Tempos anormais e novas fantasias. Novas tendências em direitos humanos,
justiça e educação
RÉSUMÉ
Après avoir caractérisé les temps actuels comme anormaux, avec la création, à
travers de lidéologie mercantile, de nouvelles fantaisies qui promettent le
ciel sur terre du point de vue du bien-être, de la réalisation personnelle et
de la justice, l'auteur fait le tour sur les droits de l'homme, la justice,
l'éducation et l'école à fin de mettre à jour de nouvelles interprétations, de
nouveaux mythes, de nouvelles anormalités qui y surgissent, compatibles avec le
métabolisme du marché, compris comme une métonymie du capitalisme global. Selon
ce point de vue, les droits sont considérés dans une perspective de
"multifonction", qui les rend réorganisables au beau plaisir des
exigences et des pensées dominantes de l'économie; de la même façon, la justice
a tendance à être interprétée sous une philosophie individualiste et
d'efficacité, c'est à dire, comme un facteur qui contribue efficacement à
l'équilibre des échanges commerciaux et à la manutention de l'équilibre de la
balance sociale; finalement, l'éducation doit s'assumer comme un sous-secteur
de l'économie, avec une formatation fonctionnelle au service des besoins
sociaux et économiques originaires du monde mercantile.
Mots-clé: Marché; Droits humains; Justice; Éducation
Introdução
Irei, neste artigo, refletir sobre a ideia de estarmos a viver tempos anormais,
não apenas em resultado da complexidade intrínseca e da pluridimensionalidade
dos conceitos de direitos humanos, justiça e educação, mas também, e sobretudo,
por nos colocarem, do ponto de vista normativo, perante valores acondicionados
e plastificados, decorrentes quer de uma nova ontologia que define o indivíduo
como autorreferencial e simultaneamente como "vida para consumo"
(Bauman, 2008), quer de uma nova ideologia congruente com a racionalidade
mercantil. Daqui decorrem, entre outras consequências, novas fantasias, que
prometem o bem-estar, a realização pessoal, a justiça, o desenvolvimento,
enfim, o céu na terra aos crentes desta nova religião chamada mercado.
Assim, num primeiro momento, caraterizarei os tempos atuais e seus
fundamentalismos, com destaque para o fundamentalismo de mercado, entendido
este como metonímia do capitalismo global. Os impactos do mercado serão,
depois, analisados nos seus pontos cegos ao longo de temáticas que,
aparentemente, pareceriam mais resguardadas do seu contágio, como é o caso dos
direitos humanos, da justiça social e da própria educação. Estes são os
propósitos fundamentais deste trabalho, vertidos numa linguagem que, de uma
forma por vezes mais militantemente crítica, exprime de modo claro a
normatividade assumida pelo autor.
Tempos anormais
Vivemos numa era de fundamentalismos, não apenas de cariz religioso, que nos
prometem outros modos de vida mais puros, mais genuínos, libertando-nos, entre
outras vantagens, das perplexidades da escolha. Cada fundamentalismo impõe
também a sua autoridade suprema, com anúncios, difundidos por toda a parte, da
sua ortodoxia, exigindo aos seus fiéis a condenação de outras autoridades, de
outras crenças, de outras práticas, porque ofensivas da verdade transcendente
que cada um defende. E um dos fundamentalismos que hoje se destaca é
precisamente o do mercado, que, tal como uma religião, apresenta a sua
escatologia, as suas verdades (excelência da pós-democracia e o fim da
história, por exemplo), os seus profetas, os seus sacerdotes, os seus fiéis, as
suas bíblias, os seus lugares sagrados e os seus povos de eleição.
Realmente, aos fundamentalistas da ideologia de mercado pouco lhes importa os
efeitos nefastos que as suas verdades possam ter na vida e dignidade de uma
parte da população. Trata-se, afinal, dirão eles, dos efeitos colaterais, dos
impactos potencialmente viciosos de um percurso que, em si mesmo, é virtuoso.
Assim, a anormalidade que muitos críticos imputam ao mercado não passa de uma
afirmação gratuita, uma vez que os seus procedimentos assentam apenas em outros
fundamentos, ou seja, em outras normalidades ou em racionalidades alternativas,
todas respeitadoras do sacrossanto princípio da proteção da liberdade de
escolha que estrutura a racionalidade mercantil. É esta, aliás, que permite
afirmar que, do ponto de vista da eficiência e do bem-estar, os mercados em
geral funcionam bem e trazem prosperidade, enquanto que, ao invés, os Estados
funcionam mal, criam novas desigualdades e empobrecem os cidadãos.
Além disso, o mercado impõe disciplina, impedindo que os cidadãos, na Ágora
política (entendida como espaço de democracia, de ilustração, de voz e de
convivência), continuem a viver de modo desregrado, porquanto, amiudadamente,
vivem acima das suas possibilidades, alegrados por fantasias difíceis de
sustentar. A implementação de políticas de austeridade torna-se assim uma forma
quase moral de refrear os instintos desmedidos para o endividamento e de
recolocar o indivíduo perante a sua situação de precariedade e de dependência.
Obviamente que este desígnio não será para todos, mas apenas para os económica,
política e socialmente mais vulneráveis. A estes restará então a vã esperança
de um dia ressuscitarem mais prósperos e com as necessidades básicas mais
garantidas. Enquanto tal não acontecer, o caminho do calvário terá de ser
percorrido pacientemente, como parece ser natural para os que almejam o
paraíso.
Esta aparente sensatez do mercado reflete-se numa outra preocupação, quando se
defende que só se pode distribuir o que se produz, ou seja, é necessário
produzir antes para distribuir depois. Daqui decorre que a questão da justiça
não é prioritária, mas sim a riqueza. Na verdade, só quando os celeiros da
abundância estiverem cheios é que será possível distribuir o trigo pelos
famintos, sem pôr em perigo a ordem social. Isto significa que, num contexto de
escassez, a austeridade é uma inevitabilidade mas também uma oportunidade de
cada um se tornar, por empenho e mérito próprios, um verdadeiro consumidor,
pois é este estatuto a medida de uma vida bem sucedida, da decência e talvez da
dignidade humana, que a Ágora, contrariamente ao mercado, parece não dar.
O que acaba de ser dito expressa uma outra verdade, cruel, sim, mas não para
todos. Nesta nova ordem social, nem todos os indivíduos interessam: só os
produtores e os consumidores; enfim, os que criam mais-valia é que
verdadeiramente contam. Mas há uma outra verdade que não pode ser escamoteada,
sobretudo pelos produtores: o emprego é um bem escasso, pelo que terá de ser
merecido. Por outras palavras, o desemprego é inevitável e ainda que se tivesse
tornado, no Ocidente, numa contagem económica de cadáveres, num apuramento de
vítimas não intencionais da luta contra a inflação ou do pagamento da dívida
aos bancos do Ocidente (Stiglitz, 2004), nada alterará já este rumo das coisas.
Quanto aos consumidores, a sorte estará, hoje mais do que nunca, do seu lado se
tiverem possibilidades de obter e manter esse estatuto ou até de ir mais além,
investindo numa "vida para consumo" (Bauman, 2008). Para todos,
produtores e consumidores, vale no entanto a norma da cidadanização mercantil:
a cidadania não passa de um dever de normalidade económica.
Apesar do que ficou dito, ou por isso mesmo, alguns pensam que o clima de
mercado agora é mais respirável, que se humanizou e até incorporou muitas
críticas de setores mais contestatários. Afirmam, inclusive, que a própria
questão da exploração já passou de moda, pelo que as análises de pendor
marxista já não se adequam a este "novo espírito do capitalismo
atual" (na expressão de Boltanski & Chiapello, 1999). E acrescentam
que, presentemente, os trabalhadores lutam, não tanto contra a exploração de
que são vítimas, mas pela oportunidade de serem explorados pelo capital, isto
é, pela oportunidade de emprego (Romão, 2004).
Por outro lado, também os pobres de hoje não são mais as pessoas exploradas que
produzem o produto excedente a ser, posteriormente, transformado em capital;
nem são o exército de reserva da mão de obra à espera de serem integrados no
processo de produção de capital, na próxima melhoria económica. Para os
defensores da ordem de mercado, eles são, economicamente falando, redundantes,
inúteis e não existe nenhuma razão racional para a sua presença contínua
(Bauman, 2008), até porque muitos deles nem dívidas têm! Como esclarece este
autor, eles não são nem economicamente nem (muitas vezes) fisicamente atraentes
e sedutores à nova economia. São os estranhos que a nova sociedade produziu,
porquanto cada espécie de sociedade produz a sua própria espécie de estranhos:
são os que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo
intencionado. De certo modo, então, os pobres poluem a alegria e deixam turvo o
que tocam e, portanto, o melhor modo de lidar com eles é reconhecer-lhes o
direito de serem pobres (e de morrerem à fome), dado que o estado de pobreza
foi uma opção sua.
No entanto, se quisermos tratar deles, as melhores estratégias serão, por um
lado, a incriminação da pobreza, retirando-lhes os direitos ao bem-estar,
devendo os governos, em alternativa, recanalizar os fundos a eles destinados
(por exemplo, para a modernização tecnológica das prisões ou de outros
equipamentos punitivos e de vigilância) e, por outro lado, persistir na tónica
da brutalização dos pobres (que permaneceriam, apesar de todos os esforços de
reabilitação, como indigentes, promíscuos, sujos, preguiçosos, drogados...).
Perante este cenário, eles não seriam dignos nem de ajuda, quanto mais de
qualquer substancial redistribuição de riqueza (Bauman, 2008, p. 79)! Eles não
passam, assim sendo e na linha crítica deste autor, da versão contemporânea da
recompensa do pecado.
Aqui chegados, parece que o metabolismo do mercado passa fundamentalmente pela
valorização de uma outra sociabilidade, que assenta na ideia de que cada um
assuma a responsabilidade de se tornar empresário de si próprio, de que cada um
invista, como frequentemente se diz, na sua carteira de competências, de modo a
se tornar mais útil, mais empoderado, mais empregável e, por isso, mais
vendável.
Mais ainda. Nesta senda da normalização do mercado e do reino do
"simulacro", as aparências também contam, pois vivemos numa sociedade
de sensações, que tudo espetaculariza, dramatiza e converte em experiência
emocional. O espaço emocional é agora, com efeito, o espaço por excelência da
convivência e do discurso espontâneo (entretecido por uma linguagem de
semelhanças, de assimilações...), substituindo deste modo o espaço do debate
racional e da confrontação ideológica.
Daqui decorre, entre outros aspetos, a necessidade e a urgência do aparecer
sempre que possível no ecrã público, de cada um constituir a sua rede dita
social, de clicar muitos like, ainda que pouco ou nada haja para acrescentar à
mensagem recebida a não ser pela postagem ou colagem de uma qualquer informação
ou documento descontextualizado e redundante, que momentaneamente nos
emocionou. E aqui também vale a regra: os amigos devem ser sobretudo
informadores!
Mas os tempos excessivos que vivemos (e que o mercado propicia e explora)
também facilitam esta postura. Como nos diz Augé (2009), é de tal modo
avassaladora a superabundância de acontecimentos que nos atropelam e sufocam
que parece até não haver lugar para a história, a não ser que esta tenha sido
transformada em mais um elemento do espetáculo. A história, com efeito,
estreita-se às últimas 48 horas de notícias ao mesmo tempo que se alonga num
eterno presente, o que nos deixa apaziguados com a nossa consciência face à
avalanche de infortúnios, de acidentes, de catástrofes que desfilam perante nós
a cada instante, porque há a certeza de que a seguir virão novos infortúnios,
novos acidentes, novas catástrofes, e assim sucessivamente... Não admira, pois,
que a nossa consciência moral e social como que flutue e se torne
verdadeiramente uma consciência permanentemente transeunte.
Os tempos da atual fase de desenvolvimento económico e financeiro possuem mais
esta anormal vantagem: hoje nem é necessário pensar! Vivemos, como nos diz
Innerarity (2010), num mundo "em segunda mão", "já
interpretado", pois são os meios de comunicação que fornecem a matéria da
nossa realidade. Nem precisamos de praticar atos de soberania como, por
exemplo, levantar o capô do carro. Agora, somos sobretudo colecionadores de
sensações e consumidores de sensações (Innerarity, 2010, p. 189).
Consequentemente, o verdadeiro interessa pouco; o que verdadeiramente importa é
o big brother, o novo, o conflitual, as quantidades, o local, o escandaloso ou
o atual.
Em suma, a justiça que nos faz aparecer é que verdadeiramente conta e que nos
confere o direito a ser alguém no espaço público. Trata-se da nova figura da
crise ao nível da subjetividade, caraterizada por Hardt e Negri (2012) como o
"mediatizado", ao lado do "endividado" (gerado pela
hegemonia das finanças e dos bancos), do "assegurado/securitizado"
(criado pelo regime de segurança e do estado de exceção generalizado) e do
"representado" (criado pela corrupção da democracia, uma vez que esta
tende a ser um obstáculo para a sua própria realização).
Finalmente, há a questão do Estado. Ora, devido à sua intrínseca (a)normalidade
na lógica do mercado, há que o tornar mais modesto e maneirinho, com a vantagem
de, por estes predicados, se tornar mais esbelto. Não é surpreendente, por
isso, que os defensores da ordem mercantilista profiram o slogan: "o
mercado sempre que possível, o Estado sempre que necessário"! Depois, o
Estado que se preze deve atuar como o regedor e defensor local do reino do
comércio e das finanças extraterritoriais. Ele deve, portanto, criar regras que
sustentem os mercados distorcidos no seio dos quais as corporações e os
abastados possam explorar os outros.
Quanto ao Estado de bem-estar, considerado um direito do cidadão e uma resposta
mais organizada ao problema da pobreza, agora ele está autorizado a funcionar
como caridade, que disponibiliza alguns donativos para os mais frágeis, mas
que, no fundo, permanece sem justificação face às expetativas do mundo
contemporâneo. Aliás, acrescentam os seus críticos, as propaladas virtudes do
Estado social muitas vezes não passaram de retórica ou de fantasia porque, em
vez de unir pela solidariedade, acabou por separar os cidadãos uns dos outros.
Por outras palavras, o Estado não tem tempo para as pessoas e, por isso, não se
deve contar com ele. O Estado relevante deve, antes, proporcionar condições que
contribuam para reproduzir a narrativa autoinevitabilista de um futuro
orientado para o conhecimento entendido como a verdadeira força de trabalho
(Thomson, 2013); ou seja, o Estado deve entrar no romance que é
operacionalizado e realizado pelo capital global, cujo enredo fantasista
assenta na ideia de que o progresso humano, agora, só é possível ser alcançado
por uma economia de conhecimento global.
Direitos humanos em tempos anormais
Os direitos confrontam-se, hoje, com grandes ambiguidades, que levam alguns a
proclamar o seu caráter quase hagiográfico ou então a integrá-los num sistema
de ortodoxias ideológicas, enquanto outros preferem salientar sobretudo as suas
fragilidades e os discursos contraditórios que sustentam desigualdades e
injustiças. De facto, os direitos estão sujeitos, nos dias que correm, a ventos
entrecruzados da Ágora e do mercado.
Assim, há teóricos que afirmam que acreditar nos direitos, tais como
normalmente são concebidos a partir da Declaração de 1948, é como acreditar em
fantasias, em bruxas e unicórnios. São meras ficções, fábulas ou então
metanarrativas cujo sucesso se deveu a contingências históricas determinadas,
que derrotaram ou inviabilizaram outras igualmente válidas e igualmente
promissoras em termos de emancipação (ver Santos, 2013).
Outros autores, porém, consideram que o discurso que verdadeiramente pode
justificar os direitos e a sua universalidade é o dos interesses humanos
fundamentais (que têm de ser protegidos e promovidos para se ser humano); ou
então - como uma das suas modalidades - o discurso assente no
sentimento, na compaixão, na misericórdia, na solidariedade (ver Rorty, 1994),
tendo como base a ideia de uma humanidade partilhada assente numa ontologia
comum (Turner, 2002); ou, finalmente, o discurso do medo ou da culpa, porque
estes nos fornecem também proteção, reduzindo, de certo modo, a nossa exposição
ao outro.
Consequentemente, se não estivermos satisfeitos com a fundamentação tradicional
dos direitos, é possível defendê-los, nestes tempos duros do mercado, a partir
da convicção de que eles atenuam as agruras ou os danos colaterais das medidas
mercantis, permitindo ao mesmo tempo ressaltar a bondade natural do homem, que
se comove perante a miséria, a pobreza, ou a injustiça que os outros sofrem. Ou
seja, não obstante algumas anormalidades, o mercado também se comove e é, por
vezes, tão piedoso com os que sofrem como com aqueles que o criticam.
Depois, e em nome do realismo (que pode ser mais ou menos fantasista), o
mercado sempre dá uma ajuda à concretização de uma proposta de direitos humanos
mais útil, normal e compatível com as exigências do misticismo político e do
economicamente correto que comandam a ordem de hoje e que compõem a base
espiritual da nossa época. De facto, e do ponto de vista moral, a tirania do
economicamente correto faz com que tudo o que economicamente tenha sentido não
precise de justificação ou de apoio de um outro sentido, seja ele político,
social ou humano. Logo, no caso dos direitos, eles só interessarão
verdadeiramente se forem funcionais ou se se constituírem numa espécie de
"cavalo de Tróia" a esta nova ordem económica, se ajudarem a
demonizar e a criminalizar os adversários ou os proclamados inimigos da
humanidade. Se não servirem para tal, os direitos terão de ser reinterpretados
e reajustados aos novos valores, onde pontificam, por um lado, o realismo e a
ocidentalidade e, por outro, o neoindividualismo e a autorreferencialidade.
É por isso, então, que o conceito "multiuso" dos direitos humanos tem
ganhado adeptos. Segundo esta linha, os direitos seriam separáveis, divisíveis,
deformáveis, reorganizáveis, a bel-prazer das exigências e das racionalidades
dominantes da economia. Afirmar, por conseguinte, como na Conferência Mundial
sobre os Direitos Humanos, de Viena, realizada em 1993, a indivisibilidade, a
interdependência, a inter-relação e a universalidade dos direitos, entre outras
caraterísticas, equivaleria a situar-se num plano fantasista que pode
aproximar-nos de Deus, mas que nos afasta dos humanos e da plasticidade que as
comunidades políticas concretas e os mercados emprestam a esses mesmos
direitos.
Depois, os direitos não são iguais ou nem todos merecem o epíteto de direitos,
como acontece com os sociais e económicos. Esta pretensão desmedida e anormal
de querer ampliar os direitos para além de certos limites não passa de um
intento fantasista, quase imperial, de alargar o seu poder a domínios que não
lhe pertencem e que, no fundo, os prejudicam.
Daqui decorre que os direitos têm de ser retocados e propostos como relativos e
contingentes; eles devem ser, face aos constrangimentos económicos, políticos,
sociais ou outros, aquilo que alguns, sobretudo os que ocupam os lugares
cimeiros da política, dizem que são, por invocação do que chamam de realismo e
sensatez. Mais: eles terão de atender às especificidades políticas e culturais
das sociedades. Assim, se as de pendor liberal acentuam os direitos civis e
políticos, é compreensível que outras vão por outros caminhos, como é o caso
dos novos países emergentes que não podem comprometer-se a respeitá-los porque
têm o direito, tal como os mais avançados, ao desenvolvimento económico, à
ordem pública e à estabilidade social, o que, em certos contextos, requer
regimes políticos mais autoritários, que acentuem as responsabilidades e não
tanto as liberdades, que reforcem os deveres e não tanto os direitos.
Consequentemente, os direitos posicionados no interior de uma filosofia
idolátrica, a qual, num intento de lucidez e de sistematização, afirma e
reafirma princípios e conceitos quase imutáveis e absolutos, indiferentes às
vicissitudes históricas e às especificidades culturais dos povos e das gentes,
não fazem sentido e podem até contribuir para humilhar o outro, o diferente, o
que não satisfaz os padrões estabelecidos.
Em suma, nestes tempos anormais e de algumas fantasias, há que, mais uma vez,
ser realista apostando numa abordagem dos direitos assente numa teoria que
enfatize, não a condição humana, mas o livre exercício da escolha como a pedra
fundacional dos direitos humanos. Ou seja, segundo a teoria da escolha, o que
verdadeiramente pode justificar os direitos é a promoção e a concretização do
exercício da livre escolha (ver Fagan, 2014). Uma leitura possível desta
abordagem é que ela pode ser perfeitamente funcional à racionalidade do
mercado, que propõe também, ou impõe, uma determinada visão moral de como o
mundo deve ser regulado.
Efetivamente, na "economia moral" (expressão de Ball, 2006) do
mercado, há apelos a valores, ainda que politicamente despolarizados, que visam
adequar-nos a todas as condições e circunstâncias. Na tão apregoada pós-
modernidade em que vivemos, correspondente metaforicamente, segundo Harvey
(1993), à fase do Espírito Santo, isto é, à fase da volatilidade, podemos
tornar-nos em ungidos do mercado, com promessas de sucesso terreno e de
felicidade terrenal, se exercitarmos o nosso corpo e a nossa mente nos valores
da flexibilidade, da competência, da autonomia, da aprendizagem, da
competição...
Uma das ilações que podemos extrair de tudo o que ficou dito é que o terreno
dos direitos, ou a busca do seu racional, se constitui, de facto, num campo de
encontros e desencontros teóricos, num campo essencialmente contestado (ver
Donnelly, 2003; Estêvão, 2012a, 2015) ou contestável, no que respeita
concretamente à sua natureza, à sua estrutura, à sua justificação e à sua
origem.
Esta vulnerabilidade dos direitos, por mais compreensível que seja em termos
teóricos (não apenas pela biologia mas também pela contingência social e
histórica dos seres humanos), torna-se, no entanto, particularmente propícia às
investidas do mercado e à posição ajoelhada que muitos assumem, como adoradores
de novos bezerros de oiro, com outras promessas e outros paraísos. Daí que este
balancear entre a lógica da Ágora e a lógica do mercado ao nível dos direitos
não deixe de acentuar faticamente alguma (a)normalidade dos próprios direitos e
a tendência para se construírem em seu redor algumas fantasias.
Justiça social em termos anormais
A justiça parece organizar parte significativa do pensamento sociológico,
político e filosófico contemporâneo. Na verdade, ela tem fascinado os
pensadores do mundo inteiro, desde a civilização greco-latina até à atualidade,
embora, naturalmente, com perspetivas e acentuações diversificadas.
Deste modo, e no que diz respeito aos nossos tempos, a questão da justiça
tornou-se de facto numa questão central no pensamento não apenas jurídico, mas
também filosófico, ético-político e sociológico, embora a tonalidade
prevalecente em termos do pensamento dominante tenda a ser uma justiça
utilitarista, individualista e, por vezes, uma justiça terapeutizada ou
refratada por soluções terapêuticas e psicológicas à vulnerabilidade humana e
social (ver Ecclestone & Goodley, 2014). Então, a justiça social
originária, de radical mais crítico, deixou de ter que ver com redistribuição
ou com o processo de implicação e responsabilização social que reafirma a nossa
ligação e nos move como um coletivo solidário, passando a apresentar-se
simplesmente como justiça, sem qualquer adjetivação, mas sempre pronta a
assumir novas intencionalidades (até porque, como Hayek - um dos
expoentes do pensamento neoliberal - defendera já, a "expressão
'justiça social' não pertence à categoria do erro, mas à do
absurdo" [1985, p. 98]).
Uma outra perspetiva, congruente com a racionalidade de mercado, vê a justiça
como um dos fatores que contribui eficientemente para o equilíbrio das trocas
comerciais e para a manutenção do equilíbrio da balança social que a mulher de
olhos vendados (representação habitual da justiça legal) sempre ostenta,
assegurando, talvez não por excesso de visão, mas antes por excesso de
cegueira, o princípio de dar a cada um o que lhe pertence ou o que é merecido.
Uma outra conceção de justiça fiel à (a)normalidade dos mercados é a que
sanciona a ideia de que tudo se justifica desde que cada um retire o máximo
proveito, a máxima felicidade ou o máximo de vantagens das situações criadas
(ver Sandel, 2011). Ou, por palavras mais simples: o que é justo é o que se
vende bem. E isto tanto serve para bens e serviços como para pessoas. Ser
vendável então, por exemplo pelas competências adquiridas, torna-nos
potencialmente mais justos, mais ajustados, mais portáteis, mais merecedores de
nos sentarmos à mesa do rei-mercado e de participarmos das celebrações em sua
honra.
Uma sociedade consumista (congruente com as preocupações do mercado e
caraterizada por julgar e avaliar os seus membros pelas capacidades e conduta
relacionadas com o consumo; ver Bauman, 2009) dá-nos uma ajuda milagrosa para
termos uma mente e um corpo a condizer com os requisitos da nova justiça de
mercado. Se, por artes confessadas ou inconfessáveis, a nossa mente e o nosso
corpo se mantiverem ajustados, ou pelo menos não defeituosos, as hipóteses de
sermos justamente recompensados por novas ofertas de trabalho, por novas
oportunidades de exibição de atributos ou de estarmos na boca de cena da
atualidade serão maiores, dando-nos simultaneamente a oportunidade de alardear
a nossa virtude (fantasiada) como consumidores exemplares.
De certo modo, então, para se poder ser alguém neste tipo de sociedade, para se
ter um tratamento justo e merecido neste tipo de sociedade, há que estar in, em
upgrade constante, que impeça a nossa remoção para o caixote do lixo, ou seja,
para a inutilidade pública económica. Mais: há que ter a capacidade de renascer
em cada produto (ou até de cada um se transformar em mercadoria)... E se, de
vez em quando, nos lembrarmos dos outros, com manifestações públicas de
donativos, a própria justiça pode transformar-se num festim: isso ajudará a
aplacar a consciência moral e a suportar a ausência de justiça durante os dias
úteis, segundo Bauman (2009, p. 88). Em suma, independentemente das nossas
considerações sobre justiça, nas sociedades ditas mais evoluídas, o bom
funcionamento dos mercados depende também desta variável, uma vez que a justiça
o torna mais transparente, mais gerível, mais eficiente, mais predizível, para
além de tornar as sociedades mais decentes e (pós)humanas.
Depois, e no plano mais estritamente político, a justiça continua, também, a
necessitar do Estado, porque desta relação ambos beneficiam. Todavia, é sabido
que os dois vivem frequentemente em pecado, tal o grau de promiscuidade que
experienciam e o grau de injustiças que encobrem. Não admira, por isso, que, na
lógica de um Estado-Mercado, por exemplo, a justiça perca naturalmente o seu
adereço "social", tornando-se perfeitamente funcional à colonização
do mundo de vida pelo poder e pela economia. Por sua vez, acobertado pela
justiça, aquele mesmo Estado pode proteger, por exemplo, determinadas áreas de
maior predileção (como a financeira) e mobilizar processos pouco consentâneos
com a procura do bem comum.
Mas dir-se-á que a justiça separada do Estado ou não confinada às fronteiras
nacionais precisas torna-se numa inutilidade. Por outras palavras, a justiça,
para ser eficiente e útil, é sempre contextual e territorializada, e, além
disso, pertence aos cidadãos e não propriamente às pessoas. Uma das muitas
consequências que daqui resulta, muito apreciada pelos mercados, é que não há
propriamente culpa nem responsabilidade política pelo que acontece fora das
fronteiras em termos de injustiças ou de não respeito pelos direitos, mesmo que
objetivamente as práticas protecionistas estatais ou de índole económico-
financeira prejudiquem outros povos.
Dentro desta lógica territorializada, de não compromisso, por exemplo o
"modelo de conexão social" de Young (2011) - que significa que
"todos os que contribuem com os seus atos para os processos estruturais
que provocam alguma consequência injusta compartem a responsabilidade dessa
injustiça" (p. 108) - não faz qualquer sentido. Na verdade, uma vez
que as fronteiras territoriais se tornam de certo modo as fronteiras morais dos
nossos deveres, dos nossos julgamentos e dos nossos empenhamentos sociais, tudo
o que for para além destes limites não obriga ninguém, nem ninguém deverá ser
responsabilizado por eventuais danos ou malefícios infligidos aos outros ou a
outros povos.
Face ao que ficou dito, ganha sentido afirmar então que, nestes tempos anormais
em termos de estruturação e priorização de valores, a justiça também se tornou
anormal. Com efeito, se é verdade que, ao implicar várias dimensões
(redistribuição, reconhecimento, representação), vários sujeitos de justiça
(local, regional, global) e vários critérios para resolver ou decidir as
disputas (critérios democráticos, populistas, hegemónicos), a justiça se tornou
teoricamente anormal, tal como defende Fraser (2013), é igualmente verdade que,
do ponto de vista normativo, ela também não escapou a esta mesma anormalidade,
trivializando-se ou tornando-se particularmente sombria.
Coerentemente, segundo a racionalidade de mercado, a justiça como
redistribuição está desatualizada, porque os tempos hodiernos são sobretudo de
justiça como reconhecimento (e, com efeito, esta é uma dimensão também
importante da justiça; ver Fraser & Honneth, 2005). Então, o mercado brilha
de justiça, porque, mais do que o Estado social, dá atenção às diferenças
culturais, para que os indivíduos continuem... como diferentes. Se estas
diferenças emergem sempre ligadas a uma determinada estrutura económica ou a
outros antagonismos relacionados com a ordem de status da sociedade
(interseccionalizadas com a classe, etnia, género, idade...) no próprio seio
das comunidades particulares, pouco interessa, tal como pouco importa se as
diferenças em questão apenas servem para acentuar, ocultando, a inferioridade
ou a subordinação (Fraser, 1997; Casa-Nova, 2013, 2014).
Mais. Se, nos tempos atuais, a justiça social, do ponto de vista redistributivo
ou económico (nomeadamente como justa distribuição dos recursos materiais),
pouco importa, a justiça política é de igual modo de pouca valia. E porquê?
Porque, num tempo de misticismo mercantil, uma das estratégias utilizadas para
persistir na ampliação e na consolidação das suas fantasias e para penetrar
mais facilmente em áreas tradicionalmente pouco ou nada exploradas é
precisamente a despolitização da vida pública e o esbatimento das tensões
sociopolíticas, pela via da harmonização de interesses e da fantasia do
consenso. Coerentemente, então, entender a justiça como eliminação da dominação
e da opressão institucionalizadas, ao nível da tomada de decisão ou do poder,
da divisão do trabalho e da cultura, na linha proposta por Young (1990), parece
ecoar como a voz subterrânea de tempos idos, quiçá do período jurássico, que
nos amedronta só de pensar no seu regresso.
Concluindo: trilhar o íngreme caminho da justiça social nestes tempos anormais,
de mal-estar, de predomínio do mercado, não é tarefa fácil, a não ser que a
justiça se descolore e se privatize e se torne, ela própria, uma fantasia
necessária de grande serventia para uns poucos e quase dispensável para os
restantes.
A melhor educação em tempos anormais
A educação vive, ou sobrevive, hoje num atoleiro de ideias hegemónicas, como
nos diz Clarke (2012, p. 307) quando refere: que o mercado exige o aumento da
produtividade como o último desígnio educacional e social; ou que a prestação
de contas, mais do que a confiança, deve ser a chave da excelência educacional;
ou que esta, realizada através de combinação de mecanismos de prestação de
contas gerencialista e por noções de escolha orientadas pelo mercado, é
compatível com a equidade; ou que a mesma prestação de contas é um assunto de
eficiência técnica e não uma escolha normativa; ou, finalmente, que a escolha e
a diversidade são as chaves da justiça social, recusando a possibilidade de
algumas diferenças poderem estar ligadas às desigualdades sistémicas e às
desvantagens estruturais. Ainda no dizer do mesmo autor, a ausência da política
também nas políticas educacionais neoliberais é o que carateriza
verdadeiramente os nossos tempos anormais, propiciando as medidas de
mercantilização, privatização, padronização e prestação de contas em muitos
sistemas educativos.
Na verdade, constata-se hoje (e sem questionar o processo referido de
despolitização) uma acentuação contraditória ao nível das políticas para a
educação e a formação: por um lado, defendem-se as políticas desregulatórias
face ao papel demasiadamente interventor do Estado, mas, por outro, enfatizam-
se as orientações de regulação (pretensamente apolíticas) favoráveis ao mercado
e que passam pela valorização, no seu grau máximo, dos procedimentos, entre
outros, de mensurabilidade e de comparabilidade internacional a que devem
subordinar-se os sistemas educativos e formativos de qualidade.
Complementarmente, ou por isso mesmo, perdura também na educação o debate em
torno dos limites e da definição do que deve entender-se por espaço público e
de qual deve ser o lugar da escola pública nesse mesmo espaço. Ainda que muitos
proponham a complementaridade entre o público e o privado ou a criação de redes
de interconexão entre eles, outros há que veem esta conciliação como um
artifício para a invasão e re-hegemonização do privado face ao público, para,
deste modo, fazer vingar na educação a narrativa da agenda neoliberal ou da
agenda da transformação sob o signo do livre mercado.
Indiferentes, pelo menos aparentemente, a estas polémicas consideradas quase
ociosas, têm surgido na educação iniciativas de pendor empresarial, como é o
caso de escolas concebidas como redentoras da educação e da formação de
qualidade e mais adaptáveis ao espírito dos nossos tempos, à economia do
conhecimento e à lógica de mercado, porque se apetrecharam mais adequadamente
para vender um produto, ou melhor, um privilégio (porque nem todos o podem
adquirir). Além disso, elas têm o apoio de outras organizações que podem
produzir mais rapidamente e com rigor kits educativos e formativos facilmente
manejáveis, obedecendo inclusive a uma pedagogia pronta-a-servir, que dispensa
os seus profissionais até de pensar!
Neste ambiente, encaixam-se perfeitamente bem as "ideologias de
conveniência" ou as ideologias fashion, como as da qualidade, das
competências, da auditoria, da avaliação, da certificação, da aprendizagem ao
longo da vida. Para além de revelarem um fino trato com os requisitos da
competitividade e da produtividade, ou com a narrativa mais ampla do progresso
através da economia do conhecimento global, estas ideologias exalam um perfume
inebriante pós-moderno, um sex-appeal de top models, que nos incapacitam, tal o
seu encanto delirante, de as rejeitar ou até de emitir um juízo menos
favorável! E haverá uma outra vantagem: enquanto ocuparem o espaço da
preocupação dos políticos e dos educadores, elas tornarão grandes e bem
cheirosos os seus seguidores.
E há ainda a grande ideologia da igualdade de oportunidades (figura cardinal da
justiça escolar, embora não passe de uma das suas formas, uma vez que pode ser
entendida, por exemplo, como igualdade de oportunidades meritocrática,
igualitária, compensatória ou liberdade natural), que estrutura os sistemas
sociais e educativos das sociedades liberais democráticas e que as torna
imbatíveis em termos de equidade e, aparentemente, de justiça social (ver, a
este propósito, Estêvão, 2001)! O princípio de igualdade de oportunidades é, na
verdade, necessário porque mobiliza vários princípios de justiça (e postulados
morais) numa sociedade democrática, concitando adesões provenientes de setores
ideologicamente desencontrados. E tanto é assim que, por exemplo, e como afirma
um declarado defensor do mercado, até "a reivindicação de igualdade de
oportunidade, ou de iguais condições iniciais, atrai muitos que, em geral são
favoráveis ao sistema de livre mercado, tendo sido por eles apoiada"
(Hayek, 1985, p. 105). Ou seja, grande sortilégio possui este princípio para
merecer tão grande consenso até de setores porventura inesperados! Perante
tamanho consenso, talvez se justifique que a melhor educação dos tempos
anormais deva continuar a passar obrigatoriamente por este ponto nodal da
ideologia educativa, porque alicerçado também numa certa ideia de justiça
entendida sobretudo como equidade.
Então, este critério da equidade, se compreendido como justiça na distribuição
de inputs de escolarização ou de acordo com a ideia de cada um receber segundo
a sua contribuição, pode revelar-se muito útil para incutir uma racionalidade
particularmente competitiva, meritocrática, coerente com um certo privatismo e
individualismo (Estêvão, 2002, p. 131) tão acarinhados pelo mundo mercantil.
Como consequências deste modo de ver a narrativa da equidade (reconhecendo, no
entanto, que há outras formas de a compreender não coincidentes com a
perspetiva aqui exposta, como, por exemplo, a de Rawls, 1993; ver Bolívar,
2005), temos, por exemplo: a valorização dos resultados em detrimento dos
processos e propósitos (intenções); a acentuação de que a aprendizagem ocorre
do mesmo modo incremental para todos; a mensuração da aprendizagem; a exigência
de que o conhecimento, as disposições e as capacidades se tornem em algo a ser
processado, gerido, parcelado (ver Thomson, 2013)... Assim sendo, nada impede
de afirmar que a justiça como equidade em educação poderá ser satisfeita
perfeitamente bem seguindo os ditames do mercado. Este mercado na educação
poderia até cumprir melhor a missão da justiça, removendo, por exemplo, os
constrangimentos das famílias no acesso a resultados e oportunidades;
aumentando, pela competição por alunos, a eficiência (seletiva); permitindo às
famílias escolherem a escola que melhor satisfizesse as necessidades
educativas; dando aos bons alunos oportunidades para serem ainda melhores;
tornando legítimas as desigualdades educativas e sociais porque resultantes da
competição escolar.
Num outro plano, são também cada vez mais as vozes que defendem que a própria
escola está a transmutar-se num "lugar de vários mundos" (Estêvão,
2004), de várias justiças, de vários direitos, de vários públicos, pelo que a
visão mais tradicional que a encarava como uma instituição, com uma função
socializadora e integradora claras das camadas mais jovens pelos valores dos
adultos, já não se adequa à nova ambição da escola. Esta deixou de ser, por
conseguinte, um templo onde se celebrava a "missa escolar" (expressão
de Dubet) para gente devota e devotada. Ela dessacralizou-se e é antes, e cada
vez mais, um espaço de cruzamento de várias racionalidades, de vários
princípios de justiça, onde se inclui, naturalmente, a lógica mercantil.
Então, esta exposição da escola à pluridimensionalidade, à presença de esferas
de justiça no seu interior, coloca-a perante desafios nem sempre fáceis de
serem contornados no que respeita à normatividade a seguir e à legitimidade a
defender; além disso, levanta dificuldades relacionadas com a sua governação,
dado que pode propiciar formas marcadamente gerencialistas, fiéis ao
receituário do new public management para todas as estações; esta
multidimensionalidade pode, ainda, conduzir à compreensão da escola como escola
light, onde tudo é possível, inclusive conviverem pessoas e utopias vazias, ou
valores contrastantes que acentuam a justiça do individualismo e da competição,
mas também graus variados de confiança e colaboração (ver Woods & Bagley,
1996), embora de fraca intensidade.
Mas se vivemos num tempo com uma tendência crescente para uma menor capacidade
de pensar e de argumentar e a favor de uma formatação funcionalista pelas
necessidades sociais e económicas originárias do mundo mercantil (nomeadamente,
e de forma mais clara, no ensino superior), não surpreenderá que a
racionalidade dos mundos empresarial e mercantil venha a exercer o seu fascínio
e influência na conceção e condução das organizações educativas, na conceção e
gestão dos currículos, entre outros aspetos, inebriando alguns espíritos mais
propensos à aceitação sem discussão das modas educativas e das suas insidiosas
ideologias de conveniência. E de tal modo poderá ser cativante esta
racionalidade que mesmo o êxito ou o fracasso escolar e social poderão ser
privatizados, remetidos para a área das opções individuais.
Malgrado as suas consequências pouco consentâneas com a natureza e metas da
educação, esta tendência privatista tem vindo a impor-se cada vez mais em nome
de uma melhor educação. E se tradicionalmente os sistemas educativos e as suas
organizações (designadamente as escolares) eram locais protegidos por discursos
de bem comum, de serviço público, hoje, pela necessidade de transformar a
educação num bem posicional privatizado, num setor de serviço crucial para o
crescimento e prosperidade da economia (ver Estêvão, 2006, 2012b), eles
tornaram-se em mecanismos a favor de lógicas apátridas, que vêm corrompendo a
sua verdadeira missão, em nome, contraditoriamente, de uma boa educação, mais
adequada e mais ajustada à formação do capital humano, ao perfil nómada,
autorreferencial, do homem de hoje, que se confronta cada vez mais com o
desafio de pensar apenas em si próprio... Por isso, renovam-se os apelos para
uma inversão desta tendência no sentido de a educação se estruturar na
preocupação da justiça social e da emancipação individual, reconhecendo-se
simultaneamente que, não raramente, o discurso educacional da justiça social,
vinculado até pela pedagogia crítica, tem corrido o risco de reforçar os
pressupostos do individualismo, da competição, do consumismo, que ajudam a
reproduzir a atual economia política injusta.
Combater as fantasias do mercado e os seus efeitos sociais e educativos será
então um objetivo que deverá presidir à educação crítica de hoje, deixando de
ser uma espécie de Cinderela dos tempos anormais, com o pé sempre pronto a
ajustar-se às medidas do sapato, ajudada pelas magias da fada-madrinha do
mercado. E isto exige, desde logo, que a escola não se confine a ser um simples
palco para representações estranhas à sua alma e aposte antes numa alternativa
que exercite as razões e os afetos, a racionalidade e a razoabilidade, a
justiça e o cuidado, o conhecimento e o reconhecimento, a crítica e a
solidariedade, o saber e a sabedoria.
Concluindo...
Segundo a nova ortodoxia global, a constelação discursiva dos nossos tempos
está crescentemente redefinindo os domínios de validade, normatividade e
atualidade, quer da democracia, quer dos direitos, quer da justiça, quer da
própria educação, de acordo com o racional económico dominante. O resultado de
tudo isto é que prevalece agora uma compreensão mínima de direitos e de justiça
social, evacuando-se, ou marginalizando-se, consequentemente, as políticas e as
práticas enformadas por abordagens substantivas de direitos e de justiça
social, a favor das caraterísticas políticas e sociais dos mercados que
enquadram e enformam as ações dos indivíduos, dos grupos e das organizações.
Do mesmo modo, a educação tende a apresentar-se, nos dias que correm, como um
subsetor da economia, como uma das melhores estratégias para o incremento da
competitividade, em que o cidadão que conta é o que pode transformar-se em
cliente ou em consumidor (e a mecânica supraindividual do mercado sabe
identificar, e determinar, bem os seus clientes ou consumidores preferenciais).
No mesmo sentido, as escolas que melhor servem este figurino são as mcEscolas
(Estêvão, 2004), com suas pedagogias prontas-a-servir para estudantes, que
devem ser encarados sobretudo como aprendentes e um pouco como cidadãos. Por
conseguinte, há que adequar os seus corpos e as suas mentes a tais desígnios
para não serem excluídos deste processo histórico e dos imperativos da
"pós-democracia" (Crouch, 2004).
Em contracorrente a este cenário e à tentativa de traduzir tudo o que é de
importância social como questão privada, há que revalorizar os direitos que nos
fazem existir como humanos com dignidade; a justiça social que nos dá o sentido
do nosso lugar e o sentido do lugar do Outro; e a educação que nos ajuda, mesmo
pelo seu utopismo, a encontrar um lugar de esperança, pois se há, neste mundo
anormal e de rendição, tantas vias para nos tornarmos cruéis, deverá haver pelo
menos uma para nos tornarmos mais humanos, mais justos, mais educados. E tudo
isto exige mais política, obviamente...