A cidadania também faz parte da missão da Universidade
A cidadania também faz parte da missão da Universidade
Nota de Leitura
Santos Rego, M. A. & Lorenzo Moledo, M. (2006). Universidade e construción
da sociedade civil. Vigo: Xerais.
O compromisso da universidade com a sociedade civil, e em particular com a sua
construção, é um tema emergente no âmbito das ciências da educação e a obra de
Miguel Anxo Santos Rego e de Mar Lorenzo Moledo, contextualizada no sistema
universitário galego actual, é um interessante contributo para futuras análises
e reflexões. A estrutura da obra estende-se por duas partes. Na primeira
sublinha-se o lado cívico da missão da universidade e o seu importante papel na
formação de cidadãos através de programas de voluntariado, quer no seu seio,
quer sobretudo na sociedade circundante. A intenção, nesta vertente teórica do
livro, é demonstrar que a universidade seria extraordinariamente limitada se
reduzisse a sua função à estrita formação profissional dos seus alunos. Além de
contemplar e de trabalhar para esse objectivo, a universidade deveria pensar
seriamente na formação cívica dos estudantes, seja por razões pragmáticas (a
formação em competências cívico-sociais é uma mais-valia para a inserção no
mundo laboral), quer por razões de relevância social da sua actividade. Afinal,
se a universidade existe é em boa parte para servir a comunidade. E servir a
comunidade é, entre outras coisas, formar cidadãos comprometidos com a melhoria
da qualidade de vida no seio dessa comunidade.
A segunda parte, por sua vez, dedica-se a realizar uma investigação empírica
subdividida em dois estudos. No primeiro, o propósito dos autores é examinar a
importância que os estudantes universitários das instituições de ensino
superior da Galiza atribuem a determindas competências cívico-sociais, ou
competências transversais, na sua formação e desenvolvimento profissional. Já
no segundo estudo, a intenção é analisar o papel das universidades galegas em
acções de voluntariado, com ou sem articulação com as organizações da sociedade
civil. A metodologia utilizada privilegia o quantitativo mas não prescinde do
qualitativo na análise de certos dados recolhidos pelo inquérito através de
questionário.
A parte empírica da obra, na linha dos bons trabalhos em ciências da educação,
exibe rigor metodológico, clareza na apresentação dos resultados e uma
interessante discussão dos dados carreados pelo questionário, onde não falta a
colocação de hipóteses explicativas para as situações mais desconcertantes. A
impressão que fica é que a investigação é séria e bem fundamentada, além de ser
esclarecedora do protagonismo das universidades galegas na cidadanização dos
seus estudantes. Assim, fica-se a saber como se organizam essas instituições
para a promoção do voluntariado, tanto no seu seio como no âmbito da sociedade
civil, e que programas levam a cabo nas várias áreas privilegiadas: a educação
e o lazer, a saúde, a terceira idade, o apoio a pessoas com necessidades
especiais, a satisfação de necessidades básicas de populações carenciadas, a
promoção de acções solidárias, a cultura e os desportos, o ambiente, a mediação
social, os grupos étnicos e a reinserção social. O conjunto da pesquisa, além
de revelar precisão cirúrgica no tratamento dos dados, fornece um importante
manancial de informações para replicar as experiências galegas em outros
cenários sociais, com a vantagem de evitar as debilidades detectadas pelo
estudo, a saber: a fraca coordenação dos programas de voluntariado nos campi
das várias universidades e as insuficiências ao nível da avaliação das acções
empreendidas.
A base teórica que suporta a investigação empírica é actualizada nas
referências bibliográficas e inovadora no plano da conceptualização. Não deixa
de assumir posições normativas sobre o papel da universidade no reforço da
sociedade civil e toma esse protagonismo escrutinando o que se vem defendendo
desde há alguns anos a esta parte. Os autores conhecem o terreno em que se
movem e isso é determinante para a definição das suas posições.
Vários questionamentos se levantam a partir dessa base teórica. Antes de mais,
podemos perguntar se não é contraditório, ou pelo menos problemático, reafirmar
o papel cívico da universidade e, portanto, a sua acção em matéria de
preparação dos estudantes para uma cidadania activa no âmbito das estruturas da
sociedade civil, quando a instituição universitária é pressionada a investir
quase exclusivamente na formação académica e profissional dos seus alunos, como
se apenas contasse a formação em destrezas técnicas para o mundo do trabalho. O
que é que se pede, afinal, às universidades? Não é acima de tudo mão-de-obra
qualificada para a batalha da competitividade económica num mundo do
"salve-se quem puder"? E que dizer das restrições financeiras
impostas cada vez mais às universidades por parte do Estado? Não são essas
restrições um artifício e um expediente para tornar as universidades ainda mais
dependentes do sector económico e, portanto, das suas invectivas em termos de
definição de metas e prioridades? A progressiva generalização das parcerias
empresa-universidade é um sinal dos tempos e talvez isso queira dizer alguma
coisa sobre a redefinição do papel da instituição universitária, não
necessariamente na linha da cidadania e da construção da sociedade civil, como
se desejaria.
Por outro lado, e admitindo que a universidade não deve aligeirar as suas
responsabilidades sociais, nomeadamente em termos de articulação e reforço da
sociedade civil, seria importante esclarecer que sociedade civil deve a
universidade ajudar a construir. O menu é alargado e tanto pode ir da ajuda à
construção de uma sociedade civil mercantil, fundamentalmente governada pelo
referencial do mercado e da actividade económica, como pode consistir na
promoção de uma sociedade civil comunitária, baseada na filiação em grupos de
parentesco e em ajuntamentos selectivos segundo a raça, a etnia, a classe, a
cultura, a religião, ou ainda, como parece ser o caso na presente obra, a
construção de uma sociedade civil fortemente democrática, indexada aos valores
da democracia e apostada em defender, com acções concretas, os direitos básicos
da pessoa humana. O fundo teórico do livro de Miguel Anxo Santos Rego e de Mar
Lorenzo Moledo é suficientemente rico e estimulante para induzir este tipo de
questionamento. A sua pertinência é inegável.
Manuel Barbosa
Universidade do Minho
Centro de Investigação em Educação
Instituto de Educação
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