Marques (1999) o definiu, como um espaço virtual,
um espaço que potencia novas comunicações, interpretações e simbolizações, um
espaço activo, continente, no qual é possível (re)criar novos sentidos e
significados para os objectos, ou seja, constituir novos conteúdos, através do
pensamento e da simbolização, que se baseiam na identificação projectiva e na
relação dinâmica de oscilação entre a dispersão e a integração.
UM ESBOÇO PARA NOVAS CONSTRUÇÕES
Como elementos fundamentais que decorrem deste estudo, sublinhamos a
importância da construção do Eu adolescente na relação com o(s) Outro(s), nas
suas dimensões de igual, de diferente e de complementar, numa procura de novos
sentires e sentidos, presente numa relação intersubjectiva, de comunicação, mas
também de transformação e de (re)significação.
O organizador usado possibilitou, ainda, encontrar algumas diferenças em função
do sexo e da idade. No início da adolescência, o igual, revelador da capacidade
de diferenciação Eu-Outro, apresenta-se em construção, surgindo, no final da
adolescência, de uma forma integrada e estabilizada, dando lugar ao
aparecimento do Outro diferente. Este remete-nos mais directamente para a
diferenciação sexual, impondo a necessidade de integração do sexo do Próprio,
para posterior integração do Outro sexo. Assim, no início da adolescência
encontramos uma estabilização do sexo do Próprio, sendo visível no final a
integração do Outro diferente. O Outro complementar evidencia a necessidade de
integrar o que está em falta, o que é ainda pouco visível no início da
adolescência, mas surge no final deste período de uma forma bem integrada e
estabilizada, dando conta do movimento de transformação e de simbolização.
O estudo do Outro nas suas diferentes dimensões de igual, de diferente e de
complementar, permitiu-nos constituir um outro organizador, o Outro, a partir
do qual podemos pensar as transformações que têm lugar durante o processo de
desenvolvimento adolescente.
Para que se possa realizar uma construção é necessário um espaço e um tempo, é
assim na natureza, quando queremos plantar, precisamos de sementes e de um
tempo de cultivo. A adolescência é por excelência o espaço mas, também, o tempo
durante o qual o Eu se constrói na relação com o(s) Outro(s), um campo onde se
cultivam as relações entre o igual, o diferente e o complementar.
Embora o espaço externo de relação e de partilha, entre o Eu e o Outro, seja
importante, torna-se essencial, se não fundamental, que o adolescente constitua
um espaço interno, no qual seja possível existir um lugar de expectativa, de
criação e de (re)criação, nae dainter-subjectividade, essencial na relação Eu-
Outro.