Na Girândola de Significados: Polissemia de Excelências em Escolas Portuguesas
do Século XXI
Nota de Leitura
CORTESÃO, Luiza (coord.); STOER, Stephen; MAGALHÃES, António; ANTUNES, Fátima;
NUNES, Rosa; MACEDO, Eunice; SÁ COSTA, Alexandra & ARAÚJO, Deolinda (2007).
Na Girândola de Significados: Polissemia de Excelências em Escolas Portuguesas
do Século XXI. Porto: Livpsic.
1. Um trabalho colectivo e uma metodologia inovadora
Em boa hora temos entre nós como resultado de um trabalho colectivo o livro
" Na Girândola de significados Polissemia de excelências em escolas
portuguesas do século XXI " da autoria da Luiza Cortesão, do Stephen Stoer
1
, da Fátima Antunes, da Deolinda Araújo, Eunice Macedo, António Magalhães, Rosa
Nunes e Alexandra Sá Costa.
É hoje quase incontornável e largamente aceite que o ensino desde o básico ao
superior deve primar pela qualidade e pela excelência (Escolas de Excelência,
Centros de Investigação de Excelência), obter a posição de topo entre as
instituições, ser o melhor ou dos melhores. Desde as Agências Internacionais,
passando pelos diversos Estados e Blocos Centrais Estados Unidos, Japão,
União Europeia e, em Portugal, também os respectivos Ministério da Educação e
Ministério da Ciência e do Ensino Superior até às Reitorias, Conselhos
Directivos de Escolas, a palavra de ordem é a excelência das escolas, de modo a
formar quadros qualificados e elites na era do conhecimento. Este discurso
perpassa outros ministérios e instituições, grande parte dos líderes
partidários e personalidades dos vários sectores do saber nas Ciências Exactas,
nas Artes, nas Letras e nas Ciências Sociais.
A Professora Luíza Cortesão e seus colegas co-autores deram um notável
contributo para desvendar, em primeiro lugar, a diversidade de significados nas
escolas de excelência do século XXI, estudando quatro escolas-tipo que, ainda
que em gradações e contornos diferenciados, são representadas e tidas como
escolas de excelência.
Com efeito, os autores começam por focalizar a sua atenção nos discursos sobre
a qualidade e a excelência da educação, relevando os múltiplos significados,
cujo efeito tem sido o de deslizar sentidos e mesmo desvirtuar conceitos e
preocupações emancipatórias para outros entendimentos e representações de
recorte tecnocrático e posicionamentos de integração e domesticação
ideológicas. Os autores, recorrendo, logo na introdução, a determinadas
distinções conceptuais como a de Paulo Freire entre educação bancária e
educação libertadora, e assumindo a relevância metodológica da investigação-
acção de Fals Borda, entre outros, e o correlativo conceito de empoderamento (
empowerment)
2
em vista da cidadania, mostram como determinados conceitos com preocupações
emancipatórias se convertem em ideias ou preocupações de cariz tecnocrático
(vg. rankings das escolas) e outras concepções de ensino, cuja filosofia de
ensino-aprendizagem se cifra na lógica da competividade a todo custo, ignorando
os diversos factores que propiciam situações ora de sucesso ora de insucesso.
Os autores, a fim superar discursos do senso comum e deslindar os significados
diversos em torno da qualidade e da excelência' académica nos discursos de
professores, alunos e pais, fazem-no com base na problematização e na
desconstrução de conceitos, significados e representações destes vários
agentes. A este respeito mostram como os contextos e modos de afirmação da
Excelência Académica' comportam uma tensão entre pedagogia e desempenho
(performance) e como as representações dos diferentes actores sociais inseridos
em quatro escolas com pontos comuns mas também com características e
identidades específicas são condicionadas ou constrangidas por factores macro-
estruturais, por lógicas organizacionais e por contextos de interacção
quotidiana. Para tal escolheram, baptizaram com nomes fictícios e tipificaram
duas escolas privadas Colégio Eugénio de Andrade e Colégio do Parque e duas
escolas públicas Escola das Andorinhas e Escola Sarah Afonso.
Para entender os conteúdos dos diferentes modelos de gestão os autores mostram
as alterações na composição e na configuração das classes em dois tempos,
embora, no meu entender, a utilização e recuperação do conceito da chamada
antiga' e nova classe média' me pareça bastante problemática e assenta mesmo
numa imprecisão conceptual, mesmo quando a sua referência, suponho eu, à classe
(média) burguesa (industrial e comercial) inerente ao fordismo e ao
keynesianismo e do Estado-providência seja pertinente e adequada no que diz
respeito à alteração do mercado de trabalho. Na esteira da análise de Bernstein
(1976) que salienta como a nova classe média revaloriza o capital escolar em
detrimento do capital económico ou da propriedade, os autores avançam a
hipótese plausível e depois comprovada de que a tensão entre uma pedagogia
invisível e uma pedagogia visível é resolvida em favor duma pedagogia visível'
reconfigurada e expressa na valorização do capital escolar e, mais
incisivamente, na excelência académica.
Esta campanha em favor da excelência particularmente na última década leva a
que intelectuais e fazedores de opinião de diversos quadrantes (desde
conservadores e neoliberais a progressistas) pugnem por valorizar a excelência
e premiar os melhores, perspectiva esta que os autores enquadram e bem na
teoria meritocrática, de raiz ora funcionalista e liberal ora socialdemocrata,
a qual está ressurgindo depois da cerrada crítica que lhe foi infligida nos
anos 60 e 70. Porém, como referem os autores, há contudo uma diferença: se
entre os anos 50 e 70 o mercado de trabalho garantia a reprodução dos lugares
de classe da designada classe média, a partir dos anos 80 e sobretudo 90 a
reestruturação do mercado de trabalho irá obrigar a reconfigurar as estratégias
da nova classe média', dando novo significado ao conceito de educação face à
chamada massificação da escolarização e ao papel do conhecimento na designada
sociedade da informação. Ou seja, atendendo à segmentação e dualização e
sobretudo à crescente precarização no mercado de trabalho numa tendência de
desqualificação a longo prazo, a nova classe média' tenta assegurar o seu
papel de dominância e apropriação dos melhores lugares no mercado de trabalho,
alterando a estratégia de distintividade e reclassificação social no sentido
weberiano e bourdieusiano. Esta estratégia, baseada no conceito de excelência
académica, representa a reconfiguração do contrato social rousseauniano,
apelando ao conceito de desempenho (performance), visto mais como produto do
que como processo.
Os autores empreendem um esforço notável no sentido de analisar as
características organizacionais e culturais das escolas estudadas, embora o
esforço de caracterizar a escola, nas palavras de Nóvoa (in Cortesão et al2007:
17), como comunidade educativa com uma identidade capaz de mobilizar os actores
sociais em torno dum projecto comum poderá desembocar em algo reificante,
idealizado e susceptível de obnubilar as contradições no seio da escola. Porém,
mais uma vez os atentos e críticos autores chamaram a atenção para os
diferentes modos de apropriação do projecto educativo.
Os autores evidenciam e bem a falsa dicotomia entre performance sem pedagogia
versus pedagogia sem performance, perspectivando a pedagogia centrada nos
processos de ensino-aprendizagem e a performance centrada na consecução de
desempenhos mais num continuum, uma gradação e uma mistura de uma e outra em
quatro subtipos: pedagogia, pedagogia através da performance, performance
através da pedagogia e performance.
Por fim, importa assinalar que os autores recorrem a metodologias de ordem
qualitativa: observação dos contextos e da organização dos espaços, análise de
documentos, entrevistas a professores, a dirigentes da escola, pais e alunos,
análise de conteúdo.
2. Quatro estudos de caso: caracterização de alunos, corpo docente e pais
Os quatro estudos de caso foram realizados com base numa caracterização de
alunos, professores e pais.
No primeiro caso a Escola privada de jardim de infância e ensino básico
Eugénio de Andrade com espaço de 1500m2 em casa de dois andares, jardim e
parque de estacionamento a escola está situada numa avenida nobre do Porto,
próxima do mar e de sedes de empresas e com uma envolvente de espaços
habitacionais de qualidade, verificando-se uma concentração de famílias das
ditas classes medias e médias altas. A escola é gerida por uma equipa e
docentes experientes, mas os 40 pais das crianças, também maioritariamente
qualificados, acompanham de perto o projecto educativo, cujas estratégias
pedagógicas assentam na procura da excelência, na expressividade e no
desenvolvimento das capacidades e competências dos alunos num continuum entre
pedagogia e performance mas com ênfase nesta última por parte dos pais.
Em contraponto da escola privada, no segundo estudo de caso trata-se de uma
escola pública básica a designada Escola das Andorinhas, composta por dois
prefabricados bem equipados e integrada em concelho limítrofe do Porto em zona
semi-rural com indústria têxtil e movimentos pendulares com o Porto cuja
filosofia de escola inclusiva enfatiza atitudes de cidadania e valores
democráticos e relações de tipo horizontal mesmo que com algum prejuízo no
tocante à preparação dos alunos para exames. A formação dos pais é heterogénea,
mas a maioria detém baixa escolaridade até ao 6º ano; a ênfase dos professores,
com apelo à participação dos pais e abertura à comunidade, é colocada na
Pedagogia, embora com alguma preocupação na performance.
No terceiro estudo de caso, a escola privada denominada Parque constitui um
edifício aberto e iluminado, ostentatório, arquitectonicamente harmónico, com
parque infantil e boas salas de aula com multimédia e Internet, com parque
infantil com espaços amplos, com piscina quase olímpica, balneários, espaços de
lazer: recreio, campos de ténis e futebol. Os encarregados de educação são, na
sua maioria, licenciados e detentores de recursos económicos e no ambiente
envolvente, já familiar, já escolar, é inculcada ideia de excelência, de modo a
articular saber e filosofia, formar cidadãos multilingues e multiculturais e
preparar os alunos para a competição por lugares destacados na cena nacional e
internacional.
Por fim, no quarto estudo de caso a escola secundária Sarah Afonso, com
instalações antigas, com bom ou razoável estado de conservação, situada numa
cidade sede de distrito vive um processo de perda de alunos e de população.
Apesar dos esforços dos docentes no sentido da exigência e do reforço da
relevância da escola pública com sucesso para todos, nem sempre a maioria dos
pais consegue acompanhar, dadas as baixas qualificações escolares que, quanto
muito, alcançam nalguns casos o 12º ano.
Em suma, relativamente às profissões dos pais, enquanto nas escolas privadas, a
maioria exerce profissões liberais ou detém um estatuto profissional elevado,
nas escolas públicas a maioria é composta por trabalhadores de serviços e
outros não qualificados. Em termos de recursos por parte dos pais ou
encarregados de educação, enquanto nas escolas privadas eles detêm maior poder
económico (Parque) ou posse de capital cultural (Eugénio de Andrade), nas
escolas públicas os recursos são mais modestos, escassos ou ausentes,
designadamente os escolares, quer no meio urbano, quer sobretudo no meio
suburbano ou periférico.
3. Observações finais
Como os autores evidenciaram, o conceito de excelência é ambíguo e polissémico.
Talvez um estudo mais detalhado sobre as condições materiais do contexto
escolar, dos incentivos e motivações dos professores e sobretudo das classes de
pertença dos pais e respectivos recursos detidos (económicos, sociais,
culturais e políticos) poderia contribuir para aprofundar e explicar a
diversidade e a polissemia da excelência. Por seu turno, a justa reivindicação
de identidades em torno dos diferentes ethos ou representações culturais dos
actores deverá ser articulada e aprofundada com as condições objectivas de vida
de todos os actores e sobretudo com os contextos societal e organizacional, de
modo a explicar a ambiguidade e polissemia do conceito de excelência. Em abono
da verdade, importa referir todavia que, para além do continuum pedagogia-
performance, os autores avançam e salientam na parte final os dois tempos da
organização escolar: o da modernidade e capitalismo organizado e o da (dita)
pós-modernidade e capitalismo tardio.
Apraz-me ainda registar que os autores, não tendo a pretensão de generalizar
estes resultados para o conjunto de escolas, visam apenas, de modo talvez
demasiado modesto, que o seu trabalho seja útil para que a educação ocorra de
modo transparente e reflexivo. É incontornável que os autores deram um enorme
contributo no conhecimento e na desconstrução dos contornos e das polissemias
da excelência escolar. Por fim, importa salientar que os autores evidenciam
como o trabalho sobre o objecto da excelência escolar e académica constitui o
iceberg de um campo vasto de combate ideológico: conceito de meritocracia
versus a preocupação central da justiça distributiva e social.
Notas
1
Levando em linha de conta o importante contributo do falecido Prof. Stephen
Stoer na modelação das ideias veiculadas neste livro, os autores prestam-lhe
deste modo mais uma homenagem ao seu trabalho. Embora não tenha privado de
perto com ele como colega no quotidiano, tive todavia o prazer de ler alguns
dos seus trabalhos, devendo evocar também o conhecimento mais próximo numa
viagem ao Brasil no Congresso Portugal-Brasil na Fundação Joaquim Nabuco no
Recife em 2000.
2
Este conceito hoje cada vez mais vulgarizado, bem presente em economistas de
referência como o prémio Nobel Amarthya Sen (1999), na sua excelente obra
Desenvolvimento como Liberdade, evidencia como esta, para além do seu
significado jurídico-formal, só será real, desde que os grupos e indivíduos
tenham a capacitação de dispor de recursos para desenvolver-se como cidadãos
com direitos efectivos. Em abono da verdade, diga-se, porém, que o conceito de
empoderamento, apresentado como novidade e quase lema político-institucional,
reivindicado pelas instâncias oficiais, designadamente a União Europeia, é bem
velhinho e remonta a Max Weber (1978) quando apresenta o poder de disposição
(verfugungsgewalt) ou capacitação, capacidade ou controlo sobre recursos como
um dos conceitos centrais da sua obra.