Educação, globalizações e cosmopolitismos: novos direitos, novas desigualdades
Cosmopolitisme; Justice; Éducation; Inégalités
Já há muito que o discurso da crise se instalou entre nós: com a crise do
Estado-Providência, assistimos à reformulação das condições do laço social e
cívico, uma vez que as instituições de instauração do laço social e da
solidariedade, deixam de funcionar. Com a crise económico-financeira,
questionam-se as ortodoxias relativas ao funcionamento dos mercados; com a
crise do trabalho, alteram-se as formas de relação entre economia e sociedade;
com a crise do sujeito, modificam-se os modos de constituição das identidades
individuais e colectivas.
Mercê destas transformações, o tempo actual apresenta-se como um tempo de
grande vulnerabilidade social, em que noções como: precariedade e desemprego,
emprego temporário, diferenciação, debilidade do movimento social,
individualização das relações sociais, desigualdades, insegurança, incerteza,
desregulação, fragilidade dos laços comunitários, feminização da pobreza,
desqualificação e atomização social demarcam um campo semântico claro de
inquietações profundas, apontando para múltiplas formas como muitos são
atingidos por um trabalho de verdadeira decomposição, de dessocialização que os
vulnerabiliza como seres humanos.
As nossas sociedades desiguais, marcadamente injustas e excludentes, não só não
conseguiram cumprir uma das promessas da modernidade que apontava para a gestão
controlada das desigualdades através de políticas redistributivas e do pleno
emprego, como vêem agora despontar, por novos processos económicos, políticos e
culturais, novos sistemas de desigualdades, seja no campo da educação, no da
economia, no da cultura ou no da política. Acresce a tudo isto, o escândalo da
pobreza que permanece profundamente enraizado na sociedade global actual e que
afecta também a relação entre países (de alta e baixa produtividade, por
exemplo) e o modo como se integram ou não na economia global, reforçando a
convicção de que as desigualdades são também cada vez mais intersocietalmente
globais.
Por outro lado, não deixa de ser verdade que hoje se raciocina não tanto em
termos de igualdade mas antes em parâmetros de custo e eficácia, de maximização
da eficiência mercantil, independentemente dos efeitos de exploração,
competição e desigualdade que geram, acolhendo-se pacificamente a ideia, por
exemplo, de que é exigência de progresso a separação entre o económico e o
social, devendo pugnar-se simultaneamente pela integração económica e pela
desintegração social. Assim, o estabelecimento de solidariedades, seja entre
indivíduos, seja entre grupos no conjunto social torna-se difícil, cabendo a
cada um assumir as responsabilidades pelos encargos assistenciais e de
realização pessoal e profissional, ou então delegar no Estado essas mesmas
responsabilidades, dentro do slogan: "eficácia para as empresas e a
solidariedade para os Estados" (como nos diz Rosanvallon, 1999: 204). O
mais grave, porém, é quando se verifica que o próprio Estado está actualmente
mais preocupado com o financiamento do sistema financeiro do que com a
previdência social, em nome, por exemplo, da salvação não apenas do sistema
financeiro mas também do sistema económico e produtivo.
A estes e outros desafios as diferentes globalizações tentam dar respostas,
umas mais na lógica mercantil, outras na lógica mais democrática ou contra-
hegemónica, ambas, no entanto, recorrendo a formas de cosmopolitismo que por
vezes esquecem as suas maldades ou enobrecem exageradamente as suas virtudes,
nomeadamente em termos de direitos e de combate às novas desigualdades sociais,
dentro da nova cartografia do espaço social em que vivemos, induzida, embora
não exclusivamente, pela globalização.
Globalização, desigualdades e cosmopolitismos
A nossa época é caracterizada pelos processos de globalização, que têm sido
analisados, do ponto de vista normativo, de muitos modos: uns mais
complementares, outros mais contraditórios; uns acentuando a sua bondade,
outros a sua malignidade essencial; uns apontando para o efeito do aumento das
desigualdades, outros relevando precisamente os seus efeitos positivos em
termos de justiça e de igualdade.
Isto significa que o debate sobre a globalização e a sua relação com a
desigualdade e o bem-estar dos seres humanos não é linear, apesar das análises
que o simplificam: ao omitirem as diferentes concepções e modos discrepantes de
medir a desigualdade; ao esquecerem que a melhoria do modo de vida dos cidadãos
é muito desigual consoante os países; ao passarem ao lado das novas
desigualdades inter e intra-países; ao ignorarem a capacidade de veto dos
poderosos sobre a vida dos mais débeis e vulneráveis (fenómeno que Santos
apelida de "fascismo social"); ao silenciarem o peso diferenciado do
global na explicação das decisões políticas nacionais, uma vez que os factores
macroeconómicos, por exemplo, têm impactos diferenciados nos diversos países e
regiões, dependendo os seus efeitos da posição global das economias de cada
país e de cada região (ver Galbraith, 2007).
Para evitar, então, a simplificação desta questão das desigualdades no mundo
actual, há que atender igualmente ao peso diferenciado do global na explicação
das decisões políticas nacionais, uma vez que a globalização condiciona as
decisões sobre o bem-estar dos cidadãos dos diferentes países. Aliás, é cada
vez mais consensual a ideia de que as desigualdades nacionais podem ser mais
determinadas globalmente do que nacionalmente, devido às crises, movimentos de
capitais, etc., o que torna difícil, desde logo, e no dizer de Beck (2006: 39),
estabelecer fronteiras entre o nacional e o internacional no campo das
desigualdades sociais.
No sentido de esclarecer melhor este ponto, terei em conta sobretudo uma das
concepções resultante da investigação deste tópico em Ciências Sociais, que
entende a globalização como interconexão ou interdependência mundial cada vez
mais extensa, profunda, rápida e ampla em todos os aspectos da vida social
contemporânea, com particular incidência ao nível do capital, bens, trabalho,
serviços e ideias. Tendo em conta esta compreensão do conceito de globalização,
começarei por realçar, como uma questão de facto, a governamentalidade
neoliberal, enquanto processo que se tem revelado decididamente parcial no que
concerne à justiça, favorecendo os mais favorecidos, num claro contraste com o
"princípio da diferença" que Rawls (1993) apontava como
caracterizando uma sociedade justa e bem ordenada.
Deixando de lado o pensamento liberal mais moderado que parece preocupar-se,
apesar de tudo, com o combate às desigualdades de oportunidades embora não
tanto com o combate às desigualdades de resultados, torna-se claro que os
adeptos da globalização neoliberalizada não estão preocupados com a ideia de
que parte dos benefícios dos sempre ganhadores se faça à custa das perdas dos
eternos perdedores (ver Khor, 2000) ou, num plano mais amplo, que a
globalização funcione como uma espécie de apartheid (na expressão deste autor)
que propicia o neocolonialismo e enfraquece os Estados mais fracos, dentro dos
padrões de estratificação global em que alguns Estados, regiões, sociedades e
comunidades se apresentam crescentemente mais integrados na nova ordem global
enquanto outros, pelo contrário, tendem a ser centrifugados.
Por outro lado, ainda, desde 1970 que alguns economistas têm exigido que a
eficiência e a distribuição devem ser consideradas separadamente, interessando,
por isso, propor medidas que aumentem a eficiência independentemente dos seus
efeitos redistributivos, até porque os ganhadores deste jogo podem
potencialmente vir a compensar os perdedores. E além disso, uma maior
desigualdade pode proporcionar as condições para um crescimento mais rápido.
Consequentemente, as políticas públicas devem preocupar-se apenas com os
processos de mercado de modo a que estes funcionem correctamente e livremente,
até porque os mercados em geral são bons para fornecerem oportunidades de
riqueza e outros privilégios a todos, independentemente do país de nascimento,
ou da classe, ou do género, ou da etnia. Nesta linha, os ideólogos do
globalismo, apresentados como cientistas desinteressados, concluem que dos
livres mercados e da mobilidade no trabalho, assim como do capital, pode
resultar um mundo mais equitativo, justo e cosmopolita, já não importando até a
questão da cidadania uma vez que ela não é central à identidade individual por
esta ser entendida como identidade em concorrência. Mesmo a questão da
exploração do trabalho e os processos da sua denúncia deixaram de fazer muito
sentido na lógica da globalização da acumulação capitalista actual, pois os
próprios trabalhadores lutam presentemente, não tanto contra a exploração, mas
pela oportunidade de serem explorados pelo capital, ou seja, pela oportunidade
de emprego (ver Romão, 2004: 9).
Outro aspecto relevante a sublinhar é que o cosmopolitismo daqui resultante se
apresenta, de facto, com roupagens humanistas e socialmente preocupadas,
escondendo eventuais efeitos perniciosos decorrentes da sua idealização e do
seu imperialismo. Trata-se, enfim, de um cosmopolitismo mercantilizado,
consumista, que afina pelo diapasão do próprio cosmopolitismo inerente à lógica
de expansão do capital já denunciado por Marx e Stuart Mill. De facto, o
capital foi e é essencialmente cosmopolita, o que não invalida o facto de a
actividade económica e financeira, desde a produção à investigação, à
comercialização e ao consumo se produzir em espaços que são bem reais
persistindo o seu carácter eminentemente nacional apesar das operações
internacionais a que está sujeita.
Perante este cenário, podemos concluir que a visão cosmopolita mercantilizada é
uma visão que apropria uma dimensão sedutora do conceito de cosmopolitismo,
embora omitindo, entre outras coisas, a fractura interna que secciona a
cidadania, dando o estatuto de cidadãos cosmopolitas sobretudo àqueles que são
vencedores nas condições do actual mercado e arredando os outros como
"incompetentes" ou "irrelevantes". Mesmo a diversidade e o
respeito pela diferença, quando são defendidas, não passam de um meio ao
serviço da estratégia de mercado, ao serviço, enfim, da governança mundial
levada a cabo por agências poderosas (como o Banco Mundial, FMI, OMC).
Simultaneamente, o cosmopolitismo mercantilizado vende-nos, através dos seus
meios poderosos, não apenas os seus produtos mas também a ordem existente como
inevitável.
Em oposição a esta forma de globalização e do cosmopolitismo hegemónico que
induz (herdeiro do discurso centrado frequentemente na visão ocidental e
elitista do mundo e avesso por vezes à afirmação da realidade do social), os
cientistas sociais vêm propondo uma outra globalização, a globalização
democrática, e uma outra forma de cosmopolitismo, de sabor Gramsciano: o
cosmopolitismo bottom-up, ou, como prefiro dizer, a cosmopoliticidade
democrática
1
, construída a partir de baixo (por consensos sobrepostos), que tem a vantagem
de valorizar múltiplas cidadanias e poderes, de promover a conversação, de
mobilizar as interpretações e acções políticas de alcance global e de
desocultar a fragilidade do ser humano, com ênfase particular não apenas na
denúncia da crueldade humana mas também na solidariedade com os outros e na
oposição activa a todas as formas de injustiça (Lu, 2000: 244-67).
Este tipo de cosmopolitismo contra-hegemónico, reconhecendo embora que a
cidadanização e a democratização também passam pelo Estado, enraíza-se
claramente numa outra concepção de democracia: na democracia cosmopolita (ou
"cosmopolítica"), que aponta para uma desestatização da cidadania e
da democracia, no sentido de as tornar mais abertas aos desafios da
globalização, refundando-as num conjunto de valores supra-nacionais (como, por
exemplo, nos direitos humanos2, como é o caso de Habermas, 2000).
Do lado da sociedade, esta forma de cosmopolitismo, resultado de campos
políticos e argumentativos, assume a possibilidade de se construir uma
sociedade civil global mais densa, coerente com a ideia de que a consciência
global se expande (embora de uma forma não determinista), como é visível, por
exemplo: na criação de um novo sentido de pertença e sensibilidade cuja
expressão são as novas "formações sociais pós-nacionais" (onde se
incluem, por exemplo, os movimentos sociais transnacionais e que ultrapassam as
lealdades ao Estado-nação); na protecção dos recursos naturais e do meio
ambiente; na crescente institucionalização de organizações políticas regionais
e mundiais (como a ONU); no compromisso com os direitos humanos. Estes
movimentos reafirmam de algum modo a caminhada em direcção, nas palavras de
Archibugi (2008), a uma "commonwealth global de cidadãos", importando
no entanto não esquecer que as acções destas organizações estão também
frequentemente condicionadas pela agenda global mercantilizada e que a maior
densidade da sociedade civil global propicia igualmente a criação de novos
papéis geopolíticos dos Estados.
Educação no contexto da globalização e justiça
A noção de globalização tem sido usada para comparar e analisar políticas
educativas (Ball, 1998), com ênfase particular nas questões do poder e do
conhecimento, na tecnologia, no princípio da igualdade de oportunidades, nas
políticas da diferença no interior da educação, entre outros temas.
Por outro lado, a globalização tem vindo a impor um novo mandato aos diferentes
países no sentido de, em nome das vantagens competitivas que podem alcançar,
terem de redefinir os seus sistemas de ensino e de formação nacionais em termos
de qualidade, avaliada segundo padrões internacionais.
Isto exige que os sistemas educacionais se rendam à cultura da performatividade
sistémica, através da imposição de indicadores de desempenho como os novos
mecanismos de ligação entre o centro que produz a política e as periferias que
a põem em prática. Ou seja, enquanto os sistemas educativos eram
tradicionalmente locais protegidos por discursos de bem comum, de serviço
público, actualmente interessa posicionar a educação como um dos sectores de
serviço cruciais para a economia, tal como Tony Blair, referindo-se à
aprendizagem, reconheceu numa intervenção pública, nos finais da última década:
"a educação é a melhor política económica que nós temos, em 1998".
Claro que não estamos perante uma educação qualquer. Integrada nesse imaginário
económico de que estamos a viver numa economia baseada no conhecimento, a
educação é sobretudo "conhecimento bytificado" (ou transformado num
sistema automático baseado na pronta disponibilização de informação e skills),
que deve ser retrabalhado como uma mercadoria e contribuir para reforçar os
quatro pilares de uma economia sã e competitiva: o da inovação, o das novas
tecnologias, o do capital humano e o da dinâmica empresarial. O resto, tal como
a política, deve ser remetido para o sótão das "quinquilharias".
Consequentemente, a educação, embalada no discurso da aprendizagem on-line, já
não deve ser sensível às origens sociais, políticas e culturais de um país; o
que importa são os valores que se encaixem na ética da análise custo-benefício.
Na nova retórica política global, onde predomina o mais globalizado e engenhoso
dos discursos, que é o discurso da aprendizagem ao longo da vida (e que é,
segundo Olssen, 2004, um instrumento da governamentalidade flexível) parece que
os sistemas educativos estão a perder a sua função Durkheimiana original de
transmitir culturas nacionais e de promover a coesão social, uma vez que se
verifica no ensino uma oportunidade comercial que beneficiará claramente com a
internacionalização, com a mercantilização do sector escolar e com o
reconhecimento global.
Estes processos passam pela criação de escolas de iniciativa empresarial,
desburocratizadas, descentralizadas e mais autónomas, escolas internacionais,
patrocínios privados, novas parcerias público-privadas, penetração curricular
por tendências globais e produção de materiais educativos, com o
desenvolvimento de uma pedagogia tecnologicamente mediada, com a reorganização
da educação básica e secundária e formação de professores (que corresponde às
capacidades e competências requeridas pelos trabalhadores num mundo
globalizado), com a mercantilização da educação superior.
No caso específico da aprendizagem, um outro conjunto de estratégias visa
reforçar precisamente a sua centralidade tornando-a mais personalizada, fluida
e flexível, para produzir, já não tanto cidadãos consumidores mas cidadãos
activos. Ou seja, esta personalização, adequada à actual narrativa mestra da
economia do conhecimento, teria as mesmas intenções mercantis mas agora através
do apelo a uma maior participação. Esta "personalização como
pedagogia" para a economia baseada no conhecimento faria avançar, como
refere Hartley (2007), a mercantilização da educação colocando-a no coração do
processo pedagógico, ao mesmo tempo que reintroduziria os mecanismos de
consumismo na educação: o indivíduo seria, agora, o produtor-consumidor, que
constrói a sociedade.
Concluindo este ponto: a educação sofre os impactos directamente da
globalização, mas também indirectamente através de violação dos direitos das
crianças, da dívida pública, das crises financeiras, como a actual. Será,
então, que mesmo assim poderemos continuar a afirmar que os processos de
globalização apenas mudaram a posição relativa dos fenómenos educativos sem
alterar a sua substância? Ou que Estados relativamente marginais e frágeis no
contexto da globalização devem omitir que a educação é simultaneamente causa e
efeito, problema e uma possível solução para a fragilidade em causa?
Tudo o que ficou dito remete-nos para uma outra reflexão que relaciona a
educação em tempos de globalização com a questão da justiça. Na verdade, e
independentemente do modo como pensamos a globalização, é um facto que esta
está a mudar o modo como argumentamos acerca da justiça (ver Fraser, 2007:
252). Isto significa que a justiça como redistribuição, na linha da justiça
económica, e a concepção de justiça como reconhecimento cultural já não podem
mais confinar-se ao espaço nacional estatizado e aos seus beneficiários (os
cidadãos nacionais).
Neste sentido, uma visão mais global, mais cosmopolita da justiça tem vindo a
ser reivindicada, de modo a potenciar não apenas a sua bidimensionalidade
(económica e cultural) mas também a dimensão política da representação, isto é,
a justiça como paridade de participação, que reivindica o estabelecimento de
regras de decisão para dirimir conflitos quer nas vertentes económicas quer
culturais, dando voz às minorias, sejam elas povos, minorias ou mulheres
Estamos, então, num outro paradigma que exige uma nova teoria da justiça social
ou, na terminologia de Fraser (2007), uma teoria da "justiça democrática
pós-westfaliana".
Este novo paradigma impõe à educação novas exigências, designadamente em termos
de aprofundamento das suas raízes democráticas e participativas (que de modo
algum podem restringir-se ao campo das territorialidades soberanas actuais),
pugnando por uma maior simetria estrutural de poder nos diferentes níveis de
relações sociais (relações de trabalho, organizações, interacções ) e
independentemente das formas em que a desigualdade de poder emerge (exploração,
dominação, opressão, discriminação, exclusão, marginalização ). Por outro lado,
este modo de conceber a justiça reforça também a cosmopoliticidade que a
educação deverá ter sempre presente.
Educação cosmopolítica
Face à descrição anterior sobre o globalismo e o seu cosmopolitismo, reforçados
com a emergência de um Estado pós-social minimalista, cada vez mais pós-
democrático, em que novas desigualdades assomam perante um claro declínio da
esfera pública (ou da sua contaminação pela instrumentalidade e interesses
particularísticos) e em que muitas sociedades se transformam em "paraísos
divididos", com alguns a procurarem as máximas vantagens das oportunidades
oferecidas pelo mercado e outros a sentirem-se cada vez mais periféricos e
socialmente irrelevantes, interessa-me analisar agora como a educação pode ser
resgatada à luz da cosmopoliticidade democrática que aqui proponho (veja-se a
nota 1).
Em primeiro lugar, uma das intencionalidades da cosmopoliticidade democrática
no campo da educação vai no sentido de reteorizar as relações entre escola
pública e democracia, revendo, desde logo, a concepção de democracia no mundo
global (Reid, 2005). A criação de uma "democracia moral cosmopolita"
(que aponta para a possibilidade de cada cidadão poder gozar de cidadanias
múltiplas, tendo em conta os contextos que os afectam) deverá, segundo este
autor, ser reforçada, obrigando as escolas a que: (i) ofereçam um currículo que
desenvolva um determinado número de capacidades acordadas publicamente; (ii)
reflictam e dêem expressão a princípios democráticos nas pedagogias, estruturas
e processos escolares; (iii) operem em modos que valorizem a diversidade
através da construção da comunidade; (iv) não excluam nenhum estudante da
participação na vida escolar por razões de diferença; (v) enformem a sua gestão
por princípios de democraticidade e participação.
Do mesmo modo, a aprendizagem deve também, neste contexto, ser encarada como um
processo de compromisso com o "outro", com a razão e os direitos
humanos, numa distribuição igual das oportunidades e perspectivas de vida
(Olssen, 2004: 26-27). Com efeito, a aprendizagem deve entender-se, na linha de
pensamento deste autor, como um compromisso político e social numa comunidade
global, constituindo, deste modo, uma forma de participação política e
democrática, que deve atender:
i) à igualdade, pois o desenvolvimento de qualquer concepção de
justiça democrática, que implica um conceito de aprendizagem, deve
incluir a distribuição de recursos e oportunidades de vida;
ii) ao papel do Estado, garantindo, como um direito fundamental, o
acesso à educação e ao conhecimento assim como à informação e ao
desenvolvimento de capacidades;
iii) ao desenvolvimento da sociedade civil, aqui entendida como o
sector autónomo do Estado e da economia, reconhecendo-lhe o direito
ao diálogo, mas também à contestação, ao desafio ou à oposição;
iv) ao papel da educação, como crucial à aprendizagem para a
democracia.
Então, a proposta mais congruente para compreender a escola dentro desta
contextualização teórica é concebê-la como "organização democrática"
e como "arena política", em que se fomentam práticas de democracia
deliberativa/comunicativa; em que se questionam os modelos políticos,
económicos e sociais de acordo com a justiça que promovem; em que se denunciam
as perversões e as injustiças geradas pelos modelos de produção capitalista
hegemónicos; em que se desocultam os processos de legitimação das opções
culturais dominantes; em que se expõem os tipos dominantes da relação entre
poder e conhecimento; em que se alerta para a invasão asfixiante da vida
quotidiana e das instituições escolares pela racionalidade científica (Torres,
2008).
Em sentido mais amplo, a educação cosmopolítica deve posicionar-se de modo a
potenciar novos direitos, como o da solidariedade (que deve atravessar divisões
e hierarquias de linguagem, etnicidade, religião, território, cultura ou
cidadania), contrariando o movimento da educação focada no self mais
individualizado, ou da educação baseada na criação do "cosmopolita
estratégico", do cidadão como jogador económico globalmente orientado,
investindo antes na promoção do "self cosmopolita" (ver Mitchell,
2003), participativo, integrando as redes de solidariedades locais e
transnacionais de cooperação, mas também de oposição, nunca obscurecendo a
importância das relações sociais e da cultura.
Dentro do mesmo esforço, a educação cosmopolítica pode reforçar a identidade
cultural, abrindo-se esta para a análise das reconfigurações de tempo e espaço,
para a criação de novas espacialidades e mobilidades, para a consideração de
novas racionalidades, desde logo, a racionalidade cosmopolita que é, segundo
Santos (2002), aquela que aumenta e densifica as possibilidades de a Humanidade
encontrar respostas concretas e adequadas para os seus problemas, partindo da
ideia, implícita no conceito de "hermenêutica diatópica", de que
todas as culturas são incompletas e que podem, por isso, ser enriquecidas pelo
diálogo e pelo confronto com outras culturas.
É esta racionalidade ' que eu prefiro caracterizar como cosmopolítica ' que, no
meu entender, contribuirá para reconfigurar a noção de público como uma
"forma de solidariedade social" (Calhoun, 2002: 159) ao mesmo tempo
que aumentará a abrangência e a inclusividade da esfera pública, fertilizada
pelos valores da democracia cosmopolítica. Também ela permitirá ir além das
identidades nacionais territorializadas, apontando antes para a compreensão do
laço social como compromisso com os princípios políticos que devem reger uma
comunidade política aberta às outras comunidades.
Estamos, consequentemente, num outro registo que coloca a educação numa nova
ordem emancipatória, sintonizada com novas exigências em termos de justiça, que
considera que os afectados por uma dada estrutura ou instituição social têm o
direito moral de ser tratados como sujeitos de justiça. E os afectados não são
apenas os situados na territorialidade estatal e condicionados pelo contrato
social moderno. Na reconfiguração do contrato social da modernidade a que vimos
assistindo, levada a cabo na tensão entre factores de ordem económica, cultural
e política (ver Stoer, Magalhães & Rodrigues, 2004), as cidadanias
emergentes, nomeadamente as culturais, reclamam a sua soberania face ao Estado
e marcam as suas diferenças, ao mesmo tempo que invocam outras justiças, para
além da estatal.
Neste sentido, as políticas de redistribuição e a cidadania social devem ser
repensadas na base de outros territórios (ou instâncias), entre os quais o
mundial. Então, a concepção de justiça mais congruente com estas novas
exigências é a pós-westfaliana e dialógica a todos os níveis, orientada para a
criação de uma nova ordem mundial mais democrática e mais democraticamente
controlada.
Também aqui a educação cosmopolítica deve apoiar a construção do acordo cada
vez mais amplo e entrecruzado entre distintos lugares, pela conversação ou
interdialogação (ver Appiah, 2004 e Santos, 2004), construindo-se uma
universalidade ética concreta, de confluência, que "vem de baixo",
cordial e sensível às necessidades das vítimas dos projectos totalizadores.
Para tal, a educação deve fomentar a mobilização, entre outros, de dois
processos claramente relacionados com a "não dominação" (Olssen,
2004; Olssen, Codd & Neilli, 2004): a "deliberação" ' que implica
obter uma decisão que represente um balanço justo entre diferentes pontos de
vista ' e a "contestação", entendida como central à deliberação e à
liberdade e que substitui a arbitrariedade na tomada de decisão.
Conclusão
Nesta nova configuração histórica em que se constitui a sociedade global,
múltipla e heterogénea, em que se generalizam as relações, os processos e
estruturas de dominação e apropriação, antagonismo e integração, como diz Ianni
(2001: 171), não podemos ficar indiferentes aos desafios epistemológicos,
ontológicos e teóricos que dão aos fenómenos sociais uma dimensão global.
Depois, a complexidade da globalização e dos seus impactos exige uma nova
cartografia geopolítica que trace os fluxos de efeitos globais e os padrões de
imitação, diferença, dominação e subordinação na política e na prática da
educação.
Por outro lado, a globalização não supera as desigualdades nem as contradições,
antes as recria, as desenvolve a outros níveis e com novos ingredientes e com
novas linguagens (por exemplo, através de programas de ajustamento estrutural).
Contudo, a solução não está tanto em saber se a globalização deve ou não ser
rejeitada, "mas como pode ser regulada em termos de princípios que
promovam a justiça social" (MacDonald, & Midgley, 2007: 11).
É nesta trajectória que devemos reorientar o cosmopolitismo, fazendo não apenas
que ele não recubra misérias e decepções, sob o manto do humanitarismo, da
segurança, da salvação dos mercados, da securitização do desenvolvimento
imposta aos países mais pobres, mas também que direccione as lealdades
primeiras para o conjunto da Humanidade e não para os Estados, "porque as
diferenças entre quem está dentro ou quem está fora [dos Estados] são
moralmente irrelevantes", como nos diz Linklater (1998: 56).
Foi neste sentido que propus neste artigo a noção de
cosmopoliticidadedemocrática, visando reorientar o cosmopolitismo ligando-o a
formas de contra-globalização, de justiça cognitiva, de combate a rituais de
desigualdade e de monopolização de oportunidades, de denúncia de novas formas
de regulação da inclusão/exclusão e de limitação da mobilidade social; ligando-
o, enfim, a formas de solidariedade social, ainda que desarticule ou afrouxe a
sua vinculação aos conceitos de soberania ou de nacionalidade territorializada.
Perante isto, onde situar as funções da educação, considerando que o próprio
cidadão crítico actual é um actor algo paradoxal, pois é solidário, mas pouco
participativo; crente na justiça equitativa, mas há muito tempo que renunciou à
política como meio para transformar o mundo?
A minha proposta desenvolveu-se congruentemente a partir da noção de educação
cosmopolítica, investindo numa outra justiça educacional, constituída em
alternativa para a construção de uma nova ordem mundial, pela participação
socialmente empenhada de cidadãos e cidadãs numa redistribuição e num
reconhecimento que se afastem do "modelo da generosidade" e se
aproximem do de justiça global.
Não se trata, por conseguinte, de conceber o Outro à nossa imagem e semelhança
ou de propor, através do cosmopolitismo, a universalização de direitos e
deveres tendo por base a generalização do Outro, isto é, a consideração de que
o Outro possui as mesmas características, a mesma racionalidade, os mesmos
desejos e as mesmas necessidades que o Eu.
Com a noção de cosmopoliticidade reiteradamente expressa neste trabalho,
pretende-se, antes, enfatizar a universalidade concreta, valorizar a
diversidade e a interlocução culturais, reconciliar as diferenças, aprofundar o
que temos em comum
3
. Aponta-se, por conseguinte, para um universalismo dialógico, de confluência,
que tem como objectivo a construção de uma comunidade de comunidades,
reconhecendo, como princípio, que todos os indivíduos são de valor moral igual
e que devem fazer parte da nossa comunidade de diálogo e atenção.
Notas
1 Tenho vindo a utilizar o conceito de cosmopoliticidade democrática no
sentido de inscrever a natureza do esprit cosmopolite (que transcende o
particularismo regional, quer este seja definido territorialmente,
culturalmente, linguisticamente ou racialmente) e a dimensão ético-política
democrática, dialecticamente construída. Por outras palavras, com esta
expressão pretendo ressaltar, recolhendo os contributos de Daniele Archibugi e
de Paulo Freire, um campo de força global, de natureza ética, cultural e
política, construído e reconstruído em tensão dialógica, a partir de redes e
consensos entrecruzados, que não respeitam mais a distinção centro-periferia,
mas que apontam antes para outra espacialização da política e dos direitos
humanos e também para formas de redistribuição social mais globais.
2 Pese embora a crítica de a solidariedade dos cidadãos mundiais, fundada
apenas no universalismo moral dos direitos humanos, ser demasiadamente fraca
para gerar a coesão requerida para a implementação de políticas globais, como
nos diz Cheah (2006: 7).
3 Para outros autores, nomeadamente Casa-Nova (2008: 93), tão ou mais
importante do que tentar perceber o que une as diferentes culturas para tornar
possível o diálogo, é compreender o que as separa. De acordo com a mesma
autora, O desafio teórico consiste em de como, a partir da compreensão da
(in)comensurabilidade das diferenças, tornar possível a construção de diálogos
entre diferentes.