Estado, Igreja e Educação: O Mundo Ibero-Americano nos Séculos XIX e XX
CARVALHO, Carlos Henriques de & NETO, Wenceslau Gonçalves (Orgs.) (2010).
Estado, Igreja e Educação. O Mundo Ibero-Americano nos Séculos XIX e XX.
Campinas, SP: Editora Alínea.
José António Moreno Afonso
Universidade do Minho
O inquérito sócio-histórico que a presente publicação traduz relaciona-se com
os itinerários de construção, em diferentes contextos sociais e políticos, das
relações entre poderes religiosos (Igreja) e poderes seculares (Estado). Não
pretende reconstituir a(s) história(s) desse processo, mas sinaliza com
pertinência a complexidade, os paradoxos e as dinâmicas patentes na construção
de sociedades democráticas e liberais. Recusando quaisquer pressupostos
teleológicos, vai sugerindo como se foi processando a paulatina compaginação de
duas culturas em sociedades europeias (Portugal e Espanha) e em sociedades
ibero-americanas (Brasil, Chile, Perú e Argentina), desvendando equívocos,
caraterizando os mecanismos profundos da vida social e das relações com a
realidade e identificando as relações de dominação que fazem a sociedade. As
análises permitem a compreensão das particulares articulações entre o tempo
longo da modernização (na sua pluridimensionalidade) e o tempo curto de
emblemáticas mobilizações radicais, quer se situem num registo restauracionista
de uma ordem imobilista ou ancestral, quer tenham um recorte radical e
transcendental, e possibilitam também indagar os modos como as sociedades foram
temperando as derivas na génese de um modus vivendi novo que concilia as duas
fontes do poder ' a secular e a sagrada ', ou seja: uma que se legitima no
sufrágio e a outra que deriva diretamente do sagrado.
Este processo tem subjacente a separação dos poderes e os princípios da
liberdade e da igualdade, o que significa a instauração da laicidade e da
democracia, reconhecendo-se a legitimidade social da religião e o pluralismo
dos cultos num contexto de neutralidade e de separação, ou, de forma mais
abrangente, num quadro de secularização. A organização da vida em comum no
âmbito da disseminação dos elementos de laicidade origina combinatórias
diferentes com a secularização (processo de distanciamento cultural com o
sagrado). A educação (significando escola pública) é por excelência o local da
dialética entre o jurídico e o cultural, ou de confronto entre as duas
verdades'. A neutralidade é, portanto, condição essencial para se reorganizarem
as dimensões coletivas (religiosas e sociais) do viver em comum.
A revolução simbólica pressupõe desenhar os territórios da res publica
objetivando a coesão social e homogeneidade cívica através de um meio efetivo
de socialização: a educação. É um projeto nacional que se ergue elaborando uma
nova cultura, erigindo sociabilidades distintas e criando redes simbólicas
modernas. As reações da hierarquia eclesiástica fizeram-se sentir através da
manutenção do status quo ante, especialmente reivindicando a ascendência
secular sobre a sociedade, o que, no limite, coincidia com uma pretensa
identidade nacional. Esta cultura é ela própria estribada num sistema
educativo. A rivalidade (ou a dicotomia) com um sistema educativo público é uma
realidade que coexiste na génese dos Estados modernos ' pluriculturais, civis e
aconfessionais. As sociedades mudam, emergem novos atores (movimentos sociais)
e as hierarquias cristalizam, mas também há rearticulações, imitações,
concorrências, dependências e efeitos de difusão, que vão permitindo compaginar
a homogeneidade com a heterogeneidade, assim como estabelecer um desenho
constitucional capaz de encastrar os diferentes legados intelectuais e as
várias genealogias teleológicas e responder, portanto, aos problemas simbólicos
e às dinâmicas sociais da modernização implícitas nos processos de construção
da esfera pública e da mudança dos valores políticos.
É deste mapa social (em permanente reactualização) que o livro nos convoca, com
cartografias muito concretas onde estão patentes as relações entre os países
colonizadores (e defensores da Contra-Reforma) e a vivência da independência
das antigas colónias, de recorte Republicano e neutras em matéria religiosa.
Colónias que viveram a independência com vários ritmos, sendo de destacar um
primeiro momento (até cerca de 1830), uma assunção de não enfrentar a
heterogeneidade, assumindo-se as repúblicas nascentes como integradas numa
religião e moral católicas, passando-se progressivamente (segundo momento) para
a defesa de uma identidade étnica e cultural, que pressupôs uma reconfiguração
social baseada num afrontamento contra as corporações (igreja, exército, etc.).
Os anos de 1870 marcam um momento alto da mudança estrutural das sociedades.
Estas nações continuam, no entanto, marcadas pelo peso excessivo das economias
e culturas locais, que são forças centrífugas contrárias aos projetos de
unidade nacional e de resistência à lei, à institucionalização e à
modernização, e são forças centrípetas da ordem corporativa do antigo regime
colonial. É neste contexto de pluralidade geolinguística, e de heterogeneidade
étnica, regional, económica e cultural, que se vai erigir um Estado moderno.
Os países colonizadores passam por momentos dilemáticos no seu processo de
construção simbólica da pátria. São de enfatizar, ainda, as pressões sócio-
simbólicas face à aconfessionalidade do Estado, como também as resistências à
modernização. Por último, nota-se que as forças sociais se vão reconfigurando e
criando novas sociabilidades no âmbito da secularização, não se isentando neste
processo as reações da Igreja Católica, que passaram por diferentes estratégias
(semanticamente conotadas com recristianização), nem o modo como elas
reivindicaram a sua independência, que, de forma muito particular, vai
tonificando vivências muito específicas do catolicismo (e, quiçá, da
incorporação de diferentes tradições eclesiológicas) que o colocam tanto refém
de governos autoritários ou mentor indelével da intransigência e do
totalitarismo, como voz contra a opressão.
Em vários tempos e em diferentes antropologias, mas onde subjaz a constatação
histórica e sociológica de que o catolicismo figura como religião
tendencialmente maioritária, os presentes textos aportam contributos
significativos do modo como paulatinamente se abandona o tempo do religioso, se
instalam ruturas e sociabilidades não universais, e se processa a construção do
tempo civil e a instauração de imaginários e sociabilidades políticas, tal não
significando que o religioso se tenha dissolvido na modernização, nem que a
secularização não tenha sido conduzida a extremos: a laicização. São processos
históricos captados na sua essência e que estão indelevelmente ancorados na
memória das sociedades e que a história reabilita como momentos de compreensão
das lógicas e racionalidades que presidem quer à sua constituição, quer ao seu
funcionamento.
A educação é, portanto, o amplexo onde se confrontam posições políticas, ora
religiosas, ora seculares, eminentemente centradas num objetivo de união, mas
polarizadas por lógicas diferentes. Os vários textos são, assim, um reflexo de
como se foi operando a conciliação entre religião e moral num quadro de
diferenciação e pluralidade, não obstante os ritmos de retrocesso que em
algumas sociedades se patenteiam, em termos da ordem política. Por certo, estes
também são momentos a ser captados, justamente para se perceber como a retórica
da universalidade dimanada do religioso claudica face a um exacerbado
patriotismo civil, ou como a autonomia dos poderes religioso e secular não se
cumpriu nos seus postulados essenciais, significando a incompletude do processo
de secularização porque os seus fins (liberdade e igualdade) não se articularam
com os meios (neutralidade e a separação), denotando-se, então, os frágeis
equilíbrios ' e as persistentes dicotomias ' na formação das sociedades
democráticas, para além de alertar que a dialética entre rutura e
reconfiguração é um processo que se declina de forma múltipla, quer
socialmente, quer simbolicamente.
Sobre a realidade brasileira são apresentados quatro estudos que analisam sobre
diversos ângulos o processo histórico das relações Igreja-Estado. Um primeiro,
de Carlos Roberto Jamil Cury ' Ensino Religioso. Retrato histórico de uma
polémica (pp. 11-50) ', situa-se num período longo, percorrendo um tempo desde
a Independência até aos anos finais do século XX. O autor capta as modulações
no campo jurídico e, descendo ao nível das realidades dos Estados, mostra
diferentes sensibilidades regionais (as Constituições Federais), como analisa
com finura as oscilações políticas ' desde uns primeiros momentos de pendor
laicista até à discriminação positiva da Igreja Católica, passando pela
ditadura militar. A sua análise tem presente o processo de secularização e as
oscilações entre a manutenção e a flexibilização do ensino religioso.
O segundo estudo, de Ivan A. Manoel ' Os Colégios das Freiras Francesas'. Um
exemplo das relações entre Igreja Católica e Estado no Brasil (1859-1919) (pp.
51-72) ', situado entre 1859 e 1919 no Estado de S. Paulo, elucida sobre os
processos usados pela oligarquia paulista para fomentar a educação das suas
filhas. A estratégia passou por apoiar um sistema de escolas particulares
protagonizado pelas Irmãs de São José de Chamberry e que contou com o apoio
tácito da Igreja Católica.
Um terceiro estudo, de Wenceslau Gonçalves Neto ' A Secularização da Sociedade
Brasileira. Tensões e conflitos em Minas Gerais nos primórdios da República
(pp. 199-222) ', localiza-se em Minas Gerais nos tempos subsequentes à
implantação da República. A conclusão do autor, com base na análise da imprensa
regional e das atas das câmaras, vai no sentido de enfatizar a adoção tácita,
por parte da Igreja Católica, das políticas governamentais, sem provocar
qualquer rutura. Tal, no entanto, não evitou conflitos intensos em torno do
ensino religioso, da laicização do espaço público e do casamento civil. Como
sublinha o autor, alcançou-se um patamar civilizado de convivência e a Igreja
criou estratégias de manutenção do prestígio e do poder de intervenção perante
a sociedade, bem como de apropriação do ensino secundário.
O quarto estudo, de Arthur Cesar Isaía ' Educação das Elites e Formação de um
Laicado Militante no Rio Grande do Sul (pp. 73-89) ', refere-se à emergência e
consolidação do laicado católico e ao foco na cristianização das elites. A
Região de Rio Grande do Sul, entre os anos 20 e 40 do século XX, é objeto de
estudo. Carateriza as relações económicas e de poder no espaço e define o
governo como não anticlerical. A progressiva ação dos jesuítas, dos irmãos
maristas e dos franciscanos capuchinhos configura um ethos de catolicismo
militante que culmina com a fundação da Ação Católica. No entanto, por volta
dos anos 30, verifica-se uma tendência oriunda destas elites, com forte sentido
crítico, que propõe cristianizar o capitalismo, originando conflitos com a
hierarquia da Igreja Católica.
Sobre Espanha, dois estudos vincam a íntima relação entre a Igreja Católica e o
poder político, que sobreviveu a todas as alterações democráticas e, inclusive,
teve influência decisiva na reação fascista. Assim, o primeiro texto, de Ana
Maria Badanelli Rubio ' La enseñanza de la Religión en los Manuales Escolares
Españoles. Un estúdio a través de sus imagéns ' 1900-1970 (pp. 91-116) ',
analisa, por via do estudo dos manuais escolares, a temperã e longa
persistência do ensino da Religião na escola pública. O segundo, de Manuel
Ferraz Lorenzo ' La Educación como Símbolo de Poder para la Iglesia en España
durante la Etapa Franquista. La labor pastoral y pastoril de Fray Albino G.
Menéndez-Reigado, O bispo de Tenerife (1925-1946) (pp. 117-141) ', reporta-nos
ao eclodir da Guerra Civil e, com detalhe, vai elucidando sobre a violenta
reação da Igreja Católica à República, destacando o papel do Bispo de Tenerife
na emergência de uma cruzada a favor da ordem e da paz. É notória a
utilização da educação como meio de mobilização das hostes antirrepublicanas.
Sobre Portugal, quatro estudos vão-nos introduzindo nos contextos pré-
república, 1ª República e Estado Novo. Um primeiro texto, de Rita Mendonça
Leite ' O papel do Ensino na Dinâmica Evangélica Portuguesa Oitocentista (pp.
245-263) ', destaca, na ambiência oitocentista, a emergência dos protestantes
como atores coletivos de inequívoco recorte democrático que, pela sua
missionação e pelas iniciativas sociais e educativas, se demonstraram elementos
fundamentais na luta pela pluralidade e liberdade de cultos. O segundo texto,
de Paulo Bruno Pereira Paiva Alves ' As Relações Estado-Igreja e a Questão do
Ensino na Primeira República (1910-1926) (pp. 223-243) ', é uma incisiva
viagem à 1ª República que, com finura, vai fazendo um repertório do
argumentário da Igreja Católica face à Lei da Separação, bem como detalha as
posições dos republicanos nas suas várias matizações. A questão educativa é o
cerne da discussão que o autor estabelece.
Os dois outros textos são uma entrada no Estado Novo e pretendem captar as
tensões e divergências que vão germinando em alguns setores da Igreja
Católica face ao poder secular. A premissa partilhada pelos autores é que o
salazarismo defendeu com veemência o poder do Estado face a quaisquer outros
poderes, incluindo a Igreja, apesar de que o Estado e a Igreja Católica
estiveram juntos na genealogia do Estado Novo. Em ambos os textos o objeto de
estudo é a esfera educacional. Assim, o primeiro texto, de Carlos Henrique de
Carvalho ' A Igreja Católica no Contexto do Estado Novo Português. As tensões
no campo político-educacional (1940 a 1965) (p. 143-180) ', vai-nos
introduzindo nas fissuras que se podem observar na hierarquia da Igreja
Católica e que tiveram a sua máxima expressão com D. António Ferreira Gomes.
Mas, socorrendo-se da imprensa católica (Brotéria e Novidades), pode-se ir
entendendo a incomodidade da Igreja Católica face à questão da liberdade de
ensino e, muito particularmente, de as famílias poderem escolher o tipo de
ensino. É, justamente, este problema que o segundo texto, de Joaquim António de
Sousa Pintassilgo ' A Igreja, Estado e Família no Debate sobre o Ensino
Particular em Portugal (Meados do século XX) (p. 181-189) ', capta, através do
debate parlamentar surgido na Assembleia Nacional aquando da feitura da Lei de
Bases do Ensino Particular. O autor sintetiza o que estava em jogo: a linha
divisória que coloca, de um lado, os partidários da razão do Estado e da sua
lógica centralizadora e, do outro, os defensores de uma situação de privilégio
para a Igreja, cuja legitimidade era, simultaneamente, histórica e religiosa.
Também os dois textos partilham a tensão que presidiu à assinatura da
Concordata de 1940.
Os textos sobre o Chile, o Perú e a Argentina são antecedidos de um denso
estudo de Héctor Omar Noejovich Ch ' Iglesia y Estado en Hispanoamerica. Sus
origens (pp. 301-317) ' sobre as origens da Igreja Católica nos países sul-
americanos de fala castelhana, nomeadamente o estabelecimento dos Patronatos
Reais. Esta instituição, marcadamente regalista, unia à dimensão de
evangelização a dimensão essencialmente política de assegurar a
governabilidade das colónias, ou, como diz o autor: legitimação jurídica do
poder político hierarquizado, cujo vértice superior é a Santa Sé.
Sobre o Chile, Jaime Caiceo Escudero ' Presencias de la Iglesia y el Estado
Chileno Republicano en el Sistema Educativo (pp. 265-299) ' destaca a lenta
consolidação de um ensino público surgido após a Independência e as lutas
surgidas na 2ª metade do séc. XIX face às leis laicas. O autor enfatiza que
no período colonial a educação era assegurada pelas congregações religiosas,
marcando as propostas liberais sobre o ensino primário um momento de viragem,
já que se constituiu como imperativo constitucional. Mesmo sendo um Estado
confessional, a liberdade de ensino prevaleceu. Os anos de 1880 marcam uma
tensão com a Igreja Católica, mas a situação tende a diluir-se e os conflitos
abrandam. O autor ilustra este momento pela receção que o pensamento de Dewey
teve, quer nos círculos católicos, quer nos círculos laicos. A oferta educativa
é feita num regime de aceitação de outras religiões, aliás, como estipula a
Constituição de 1925. Interessante neste texto é a demonstração das posições da
Igreja Católica ' a voz dos sem voz ' durante a ditadura de Pinochet.
Sobre o Perú, Fernando Armas Asín ' Iglesia Católica y Estado. Armonías y
desarmonias en la construcción educativa nacional (Perú, 1820-2009) (p. 319-
336) ' enfatiza (como no anterior texto) o papel, no período colonial, das
congregações, assim como o arranque de um sistema público de educação, pós-
Independência, em que a influência do método de Lancaster está patente. Esta
constatação vai permitir ao autor destacar a diversidade religiosa (quer as
andinas, quer as amazónicas, quer também a presença dos protestantes) como um
dos elementos que permitiram a manutenção de um clima de tolerância religiosa,
assim como a prudência com que a Igreja Católica foi atuando, entendendo muito
bem as recomposições das relações Igreja-Estado. O autor destaca ainda a
dilemática reconstrução nacional e o modo como tal se refletiu no campo do
ensino. Em 1905 dá-se uma revolução no ensino primário, que contou com a
assessoria norte-americana. Outra nota que o autor sublinha é a diversidade
religiosa que, só em 1933, encontra expressão constitucional ao liquidar-se
juridicamente a confessionalidade estatal.
Finalmente, sobre a Argentina, Francisco Muscará ' Estado, Iglesia y Educación
en Argentina (ss. XIX y XX) (pp. 337-372) ' também estabelece cronologias
semelhantes às dos países acima referidos, nomeadamente o estabelecimento, em
1884, da educação primária obrigatória, gratuita e laica. O autor aflora os
conflitos, entre os vários setores liberais, aquando da feitura da
Constituição, cuja inspiração deve muito ao modelo norte-americano, como também
destaca as posições de confronto por parte da Igreja Católica, além de
pontualizar a atuação muito tácita dos grupos de protestantes. Tal teve
tradução na assunção do estabelecimento de um ensino neutro e na formação de
escolas laicas e integrais por parte dos estrangeiros. Contudo, não se
anularam as reações da Igreja face à pretensa monopolização, por parte do
Estado, da oferta educativa. A deambulação por um período longo da história da
Argentina permite ao autor concluir que o pluralismo escolar foi a melhor
resposta ao pluralismo cultural.
As conclusões pertinentes que os estudos refletem situam-se como hipóteses para
futuras sondagens. A historiografia da educação está a construir um objeto de
investigação que permitirá compreender que a questão educativa é o cerne dos
projetos de sociedades democráticas e laicas, nos seus afrontamentos e nas suas
utopias.
Centro de Investigação em Educação
Instituto de Educação
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