Explorando a racionalidade instrumental nas decisões da organização escolar
Décision; Rationalité instrumentale; Optimisation; Controle
Da acomodação à emancipação dos actores educativos
A passividade, a que induz o modo de racionalidade instrumental, é propagada
pela transformação dos intervenientes na escola em meros receptores de corpos
de informação enformados por determinados valores sem preocupação de
justificação, modo de assegurar os fins, e que se consubstancia na afirmação de
que os actores educativos são "consumidores passivos de conhecimento, ao
invés de negociadores do mundo nos quais trabalham e agem" (Giroux,
op.cit.: 235).
Este alto grau de formalização é sugestivo, na óptica de Hall, da
"indicação das opiniões dos responsáveis pelo processo decisório sobre os
membros organizacionais ( ) encarados como incapazes de tomarem suas próprias
decisões e exigindo um grande número de normas para orientar seu
comportamento" (1984:68) obrigando ao acontecer desta categoria. Retira-se
poder de iniciativa aos trabalhadores, porque não se lhes reconhece capacidade
decisória, relegando-a para os membros da direcção, os quais conferem à decisão
um estatuto impermeável a qualquer discussão.
A centralização das decisões retira aos professores a possibilidade de
emancipação. Só na e pela decisão poderemos constituir-nos como homens e
mulheres intervenientes, capazes de fazer parte activa no mundo a que
pertencemos ao invés de meros espectadores. Decidir é um sintoma de
emancipação, é caracterizador de um espírito inquieto na procura da liberdade
que a sua autonomia concretiza ao fazer-se sujeito da própria história. É o
cidadão activo e útil para a sociedade, não o fiel vassalo que se reduz a um
mero executante que pactua com as formas autocráticas de governos que só querem
fomentar a apatia. Só o sujeito, com espírito de iniciativa produtora, será
motivo de progresso para a sociedade, quer seja no plano das relações inter
pessoais, ou no plano económico e cultural, aspectos que traduziriam uma
revolução de âmbito global.
Para que tal objectivo se atinja é necessário questionar radicalmente o
carácter supostamente imparcial e objectivo de toda a política educativa e de
todos os processos que lhe dão origem, criticando e reflectindo sobre as razões
de tais decisões, tornando-nos criadores e autores de decisões. Decidir supõe a
intervenção dos professores e, por isso, uma concepção de governação de escola
que se exprime na participação reflexiva, crítica e activa, ou seja, que não se
limita a uma intervenção na discussão, mas ao acesso a decisões no âmbito do
governo, da organização e administração da escola que em vez de os marginalizar
os converte em sujeitos-agentes. Uma participação como "acto de ingerência
e não a atitude do espectador que se limita a assistir ou, de mais ou menos
longe, a contemplar" (Lima, 2000: 33). O que não acontecerá enquanto se
mantiver uma lógica paternalista que, em rigor, não passa de um pseudo
proteccionismo, que se justifica enquanto instrumento de subordinação pela
necessidade da presença de uma autoridade simultaneamente externa e dominadora,
ficando desculpabilizada a opressão, inviabilizando qualquer tentativa de
ultrapassar aquilo que Freire define como "consciência ingénua" e que
é reveladora de "uma certa simplicidade, tendente a um simplismo, na
interpretação dos problemas, isto é, encara um desafio de maneira simplista ou
com simplicidade. Não se aprofunda na causalidade do próprio fato"
(Freire, 2001: 40).
É uma prática que subsiste enquanto não for repelida a transferência de
responsabilidade e autoridade que ainda permite que a política educativa se
faça nos gabinetes, sem se deixar contaminar pelas decisões
"assumidas" pelos sujeitos que se encontram nas escolas contribuindo
para a sua alienação, expressão acabada de uma hegemonia cultural, que se
mantém desde o século XIX e que se foi paulatinamente consolidado ao longo dos
tempos através de uma herança centralista e burocrática7. Este facto, que tem
excluído os agentes educativos de participar na feitura das leis, tem
contribuído para que todas as tentativas de mudança, que se tentam implementar
no contexto da educação em Portugal, não sejam capazes de alterar, de modo
significativo, a conjuntura vigente. Esta política, que mantém distanciados os
educadores dos centros de decisão, tem-se revelado inoperante no que concerne à
responsabilidade social e política. Tem, isso sim, conduzido ao conformismo, à
ausência de sentido crítico, à ausência de vontade de intervir, visível em
atitudes que só deixam lugar à repetição do que está prescrito e dado como
certo, instaurando-se como meio mais eficaz para moldar os sujeitos à medida
dos interesses da classe dominante, o que vai na linha defendida pelas teorias
da reprodução.
A competição e o mérito nas práticas educativas
De acordo com alguns autores, a racionalidade instrumental, tecnocrática, tem
sustentado a competição como uma componente educativa pela confusão fomentada
entre progresso e eficiência, circunstância para se eliminarem discursos do
âmbito do poder, da política e dos valores, corroborando a natural
superioridade de uns sobre os outros e, consequentemente, permitindo que se
estabeleça a competição entre indivíduos e grupos, reproduzindo a disposição
dos mercados, como algo a preservar e a exaltar8. Os quadros de honra,
classificações, testes de inteligência, diagnósticos psíquico/pedagógicos são
alguns dos exemplos que permitem seleccionar e legitimar a exploração e as
desigualadas sociais. Tudo se faz em prol da imagem representativa do mercado
que o aluno deve assimilar e que, posteriormente, servirá como sua referência
para determinar o seu preço' no mercado de trabalho (Oliveira, 1995: 136).
De facto, a competição continua a ter um lugar nas práticas educativas
promovidas por muitos professores em diversas escolas, recolhendo para si um
estatuto que a coloca como princípio da educação pedagógica a destacar. Acolhe,
desta feita, considerações que a caracterizam como particularmente saudável, na
medida em que é apreendida como um instrumento fundamental para aumentar a
eficiência, não obstante ser considerada como um princípio que contraria a
educação humana
9
.
E se este mito ainda é caracterizador da postura dos actores da organização
escolar, ele não pode deixar de ser um reflexo, ao mesmo tempo que reflecte, o
mito do talento traduzido na ideia de um dom, na crença de uma genialidade que
não está ao alcance de todos. Ora, esta convicção, se por um lado consegue
alimentar o fenómeno da desigualdade e, paralelamente, o aparecimento de
injustiças em termos da selectividade, naturalizando os rótulos de altamente
talentoso, medianamente talentoso e destituído de talento, por outro reprime o
processo da educação no sentido da emancipação, pois, como recorda Adorno,
"o talento não se encontra previamente configurado nos homens, mas ( ) em
seu desenvolvimento, ele depende do desafio a que cada um é submetido"
(2000: 170). Nesta linha de pensamento, pode-se defender que a competição deixa
de ser nociva se entendida enquanto desafio que o educando trava consigo mesmo,
na tentativa de realizar o mais possível as suas potencialidades, efectuando-se
em termos de aperfeiçoamento educativo.
Contudo, a intenção é fazer destas componentes um meio para garantir os fins
definidos através da eliminação de interesses conflituantes que possam colidir
com interesses totalitários que são claramente os lucrativos, transformando os
interesses particulares em universais. No contexto da organização escolar, este
pseudo-consenso, localiza-se no âmbito do corpo curricular obrigatório, pré-
determinado, que legitima as desigualdades e cria a ilusão de que as escolas
são culturalmente idênticas, e num quadro de conhecimentos que aprisionam as
relações sociais ao campo desse saber escolar, reduzindo a experiência da
aprendizagem ao valor da sua exclusividade, iludindo o acesso ao conhecimento e
valorizando a banalidade, a adesão à comunicação de massas, a deferência.
Deste modo, a racionalidade instrumental, consegue constituir-se como elemento
de manipulação ao lançar para o campo da irracionalidade todas as outras
racionalidades que não se encaixem nos seus parâmetros e que embaraçam a sua
constância. Esta racionalidade, que tenta colonizar todas as outras, e
contrariamente a estas, não contempla qualquer teoria de aprendizagem que lhe
seja subjacente, forma de evitar limitações à tomada de decisões, não prevê uma
aprendizagem feita à custa de erros ou qualquer forma de espontaneidade. Vota
para o domínio da irracionalidade todas as outras lógicas que possam estar
subjacentes a qualquer comportamento decisório que seja divergente dos
princípios em que se funda.
Diríamos, a este propósito, que toda a irracionalidade mais não é que outra
forma de racionalidade suportada por outros sentidos, por outras lógicas de
acção que não têm, necessariamente, fins determinados e inalteráveis, porque
toda a ideologia que reconheça o sujeito enquanto sujeito de acção não nega que
muitas das suas finalidades se vão descobrindo na e pela acção. O que Friedberg
corrobora quando escreve: "deve-se aceitar uma visão menos intencional e
linear da acção humana. Esta não se resume aos objectivos que um indivíduo
adopta ou julga perseguir. Deixa também espaço a coincidências, ao acaso e à
descoberta" (1993: 51).
É neste enquadramento que a cultura do mérito se naturaliza e se intensifica
através dos incentivos de recompensa alicerçados em um discurso de apelo à
excelência das aprendizagens confirmada na elevação da pontuação dos alunos,
nos resultados escolares no sentido da sua quantificação, na apreensão do
conceito de sucesso e insucesso, na apresentação dos resultados das escolas
subordinadas a uma lógica orientada para a quantificação do produto final e
para a excelência como competência económica. No fundo, é o lado nem sempre
visível para todos, de uma tendência inclusa no que Lima denomina como
"Paradigma da Educação Contábil" que encerra uma panóplia de
elementos conformes a uma política mercantil em educação e que revela a
importância do "controlo da qualidade e a aferição da eficácia e da
eficiência nas organizações educativas, entre outros" (2002: 91). Quando a
aprendizagem e a formação parecem adquirir um sentido pragmático e competitivo
e a escola se instrumentaliza para fins económicos e atribui protagonismo à
educação enquanto instrumento de preparação para o trabalho, ao mesmo tempo que
promove uma luta sob o desígnio da mão-de-obra, abandona os objectivos que
incorporam os aspectos mais substantivos da perfectibilidade humana e da
própria vida. Por este motivo, o sucesso da escola passa a ser conotado com o
ajuste à economia e aos mecanismos de competitividade que aquela exige.
A qualidade tem vindo a ser confundida com um mecanismo utilizado no campo
produtivo empresarial de acordo com as exigências do mercado. Esta lógica tem
servido para intensificar as estratégias competitivas, próprias das
organizações empresariais, traduzidas numa concepção de "justiça
utilitarista e eficientista" (Estêvão, 2000:46). Cai no esquecimento que o
conceito de qualidade pode servir, não só, no sentido de diminuir mas, também,
de aumentar as desigualdades sociais, uma vez que este conceito vem sendo
vinculado a uma lógica de mercado que limita a qualidade a um problema de
custos de eficiência, que nunca tem em conta os excluídos, fazendo-nos concluir
que nem sempre se apresenta como um direito de todos, mas um privilégio
daqueles que se mostram mais capazes. Por isso, não é estranho que
"Revalorizando concepções mecanicistas das organizações e da administração
educativas, a educação contábil tende a centrar-se no cálculo e na mensuração
dos resultados (desvalorizando os processos e os resultados mais difíceis de
contabilizar), favorece a estandardização (em prejuízo da diversidade), apoia-
se em regras burocráticas e em tecnologias estáveis e rotineiras, promove a
decomposição e fragmentação dos processos educativos em unidades elementares e
mais simples, passíveis de mercadorização'" (Lima, 2002: 107). Mas é esta
a educação que conta porque pode ser avaliada transformando-se em verdadeira
técnica de gestão e de controlo da qualidade. Dimensões que não são compatíveis
com decisões reflexivas e críticas por estas estarem associadas, diz o autor, a
"um processo lento e imprevisível, ambíguo e fluído, porque não garante a
eficácia e porque, no limite, é irracional" (ibid.: 103).
Por isso, a resistência à democracia enquanto capacidade crítica, expansiva e
criadora também se concretiza, no domínio da racionalidade instrumental,
através da fragmentação das actividades escolares e da compartimentação do
saber que actua como forma de dominação e controlo. Ao fragmentar-se a
realidade em parcelas cada vez mais pequenas desvaloriza-se e evita-se a
totalidade, o que não favorece a percepção da complexidade em favor do
aprisionamento do sujeito à estreiteza da sua especialidade. Nesta medida, o
especialista, aquele que sabe muito de pouco, ao saber cada vez mais de uma
parte cada vez menor terá uma visão distorcida do todo e pode acabar por não se
reconhecer nele, o que acabará por o condicionar e moldar de acordo com os
parâmetros da classe detentora do poder. É um modo eficaz de conformar o
indivíduo porque existe como que uma desconexão dos factos com a realidade,
motivada pela opacidade da informação dando origem a uma realidade deformada
porque avulsa, e, portanto, inacessível à compreensão.
Os interesses particulares podem, com facilidade, ser vinculados através dos
currículos, dos currículos ocultos e dos processos de avaliação como
instrumentos legitimadores de uma cultura única e uniforme, ligados que se
encontram à lógica económica, impedindo o pensamento crítico e reflexivo, mas
favorecendo uma visão distorcida da educação que parece encontrar-se
subordinada a uma nova ideologia "na qual a democracia se torna um
conceito económico em vez de político e na qual a ideia de bem público balança
nas suas raízes" (Apple, 2000: 74). A ampla naturalização das políticas
económicas, firmadas no sistema educativo, perturba a percepção dos professores
que se tornam, normalmente, incapazes de constatar o elemento dominante a que a
escola está subalterna, e passam a alterar a natureza da sua formação,
acreditando que ela está ligada "à criação, estabilização e regularização
de relações de poder e autoridade" (idid.: 94).
Naturaliza-se a situação de subalternidade relativa às determinações
estabelecidas pelas instâncias superiores e declina-se qualquer experiência de
debate e de análise dos problemas que poderiam proporcionar condições de
autêntica vivência democrática. Mesmo porque a produção das políticas
educativas se tem dado sem a anuência dos que estão comprometidos,
directamente, com o trabalho educativo, o que, desde logo, diminui seriamente a
possibilidade de um diálogo crítico que favorecesse a transformação da
sociedade ao invés da adaptação ao mercado. Nesta linha, a escola é um
instrumento ao serviço do estado autoritário e da autoridade económica,
actuando de forma tutelar sobre os comportamentos no sentido de assegurar essa
ordem
10
, não permitindo que seja questionada, ao mesmo tempo que restringe o espaço
escolar ao predomínio de linguagens dominantes, eliminando o vocabulário
associado a formas criativas de gerar o saber e reduzindo o pensamento ao seu
uso instrumental.
Algumas práticas controladoras ' A conformidade formal
Este posicionamento está próximo do que se entende por cultura positivista que
se mantém e que se estende, a nível da organização escolar, aos critérios de
constituição de turmas e de organização de horários transferidos e reproduzidos
de processos solidificados, próximos de processos administrativos instituídos,
mas longe de qualquer apreensão pedagógica que sugira as reais necessidades
escolares. Estamos no cerne do formalismo, de uma preocupação apenas teórica
com os discentes. A escola cumpre a sua função reprodutora do sistema por
permitir que as pessoas se transformem em espectadores descritivos e alienados,
por não fomentar a "consciência do conflito", que possibilitaria
averiguar as pluralidades e alterar as contradições com que se deparam. Estamos
perante um confronto que se dá entre a organização da educação e aquilo a que
Sérieyx entende por "revolução da inteligência", porque a preocupação
incide muito mais sobre a estruturação de disciplinas que favorece a aquisição
passiva do conhecimento, encoraja o trabalho solitário, sobrevaloriza a
abstracção em prejuízo do concreto, que ensina um método cartesiano empobrecido
que não é capaz de lidar com a complexidade de uma situação e não é
facilitadora da integração dos conhecimentos, do desenvolvimento de espíritos
livres (1993: 60-61).
As atribuições da Inspecção Geral da Educação nas escolas têm assumido uma
orientação mecanicista de verificação dos procedimentos de ordem técnica, num
sério elogio à acção burocrática da administração. Transformada numa
fiscalização, assume um papel inquiridor sobre a capacidade de acomodação da
actividade dos professores diante das regras estabelecidas, obrigando a um agir
representativo da impessoalidade, uniformidade e rigidez, e valoriza as
soluções fragmentadas pelos procedimentos burocráticos que se apresentam como
que descontextualizadas porque não têm relação com o todo.
Neste âmbito, fica-se pela mera observância e verificação do cumprimento da
lei, de onde advém o seu carácter mais punitivo que didáctico. Assim, a
Inspecção Geral da Educação transforma-se num mecanismo de verificação segundo
o espírito previsto pela administração central, que acentua e promove
comportamentos acríticos e improdutivos, evidenciando as relações dominantes no
interior da escola em vez de zelar, enquanto intermediário, pela construção de
uma nova dinâmica de relações integradoras e práticas reformadoras que, dentro
do possível, pudessem ser capazes de minorar o problema do insucesso. A
apresentação de sugestões pedagógicas em termos de leccionação, o que
implicaria formação nesse sentido, que aferisse sobre se os professores faltam
nas suas aulas à sua função, ou seja, que estando na sala de aula não estão a
ser professores, teria maior receptividade, pois veriam na sua função um
objectivo congruente com os objectivos da educação.
Quase poderíamos afirmar que a grande maioria dos professores realizam
determinadas actividades pelo receio de serem sancionados e julgados por uma
acção inspectiva que pode aparecer inesperadamente e que tudo supervisionará, o
que traduzirá e explicará o estatuto de big brother de que goza, ao mesmo tempo
que reforça o sentido omnipresente do poder do centro.
A apreensão, que alguns negam, mas que parece existir, paralisa o professor e
inibe algum desejo que poderia ter em procurar métodos mais eficazes, adoptando
uma postura mais congruente com comportamentos previdentes e que caracteriza o
seu modus operandi. Surpreendentemente, ao professor não se exige que produza
efectivamente, que seja eficaz, que progrida em termos de métodos na tentativa
de perscrutar aquele que possa permitir a verdadeira apropriação do que se
aprende, recusando-se em assoberbar os alunos com imensa informação que deve
ser decorada mas que, em seguida, imediatamente se esquece, passando a
enfrentar a vida real com uma bagagem demasiado reduzida, mesmo ao fim de 12
anos de intensa aprendizagem. Importa mostrar que se conforma com as regras que
lhe são impostas, sendo que a sua eficácia se traduz nesse conformismo, como se
o problema residisse unicamente em demonstrar que existe uma submissão às
normas e regras que recebem. Pouco parece importar se a realidade das coisas é
completamente outra.
Resta a conformidade formal com o estabelecido e a necessidade de preparar para
os exames que se baseiam em provas individuais e limitadas no tempo,
contrariamente ao que se passa na vida real, e que transformados em método de
controlo e em verdadeiro objectivo do trabalho escolar, em vez de serem apenas
a sua verificação, inibem interrogações sobre se os conhecimentos que fornece
são duráveis ou consistentes, como se a preocupação em indagar sobre o que fica
no final do processo educativo não fizesse sentido, mesmo porque a inspecção
não o julga sobre esse prisma. Por isso, por hipótese, deixam de ponderar sobre
a possibilidade de uma outra educação que em vez de exigir que o educando
atinja certos níveis antes de obter o seu certificado, garantisse antes que só
saísse da escola após atingir certos objectivos. Se é o desenvolvimento de
competências uma das preocupações essenciais da organização escolar, não parece
que seja necessário que devam estar em relação directa com a idade ou com os
exames a serem realizados em idades particulares na medida em que os ritmos de
aprendizagem, há muito se sabe disso, se processam em tempos diferentes
12
.
Esta conjectura só tem o propósito de mostrar que a inspecção, à semelhança de
outras formas de controlo, não encoraja a um pensamento ousado que se posicione
perante o fundamental e não se renda a detalhes, que reflicta as condições de
um pensar que confira prioridade aos porquês, ou ao porque não, em prejuízo do
quê e do como, ou seja, que passe de uma racionalidade instrumental para uma
racionalidade substantiva e emancipatória.
A acção da inspecção, em termos globais, só verifica a conformidade formal do
inspeccionado com os modelos pré-estabelecidos, não tem em conta a verificação
de longo prazo. Daí que a atenção incida muito mais sobre os resultados formais
que materiais. É caso para dizer que o uso contínuo deste tipo de poder
desencoraja, em muito, iniciativas fundadas na intuição, que aqui adquire um
sentido próximo do determinado por Stacey, por implicar trabalho árduo, que
obriga a que os sujeitos se mantenham em permanente contacto com a realidade e
que dispensem atenção aos factos observados com o objectivo de encontrarem
novas alternativas levando-os a não restringirem a sua acção às formas
existentes de fazer as coisas; sentido que muito se afasta de uma
conceptualização de intuição como um súbito "golpe de génio" (1995:
381).
Na organização escolar também a avaliação se mantém à custa da padronização,
condição necessária para que ela se realize, mas descurando que na escola há
aspectos que não podem ser quantificáveis, esquecendo-se que as escolas têm
diferenças, quanto mais não seja pelo contexto geográfico em que se situam, o
que não é concordante com uma visão unificadora da realidade e com uma
perspectiva cultural comum. A avaliação tem a desditosa capacidade para criar
ilusões quanto à crença na igualdade, embora seja a primeira a legitimar
desigualdades. A alienação, de acordo com a análise realizada por Hextall e
Sarup, mais não é que o resultado de um processo de avaliação que ao
estabelecer um valor como representativo de determinada tarefa está a
determinar um "valor de troca", que se compara com o de outros e que
se transmuta em classificações ou certificados, retirando ao trabalho realizado
a possibilidade de ser apreendido pelo sujeito que o realizou (1977: 158).
Obviamente que esta apreciação contaria a ideia de que a avaliação contribui
para a socialização dos actores educativos, funcionando como um mecanismo que
prepara para as exigências dos futuros papéis que cada um desempenhará na vida
real. Com efeito, de acordo com Enguita, "En la escuela se aprende a estar
constantemente en trance de ser medido, classificado y etiquetado; a que todas
nuestras acciones y omisiones sea susceptibles de ser incorporadas a nuestro
registo personal; a aceptar ser objeto de avaluación y incluso a desearlo"
(1990: 228).
Um desejo que reflecte o crescimento e a naturalização de um sentimento
competitivo, que converte a classificação num factor decisivo12 enquanto
instrumento diferenciador de êxito, princípios que legitimam as perspectivas
que apoiam a ideologia do individualismo e nos levam a concluir a existência
"de conexões bem reais entre a economia e a actividade de classificação e
selecção realizada pela educação" (Apple, 1989:48). A verdade, é que a
avaliação vai conquistando relevo à medida que a ideia de "mercado
educacional" ganha protagonismo, é a ela que se recorre enquanto "a
market signal' ' a means by which the educational performance of teachers and
schools, as well as students, can be judged" (Willis, 1992: 205).
Resumir a avaliação a uma técnica de medição, e excluir a dimensão política e
ideológica, é um posicionamento que não é capaz de a reconhecer enquanto
actividade política, é um posicionamento que negligencia a importância de,
utilizando as palavras de Afonso, "verificar a que interesses serve e como
é que esses interesses são representados ou respeitados" (1999:52). Porém,
a avaliação não é um processo negativo em si mesmo, dependerá sempre do
interesse que serve. Por isso, não podemos descurar a sua importância, enquanto
processo pedagógico utilizado na gestão, quando influencia as aprendizagens e
fornece ao professor informações relevantes sobre a sua actuação, enquanto
profissional, e sobre os métodos pedagógicos que utiliza.
A padronização curricular, os critérios de avaliação e a sua assumida
contabilidade, os projectos educativos, consolidados como actividades de
planificação, servem os propósitos de uma decisão mais do âmbito do conformismo
que do questionamento, ao valorizar a dimensão técnica em detrimento da
reflexiva. Depreende-se que muitas das decisões que ocorrem em contexto escolar
têm como suporte uma racionalidade que obedece à lógica do mercado, como
corrobora Illich quando escreve que "o resultado do processo de produção
curricular assemelha-se ao de um qualquer processo mercadológico moderno. É uma
embalagem de significados planejados, um pacote de valores, um bem de consumo
cuja propaganda dirigida' faz com que se torne vendável a um número
suficientemente grande de pessoas para justificar o custo de produção"
(1976: 79).
A racionalidade instrumental é a concretização da hegemonia da cultura
dominante, pois o objectivo é educar para a adaptação e reprodução das
estruturas sociais como garante do próprio sistema, fazendo do sujeito um mero
espectador de tudo o que vai acontecendo em seu redor.
Certo, é que a este modo de racionalidade, altamente formal, baseada na lógica
de relações entre meios e fins, nem sempre produz os seus frutos. As
consequências imprevistas, que resultaram da sua aplicação, levam-nos a
concluir que nem sempre a solução formal que apresenta é capaz de tudo prever e
regulamentar, denunciando o seu carácter falível.
Notas
1 Riscos que podem ultrapassar a esfera factual. Qualquer decisão contém um
grau diferenciado de desconforto muitas vezes com origem no empenhamento
emocional que a mesma acarretou (Crozier, 1983:65)
2 Peso que pode resultar numa espécie de paralisia perante a acção quando os
potenciais decisores se debruçam em profundidade sobre as situações decisórias
e su propia lucidez les hace advertir que les faltan elementos que ellos
consideran importantes para tomar la decisión. ( ) llegan a posiciones de
permanente inhibición y de no compromiso con lo real. Es lo que constatamos
frecuentemente en los que se refugian en su estatuto de intelectuales puros
(Lara, 1991:22).
3 Conforme refere Lara: Esa mezcla de poder y de riesgo que implica la
actividad de decidir permanentemente es algo que fascina a algunas personas,
como un fruto agridulce, de sabor ambiguo, pero fuerte (ibid.: 23).
4 A técnica' de uma ação significa para nós a suma importância dos meios
empregados, em oposição ao sentido ou fim pelo qual, em última instância se
orienta (in concreto); a técnica racional' significa uma aplicação de meios
que consciente e planejadamente está orientada pela experiência e reflexão e,
em seu máximo de racionalidade, pelo pensamento científico (Weber, 1991: 38)
5 A consideração racional de uma pessoa sobre se determinada acção é
proveitosa ou não para determinados interesses dados, em vista das
consequências a serem esperadas, e a decisão resultantes são coisas cuja
compreensão nem por um fio é facilitada por considerações psicológicas (ibid.:
12).
6 [ ] numa escola, as matérias seriam os alunos, os materiais didácticos,
os livros ( ) a escola é uma fábrica, com linhas de produção empenhadas em
fabricar um certo número de crianças idênticas, todas com características
comuns (Cortis, 1980: 138-139).
7 Com efeito, durante a apresentação dos trabalhos levados a cabo pela CRSE
e da discussão da LBSE, os professores, apesar do epíteto de agentes
privilegiados na reforma, só seriam chamados quando já pouco havia para
decidir, sendo remetida a sua participação para a fase de execução, situação
que favoreceu a desmobilização. Como refere Nóvoa, os professores, enquanto
corpo profissional, têm tido uma participação reduzida na reforma do sistema
educativo português; os grupos políticos' e os experts pedagógicos' têm
liderado este movimento acentuando o fosso que separa os actores dos decisores
(1992: 83).
8 Como lembram Baudelot e Establet: L'émulation et le culte de la
compétition représentent déjà à l'intérieur de l'école la concurrence que règle
le marché du travail (1971: 273).
9 É necessário, adverte Adorno, eliminar os mitos que o próprio sistema
educativo constrói na tentativa de garantir o princípio da igualdade e da
justiça na sociedade como ideário de democracia. (2000: 161)
10 Controlo, eficiência, exploração da natureza, tecnologia avançada,
progresso, produtividade, hierarquia e outros, são valores de tal forma
naturalizados que raramente são alvos de uma análise crítica. A inexistência de
um carácter problematizador poderá produzir um efeito de desordem entre o
interesse administrativo e o interesse geral adulterado pelos interesses
dominantes. (Alvesson, 1993: 46-47).
11 É curiosa a justificação de Handy sobre o limite de idade. Faz notar o
autor que: Só pode ser por razões de conveniência administrativa que as
escolas, de todas as nossas instituições, continuam a ser as mais ligadas à
idade. O efeito é fazer metade dos nossos jovens sentirem que são fracassos
(1994: 194).
12 A este propósito Iturra recorda-nos que a entrada na escola dissocia o
indivíduo do seu contexto, em particular quando o isenta da prática de
construir relações em base emotiva, para as construir em base competitiva cujo
salário é a nota (1990: 48).