Para uma ideia de pedagogia teatral: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade,
multiplicidade
Ao Adolfo Gutkin
Em 1988, foi publicado um livro em que se dava a conhecer o texto de cinco de
seis conferências que Italo Calvino tinha vindo a preparar para serem
apresentadas na Universidade de Harvard. Como se sabe, a morte de Calvino
impediu a realização desse conjunto de conferências ' desconhecendo-se o que
pretenderia com a última, sobre a "consistência" (Calvino, 1993). Nove anos
depois, Margarida Vieira Mendes publicou um ensaio muito instigante em que
aplicava, já não à literatura mas ao seu ensino, as cinco propriedades que
titulavam as conferências conhecidas de Calvino (Mendes, 1997). Ambos os textos
marcaram fortemente o meu percurso: o primeiro, porque iluminou
irreversivelmente a relação muito estreita que, desde a infância, mantenho com
a literatura; o segundo, porque não só inspirou decisivamente a forma como
passei a exercer a docência enquanto professor de português (no Ensino
Secundário) e de literatura (na Universidade), mas também porque me desafiou a
aprofundar as propostas de Margarida Vieira Mendes na atividade de investigação
que desenvolvi no âmbito da didática da literatura.
O ensaio que a seguir apresento resulta de um exercício de apropriação das
cinco propriedades da literatura de Italo Calvino, agora aplicadas a uma ideia
de pedagogia teatral construída a partir da experiência adquirida na lecionação
da disciplina de Oficina de Teatro do mestrado abaixo identificado. E, tal como
Margarida Vieira Mendes, decidi excluir a qualidade da "consistência", sobre a
qual se desconhece o que Italo Calvino iria dizer. Por isso, a reflexão que
proponho incidirá sobre cinco propriedades essenciais do ensino e da
aprendizagem das práticas teatrais: a leveza, a rapidez, a exatidão, a
visibilidade e a multiplicidade. E porque a minha experiência profissional se
circunscreve ao ensino do teatro (e não da expressão dramática) a adultos sem
formação teatral prévia que não desejam, necessariamente, vir a ser atores,
ater-me-ei a esse modelo em todas as minhas considerações: os alunos de que
falarei serão sempre esses. Trata-se dos alunos da especialização em Teatro e
Intervenção Social e Cultural do mestrado em Comunicação, Cultura e Artes
(Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve), cuja
finalidade é a de proporcionar uma "visita guiada" a um método teatral
inspirado nas escolhas e na prática de Manuela de Freitas, atriz portuguesa que
foi discípula de Fernando Amado e Adolfo Gutkin (v. Fadda & Cintra, 2004) e
de quem eu próprio fui discípulo, conforme conto no relatório que submeti à
Universidade do Algarve para a obtenção do título de agregado (Branco, 2011b,
pp. v-ix).
Leveza
Tal como Calvino (1993), assumirei que não posso referir-me à leveza sem
recorrer à noção de "peso" (p. 17). Por isso, começo por estabelecer que a
subtração de peso é uma das finalidades pedagógicas principais da aula de
práticas teatrais.
Tornarmo-nos adultos implica aprendermos a conviver, de forma cada vez mais
eficaz, com um conjunto de convenções destinadas à nossa plena integração na
vida social, nas suas várias dimensões. Um dos aspetos mais relevantes dessa
aprendizagem consiste em sabermos adequar o nosso comportamento ao contexto
público, fortemente regulado e pouco recetivo à expressão individual de emoções
e sensações extremas. Pelo contrário, o padrão de comportamento comummente
considerado adequado é aquele que nos aconselha, em público, à expressão
individual moderada do que os acontecimentos, as pessoas, as coisas provocam em
nós. Quer isto dizer que, para sermos aceites em sociedade, temos de aprender a
controlar impulsos e emoções que, se não fossem contidos, nos levariam a dizer
ou a agir em dissonância com os padrões vigentes: por exemplo, em
circunstâncias normais, não faz parte da norma gritar muito alto ou chorar
desesperadamente; deitarmo-nos no passeio para dormir; fazermos amor com a
pessoa amada na rua; exprimirmos livremente a ira que uma reação ou um
acontecimento provoca em nós; etc.
Essa aprendizagem, que cada um concretiza à sua maneira, vai provocando níveis
diferenciados de autocensura, cujo governo é, segundo as teorias psicanalíticas
de base freudiana, atribuído ao superego, que assim pode ser definido como a
instância individual responsável pela assimilação das normas do grupo social a
que pertencemos (Freud, 1973). Entre outros aspetos, o processo de socialização
sumariamente descrito vai fazendo com que progressivamente nos esqueçamos de
que "o nosso corpo é um animal", conforme afirma Grotowski (cit. por Richards,
1995, p. 66) ' o que se traduz em perda progressiva da organicidade, por ele
definida como capacidade de "viver em harmonia com as leis naturais, mas num
nível primário" (Richards, 1995, p. 66, trad. minha).
O professor de práticas teatrais que não tenha uma forte consciência desta
realidade não estará preparado para cumprir uma das suas missões mais
importantes: a de ajudar os seus alunos a libertar-se das camadas de censura
acumuladas ao longo da vida ' porque uma das capacidades em que todos os
adultos são peritos mais ou menos competentes é a do autocontrolo em contexto
social público. Impõe-se, contudo, um princípio deontológico àquela demanda do
professor: para poder interferir com esses mecanismos autoprotetores, deverá
ter uma elevada consciência do seu próprio travestismo social. Isso implica que
não se coloque num plano superior ao dos alunos: o professor de teatro não é
aquele que se libertou das amarras que condicionam a sua expressão orgânica,
mas tão-somente aquele que, graças à autoanálise proporcionada pela
experimentação artística, conquistou uma consciência mais nítida e informada da
miríade de atos inorgânicos que produz nos vários contextos em que, tal como os
alunos, é um ser social publicamente exposto. A base desta pedagogia teatral é,
assim, a frase-chave "Eu sou o outro" ' que também é o nome de um exercício
ensinado e praticado nas minhas aulas e que já tive a oportunidade de descrever
sumariamente (cf. Branco, 2011a, p. 32).
Se aceitarmos que a autocensura a que me referi provoca, em contextos de
exposição pública, elevados níveis de auto-ocultação dos indivíduos, então
poderemos também considerar que o teatro é, dada a natureza específica das suas
circunstâncias de realização, uma das atividades humanas mais capazes de
potenciar aqueles mecanismos autodefensivos. Talvez por isso o debate sobre se
o ator se revela através da personagem ou se, pelo contrário, se esconde por
detrás dela seja tão intrínseco à própria arte. E podemos afirmar que, nesta
matéria, os atores de todos os tempos se dividem em dois campos: aqueles que
veem na personagem um veículo da revelação pessoal ficcionada, como Eleonora
Duse ou Luís Miguel Cintra (cf., respetivamente, Duse, 1959, p. 467, e Serôdio,
2001, p. 216); e aqueles que rejeitam cabalmente essa possibilidade, porque,
pelo contrário, encaram a personagem enquanto constructo racional e consciente
que nada revela da personalidade mais profunda do ator que a desempenha, como
Benoît Coquelin ou David Mamet (cf., respetivamente, Coquelin, 1880, pp. 23-24,
e Mamet, 1998, p. 9).
Quer isto dizer que os problemas suscitados pelo autocontrolo pessoal só são
matéria de reflexão relevante para uma pedagogia teatral defensora de uma visão
do ator que se revela através da personagem, enraizada numa matriz
"stanislavskiana", já que no outro caso se tratará mais do ensino de um método
que possibilite ao aluno a simulação (e, por isso mesmo, também altamente
controlada) das expressões humanas. Sendo a minha conceção de teatro, de ator e
de personagem coincidente com a primeira das duas, em função das escolhas que
fiz enquanto ator, por adesão ao método teatral a que me referi na introdução,
passo, então, à questão pedagógica a ela inerente.
Elegi como tarefa primordial do professor de práticas teatrais a subtração de
peso. Não se trata, apenas, de ajudar os alunos a reencontrarem níveis elevados
da sua organicidade, num contexto social particular. Não. É que, em contexto
público, a expressão individual governada pelos padrões morais, religiosos,
culturais que a ele se apliquem não tem outro remédio senão recorrer amiúde a
estereótipos e a clichés: os primeiros, porque permitem a partilha de crenças
comuns, instituindo sentimentos de pertença; os segundos, porque, ainda que
vazios, são códigos altamente económicos na comunicação do tipo fast food.
Passo a exemplificar.
A Maria está no velório do pai. Estranhamente, contudo, ainda não sentiu a dor
pungente que se espera dela nessas circunstâncias. Pelo contrário, a sensação
que a acompanha desde o primeiro minuto é a de um grande alívio, até porque
acompanhou, com enorme sacrifício pessoal, o sofrimento do progenitor nos
últimos meses de vida. O que escolherá (voluntária ou mecanicamente) a Maria
tornar visível no velório? Se quiser poupar-se ao esforço que implicaria
explicar-se aos outros, mostrará, através dos clichés de todos conhecidos, os
sinais exteriores da grande tristeza que os outros esperam ver nela.
O José é um adolescente muito sensível e frágil na intimidade, mas que, na
escola, se integrou num grupo de jovens com comportamentos agressivos. Se
quiser preservar a pertença ao grupo e corresponder às expectativas, adotará
formas de vestir e atitudes públicas semelhantes às dos outros, ou seja, agirá
em conformidade com os estereótipos associados a esse grupo, em vez de se
destacar pela diferença. Este exemplo poderia aplicar-se a qualquer outro grupo
etário ou profissional: alguém imagina um avô de oitenta anos a pedir ao neto
de dezasseis que o leve com ele para a discoteca à sexta-feira à noite, mesmo
que seja esse o seu desejo íntimo?
Isto significa que aprendemos e mecanizamos convenções (estereótipos e clichés)
que nos permitem, por um lado, pertencer a grupos e, por outro, interagir com
os outros sem grande esforço: é o que todos fazemos em restaurantes, nas lojas,
na rua, no autocarro, na aula, na praia, em suma, em todos os contextos em que
estejamos expostos.
A tudo isso chamarei peso, a saber: o efeito exercido sobre o corpo e o
espírito pela força da gravidade que nos atrai para as convenções e códigos
sociais, morais, ideológicos, culturais, religiosos. A técnica teatral ao
serviço de uma pedagogia disso consciente deverá ser instrumento para a
levitação ' o que, segundo as leis da física, só pode ser obtido mediante o uso
de forças específicas capazes de contrariar as leis da gravidade.
Tomar consciência desse peso será já uma forma de subtrair peso ao peso '
operação que tornará o aluno mais leve. Deve, no entanto, o professor prever o
surgimento de um novo peso, nos alunos: o do insucesso na tarefa árdua de se
libertarem dos mecanismos de autocontrolo. Competirá ao professor estar atento
e, sempre que tal aconteça, contribuir decisivamente para a desdramatização dos
fracassos. Porque nenhum peso é melhor do que outro, na medida em que também
esse outro peso retira leveza ao aluno. O objetivo do desnudamento, na aula de
práticas teatrais, não se inscreve nos planos da moral, mas nos da técnica e da
estética, infinitamente mais leves.
Rapidez
Enquadro a presente propriedade pedagógica noutra finalidade da aula de
práticas teatrais: a de orientar os alunos na procura de "uma expressão
necessária, única, densa, concisa, memorável" (Calvino, 1993, p. 65). Nesse
contexto, acompanharei Calvino na adoção da máxima latina "Festina lente" '
oximoro que me leva a considerar que, na pedagogia teatral cujos ideais
pretendo delinear, "rapidez" não se opõe a "lentidão", mas, sim, a paralisia,
por um lado, e a hiperatividade, por outro.
Expostos publicamente e antes de começarem a compreender os mecanismos que
proporcionam a leveza, os alunos tenderão para dois comportamentos: o da
inação, a que no teatro chamamos bloqueio, e o do excesso de atividade. Deverá
o professor ter consciência de que são ambos respostas sintomáticas para a
mesma dificuldade, decorrente de perguntas que explícita ou implicitamente os
alunos se colocam, antes e durante a realização dos exercícios e jogos
praticados na aula: "O que hei de fazer? O que se espera de mim?". Ora, ser
rápido, na aula de práticas teatrais, não significa fazer muito ou
apressadamente. Não: ser rápido representa, sobretudo, aprender a eliminar o
tempo que decorre entre o nascimento de um impulso e a sua concretização.
Literalmente, um impulso é uma "força propulsora que faz mover" (Dicionário
Eletrónico da Porto Editora). No sentido figurado, ganhou o significado de
"desejo repentino que incita alguém a agir de determinada maneira, sem pensar
nas consequências". Todos nós temos impulsos e todos nós aprendemos a controlá-
los. A concretização ou eliminação dos impulsos depende, essencialmente, da
velocidade com que a consciência (ou o superego, segundo a perspetiva
freudiana) é capaz de os filtrar e reprimir, tendo em conta, essencialmente, a
previsão do seu impacto no comportamento individual: é que a atividade
principal do inconsciente é acontecer, mas a do consciente é rever ou prever.
Por isso, nos exercícios, jogos e improvisações, a rapidez artística resulta de
um combate decisivo entre dois pares de instâncias internas: o racional e o
irracional, o consciente e o inconsciente. Quando o racional e o consciente são
mais velozes, o aluno por eles subjugado paralisará ou entrará em
hiperatividade, mas, quando a corrida é vencida pelo irracional e pelo
inconsciente, começa o processo de criação.
Num dos diálogos mais belos entre Narciso e Goldmundo, protagonistas do romance
homónimo de Hermann Hesse, encontrei a seguinte fala de Narciso, dirigida ao
jovem neófito Goldmundo:
' Certamente ( ) as naturezas da tua espécie, dotadas de sentidos
fortes e apurados, naturezas de anímicos, de sonhadores, de poetas e
amorosos, são-nos quase sempre superiores, a nós intelectuais e
servidores do espírito. A vossa origem é materna. Viveis na
plenitude, foi-vos concedida a força do amor e a intensidade do
sentimento. Nós, os servidores do espírito, embora pareça às vezes
que vos guiamos e dirigimos, não vivemos na abundância, vivemos na
carência. A vós pertence-vos a opulência da vida, a suculência dos
pomos, o jardim do amor, o reino belo da arte. A vossa pátria é a
terra, a nossa é a ideia. O vosso perigo é afogar-vos no mundo dos
sentidos, o nosso é sufocarmos no espaço rarificado. Tu és artista,
eu sou pensador. Tu dormes no regaço da mãe, eu velo no deserto. O
sol brilha para mim, para ti a lua e as estrelas; tu sonhas com
raparigas, eu com rapazes (Hesse, 1981, p. 46).
Encaremos o que Narciso diz a Goldmundo no plano alegórico representativo da
relevância do irracional e do inconsciente na criação teatral. Na
caracterização que faz de si próprio e do seu discípulo, Narciso opõe,
essencialmente, o excesso do artista, que corre o risco de "se afogar no mundo
dos sentidos", à privação do pensador, que arrisca "sufocar no espaço
rarificado". Assim se compreende a última comparação: "tu sonhas com raparigas,
eu com rapazes"(trata-se do amor carnal contraposto ao amor espiritual).
Aquilo que de mais importante retenho desse excerto é a ideia de que o ator não
é governado pelo intelecto, mas pela carne e pelas pulsões físicas e oníricas
que ela é capaz de gerar. Ora, o que o professor de teatro vem propor aos
alunos é a aprendizagem de uma nova relação entre o racional e o irracional,
entre o consciente e o inconsciente, o que pode significar a inversão da
aprendizagem-padrão já realizada pelo adulto socializado: se em contexto social
público convém que o racional e o consciente sejam mais rápidos a intervir do
que o irracional e o inconsciente, durante a execução de um exercício ou de uma
improvisação exige-se o contrário. Daqui resulta novo oximoro pedagogicamente
difícil de ensinar e de aprender: o que o teatro pede ao ator (referência do
aluno da "visita guiada") é que, nos alicerces de seu ato de exposição pública,
estejam totalmente inativos os fatores que, nos padrões de comportamento
público, constrangem a expressão humana mais íntima e privada.
É aqui que convém introduzir a noção de lentidão. Estou, evidentemente, a
referir-me à lentidão pedagógica: não pode o professor de práticas teatrais
desejar ou exigir que os alunos sejam velozes a encontrar a chave libertadora
do seu irracional e do seu inconsciente. Pelo contrário, deverá contar com um
tempo de aprendizagem longo, necessário à familiarização do aluno com os
efeitos dessa dimensão individual, habitualmente obliterada ou muito reprimida
nos contextos de grande exposição pública. Se assim não fosse, seria o
professor uma espécie de violador do(s) aluno(s) ' o que também seria
deontologicamente inaceitável.
Para o professor, o problema pedagogicamente mais complexo é, contudo, o de
saber se a morosidade de um aluno em atingir a rapidez decorre de um processo
de crescimento próprio ou é apenas resultado do medo da velocidade com o que o
irracional e o inconsciente, livres do jugo da razão e do consciente, são
capazes de se exprimir, produzindo, evidentemente, níveis novos e profundos de
autocognição. A melhor forma de agir, nesse contexto, será com a determinação
amorosa e paciente da mãe-andorinha que tenta convencer o filho a perder o medo
de voar. Mas também é preciso recordar que, de tão veloz, não há tempo mais
curto e impercetível do que aquele que decorre entre o momento em que as garras
do pânico ainda estão cravadas na beira do ninho e o momento em que o jovem
pássaro dá consigo a voar: a rapidez, na aula de prática teatral, representa
também esse tempo ínfimo de decisão do aluno que, finalmente, se atira para o
abismo da sua irracionalidade e do seu inconsciente criador.
Termino, integrando as duas propriedades já descritas em duas leis da pedagogia
teatral: quanto mais leve, mais rápido; quanto mais rápido, mais leve.
Exatidão
O ponto de partida da reflexão sobre a terceira propriedade da pedagogia
teatral, a exatidão, é a seguinte passagem do texto de Calvino:
Às vezes parece-me que uma epidemia pestífera atingiu a humanidade na
faculdade que mais a caracteriza, ou seja, a linguagem, uma peste da
linguagem que se manifesta como perda da força cognitiva e de
imediatismo, como um automatismo com a tendência para nivelar a
expressão nas fórmulas mais genéricas, anónimas e abstractas, para
apagar toda a centelha que crepite do encontro das palavras com novas
circunstâncias (1993, p. 74).
Segundo o autor, essa "peste" atinge não só as palavras, mas também as imagens,
que se esvaziam da necessidade interna que as deveria gerar, e as histórias,
que se tornam "informes, casuais, confusas, e sem pés nem cabeça" (Calvino,
1993, p. 74).
Antonin Artaud também já se tinha servido da metáfora da peste, numa direção
completamente diferente da de Calvino, para reivindicar um teatro capaz de
exercer sobre as comunidades uma profunda ação libertadora do inconsciente
recalcado:
O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve ou pela morte ou
pela cura. E a peste é uma doença superior, por ser uma crise total
para além da qual nada permanece a não ser a morte ou uma purificação
extrema. Identicamente, o teatro é uma doença, porque é o equilíbrio
supremo que se não pode atingir sem destruição. O teatro convida o
espírito a alcançar um delírio que lhe exalta as energias. E
constatamos que, do ponto de vista humano, a acção do teatro, tal
como a da peste, é benéfica, pois, ao compelir os homens a verem-se
tais como são, faz com que a máscara tombe, põe a nu a mentira, o
relaxe, a baixeza, a hipocrisia deste nosso mundo; vence a inércia
asfixiante da matéria que se apodera até do mais claro testemunho dos
sentidos; e, ao revelar às colectividades humanas o seu poder
sombrio, a sua força oculta, incita-as a tomarem, em face do destino,
uma atitude superior e heróica, que nunca teriam assumido sem o
teatro (2006, p. 36).
Tanto Calvino como Artaud responsabilizam a peste pela instituição de uma
desordem, no primeiro caso negativa, no segundo positiva: negativa em Calvino,
porque desorganiza a vida, provocando elevados níveis de imprecisão da
linguagem, das imagens, das histórias; positiva em Artaud, porque destrói os
costumes, provocando um elevado nível de revitalização da humanidade. E embora
usem antiteticamente a metáfora da peste, creio que ambos o fazem com igual
exatidão, para defenderem uma visão similar da arte enquanto "batalha com a
linguagem para a transformar na linguagem das coisas, que parte das coisas e
volta para nós com toda a carga humana que tínhamos investido nelas" (Calvino,
1993, p. 93), o que implica, necessariamente, "um terrível apelo às forças que
( ) impelem o espírito para a fonte originária dos conflitos" (Artaud, 2006, p.
34).
Ambos sabem, seguramente, que a exatidão da Arte não se opõe ao caos, mas é por
ele gerada, como é contado no Génesis: "No princípio, Deus criou o céu e a
terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, e as trevas cobriam o abismo, e um
vento de Deus pairava sobre as águas" (Bíblia, 1986, Gn 1-2).
Como vimos, a finalidade do teatro é, segundo Artaud, pôr os homens a verem-se
"tais como são" ' o que em Calvino corresponde à finalidade de devolver à
linguagem a sua "necessidade interna". Dessa dupla visão resultam duas
aplicações distintas da exatidão, na aula de práticas teatrais: por um lado, a
exatidão referirá uma atenção particular aos modos de aquisição e uso das
palavras em torno das quais se organiza o discurso teatral orientador da
prática ' e que, por extensão, também abrange a tarefa pedagógica de clarificar
e precisar a técnica teatral; por outro, exprime o desígnio de encontrar
estratégias que permitam aos alunos irem-se dando conta de que o ato de criação
é totalmente incompatível com a inércia e a imprecisão das máscaras sociais de
que já falei anteriormente. Analisarei, de seguida, essas duas vertentes.
Uma prática pedagógica alicerçada, como convém, numa nítida conceção do teatro
trará, inevitavelmente, consigo uma linguagem específica. Alguns desses termos
serão oriundos de "sistemas teatrais" também eles específicos, como quando, por
exemplo, na aula se pretenda usar conceitos como o de "pré-expressividade"
(oriundo do teatro antropológico de Eugenio Barba), o de "via negativa" (que
remete para Grotowski) ou o de "se mágico" (referente a Stanislavski). A esse
conjunto de termos chamarei conceitos estranhos, porque é essa a qualidade com
que, provavelmente, aparecerão aos alunos. O fator estranheza será, nestes
casos, potenciador de perguntas sobre o significado, proporcionando ao
professor a possibilidade de os esclarecer. Haverá, todavia, muitas outras
palavras que os alunos não desconhecerão, como as seguintes, todas pertencentes
ao vocabulário com que me exprimo nas aulas de práticas teatrais: "presença",
"sagrado", "concentração", "liberdade", "imaginação", "máscara", "emoção",
"mentira", "disponibilidade", etc. São estas que darão mais trabalho de
exatidão ao professor e aos alunos. Porque a linguagem está contaminada pela
doença a que Calvino se refere, muitas dessas palavras foram sendo apropriadas
pelo discurso comum, tendo-se desvitalizado. Tomo como exemplo a palavra
"disponibilidade": provavelmente, ela começará por surgir ao aluno com o mesmo
rosto que assume no contexto em que dizemos a um amigo que estamos
disponíveispara irmos tomar um café com ele ou em que confirmamos a nossa
disponibilidade para uma reunião em certo dia a certa hora. Ora, a
"disponibilidade", na aula de práticas teatrais, significa estar pronto para se
dedicar totalmente, sem qualquer espécie de reserva nem duração pré-definida, a
uma tarefa desconhecida, segundo regras ditadas por outro e sem conhecimento
prévio do resultado que se obterá: o estado de disponibilidade, no teatro, é um
estado de abnegação, ou seja, de renúncia total ao interesse próprio ' o que
implica a aceitação da morte de alguma coisa para que possa acontecer o
nascimento de outra. Para um ator, a disponibilidade corresponde, na realidade,
a encontrar em si o mesmo estado de caos a partir do qual Deus criou o mundo.
Mas a exatidão também se refere à necessidade pedagógica de grande rigor na
execução dos exercícios propostos aos alunos: ninguém duvide de que, na aula de
práticas teatrais, há uma ordem que propicia o caos, para que esse caos possa
gerar uma nova ordem (artística). Efetivamente, ao processo de realização de um
exercício teatral aplica-se o que diz Calvino (1993) sobre a poesia: que ela "é
a grande inimiga do acaso, embora sendo também filha do acaso e sabendo que o
acaso em última instância ganhará a partida" (p. 87).
No que concerne à exatidão encarada como instrumento pedagógico de combate à
inércia e à imprecisão das máscaras sociais individuais, direi que o processo
de criação teatral tem por finalidade a transubstanciação do ator, enquanto a
máscara social visa a preservação, a todo o custo, do que existe. A imprecisão
é absolutamente necessária à máscara, porque a sua sobrevivência, enquanto
aparência inorgânica dos costumes, depende da sua capacidade de negação do
fulgor orgânico dos conflitos primordiais: a máscara social é o rosto de uma
ordem que nega vã e veementemente a existência do caos. A pedagogia teatral que
aqui idealizo é aquela que vai demonstrando ao aluno, através dos
acontecimentos proporcionados pelos exercícios, que as máscaras sociais em que
persiste só servem para a sua homogeneização e que o uniforme é sempre
indiferente. Pelo contrário, a individualização que acontece quando o aluno
mergulha nos seus abismos insondáveis proporciona um nível de universalidade
inexcedível. Um dos princípios da aula de práticas teatrais será, então, o
seguinte: à exatidão e à riqueza do arquétipo (cf. Jung, 1964, p. 46) opõe-se a
pobreza e a imprecisão do estereótipo.
Visibilidade
A propósito da sua atividade de escritor, diz-nos Calvino (1993) que parte
sempre de uma imagem e que "são as próprias imagens que desenvolvem as suas
potencialidades implícitas, o conto que elas trazem em si" (p. 109). Como
Calvino (1993), associarei a visibilidade, na aula de práticas teatrais, à
faculdade humana da imaginação, a saber: "o poder de focar visões ( ), de fazer
brotar cores e formas a partir de um alinhamento de caracteres alfabéticos
negros numa página branca, de pensar por imagens" (p. 112). E não posso deixar
de ouvir no trecho de Calvino que acabo de citar ecos das palavras de um grande
mestre de teatro português, Fernando Amado (1999b): "O protagonista não usa
estilo baço, discursivo; pensa com imagens: não evidentemente por submissão ao
princípio do menor esforço, mas ao contrário por se conformar às leis que
regulam o espírito humano" (p. 172).
Regresso à questão da transubstanciação do ator: sendo, tal como o poeta, o
pintor, o escultor e o cineasta, artista das imagens, o ator é o único que se
transforma na própria imagem que criou. Assim sendo, o problema que se coloca
ao aluno da aula de práticas teatrais é, em simultâneo, muito simples e muito
complexo ' e pode ser expresso através de perguntas como as que a seguir
enuncio: "Poderei eu ser uma flor que canta ópera?"; "Poderei eu ser um
papagaio que ensina o dono a falar?"; "Poderei eu ser um homem à beira da
morte?"; "Poderei eu ser uma menina fugida de um manicómio?"; etc. Essas
perguntas fundam as suas raízes noutra pergunta ainda, mais acutilante:
"Poderei eu ser todo o mundo e ninguém?". O programa de trabalho, na aula de
teatro, persegue a resolução dessa questão ' o que implica empurrar a faculdade
da imaginação até aos seus limites máximos em cada um dos alunos.
Ora, quando levada ao extremo, a imaginação produz no indivíduo um efeito
parecido com o da esquizofrenia, patologia que, segundo a descrição médica mais
consensual, pode fazer com que a pessoa se torne incapaz de distinguir as
experiências reais das imaginárias. A coincidência entre essa sintomatologia e
o que acontece ao ator durante o processo de transubstanciação é flagrante: tal
como o esquizofrénico, também o ator sofre de alucinações (auditivas, visuais,
tácteis, olfativas), acredita em ilusões, pode sentir-se controlado por forças
misteriosas ' e age em conformidade com tudo isso (cf. A.P.A., 2004). Por isso
me referi, noutro texto, à importância do efeito placebo na arte do ator
(Branco, 2013). Mas também se pode associar a arte do ator ao fenómeno
religioso do milagre: de facto, ninguém melhor do que o ator para compreender o
que acontece ao participante num acontecimento de inspiração divina. É que na
base do milagre e da transubstanciação do ator está o mesmo elemento ' a fé. A
criação teatral do ator é diretamente proporcional ao grau de crença em
determinadas circunstâncias ' e só a crença absoluta possibilita a transposição
total dessas circunstâncias para a alma e para o corpo do ator. Por isso,
segundo Fernando Amado, aquilo que o Teatro reclama do ator é a
"despersonalização", ou seja, o esquecimento "da sua individualidade particular
e passageira" (1999a, pp. 129-130). Foi também tudo isso que levou Adolfo
Gutkin (2007) a afirmar:
Haverá gente mais louca que a gente de teatro?... Tudo o que fazem é
acreditar profundamente na mentira... no falso. O céu é de papel... o
sangue é sumo de tomate... e todas as noites Otelo estrangula a
Desdémona à mesma hora. A mesma Desdémona todas as noites... (s./p.).
Em suma, o ator é aquele que se abandona ao jogo que consiste em ir ao encontro
da verdade mais profunda de que é capaz para chegar à mentira mais nítida
possível, ou vice-versa. "Engana-te a ti próprio primeiro, antes de enganares
os outros", poderia ser este o lema de inspiração horaciana deste ator. Desse
jogo demente resulta a fusão da mentira e da verdade, do real e do imaginário.
Ora, o nosso contexto social e cultural é em tudo contrário a isso.
Sabemos, a partir do célebre ensaio de Michel Foucault, que, sobretudo a partir
do século XVIII, a loucura perdeu o estatuto de experiência sagrada que a Idade
Média lhe conferia e de experiência cósmica do Renascimento, para adquirir um
estatuto moral, com a consequente especialização dos espaços de confinamento e
de tratamento dos loucos, com vista à proteção da sociedade contra os seus
perigos: assistia-se, nesse momento, ao dealbar de uma sociedade "onde tudo o
que há de estranho no homem seria sufocado e reduzido ao silêncio" (Foucault,
1997, p. 428). Apesar dos progressos da medicina e do surgimento e grande
desenvolvimento da psicologia, creio ser legítimo afirmar que continuamos a
manter uma relação muito complexa e difícil com a loucura: por um lado, nas
suas manifestações mais extremas, ela inspira-nos medo, motivo pelo qual
precisamos que existam espaços próprios que subtraiam o louco do espaço comum;
por outro, fascina-nos, na medida em que o louco rompe com todas as estruturas
mentais conhecidas, devolvendo-nos uma mundivisão hermeneuticamente impermeável
aos critérios-padrão de análise da vida e dos comportamentos humanos. O
racionalismo do séc. XVIII, reforçado pelo positivismo do final do séc. XIX,
deve ter contribuído fortemente para essa relação, ao mesmo tempo que terão
sido ambos responsáveis pela progressiva valorização da chamada "sanidade
mental" que, em princípio, todos buscamos. Ora, a não ser que sofram da
patologia de quererem ser loucos, também os alunos tenderão para essa
valorização e essa busca. Creio, assim, que a partir do momento em que
compreendem ou vislumbram em que consiste o ato teatral para que são
convidados, encontrarão em si obstáculos sobretudo gerados pelo medo das
consequências de se abandonarem, sem restrições, a essa forma da demência.
Convém, por isso, dilucidar alguns aspetos.
Em primeiro lugar, é necessário ir explicando que a loucura do ator de que
tenho vindo a falar não se conjuga com a imagem do louco preso na camisa-de-
forças e totalmente perdido para a vida e para a relação com os outros: pelo
contrário, trata-se da expressão totalmente voluntária (e consciente) do
irracional e do inconsciente, que visa a desalienação do indivíduo. Em segundo
lugar, importa ir demonstrando que um ideal de socialização baseado no domínio
prepotente do racional não é, obrigatoriamente, sinal de equilíbrio mental, até
porque uma parte importante da nossa humanidade fica, assim, impedida de se
exprimir, apesar de continuar a agir dentro de nós. Ouçamos as palavras de um
dos mais experimentados e prestigiados psicopatologistas portugueses a esse
propósito:
Todos temos direito a ser um bocadinho fóbicos quando uma desgraça se
abate sobre nós, um pouco paranóides quando nos envolvemos numa luta
difícil, ligeiramente obsessivos enquanto estudamos a complexidade
das coisas, um pouco histriónicos quando nos queremos impor aos
outros. Da tendência esquizóide nascem teorias inovadoras e, através
das mudanças de humor, a criatividade. ( ) E, embora sejam
admissíveis algumas combinações verdadeiramente patológicas, ter
todas as doenças é o mesmo que não ter nenhuma (Abreu, 2006, pp. 139-
140).
Em terceiro lugar, convém ir deixando bem claro, ao longo das aulas, que o
treino do ator tem por finalidade a aquisição de um instrumento de que,
infelizmente, o louco não dispõe: a capacidade de ligar e desligar o botão da
irracionalidade, sempre que disso necessita.
Em princípio, aquilo de que mais medo temos é do desconhecido: o medo da
loucura pode assim ser encarado como sintoma principal da nossa ignorância
sobre os mecanismos próprios da irracionalidade e do inconsciente, quando
libertados da jaula em que, por motivos vários, os aprisionamos.
Em conclusão, o valor pedagógico da visibilidade também implica ajudar os
alunos a tomarem consciência da sua capacidade de loucura, por se acreditar que
nela se encontra um dos gérmenes mais significativos do tipo de imaginação
necessária ao ator. Isso traduz-se na criação de contextos que, na máxima
segurança possível ' já que nada do que é humano é absolutamente seguro ',
permitam aos alunos irem-se familiarizando com a potência e a criatividade do
seu inconsciente, de onde brotarão as imagens com que poderão experimentar o
processo de invenção do ator: é que, nascidas das profundezas onde carne e alma
são um só, essas imagens têm um poder transformador inigualável. Eu já vi.
Multiplicidade
No final da conferência sobre a multiplicidade, organizada em torno de dois
conceitos nucleares ' o de "enciclopédia" e o de "polifonia" ', Calvino (1993)
chega à seguinte conclusão:
Poder-se-á objectar que quanto maior for a tendência da obra para a
multiplicação dos possíveis mais se afasta do unicum que é o self de
quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta da sua própria
verdade. Pelo contrário, respondo eu, quem somos nós, quem é cada um
de nós senão uma combinação de experiências, de informações, de
leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma
biblioteca, um inventário de objectos, um catálogo de estilos, onde
tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as
maneiras possíveis (p. 145).
Considero que, no trecho citado, Calvino identifica algumas questões essenciais
para a arte do ator e, consequentemente, para a pedagogia teatral.
O ator sabe que o unicum a que se chama eu, personalidade, identidade, só o é à
superfície e que, quanto mais fundo mergulha em si, mais encontra o múltiplo e
o diverso, em suma, a grande enciclopédia de todos os arquétipos humanos: é
como se à nascença trouxéssemos connosco a totalidade do legado humano inscrito
nos genes, tal como defende Carl Jung ao longo da sua vasta obra, e a
socialização consistisse na ativação de vários elementos desse património e na
desativação de outros. Pelo contrário, o treino do ator serve para que ele
desperte em si todas as possibilidades humanas adormecidas, escondidas,
esquecidas, desusadas, conforme deixou claro Manuela de Freitas:
Um actor é aquele que investiga tudo o que é. É um ser que resolve
ter como profissão conhecer-se totalmente, saber tudo o que tem, o
que podia ter, o que é, o que poderia ser, do que é capaz, do que não
é capaz. É a história do Gil Vicente, o "todo o mundo e ninguém". O
actor é toda a gente e ninguém. O actor através de técnicas,
investiga tudo o que tem, confronta-se com todas as suas capacidades,
grandezas, baixezas, vícios, virtudes. E, para que é que isso serve?
É uma espécie de base de dados a que, perante um personagem concreto,
vai buscar tudo o que serve este personagem (Neves & Freitas,
2006, s/p.).
Encarada deste modo, a arte do ator constitui uma espécie de regresso à
plenitude do humano e, também, a demanda disso: o ator é uma pessoa que
reivindica o direito a descobrir em si, a experimentar e a exprimir tudo quanto
é humano. Assim se explica que um ator possa, com o mesmo grau de veemência e
em momentos diferentes, ser criminoso e juiz, criança e velho, mulher e homem,
ditador e mendigo, bêbado e sóbrio, etc. Ouçamos o ator Luís Miguel Cintra a
este propósito:
( ) o actor inventa uma outra cara, ( ) ou inventa outra pessoa para
si. ( ) Para inventar a máscara, o actor está a socorrer-se de todas
as zonas que existem em embrião na sua personalidade e que se calhar
ele nunca costuma mostrar. Sendo provavelmente a pessoa mais bem
comportada do mundo, o actor para construir uma máscara de assassino,
por exemplo, tem que ir buscar dentro de si próprio o assassino que
todos nós temos dentro de nós ' tem que mostrar essa faceta que
provavelmente nunca mostra(rá) na vida. Portanto o actor, por um
lado, é uma pessoa que está sempre a esconder-se, mas, por outro, ao
criar diversas máscaras, é alguém que está sempre a expor-se,
muitíssimo mais que aqueles que não são actores, e está a fazer um
jogo consigo próprio, está a trabalhar sobre a sua própria
personalidade, a fazer do seu corpo e da sua alma, se assim
quisermos, os seus instrumentos de trabalho (cit. por Serôdio, 2001,
p. 216).
Independentemente do modo como as revelações provocadas pela sua vida artística
contaminem a sua vida social e afetiva, o ator aprende a distinguir o seu eu
social da sua multiplicidade artística. Por isso Grotowski (1991) respondeu
assim à pergunta de Eugenio Barba:
Esse processo de análise é uma espécie de desintegração da estrutura
psíquica. Não correrá o actor, assim, o perigo de ultrapassar os
limites, do ponto de vista da higiene mental?
Não, desde que se entregue cem por cento ao seu trabalho. Só o trabalho feito
por metade, superficialmente, é psicologicamente penoso e perturbador do
equilíbrio. Se só nos envolvermos superficialmente nesse processo de análise e
de revelação ' o que pode produzir grandes efeitos estéticos ', isto é, se
conservarmos a nossa máscara quotidiana de mentiras, então seremos testemunhas
de um conflito entre essa máscara e nós próprios. Mas se o processo for levado
aos seus limites extremos, poderemos voltar a pôr a nossa máscara quotidiana
conscientemente, sabendo agora para que serve e o que se esconde por detrás
dela. Trata-se da confirmação não do que é negativo mas do que é positivo em
nós, não do que é mais pobre mas do que é mais rico. E também leva a uma
libertação dos complexos, quase do mesmo modo que a terapia psicanalítica (pp.
45-46, trad. minha).
Seja como for, a sociedade em que vivemos trata encomiasticamente o individual,
para promover não tanto o autoconhecimento das suas múltiplas possibilidades
mas a autoestruturação de uma persona sólida: um adulto profissional e
socialmente bem integrado buscará construir-se em torno daquele valor e, na
medida do possível, aproveitar as circunstâncias da vida para alicerçar a sua
ideia de si, a sua personalidade, a sua coerência. Aliás, a incoerência é,
nesse contexto, uma espécie de antivalor que se atira à cara do prevaricador,
sempre que o que ele defende ou fez hoje é diferente ou contrário do que
defendeu ou fez ontem. Os géneros biográfico e autobiográfico são, em certa
medida, uma espécie de símbolo disso mesmo: sempre construídos a posteriori,
têm por finalidade a demonstração de um percurso cuja coesão ou já era evidente
a fortiori ou podia estar elidida, mas que a perspetivação histórica ilumina.
A aula de práticas teatrais deve prestar-se, por isso, à aprendizagem do
múltiplo, nas suas múltiplas dimensões: o conhecimento das múltiplas
possibilidades do humano, mas também a descoberta e potenciação dos múltiplos
recursos disponíveis para o exprimir ' os recursos vocais, os recursos
sensoriais, os recursos motores, os recursos emocionais, os recursos
intelectuais, os recursos psíquicos, os recursos imagéticos, etc. Se, a
propósito da leveza, caracterizei a aula de teatro como espaço de subtração,
aqui defino-a enquanto espaço de soma e multiplicação. E a pergunta que conduz
a aprendizagem da multiplicidade é esta: "O que é que eu tenho em mim (na minha
alma e no meu corpo) que não uso?".
Para além desses aspetos, deve a aula de práticas teatrais proporcionar o
espaço em que o aluno se possa reconhecer como indivíduo-múltiplo em relação
com os outros, os factos e o mundo ' tal como no "romance enciclopédico"
idealizado por Calvino (1993, p. 127). Na realidade, o ator é um indivíduo
totalmente consciente da sua dependência de uma rede de conexões, sabendo como
ninguém que só consegue exercer a sua arte no âmbito dessa rede: são os outros
atores com quem contracena, é o autor da peça, é o encenador, é o cenógrafo, é
o músico, é o criador de luzes, é o figurinista, é o público ' em suma, são
todos os cocriadores de um objeto artístico em que, por inerência da função, é
o ator quem se torna mais visível. Mas a expressão do ator, mesmo que
individual na aparência, é sempre polifónica, porque com ele e através dele
também falam todos os outros.
Por tudo o que ficou dito, a multiplicidade serve também o seguinte desígnio
pedagógico: o da desconstrução e derrogação do paradigma do mérito, a partir do
qual apreciamos os atos dos outros e os nossos atos são por eles apreciados. É,
em suma, a propriedade da aula de teatro que mais contribui para trazer para o
centro da cena pedagógica o incerto e o transitório.
Com base numa certa perceção do ator, pretendi, com o presente ensaio, delinear
uma ideia de pedagogia teatral, apropriando-me, para o efeito, das cinco
propriedades que Calvino atribui à literatura. O contexto específico em que
tenho vindo a trabalhar determinou todas as minhas considerações sobre a
matéria. Tal como já expliquei noutro lugar (cf. Branco, 2011b, pp. 37-45), nas
aulas de Oficina de Teatro pretendo proporcionar aos meus alunos "uma visita
guiada ao universo do ator" e não uma formação especializada conducente ao
exercício dessa profissão. Essa opção estratégica, definida a partir da
natureza do próprio curso, obrigou-me, ao longo dos anos, a refletir sobre as
dificuldades e as resistências que fui encontrando nos alunos expostos à
técnica, à ética e à estética que enformam as minhas aulas ' e cujos
fundamentos também já tive a oportunidade de explanar (cf. Branco, 2011b,
passim). Através da observação e da reflexão que ela me foi exigindo, com vista
a ir encontrando instrumentos que ajudassem a desbloquear a expressão mais
profunda dos alunos, cheguei à conclusão de que aqueles escolhos não são
exclusivos dos não-atores: pelo contrário, estou em crer que surgirão em todas
as aulas de teatro enraizadas numa visão do teatro semelhante à que me orienta,
independentemente da sua finalidade formativa. É que, a não ser que se conceba
o ator apenas como hábil reprodutor mecânico de truques que visam criar
ilusões, sem nenhum tipo de envolvimento emocional do executor, a matéria de
criação do teatro é a própria humanidade dos atores e, por isso, sujeita aos
mesmos costumes e regras próprios dos mecanismos de socialização dos restantes
cidadãos. A partir dessa análise, pude, então, elaborar um paradigma pedagógico
assente na seguinte hipótese: os mecanismos e instrumentos que desenvolvemos ao
longo da vida para sermos social, profissional, moral e afetivamente o mais
bem-sucedidos possível são inimigos das necessidades de expressão do ator. A
criação teatral pressupõe a ausência de qualquer obrigação moral ' preceito que
pode ser estendido a todas as artes. Ora, se o pintor, o escultor, o
compositor, o arquiteto, o poeta, exercem esse direito através da invenção de
objetos artísticos que se distinguem do sujeito criador, o ator fá-lo sobre si
próprio. Essa batalha da desobrigação moral trava-se, então, no caso do ator,
dentro do próprio sujeito criador ' com o que isso implica de conflito interno
entre o criador e a criatura, já que o cidadão, o artista e a obra convivem e
exprimem-se no interior do mesmo território.
Tentei, aproveitando as metáforas inspiradoras de Italo Calvino, identificar os
elementos essenciais desse campo de batalha, por considerar que uma pedagogia
teatral autorreflexiva deve contar com eles e porque me fui apercebendo de que
também são eles que originam a maior parte das dificuldades e resistências dos
alunos. A finalidade, na "visita guiada", não é, evidentemente, a de travar e
resolver o combate, não: esse é o desígnio do ator ou do aluno que queira ser
ator. O desígnio proposto aos alunos não-atores é o de se aperceberem desse
campo de batalha, o de o compreenderem melhor e o de, eventualmente,
experimentarem travar as lutas que quiserem ou puderem. Fazendo-o, colocam-se
na mesma pista de onde o ator levanta voo em direção à criação artística,
embora ainda não tenham chegado lá: depois disso, ainda faltará a organização e
estruturação do material humano e artístico obtido através desse processo.