Controlo e identidade: a não conformidade durante a adolescência
Introdução
A adolescência aparece nas representações comuns associada a um período de
agitação, irreverência e inconformismo. Com efeito, os estudos sobre as
manifestações de desvio durante a adolescência tendem a revelar que cedo, por
volta dos 11-12 anos, a incidência dos actos infractores começa a crescer
acentuadamente e que, um pouco mais tarde, após os 16-17 anos, se regista um
declínio mais ou menos acentuado e rápido.1 Existem certamente infractores mais
novos e quase escusado será dizer que também os há para lá da idade dos 17
anos. Mas o que importa assinalar é o facto de em qualquer outro período de
vida não se registar uma proporção tão elevada de membros de um grupo etário
envolvidos em actividades infractoras. Torna-se, portanto, imperioso indagar as
razões que fazem da adolescência uma idade aberta e vulnerável ao desvio.
A análise sociológica sobre o desvio juvenil tem sido desenvolvida em torno de
dois modelos: o do controlo e o da subcultura.2 Na óptica do modelo de
controlo social, a conformidade desenvolve-se a partir dos laços que se
estabelecem com os outros e com as instituições convencionais, do envolvimento
com as orientações legítimas e da consolidação de crenças em torno da
legitimidade da ordem social. Durante a adolescência, as principais
instituições representantes da sociedade são a família e a escola, competindo-
lhes, por isso, a responsabilidade de assegurarem a conformidade dos jovens.
Ora a existência do desvio só pode sugerir um fracasso, pelo menos parcial,
dessas duas instituições sociais. A incapacidade das famílias e da escola para
exercerem uma supervisão sobre os adolescentes e para lhes incutirem o sentido
do autocontrolo estaria na base da eclosão das manifestações de não
conformidade. Nestas condições, faz sentido perguntar a que se deve este
aparente fracasso institucional. Por que razão não desenvolvem os jovens uma
profunda identificação com as relações, orientações e crenças convencionais? E
por que existe, pelo menos à primeira vista, uma supervisão fraca sobre os
jovens?
No segundo modelo encontram-se as explicações que apelam para o nível cultural
ou subcultural. O desvio é entendido como a adesão a normas, expectativas e
definições que diferem das normas, expectativas e definições dominantes na
sociedade e, por isso, torna-se reactivo em relação a estas. Como qualquer
outro tipo de comportamento, as manifestações de desvio resultam de um processo
de aprendizagem através de associações mantidas com os outros, em particular
com os que representam relações significativas, como pais e amigos, e com os
grupos de referência. Para o modelo subcultural a não conformidade passa pela
manifestação das atitudes de oposição à autoridade e desenvolve-se por
intermédio da acção do grupo. A escola assume um papel muito particular na
génese dessas manifestações na medida em que coloca o adolescente em contacto
com um mundo institucionalizado e formal que exige o respeito das regras que o
regulam. A realização dos deveres e das orientações, o consentimento da
disciplina e a aceitação das exigências e esforços escolares marcam a acção
conformista, enquanto a orientação contrária passa pela indiferença, rejeição e
resistência às prescrições normativas. Todavia, no contexto institucional da
escola, como explicar a emergência dessas manifestações de oposição? Como se
explica que apenas certos jovens assumam essas manifestações? Que causas
estarão na bifurcação entre as identidades conformistas e as não conformistas?
O confronto entre os dois modelos não poderá deixar de notar que o olhar que
traçam do problema do desvio na adolescência coloca aparentemente um dilema: o
desvio é resultante de um colapso das estruturas de autoridade e de controlo
social ou constitui uma resposta a problemas com que os jovens se confrontam no
processo de construção das suas identidades sociais. O desvio ocorre devido ao
facto de os jovens não serem suficientemente controlados? Ou deve ser entendido
como uma resposta às tensões entre um estatuto de dependência e o desejo de
autonomia?
A oposição dualista das questões não obriga a que as respostas sejam
necessariamente exclusivas. Certamente os dois modelos têm capacidade
heurística. Mas tal não significa que a influência por eles exercida seja a
mesma ou que um não possa assumir primazia em determinadas situações (e
problemas), não impedindo que noutras aconteça o inverso. Por exemplo, a
leitura a partir do modelo de controlo social permitirá compreender melhor os
mecanismos de controlo social que são actualmente exercidos pelas principais
instituições de socialização a escola e a família , enquanto o modelo de
subcultura não deixará de trazer à superfície a influência que os grupos, as
sociabilidades e as culturas juvenis desempenham no desenvolvimento das
identidades dos jovens. Partindo de pressupostos teóricos diferentes, os
modelos estão melhor ou pior apetrechados para iluminarem determinadas áreas da
vida dos jovens. Assim, mais do que procurar estabelecer uma primazia de um em
relação ao outro, o que motiva o presente artigo é dar conta de uma via de
articulação entre as dimensões relevantes dos dois modelos, cuja adequação à
realidade possa ser empiricamente confrontada e avaliada. Contudo, antes de se
descreverem os procedimentos através dos quais se testou a adequação de um
modelo de síntese, urge começar por evidenciar mais pormenorizadamente os
elementos relevantes dos modelos de partida e a forma como foram inseridos e
articulados num encadeamento explicativo alternativo.
A análise sociológica do desvio juvenil
O desvio pode ser globalmente entendido como dissidência em relação à norma. No
entanto, nem toda a divergência é desvio. Por exemplo, muitas das diferenças
culturais serão apenas lidas ou interpretadas como factos insólitos ou
idiossincráticos. A diferença transforma-se em desvio quando suscita uma
reacção negativa. É por isso que essas e outras diferenças, como as que
envolvem manifestações de originalidade ou de excepcionalidade, embora possam
demarcar-se da norma, dificilmente caem na categoria de desvio. Para este se
manifestar é necessário que a infracção seja acompanhada por uma reprovação
imediata e generalizada. O desvio é objectivado a partir de actos que
infringem normas legais e de outros considerados consensualmente como errados.3
O entendimento da infracção num sentido que ultrapassa a definição legal
permite integrar todo um outro conjunto de infracções, designadamente
escolares, que, independentemente da gravidade que possam representar, se
apresentam como elementos fundamentais para a caracterização e o
desenvolvimento da não conformidade juvenil. O uso alargado que se dá ao termo
infracção permite obter uma gama mais ampla de manifestações não conformistas e
tornar mais fácil e rica a tradução operacional do conceito de desvio juvenil.4
O modelo de controlo social
O ponto de partida das teorias de controlo considera que o problema sociológico
do desvio juvenil não consiste em explicar as razões que levam os jovens a
transgredir mas exactamente as inversas, ou seja, as razões por que não
transgridem.5 O problema que importa explicar não é o desvio mas a
conformidade, na medida em que a transgressão normativa constitui quase sempre
a obtenção de uma gratificação imediata. O impulso para a sua realização é,
consequentemente, natural. Só uma natureza perfeitamente socializada é capaz
de reconhecer a ilegitimidade do acto e, mais importante ainda, de inibir o
impulso para a sua realização. Neste sentido o desvio juvenil tem de ser
compreendido a partir da conformidade e dos mecanismos de controlo capazes de
provocarem a renúncia às gratificações ilegítimas.
O postulado básico do modelo de controlo sustenta que a emergência e o
desenvolvimento desses controlos só são possíveis através dos vínculos que se
estabelecem com os outros e as instituições convencionais, do envolvimento com
as orientações e actividades legítimas e da consolidação de crenças e
representações favoráveis ao ordenamento normativo da sociedade.6 A presença de
laços sociais fortes e intensos constitui uma condição necessária ao
desenvolvimento dos controlos sociais capazes de anularem ou neutralizarem o
impulso ou a motivação desviante.
Os controlos sociais representam dois aspectos da adesão à ordem social: o
interno e o externo. Quando as vinculações convencionais são intensas, um dos
incentivos de adesão advém do facto de não se desejar provocar a reacção ou a
desaprovação por parte dos outros. A acção normativa faz com que os jovens
experimentem sentimentos de realização e de aprovação quando a seguem e,
inversamente, sintam sentimentos de culpa ou de auto-reprovação quando se
comportam de forma incongruente relativamente a ela. A presença do controlo
interno traduz assim uma adesão voluntária à ordem moral, que, ao estabelecer
critérios de diferenciação entre as noções de certo e de errado, é capaz de
bloquear as manifestações anti-sociais e de promover, por esta via, a
conformidade social.7
Em contrapartida, os controlos externos sublinham a importância das reacções
negativas dos outros e das sanções, cuja origem é exterior ao indivíduo. Neste
tipo de controlo existem dois aspectos a considerar. Por um lado, o carácter
coercivo: as sanções impõem, pela força se necessário, restrições contrárias à
vontade do indivíduo. Por outro, a privação das gratificações e das recompensas
associadas à posição que se ocupa no grupo. A transgressão representa uma
ruptura em relação à ordem normativa do grupo, que afecta, pelo menos
temporariamente, a imagem e posição perante os outros, pondo em causa o
reconhecimento que se deseja preservar. A acção compensatória e punitiva que o
controlo externo exerce tende a inibir as disposições delituosas e a reforçar
as orientações convencionais. A conformidade é inspirada pelo receio das
sanções e reacções negativas.
A argumentação do modelo de controlo social está bastante próxima da teoria
de coesão social desenvolvida por Durkheim.8 A ligação do indivíduo ao grupo
promove uma série de controlos externos que compelem à acção normativa, mas,
simultaneamente, a identificação com os outros, que se desenvolve com base nos
laços sociais, incute e reforça o sentido do controlo interno. A permanente
acção do grupo sobre o indivíduo garante a conformidade. Se a intensidade dos
laços sociais diminuir, decresce também o sentimento de integração e a acção
dos controlos internos e externos. Nestas condições, as práticas e as
orientações conformistas deixam de ser reforçadas e o desvio abre-se como
possibilidade de acção.
O corolário do modelo de controlo é simples: a relação entre a conformidade
social e as manifestações de desvio tem de ser negativa. A presença da primeira
exclui as segundas, e vice-versa. Se existir conformidade, ou seja, se houver
identificações e afectos fortes com os outros, envolvimentos profundos em
actividades convencionais e desenvolvimento de vinculações duradouras às
instituições sociais, não pode haver desvio. Mas como explicar o aparecimento e
o desenvolvimento de identificações e afectos fortes, os envolvimentos
profundos e as vinculações duradouras? E em que condições poderão esses
desenvolvimentos e envolvimentos deixar de ocorrer e começar a regredir? Para
responder a estas questões, o modelo de controlo, na sua versão pura, tem
necessidade de recorrer à teoria da anomia.9 Esta teoria sustenta como elemento
explicativo fundamental das manifestações de desvio a disjunção entre as
aspirações e as expectativas. A impossibilidade de realizar por vias legítimas
as aspirações leva à procura de soluções ilegítimas. As manifestações de não
conformidade são precedidas da existência da tensão anómica.
Uma das formas de a anomia gerar uma menor conformidade social reside no facto
de afectar as condições de relacionamento e de comunicação familiares.
A existência de bons ou maus climas relacionais afecta não apenas a capacidade
das famílias de incutirem nos adolescentes orientações e valores convencionais,
como também mina a natureza e a eficácia dos controlos e da supervisão que
exercem sobre os filhos. A diminuição dos controlos familiares sobre os
adolescentes, em virtude das tensões anómicas, ajuda a compreender o
enfraquecimento da conformidade em sentido lato. Como essas tensões se exprimem
com mais intensidade nos grupos sociais situados na base da pirâmide social,
depreende-se a existência de uma variação inversa entre o relacionamento
familiar e as situações e posições socioeconómicas.
Uma segunda forma de a anomia condicionar os níveis de conformidade é através
do bloqueio das aspirações escolares, que se traduz no desinvestimento
educativo e no desenvolvimento de sentimentos de desinteresse, afastamento e
frustração em relação à escola. Para muitos jovens, as vantagens e os
benefícios futuros proporcionados ou prometidos pela escola estão para além dos
seus horizontes expectáveis. O bloqueio anómico abre um fosso entre o jovem e
as orientações, objectivos e práticas escolares, criando condições para o
aparecimento de atitudes de oposição escolar, prenúncio das manifestações de
desvio.
O mecanismo da disjunção entre as aspirações e as expectativas proporciona,
assim, uma explicação estrutural para o enfraquecimento dos laços sociais entre
os adolescentes e as instituições da família e da escola. Os grupos mais
sujeitos à tensão anómica tendem a exibir níveis mais baixos de conformidade
social. Neste aspecto, a teoria da anomia, ao articular a conformidade com as
posições e lugares dos actores sociais, alarga o âmbito explicativo do modelo
puro de controlo, colmatando algumas das suas insuficiências teóricas.
O modelo da identidade/subcultura
Na perspectiva subcultural, o início e o desenvolvimento da identidade e das
manifestações não conformistas têm como base o contexto do grupo. A acção não
conformista, como qualquer outro tipo de acção social, assenta em definições e
orientações adquiridas e assimiladas em contacto íntimo e intenso com os
outros, que, em virtude desses contactos, passam a assumir enorme importância e
significado, tornando-se referências fundamentais na estruturação do self. É
por isso que no grupo se consubstancia a ruptura com a conformidade e se
desenvolvem as aprendizagens e as motivações favoráveis ao desvio. Mas que
razões ou condições poderão levar um jovem a aderir a um grupo não conformista?
A análise sociológica tem proposto duas vias explicativas para o aparecimento
de valores oposicionais, através das quais se traduz o desenvolvimento
consistente das manifestações de não conformidade. A primeira equaciona a
relação entre classe e desvio, sendo este último entendido como uma prática ou
expressão juvenil que reflecte a tradição cultural dos grupos sociais que
poucos benefícios recolhem do sistema cultural e económico e não encontram
grandes razões para acreditarem em maiores benefícios no futuro. A segunda via
articula a relação entre o desvio e a identidade, assumindo que as
manifestações não conformistas não decorrem de um fundo classista, mas das
intermitências e das ambiguidades próprias das situações de indeterminação
objectiva da identidade. A gestão da relação entre a autonomia e a dependência
implica conflitos e contradições que podem levar a pontos de ruptura e a
atitudes de oposição em relação à ordem normativa. O desvio é visto como uma
consequência das experiências dos jovens, das rupturas e dos fracassos que
experimentam, ou das influências que derivam dos processos comunicacionais e
culturais que afectam a vida quotidiana juvenil. Como as duas interpretações do
modelo subcultural a classista e a da identidade têm implicações algo
distintas na interdependência entre os elementos que o integram, convém
examinar mais de perto os aspectos em que convergem e em que divergem.
(a) A leitura classista
A leitura classista do modelo subcultural explora, como se referiu, a via da
relação entre classe e desvio. A hipótese de o desvio ser uma prática juvenil
inscrita na tradição de determinados grupos sociais, designadamente dos que se
encontram mais próximos da base hierárquica da sociedade, é explicada pelo
facto de esses mesmos grupos desenvolverem valores e orientações mais
permissivos da violação do ordenamento normativo e legal da sociedade. Por
exemplo, o conceito de focal concerns, desenvolvido por Miller, procura
caracterizar as representações e as disposições, existentes nas lower
classes,favoráveis ao surgimento das manifestações e das práticas não
conformistas.10 Mesmo que essas disposições e representações não sejam em si
mesmas desviantes, o facto de não reforçarem os valores e as orientações
convencionais acaba por incentivar o aparecimento de atitudes e práticas
contrárias ao quadro normativo da sociedade. Um exemplo claro de como um
determinado fundo cultural de classe pode acabar por desenvolver práticas não
conformistas encontra-se no surgimento das atitudes de oposição escolar.
Segundo Willis, a existência, em determinados sectores das classes
trabalhadoras, de uma tradição cultural no sentido da indiferença e do cinismo
face à cultura escolar contribui decididamente para o surgimento de atitudes,
de repúdio em relação à escola, que se cristalizam numa postura de desafio à
autoridade escolar à medida que os jovens encontram no grupo a segurança e os
apoios mútuos necessários a uma resistência colectiva.11 A consolidação e o
desenvolvimento dessas atitudes no contexto de um grupo constituído por
elementos que partilham o mesmo sentido de rejeição pela escola, alimentam a
existência de outras formas de desvio.
Não se pretende insinuar a existência de um elo causal obrigatório entre as
atitudes de não conformidade escolar e a existência de práticas infractoras.
Quer umas, quer outras, são porventura originadas a partir de uma mesma moldura
cultural de classe que, para além de promover a rejeição escolar, exalta,
sobretudo no contexto da socialização masculina, determinados valores, como a
maturidade e a independência, susceptíveis de induzirem, em determinadas
circunstâncias, o envolvimento delinquente. Os jovens adolescentes dessas
classes têm de mostrar e provar que são homens, dedicando-se precocemente a
comportamentos identificados com o estatuto adulto. É a necessidade cultural da
afirmação de uma certa virilidade masculina que os leva a entregarem-se a
práticas que, em muitos casos, e atendendo à idade dos protagonistas, são, do
ponto de vista convencional, muito rapidamente consideradas desviantes.
A importância das práticas de lazer para os jovens menos conformistas resulta
em grande parte da necessidade de um espaço alternativo à escola onde possam
exprimir as suas identidades através de actividades e consumos distintos dos
que caracterizam os jovens mais convencionais. É nos tempos de lazer que a
acção do grupo mais influencia o desenvolvimento das identidades,
proporcionando a oportunidade para exaltar as atitudes de desafio e de oposição
à autoridade e, por outro, para dar sentido às práticas não conformistas em que
se envolve. O grupo apresenta-se, assim, como um contexto cultural de
assimilação de valores e de práticas favoráveis à não conformidade. É essa
aprendizagem a similitude das orientações e a convergência das práticas que
leva a falar em identidades ou subculturas delinquentes, cuja formação se faz
em função (por oposição) do exterior. Com efeito, o grupo constitui também uma
defesa face às reacções negativas dos outros e ao efeito estigmatizante dos
rótulos, que muito contribui para aumentar a consciência da diferença que
separa os jovens não conformistas dos outros jovens, cujas orientações estão
mais de acordo com o entendimento e com as expectativas normativas que a
sociedade, em sentido lato, alimenta em relação à adolescência.
Para a leitura classista do modelo subcultural, a delinquência é entendida
como um facto quase normal das práticas culturais dos jovens de determinados
grupos sociais. A associação entre o lazer e a delinquência é vista como a
manufactura da excitação, ou seja, como uma forma de injectar na vida alguma
coisa de significativo e de interessante que se contraponha à percepção de uma
realidade quotidiana cheia de tédio e de fastio e em que nada acontece. Neste
sentido, a subcultura pode ser interpretada como uma celebração cultural do
período juvenil, período esse que é transitório e de curta duração e que
termina com a transição para a vida económica e as responsabilidades adultas.
(b) A leitura em torno da indeterminação objectiva da identidade
A segunda linha de interpretação do modelo subcultural demarca-se
essencialmente da primeira em relação à génese do desvio. A questão da classe
social perde prevalência a favor do problema da indeterminação objectiva da
identidade. A tensão entre o estatuto de dependência e o desejo de autonomia
constitui uma característica da situação dos jovens na sociedade e tem um peso
considerável nas orientações e nos dilemas juvenis que estão na base do
desenvolvimento da identidade conformista ou desviante. É por reconhecer a
importância desta fase para a identidade dos indivíduos que a sociedade permite
e encoraja que a adolescência seja um tempo de vida em que os adolescentes
possam adiar as decisões mais importantes relativas à identidade e dedicar-se à
experimentação de papéis, no sentido de descobrirem a espécie de pessoa que
são e o tipo de pessoa em que desejariam tornar-se. É o reconhecimento de um
tempo em que as decisões são temporariamente suspensas, que é designado, por
Erikson, por moratória psico-social.12 Embora podendo trazer confusão e
distúrbio, a vivência de um período de moratória é necessária como forma de
ligar e cruzar, no final da fase, a experimentação subjectiva da identidade com
a objectivação social da mesma. A articulação destes dois aspectos da
identidade o interno e o externo , ou seja, entre a imagem que o sujeito tem
de si mesmo e aquela que o seu grupo ou meio social tem dele, é a condição que
permite ao sujeito apresentar-se congruente e seguro nas suas relações com os
outros e com o mundo.
A representação da adolescência como uma moratória psico-social é
historicamente recente. Só pode haver moratória nas sociedades em que os
jovens, ou, pelo menos, uma proporção importante deles, não estejam confinados
ao mundo do trabalho e possam beneficiar de um período de liberdade e de
escolha, proporcionado pelo acesso a uma condição estudantil prolongada. O
problema da busca de uma identidade, como salienta Sedas Nunes, não se coloca
nas sociedades tradicionais, onde a generalidade dos jovens é, logo após a
infância, rapidamente absorvida pelas estruturas do mundo do trabalho.13 Nessas
sociedade a identidade é socialmente atribuída e imposta à grande maioria dos
jovens.14 O jovem nunca se vê perante um problema de indeterminação da
identidade, mas, quando muito, enfrenta um problema de identificação com o
adulto em que irá tornar-se e com o destino social que, de antemão, lhe está
reservado. Nas sociedades modernas, pelo contrário, a mudança social e a
mobilidade permitida pela escolaridade tornam o futuro menos condicionado pelas
origens sociais ou profissionais das famílias. O jovem vê-se perante o desafio
e a necessidade de uma busca de identidade, de cuja constituição muito
dependerá a sua própria capacidade de agir e de se afirmar na sociedade.
O prolongamento contínuo da escolaridade tem permitido tornar os adolescentes
mais livres, mais autónomos e mais capazes de fazerem escolhas menos
condicionadas pelo passado, pelas origens sociais ou pelos preconceitos. A
existência de um período de moratória, praticamente generalizado ao conjunto
dos jovens (embora, como é evidente, com durações diferenciadas nas várias
categorias juvenis), deveria torná-los mais conscientes das suas possibilidades
e mais capazes de alcançarem o seu lugar no mundo. Contudo, algo
paradoxalmente, a tendência que se observa na sociedade, segundo M. Baethge,
vai no sentido de fazer deles indivíduos desamparados e isolados, que não sabem
muito bem qual e onde é o seu lugar na sociedade e que olham o futuro com
incerteza e insegurança.15 Como compreender que uma maior liberdade de escolha
não conduza a uma definição social de si mesmo mais segura e completa?
O alongamento contínuo da escolaridade e a criação de meios sociais
juvenis,16 por um lado, e a diminuição da importância do trabalho enquanto
domínio de experiência imediata, por outro, têm contribuído para o aumento do
número de jovens que se vêem confrontados, durante períodos mais ou menos
longos das suas vidas, com uma situação de moratória e de objectiva
indeterminação social.17 Muitos jovens têm visões negativas e pessimistas em
relação ao futuro justificadas ou não por razões objectivas, como a crise
de emprego ou a concorrência acrescida, ou por razões subjectivas, como a
falta de confiança que depositam em si mesmos e outros nem chegam a ter
opinião, na medida em que não acreditam, nem têm razões para acreditar, que o
futuro lhes reserve um destino promissor e socialmente gratificante. Para esses
jovens, a dissociação entre o presente e o futuro faz com que a construção
subjectiva não seja projectada temporalmente para a frente, mas se apresente
focada sobre si mesma e encerrada nas solicitações e gratificações do presente.
É neste sentido que M. Baethge fala de um maior sentido de isolamento e de
indeterminação na adolescência actual. A existência subjectiva é vivida como
descontinuidade porque não é possível, nem credível, assegurar uma continuidade
temporal. O sentido de indeterminação pode, assim, contribuir para o
aparecimento de manifestações não conformistas. Pense-se, por exemplo, na
escola. Há menos motivação para se conformar às exigências e disciplina
escolares quando se espera pouco da escola. A confluência entre o investimento
escolar e o acesso a uma situação profissional desejada que garanta a autonomia
social e económica é incerta. A incapacidade de estabelecer um vínculo directo
entre a situação escolar presente e a situação futura leva muitas vezes
determinados sectores juvenis a desinvestirem no percurso escolar. Os grupos
juvenis que experimentam a vivência escolar como uma frustração e uma
impotência têm menos razões para aceitarem e se conformarem com as regras
escolares. Segundo a perspectiva de Emler e Reicher, é a partir do contexto
institucional da escola que começam a emergir as identidades não
conformistas.18 Os jovens que aceitam as regras institucionais e acreditam nas
expectativas profissionais proporcionadas pelo currículo académico têm mais
possibilidades de vir a desenvolver identidades conformistas. A maior parte dos
jovens lida com o problema da indefinição, aderindo à conformidade, investindo
nos trajectos escolares e restringindo a experimentação de papéis aos que são
compatíveis com o modelo convencional da adolescência. Mas para outros não há
identificação com a escola. A desilusão e a frustração que sentem em relação à
conformidade escolar fazem com que explorem outros papéis e realizem
experiências que os afastam do percurso normativo comum.
A leitura do modelo subcultural a partir do problema da identidade contrasta
com a interpretação classista no que diz respeito à questão da classe social.
Ao contrário do que pretende a leitura classista, as atitudes oposicionais
não são um exclusivo dos jovens das classes com menos recursos. Há provas da
existência de subculturas constituídas por elementos de outras classes e que
traduzem a mesma frustração e desilusão em relação à escola. Para Willis, a
diferença entre a natureza de classe das subculturas reside na articulação que
estabelecem com as culturas parentais. No caso das subculturas dos jovens
originários dos sectores com menores recursos socioeconómicos existe uma
continuidade cultural entre os valores que os jovens sustentam nas suas
atitudes oposicionais e os que orientam os destinos e as práticas de vida dos
pais. Essa continuidade é vista como uma forma de garantir a reprodução
cultural das classes dominadas. Nada disto existe ao nível das manifestações
culturais dos jovens das classes médias. Não há qualquer articulação cultural
entre as atitudes oposicionais e a cultura parental. Neste sentido, a
ruptura com a conformidade não é apenas vista em função da moldura cultural que
envolve as classes sociais, mas depende também da forma como os problemas
resultantes da indefinição social são vividos. A não conformidade não se
confina necessariamente a determinados segmentos juvenis, designadamente aos
sectores menos inseridos das classes populares, mas tende a manifestar-se por
todo o espectro juvenil.
Apesar destas divergências, ambas as perspectivas a classista e a da
indeterminação objectiva da identidade convergem num ponto fulcral, ao
assinalarem que o desvio juvenil começa pelas atitudes de oposição à autoridade
escolar e desenvolve-se por intermédio da acção do grupo. A escola representa
para o adolescente um mundo institucionalizado e formal que exige o respeito
das regras que o regulam. A realização dos deveres e das orientações, o
consentimento da disciplina e a aceitação das exigências e esforços escolares
marcam a acção conformista, enquanto a orientação contrária passa pela
indiferença, rejeição e resistência às prescrições normativas. É a partir das
relações institucionais que as escolhas entre as identidades conformistas e de
oposição vão sendo desenvolvidas, mas é no e pelo grupo que se encontram e
aprofundam as referências, os apoios e a modelagem necessários ao
desenvolvimento da identidade. E, se o grupo é sempre fundamental para o
processo de maturação juvenil, assume ainda mais significado no caso dos jovens
não conformistas. Porque, para estes jovens, o grupo constitui, por vezes, o
único espaço de aceitação e integração sociais perante a adversidade do mundo
convencional. Sem as referências para a modelagem das reacções oposicionais e
sem a sustentação proporcionadas pelo grupo, a afirmação da identidade não
conformista seria, com certeza, muito mais difícil.
Juntar as partes num novo modelo
O principal ponto de convergência entre o modelo de controlo e o modelo
subcultural, a partir do qual se estruturou um encadeamento explicativo
alternativo, diz respeito ao facto de o desvio ser precedido pelo
desprendimento em relação à conformidade social. Esse desprendimento ganha
particular visibilidade a partir do contexto escolar e traduz-se através das
atitudes e associações grupais de oposição. A importância que os dois modelos
atribuem a estas duas manifestações de não conformidade não é naturalmente a
mesma. O modelo de controlo considera que essas manifestações decorrem da
desvinculação dos laços sociais, especialmente em torno das duas principais
instituições que, perante o adolescente, representam a sociedade: a família e a
escola. Laços familiares e escolares frouxos deverão assim acompanhar e,
provavelmente, anteceder a prática infractora. Do lado do modelo subcultural,
as atitudes de oposição são vistas, na interpretação classista do modelo,
como resultantes da antinomia entre a cultura escolar e a cultura de
determinadas fracções de classe, enquanto na interpretação em torno da
indeterminação social, como traduzindo a oposição aos modelos que reflectem as
expectativas normativas da sociedade em relação aos adolescentes. Quanto às
associações grupais, ambas as interpretações subculturais concordam com o facto
de ser no e pelo grupo que se encontram e se aprofundam preferencialmente as
referências, os apoios e a modelagem necessários ao desenvolvimento das
práticas e das disposições delituosas.
A ruptura em relação à autoridade escolar é um elemento de importância
fundamental para o desenvolvimento de uma identidade não conformista, na medida
em que é na escola que o adolescente encara a conformidade de uma forma
institucionalizada e formal, observando regras, deveres e disciplina. É a
partir das suas atitudes e respostas a esse funcionamento institucionalizado
que as escolhas entre orientações conformistas ou de oposição vão sendo feitas.
Os jovens que aceitam as regras institucionais e acreditam nas expectativas
profissionais proporcionadas pelo currículo académico têm mais possibilidades
de vir a desenvolver identidades conformistas. Pelo contrário, os jovens que
começam a manifestar atitudes de oposição aos deveres, disciplina e regras
escolares abrem-se para os processos de construção da identidade não
conformistas. A conformidade escolar assume-se, assim, como uma variável muito
relevante nos percursos normativos dos jovens.
A ruptura no contexto institucional da escola é ainda importante por uma outra
razão. Só a escola pode proporcionar tão facilmente um grupo que sirva de
suporte e de referência, quer para a modelagem inicial das primeiras reacções
de oposição, quer para a consolidação, numa fase posterior, de uma
solidariedade colectiva e de um reforço mútuo, sem os quais não é possível
desenvolver significados partilhados em torno da construção de uma identidade.
Na perspectiva de Willis, o grupo proporciona também os contactos que permitem
ao indivíduo construir mapas alternativos da realidade social, fornecendo peças
de informação que lhe permitem perceber por ele mesmo como as coisas
funcionam.19 A construção colectiva pode ser vista como um ponto de partida
para a criação de uma subcultura juvenil que proporcione um contexto social e
simbólico para o reforço e a defesa pública da identidade (delinquente), ao
mesmo tempo que protege e anima a auto-estima individual.
Dos elementos evocados a partir dos modelos de referência decorrem algumas
importantes causas do desvio juvenil, a saber: a desvinculação institucional,
as atitudes de oposição normativa, a atitude perante a conformidade escolar,
a influência de classe e a do grupo. Parece evidente que a este conjunto de
factores não pode ser atribuído o mesmo estatuto explicativo. Alguns factores
precedem claramente outros. Não parece muito problemático admitir que a
desvinculação familiar, as orientações normativas e a influência cultural da
classe precedem, em termos de um encadeamento explicativo, as manifestações de
grupo e a não conformidade ou desvinculação escolar. Esta precedência não
estabelece a priori qualquer juízo sobre a importância relativa de cada
elemento. Apenas desdobra em duas etapas o processo que conduz às manifestações
de desvio. À primeira caberá iniciar o processo, enquanto à segunda estará
reservado um papel de mediação.
O problema que agora se coloca é o de saber que tipo de relações podem ser
estabelecidas no interior da cada uma dessas etapas e de que modo essas
relações podem ser lidas e interpretadas sem desvirtuar a lógica explicativa
dos modelos de referência. Começando por considerar os factores que surgem na
primeira etapa, é possível constituir três pares de relações, ordenados segundo
um critério de precedência.
(a) Uma primeira relação a ser equacionada liga a classe social à família. Esta
relação é particularmente crítica para o modelo de controlo devido à
importância que atribui à vinculação familiar, mesmo sabendo que o papel
explicativo dado à classe é pouco relevante. O enfraquecimento dos laços
familiares é tudo quanto o modelo, na sua versão pura e dura, necessita de
sustentar para explicar o surgimento das manifestações de não conformidade. No
entanto, para encarar as questões deixadas sem resposta, designadamente para
explicar o aparecimento e o desenvolvimento de identificações e afectos fortes,
o modelo de controlo tem, como se viu, necessidade de recorrer à teoria da
anomia. Através desta teoria é possível estabelecer uma articulação entre
classe e família. A tensão entre aspirações e expectativas, que caracteriza a
manifestação anómica, tende a afectar as condições de relacionamento e de
comunicação familiares, minando a natureza e a eficácia dos controlos que os
pais exercem sobre os adolescentes. Como a tensão anómica atinge mais
intensamente os gupos sociais situados na base da pirâmide social, pode
admitir-se que os climas relacionais variarão em função das situações
socioeconómicas das famílias.
(b) Uma segunda relação estabelece um elo entre a classe e as orientações
normativas. A relação assume importância fundamental para a interpretação
subcultural na medida em que pressupõe a existência de orientações e
disposições que se afastam das expectativas convencionais. No entanto, existem
divergências entre a interpretação classista e a interpretação em torno da
indeterminação da identidade. Para a primeira, as disposições e as
representações culturais associadas a determinadas classes sociais podem, em
determinadas circunstâncias, favorecer o desenvolvimento de percursos não
normativos, tornando directa a imbricação entre classe e manifestações de
oposição normativa, designadamente escolar. Para a segunda interpretação, as
causas que fazem com que determinados jovens enveredem por afirmações de
oposição em vez de seguirem por percursos mais convencionais radicam mais nas
situações de indeterminação social do que nas situações de classe. Por exemplo,
é fácil observar que os jovens das classes médias beneficiam de ambientes
mais liberais e, até certo ponto, mais permissivos em relação às orientações
e manifestações não conformistas, pelo que esses jovens gozam de uma maior
amplitude ao nível da experimentação de papéis e do aprofundamento dos
aspectos subjectivos da identidade, facilitada ainda pela existência de
recursos socioeconómicos mais avantajados. É possível que essa maior liberdade
de que beneficiam possa ser, em alguns casos, usada como forma de explorar, não
a aproximação à ordem social, mas ao mundo da não conformidade. Pelas objecções
aludidas, não há razão para supor ou estabelecer a priori uma relação
necessária entre classe e orientações normativas.
(c) A última relação considera o par formado pela família e as orientações
normativas. Das três relações analisadas esta é a que causa mais dificuldade em
termos da fixação de uma ordem de precedência. Para a argumentação do modelo de
controlo as representações e as crenças favoráveis ao ordenamento normativo da
sociedade constituem, tal como a intensidade do relacionamento familiar,
dimensões fundamentais dos laços e das vinculações sociais através dos quais se
traduz a conformidade social. Sob este ponto de vista não faz muito sentido
estabelecer uma ordem de precedência. Mas o mesmo não se passa no que respeita
à interpretação em torno da indeterminação da identidade. Com efeito, é
perfeitamente plausível admitir que estratégias relacionais familiares têm um
impacte considerável na formação e desenvolvimento das orientações normativas
do jovem, podendo constituir um elemento decisivo de escolha entre os percursos
e modelos conformistas ou não conformistas. A hipótese, de base psicológica,
que se sugere sustenta que a conflitualidade intrafamiliar pode deslocar-se dos
pais, representantes do poder e da autoridade na família, para aqueles que
detêm o poder e a autoridade na ordem social em que o jovem
preferencialmente se insere, ou seja, a escola. Esta transferência é tanto
mais provável quanto facilitada pelo encontro com grupos constituídos por
membros que partilham da mesma agressividade em relação à autoridade escolar.
As estratégias relacionais familiares, através do mecanismo da transferência,
podem fomentar atitudes de oposição e orientações não convencionais,
definindo, deste modo, uma relação de precedência.
O conjunto das três relações estabelecidas entre os elementos considerados
causas mais remotas dos motivos e das reacções das manifestações de desvio
exerce naturalmente um efeito sobre os elementos que desempenham o papel de
mediação, isto é, as atitudes de oposição escolar e as associações não
convencionais. O condicionamento destes elementos a causas anteriores não lhes
limita o papel explicativo que desempenham na lógica do processo. Para o modelo
subcultural, independentemente da versão em que se apresente, o papel de
mediação é fundamental na medida em que o grupo é o principal catalizador das
manifestações do desvio. É evidente que esta proposição não é subscrita pelo
modelo de controlo, que tenderá a considerar as atitudes e as associações
grupais como meros reflexos da desvinculação social. Sob este ponto de vista os
factores de mediação contribuirão muito menos para a explicação do processo. No
entanto, o esclarecimento da importância desses factores terá de ser
empiricamente averiguado, pelo que apenas resta assinalar que o desenvolvimento
das atitudes e associações de oposição é condicionado por influências
normativas, familiares e culturais.
Até ao momento o encadeamento causal que se estabeleceu determina que o desvio
seja precedido por atitudes de oposição escolar e associações a amigos ou a
grupos não conformistas, que, por sua vez, são resultantes das articulações
estruturais entre influências culturais de classe, estratégias relacionais
familiares e orientações normativas. Para terminar a especificação completa do
modelo de síntese é necessário reter ainda três elementos que, apesar de
secundarem a argumentação dominante dos modelos de referência, não deixam de
constituir peças importantes na compreensão do processo de formação da conduta
de desvio. São eles: os sentimentos negativos, as reacções negativas dos outros
e a importância das práticas de lazer.
A leitura desses elementos sob a perspectiva do modelo de controlo é
relativamente simples. Os dois primeiros constituem exteriorizações dos
controlos interno e externo e podem ser vistos, juntamente com o terceiro
elemento, embora este não integre a lógica explicativa do modelo, como
consequências do afrouxamento dos laços sociais. A desvinculação do jovem em
relação à ordem social, que significa o afastamento relacional da família e da
escola e a afirmação de atitudes de oposição normativa, pode dar origem não
apenas a determinadas manifestações de não conformidade, conforme foi referido,
como também ao surgimento de sentimentos negativos de aceitação social e de
valoração do self. Este último aspecto chama a atenção para uma particularidade
da lógica explicativa do modelo de controlo. A bem dizer, a explicação que
propõe não se limita apenas ao desvio podendo, inclusive, estender-se a outros
comportamentos problemáticos. O aparecimento de sentimentos negativos e mesmo
de alienação pode também ser visto como um resultado possível da desvinculação
normativa e social aos outros e às instituições convencionais.
Lamentavelmente ou não o modelo de controlo não chega a propor uma explicação
que permita articular entre si os subprodutos derivados da ruptura dos laços
sociais nem tão-pouco um encadeamento causal completo para o desvio juvenil.
Neste ponto a explicação subcultural tem primazia na medida em que apresenta as
associações grupais não conformistas, constituídas a partir dos
condicionalismos estruturais já referidos, como o local social para a
assimilação e desenvolvimento das aprendizagens e dos incentivos necessários às
práticas de desvio. A importância do grupo no processo de desenvolvimento
dessas práticas explica também por que razão as reacções negativas dos outros e
a participação nas práticas de lazer juvenil aparecem associadas a esse
processo. Quanto ao papel dos sentimentos negativos a ligação não é tão óbvia
nem directa, pelo que será posteriormente tratada.
A formação do grupo inicia-se a partir das atitudes de não conformidade, mas
precipita-se e consolida-se através de dois mecanismos. Um deles reside nas
reacções dos outros à medida que os elementos do grupo crescem nas suas
atitudes de oposição e de desafio à autoridade. Os rótulos, as censuras e,
eventualmente, as sanções que os outros, em especial os agentes de controlo
social, lhes dirigem podem, em alguns casos, contribuir para uma certa
moderação das actividades, mas não deixam de reforçar a consciência interna da
diferença perante o exterior, acentuando e reforçando a coesão do próprio
grupo. Para o modelo subcultural, as reacções negativas e o efeito
estigmatizante fazem parte do processo de desenvolvimento e do reforço das
associações desviantes.
O segundo canal para o desenvolvimento das manifestações não conformistas
passa, como é evidente, pela criação das actividades internas. O grupo
desviante não se encontra comprometido com a conformidade escolar e muita da
sua afirmação passa inicialmente por tudo aquilo que representa a negação da
autoridade escolar. A importância das práticas de lazer para os jovens menos
conformistas resulta em grande parte da necessidade de um espaço alternativo à
escola onde possam exprimir as suas identidades através de actividades e
consumos distintos dos que caracterizam os jovens mais convencionais. É nos
tempos de lazer que a acção do grupo mais influencia o desenvolvimento das
identidades, proporcionando a oportunidade para, por um lado, exaltar as
atitudes de desafio e de oposição à autoridade e, por outro, dar sentido às
práticas não conformistas em que se envolve.
Quer as reacções dos outros, quer a participação nas actividades de lazer
constituem dois elementos importantes no desenvolvimento grupal que sustenta o
processo do desvio juvenil. Os sentimentos negativos não assumem relevância
explicativa, mas como decorrem da existência das reacções dos outros podem ser
integrados na argumentação subcultural. Com efeito, as reacções negativas dos
outros constituem a resposta inicial às manifestações de desvio. Através da
aplicação de rótulos estigmatizantes, o jovem infractor tem consciência de que
praticou actos ilícitos e de que é alvo da censura dos outros. A aplicação
desses rótulos gera uma auto-imagem depreciativa, a partir da qual se
desenvolvem sentimentos negativos. Para escapar ou aliviar a tensão que a
existência desses sentimentos provoca, o jovem desenvolve respostas defensivas.
Segundo Kaplan, a razão que leva um jovem a perder a motivação para se
conformar reside no facto de os sentimentos negativos, que se originam em
consequência da experiência depreciativa de ser publicamente identificado e
censurado como desviante, acabarem por ser associados à ordem convencional.20 O
jovem infractor antecipa que vai ser alvo de um processo de estigmatização e de
censura por parte dos outros que o levará a uma certa exclusão da ordem
convencional e do acesso a determinados recursos, incluindo a aceitação social.
O jovem adquire então motivação para se desviar das normas convencionais,
porque as respostas não conformistas podem representar uma resposta defensiva
em relação aos sentimentos negativos, mas podem também constituir uma resposta
negativa em relação ao mundo convencional que surge associada à experiência de
rejeição social. Os sentimentos negativos de auto-rejeição poderão assim
afectar de forma decisiva o investimento dos jovens na ordem convencional.
Método e dados
A junção dos modelos de controlo e subcultural elegeu um conjunto de variáveis
intervenientes no processo de desenvolvimento das manifestações de desvio e
identificou um encadeamento causal, especificando as relações que essas
variáveis estabelecem entre si. O problema que agora se coloca é o de saber se
o conjunto de relações teoricamente inferido encontra sustentação empírica. Por
outras palavras, trata-se de avaliar a plausibilidade de um encadeamento causal
com base num sistema hipotético de relações. O modelo causal foi estimado
recorrendo às matrizes de covariação das variáveis mensuráveis como input do
programa EQS.21 Este programa constitui uma abordagem às aplicações SEM
(structural equation modelling) e permite analisar estatisticamente um modelo
hipotético de relações entre variáveis e testar simultaneamente essas relações
em ordem a avaliar a sua consistência com os dados. A tarefa prioritária para
inferir a validade ou a rejeição do modelo consiste em determinar a qualidade
de adequação (goodness-of-fit) entre o modelo hipotético e os dados.22 Se o
nível de ajustamento for adequado, aceita-se a plausibilidade das relações
descritas; caso contrário, isto é, se o modelo e os dados forem inconsistentes,
então a plausibilidade do modelo pode ser rejeitada.
O modelo causal que é sujeito à metodologia SEM é constituído por duas partes:
o modelo de medição, baseado na análise factorial confirmatória, que especifica
as ligações entre as variáveis latentes e os indicadores observáveis, e o
modelo estrutural, que especifica as relações entre as variáveis latentes. As
relações entre os indicadores observáveis e as variáveis latentes são expressas
através dos coeficientes de saturação factorial, enquanto as relações
estruturais entre as variáveis latentes do modelo são representadas como
coeficientes de regressão. Por uma questão de economia, a análise centrar-se-á
sobretudo nas relações estruturais, deixando para anexo a descrição dos modelos
de medição, isto é, a relação entre os indicadores observáveis e as variáveis
teóricas. Importa ainda sublinhar que os efeitos estruturais são determinados
sob a assunção de que toda a variação fidedigna entre os indicadores
observáveis pode ser explicada em termos das variáveis teóricas. Neste sentido
o modelo avalia o impacte do sistema hipotético de relações causais na produção
do desvio juvenil.
O sistema de relações causais ou estruturais entre as variáveis latentes
encontra-se reproduzido na figura_1. As setas que ligam as variáveis recobrem o
encadeamento causal derivado da junção do modelo de controlo e os números que
as acompanham representam os coeficientes estruturais estandardizados. Na
variável dependente surge indicado o R2. As relações estatisticamente
significativas são assinaladas através de um asterisco. Devido a limitações de
espaço, a parte relativa à medição das variáveis latentes não aparece
especificada no modelo, podendo, no entanto, consultar-se em anexo os
indicadores que as integram.
Figura 1 - Modelo de síntese
Notas: as medidas de goodness-of-fit para o modelo são o quiquadrado com 152
graus de liberdade e o comparative fix index=0,926. A figura reproduz apenas a
parte substantiva ou estrutural, deixando para anexo a descrição das variáveis
observáveis em que assentam as variáveis latentes referidas no modelo. O
asterisco associado ao parâmetro indica que o coeficiente não estandardizado
correspondente é estatisticamentesignificativo (a um nível de significância de
0,05).
Os dados que permitirão avaliar a plausibilidade do modelo baseiam-se numa
amostra retirada de uma população-estudo constituída pelas turmas do 7.º ao
11.º ano de escolaridade das escolas públicas da região da Grande Lisboa,
abrangendo à volta de duzentas escolas. A partir desta base operacional
construiu-se uma amostra em duas etapas. Na primeira foram eleitas vinte
escolas, representando aproximadamente 10% do total de escolas. Na segunda
seleccionaram-se as turmas com base num critério de proporcionalidade que
permitiu dar um peso maior às escolas com uma população mais elevada. Uma vez
seleccionada a turma, todos os alunos presentes no dia de realização do
inquérito foram entrevistados durante o decurso normal do horário escolar. A
amostra a que se chegou, constituída por 1791 indivíduos, garante, em termos de
representatividade, uma margem de segurança confortável, mesmo atendendo ao
facto de se basear num procedimento em etapas múltiplas.
Resultados e interpretações
Os resultados obtidos confirmam o pressuposto central do modelo de síntese,
segundo o qual o envolvimento em práticas de desvio é precedido pelo
desenvolvimento de atitudes e associações de não conformidade. Em particular,
as associações grupais não conformistas, que constituem um dos principais
elementos do processo de desvinculação normativa, representam seguramente o
aspecto mais nevrálgico de todo esse processo. Com efeito, o grupo parece
constituir o factor que maior influência directa exerce sobre as práticas de
desvio. O valor do coeficiente que liga as duas variáveis não só é o mais
elevado de todos os que se encontram relacionados directamente com essas
práticas, como também é um dos que atingem maior magnitude absoluta (0,51).
Este valor apenas comprova o argumento subcultural de que o grupo proporciona o
contexto de interacção face-a-face mais adequado à assimilação de definições e
disposições não convencionais e à aquisição de aprendizagens, incentivos e
apoios da acção delituosa. A acção infractora, como qualquer outro tipo de
acção social, assenta em definições e orientações adquiridas e assimiladas em
contacto íntimo e intenso com os outros, que, em virtude desses contactos,
passam a assumir enorme importância e significado, tornando-se referências
fundamentais na estruturação do self. É por isso que no grupo se consubstanciam
e se desenvolvem as aprendizagens e as motivações favoráveis à ruptura com a
conformidade. Deste modo, fica estabelecido que, de todas as variáveis que
encadeiam o processo de desvio, a que surge como causa mais imediata incide,
sem sombra de dúvida, na pertença a um grupo não conformista.
O modelo também traz informação e validação para o encadeamento causal
proposto, no sentido de considerar a pertença ao grupo não conformista como uma
consequência da ruptura em relação à conformidade escolar, cujo início radica
no surgimento das atitudes oposicionais em relação à autoridade, mas se
prolonga pelas atitudes, comportamentos e estilos de vida que se expressam nas
subculturas e nos espaços de lazer representados pela participação na cultura
pública juvenil. Com efeito, a ruptura em relação ao quadro normativo escolar
representa não só o início do processo de desvio, mas também a motivação que
conduz e estimula a procura de associações não convencionais. Segundo o modelo,
a partir da ruptura escolar é também possível passar directamente para o
desvio, não sendo, por conseguinte, imprescindível a presença do grupo, embora,
como se disse, este desempenhe papel fundamental.
A ruptura escolar traz ainda outra consequência: a de permitir aprofundar a
participação na cultura pública juvenil. É certo que as associações não
conformistas acentuam também essa participação (0,16), mas o efeito da ruptura
escolar é bastante mais significativo (-0,45). Os jovens que sentem a
experiência escolar como aborrecimento e frustração tendem a voltar-se para os
espaços de lazer como forma de reinvestirem positivamente nas suas identidades
fora do quadro das actividades escolares. As contraculturas juvenis,
independentemente de terem origem nas classes populares ou nas classes médias,
formam-se nos interstícios entre a rejeição escolar e os espaços de lazer. A
relação negativa entre a conformidade escolar e a cultura pública juvenil
comprova exactamente que o lazer e os tempos livres são espaços privilegiados
de emergência dessas subculturas oposicionais, cujo impacte no desvio não
pode deixar de ser assinalado (0,17).
Outro elemento importante para se compreender a consolidação das associações
não conformistas consiste nas reacções negativas dos outros perante o desvio em
relação à conformidade escolar. O coeficiente da relação entre as duas
variáveis é negativo e de magnitude muito expressiva (-0,61), sugerindo que as
manifestações de não conformidade suscitam uma forte reprovação. Estas reacções
são direccionadas muito significativamente (0,46) no sentido das associações
grupais, presumindo-se que, e de acordo com a teoria do rótulo, contribuam para
o reforço da coesão interna, na medida em que são interpretadas, na perspectiva
do grupo, como uma agressão e sublinham a necessidade de defesa e de resposta
perante o exterior.23
A segunda conclusão sublinha que as manifestações de não conformidade,
expressas pelas atitudes de oposição escolar (ou pela não conformidade
escolar) e as associações grupais não conformistas, podem ser atribuídas ao
efeito combinado dos elementos estruturais explicativos, designadamente as
relações familiares, as orientações normativas e a classe social. Em
particular, sugere que a génese do desvio juvenil radica nas disposições e nas
orientações normativas favoráveis à não conformidade.
Com efeito, a possibilidade de o jovem vir a envolver-se em manifestações de
desvio diminui se as disposições e as representações normativas se orientarem
no sentido da conformidade. Esta relação está bem expressa pelo impacte
significativo que a variável orientação normativa exerce sobre a
conformidade escolar (0,54) e as associações não conformistas (-0,34). O
resultado era facilmente expectável a partir dos dois modelos de referência.
Ambos defendem que as disposições normativas constituem um papel fundamental da
acção. Se essas disposições forem conformistas a acção tenderá a seguir o rumo
da conformidade; caso contrário, surgirão as manifestações de desvio. As
divergências entre os modelos situam-se noutro plano, envolvendo duas outras
causas a família e a classe social que contribuem para a prevalência
das orientações normativas num determinado sentido. Mas é precisamente nesse
mesmo plano que se registam algumas discrepâncias empíricas que vão no sentido
de invalidar algumas das interpretações propostas.
A principal discrepância revelada pelo modelo de síntese radica no facto de os
dados não confirmarem uma propensão para as manifestações de não conformidade
mais forte nos grupos de mais fracos recursos socioeconómicos, indo, assim,
contra a interpretação classista do modelo subcultural. Os resultados
apurados sugerem que os meios sociais mais elevados assumem uma posição menos
rígida em relação à intensidade com que condenam as infracções, sugerindo a
existência de uma atitude mais liberal em matéria de definições e orientações
normativas. Essa atitude surge corroborada pela relação positiva que se
verifica entre a classe e as associações não convencionais. Quer uma, quer
outra não estão de acordo com as proposições teóricas do modelo classista. A
classe mantém uma relação negativa com as orientações normativas (-0,18) e
positiva com as associações grupais (0,09), quando era suposto apresentar
relações inversas. A verificação de que os grupos sociais mais elevados são
mais permissivos do ponto de vista normativo reforça a hipótese, anteriormente
delineada, segundo a qual os problemas e as experiências causados pela situação
objectiva de indeterminação social podem levar ao envolvimento de alguns jovens
desses grupos em experiências e manifestações não conformistas, sem, contudo,
ser possível concluir que esses mesmos grupos possuam uma maior propensão
directa para o envolvimento desviante (como mostra a não existência da relação
entre classe e desvio).
Mais pacífica é a relação entre a classe e o relacionamento familiar. O
sentido da relação (0,21) está de acordo com a previsão da teoria da anomia,
segundo a qual a tensão resultante da disjunção entre aspirações e expectativas
incide mais intensamente nos meios sociais de menores recursos. As famílias
desses meios sociais tenderão a manifestar climas relacionais menos positivos.
Este facto não poderá deixar de ter repercussões sobre os investimentos
educacionais e relacionais que as famílias fazem nos filhos, designadamente
sobre o desenvolvimento de definições e de orientações no sentido da
conformidade social.
A existência de estratégias relacionais positivas nas famílias parece
constituir um travão ao desenvolvimento das manifestações de não conformidade e
de desvio. Com efeito, são muito significativas as relações que se estabelecem
entre, por um lado, o relacionamento familiar e, por outro, as orientações
normativas (0,35), a conformidade escolar (0,39) e o desvio juvenil (-
0,10), sendo esta última naturalmente no sentido negativo. Em particular, deve
destacar-se a contribuição das interacções familiares para o reforço das
definições e orientações favoráveis à conformidade social, dado o papel que
estas desempenham, como se viu, na desvinculação normativa. Todas estas
relações sugerem muito claramente que relacionamentos e comunicações familiares
positivos traduzem, como defende o argumento de controlo, vinculações sociais
fortes que se opõem ou resistem ao desenvolvimento das manifestações de não
conformidade.
Apesar de as relações em causa resultarem de forma directa do modelo de
controlo, não deixam de ser também compatíveis com a interpretação subcultural.
Contrariamente ao modelo de controlo, que sempre atribuiu à família um papel
relevante na prevenção das manifestações de não conformidade, designadamente
pela capacidade de incutir controlos internos apelando, por conseguinte, para
a função de socialização e de garantir vigilância e controlo externos, o
modelo subcultural foi sempre mais vago em relação ao papel da família enquanto
factor gerador ou inibidor de delinquência. Em parte, a reduzida importância
atribuída ao papel da família pode explicar-se pela preponderância da
interpretação classista. A família surge sempre subsumida na classe social,
sem autonomia explicativa que se sobreponha, pelo menos parcialmente, à da
classe. A defesa de uma interpretação menos dependente da classe social, como
ocorre com a interpretação em torno da indeterminação social, tem de atribuir
um papel independente às definições e orientações no sentido da conformidade
social que se geram nas estruturas familiares. Por exemplo, a forma como a
família motiva e incentiva a integração escolar contribui claramente para
anular atitudes de desinvestimento e de desinteresse que poderão constituir
prenúncios das manifestações de não conformidade. Como Sutherland defendeu na
teoria da associação diferencial, a exposição por excesso a definições
favoráveis à ordem normativa previne o envolvimento delinquente.24 Se a família
incutir e reforçar constantemente essas definições, o jovem dificilmente
assimilará definições alternativas. As relações empíricas estabelecidas
permitem concluir que as estratégias relacionais das famílias jogam uma
influência decisiva nos rumos conformistas dos adolescentes.
Este resultado em torno das relações em discussão, em particular a relação
positiva entre o relacionamento familiar e as orientações normativas, vem
dar sustentação empírica à hipótese de a conflitualidade intrafamiliar
contribuir significativamente, e porventura, em alguns casos, decididamente,
para a desvinculação normativa. Com efeito, o relacionamento familiar negativo
que se expressa através dos conflitos e das tensões em relação às figuras
parentais, não reforça as orientações normativas, podendo inclusive justificar
ou legitimar orientações contrárias. A existência destas orientações facilita a
transferência das atitudes de oposição familiar e da agressividade que,
muitas vezes, a acompanha para outros terrenos, nomeadamente para as atitudes
de oposição escolar que, como se assinalou, constituem parte integrante do
processo de desenvolvimento das práticas de desvio.
A hipótese, sustentada empiricamente, de que ambientes familiares negativos ou
a conflitualidade entre pais e adolescentes desenvolvem disposições normativas
menos conformistas proporciona um argumento importante à interpretação
subcultural em torno da indeterminação social. Como as figuras parentais são
representantes da ordem social, a oposição àquelas pode também transmutar-se
em oposição a esta última. O sentido da incerteza e da insegurança que afecta o
processo de construção subjectiva da identidade juvenil através da
experimentação de papéis pode, assim, propender ou resvalar mais facilmente
para o terreno da não conformidade. Mas não se conclua apressadamente que
apenas os ambientes negativos geram disfunção normativa. A ausência de
relação significativa entre o relacionamento familiar e as associações
grupais não conformistas levanta a questão de saber por que razão essa relação
é neutra quando é conhecido o efeito positivo das relações familiares sobre a
conformidade escolar e o desvio. O aspecto que agora importa sublinhar é a
possibilidade de as relações familiares positivas, que, como se viu, são mais
frequentes nos meios sociais mais elevados, poderem coexistir com
experiências ou contactos com grupos não conformistas. Essas relações positivas
evitam o envolvimento infractor directo, mas são neutras no que diz respeito ao
controlo das relações com os amigos. Esta neutralidade proporciona fundamento
adicional à hipótese avançada para explicar a maior abertura a experiências não
conformistas, sobretudo concretizadas através do contacto com grupos não
conformistas, por parte dos adolescentes dos meios sociais mais elevados.
Tendo em conta as considerações realizadas, é possível afirmar que o desvio
juvenil na perspectiva subcultural da indeterminação social não está apenas
vinculado à forma como os jovens exploram subjectivamente a sua identidade e à
maior ou menor liberdade de que gozam no sentido da experimentação social. A
existência de climas normativos mais tolerantes ou permissivos em relação às
orientações não conformistas, à medida que se sobe na pirâmide social, e a
conflitualidade intrafamiliar, que parece caracterizar as relações entre pais e
adolescentes em determinados grupos familiares, constituem dois importantes
factores adicionais que poderão levar o jovem a experimentar a indeterminação
da sua identidade através dos percursos da não conformidade.
Por fim, uma referência derradeira impõe-se fazer ao papel da família. Os
relacionamentos positivos reforçam os sentimentos de integração e de aceitação
sociais. Esta afirmação, comprovada pela relação negativa muito significativa
entre o relacionamento familiar e os sentimentos negativos (-0,58), vai ao
encontro das assunções do modelo de controlo segundo as quais a participação
empenhada e a integração nos grupos convencionais protege e reforça a auto-
estima. As relações empíricas revelam ainda que a dimensão familiar é a que
exerce maior impacte sobre os sentimentos negativos, ultrapassando de longe o
efeito induzido pelas reacções negativas dos outros (0,07). O resultado ameaça
a posição defendida pela interpretação subcultural de que ser alvo da aplicação
de rótulos estigmatizantes ou da censura dos outros gera uma auto-imagem
depreciativa, a partir da qual se desenvolveriam sentimentos negativos. As
relações familiares negativas assumem-se assim como principal causa do
surgimento dos sentimentos de auto-rejeição. Quanto ao impacte destes
sentimentos na realização da conduta de desvio será objecto da próxima e última
conclusão resultante da análise do modelo de síntese.
Ao contrário do que sugerem as interpretações comuns e as ilações da teoria da
auto-estima, a possibilidade de os sentimentos negativos conduzirem ao desvio
suscita, à luz das relações empíricas estabelecidas, pouca credibilidade.
Sustenta a teoria da auto-estima que os sentimentos negativos de dúvida sobre
si mesmo e sobre o valor próprio são normalmente consequência de experiências
insatisfatórias realizadas em grupos convencionais. A ligação entre auto-estima
e desvio estabelece-se através da adesão ao grupo desviante a partir do qual os
jovens portadores de sentimentos penosos de rejeição esperam obter a aprovação,
o reconhecimento e a valorização que não encontraram nos grupos
convencionais.25 Ora as relações empíricas descritas no modelo revelam que os
sentimentos negativos, para além de não manterem relação com as associações
grupais, produzem impactes negativos sobre a cultura juvenil (-0,35) e o desvio
(-0,15). Estes resultados dificilmente poderão ser subscritos pela
interpretação baseada na teoria da anomia. Uma interpretação mais compatível
com os dados sugere, como solução mais provável para os sentimentos negativos,
o surgimento de atitudes de retraimento em relação à vida social, expresso pela
retracção negativa ao nível da participação na cultura pública juvenil ou nas
associações grupais, e mesmo de alienação, que descomprometem o jovem da ordem
normativa, mas que simultaneamente o protegem do desvio.
A interpretação esboçada adequa-se perfeitamente com as assunções do modelo de
controlo. Com efeito, as atitudes de retraimento e de alienação são
manifestações de não conformidade que resultam do afrouxamento dos laços
sociais e das vinculações institucionais, como revela o efeito do
relacionamento familiar na génese dos sentimentos negativos. O ponto mais
relevante na perspectiva de controlo reside na verificação de que a
conformidade social contribui para a integração do selfe que essa integração
não é compatível com a existência de sentimentos de autodepreciação ou de auto-
rejeição.
Em contrapartida, a adequação é bastante menor no modelo subcultural.
A interpretação proposta, segundo a qual as sanções sociais negativas originam
no jovem o desenvolvimento de sentimentos de auto-rejeição, que, por sua vez,
precedem a perda de motivação para se conformar e o motivam no sentido do
desvio em relação às expectativas convencionais e da adesão positiva às
práticas e às identidades não conformistas, encontra dois pontos sem
sustentação empírica. O primeiro, a que se fez referência detalhada, observa o
efeito modesto, em contraponto com o das relações familiares, das reacções
negativas dos outros sobre o desenvolvimento dos sentimentos de rejeição. O
segundo sublinha a ausência de sustentação empírica para fundamentar a hipótese
fundamental de que as práticas e as identidades não conformistas derivam da
necessidade de se reduzirem ou evitarem os sentimentos negativos que nascem dos
rótulos e das sanções negativas dos outros.
Conclusão
A explicação proposta pelo modelo de síntese para o processo de formação do
desvio juvenil centra-se em duas condições fundamentais que, na ordem
sequencial, correspondem também a dois tempos. O desvio é produto, em primeiro
lugar, de disposições e de orientações que predispõem para a não conformidade;
em segundo lugar, da acção do grupo enquanto contexto cultural de influência e
assimilação de práticas e referências não conformistas.
Os resultados da pesquisa revelaram que o desenvolvimento de disposições e
orientações no sentido da não conformidade está dependente de tendências
contraditórias. Por um lado, as estratégias relacionais positivas e a
intensidade dos investimentos educacionais, mais presentes nos meios sociais
mais elevados, tendem a reforçar a conformidade. Por outro, a tendência mais
liberal ou permissiva registada nesses mesmos meios sociais em matéria de
definições e orientações normativas facilita a aproximação não conformista, na
medida em que permite experimentar e testar a construção subjectiva da
identidade de forma menos constrangedora e limitada em termos dos
comportamentos que são aceites ou tolerados. A convergência destas duas
tendências proporciona condições objectivas para o surgimento das manifestações
de não conformidade, em particular das associações grupais. Se a pressão
normativa do meio social orientar o jovem no sentido da conformidade, evita-se,
com toda a probabilidade, o surgimento dessas manifestações. Caso contrário, se
houver indiferença normativa, existirão mais possibilidades de elas virem a
ocorrer.
Como sempre defendeu a teoria subcultural e como comprova a evidência empírica
reunida e analisada o grupo é o principal catalizador do desvio juvenil. As
razões que transformam o grupo em candidato privilegiado a esse papel estão
muito relacionadas com as funções do grupo durante a adolescência. Essas
funções relacionam-se com várias necessidades. Em primeiro lugar, é através das
relações proporcionadas pelo grupo que o adolescente obtém informação e
desenvolve mapas da realidade que lhe permitem abrir-se ao conhecimento e à
compreensão do mundo. Em segundo lugar, o suporte dos elos colectivos
proporciona a segurança e o apoio ao desenvolvimento e expressão das atitudes
de oposição. Em terceiro lugar, as relações grupais são um parceiro ideal e
indispensável para a realização de actividades de tempos livres ou,
simplesmente, para a descoberta de formas divertidas de passar o tempo que
quebrem o tédio quotidiano. Por último, o grupo é ainda capaz de dar um sentido
à acção, dando um significado à forma como esta se exprime e proporcionando uma
base para afirmação de uma certa identidade social. As razões enunciadas
justificam a importância do grupo durante a adolescência e a razão de os
processos de grupo nunca poderem ser completamente travados pelos controlos de
base institucional. A dinâmica e a influência intragrupais justificam ainda as
incursões circunstanciais dos adolescentes nas práticas de desvio, como
preconizam as explicações situacionais, mas para explicarem o envolvimento
continuado necessitam de apelar para a oposição institucional. Com efeito,
grande parte da teorização subcultural procura mostrar que as manifestações não
conformistas ganham visibilidade e protagonismo públicos a partir do contexto e
da ruptura escolares. É com base nessa ruptura, no confronto com a autoridade
institucional e através da sustentação e do apoio do grupo, que se afirma a
identidade não conformista. O desvio é uma oposição à autoridade convencional
e, como tal, não pode deixar de representar uma reacção às estruturas do mundo
adulto.
Esta conclusão parece favorecer a interpretação subcultural. O problema não se
encontra num hipotético declínio do controlo e da autoridade adultas, expresso
através das duas principais instituições que perante o jovem representam a
sociedade a escola e a família. Os controlos sociais não operam no vácuo
social, escapando à influência das circunstâncias e dos determinismos que os
envolvem. Mesmo o aspecto que é mais favorável à interpretação do modelo de
controlo a influência das vinculações familiares não deixa também de ser
susceptível de uma leitura subcultural, segundo a qual a exposição continuada a
definições convencionais previne o envolvimento no desvio. Todos os outros
aspectos e relações estabelecidos no modelo de síntese são mais congruentes com
a interpretação subcultural, especialmente na versão da indeterminação
social. Com efeito, a precedência causal das disposições e orientações
normativas não pode ser apenas compreendida a partir das estruturas familiares,
necessitando de apelar para as vicissitudes, indeterminações e incertezas que
resultam do cruzamento entre a construção subjectiva da identidade e a forma
como as tendências culturais que se observam no espectro social condicionam
essa construção e interpretam o tema da não conformidade. O processo de
construção do desvio, tal como está descrito e representado no modelo de
síntese, tende, assim, a fazer prevalecer as assunções principais da
interpretação subcultural.
Anexo
O modelo especifica relações entre oito variáveis latentes e uma variável
compósita. Trata-se agora de descrever os elementos que entram na
operacionalização dessas variáveis.26
Conformidade escolar. O modelo de medição desta variável assenta num conjunto
de quatro escalas que medem as atitudes dos jovens face à escola
(representações sobre os professores, representações dos professores sobre os
alunos, expectativas escolares e convialidade não normativa). As escalas variam
entre três e cinco indicadores e usam cinco níveis de medição (de discordo
totalmente a concordo totalmente).
Cultura pública juvenil. Apoia-se em duas escalas (diversões em espaços
públicos e convivialidade em grupo) e numa variável simples (saídas nocturnas).
A primeira escala detecta a frequência de participação em actividades de tempos
livres do tipo ir a espectáculos musicais, ir a discotecas, etc. A segunda
capta a intensidade do convívio com os colegas, expressa através de indicadores
como conviver na rua com o grupo de amigos ou sair com os amigos para ir a
algum lado. Ambas as escalas são medidas através de uma frequência que varia
entre nunca e mais de duas vezes por semana. A variável simples inquire a
liberdade de que os jovens gozam nas saídas nocturnas a partir da hora de
regresso a casa. São contemplados quatro níveis de medição que variam entre
nunca sai e regressa depois das 24 horas.
Associações não conformistas. Como a variável anterior, é também medida com
base em duas escalas e uma variável simples. Ambas as escalas registam o número
de amigos do inquirido que se envolvem em actos delinquentes, como roubar
objectos de pouco valor ou magoar fisicamente e de propósito outra pessoa,
ou praticam infracções disciplinares em casa ou na escola. A variável simples
mede a influência não conformista dos amigos a partir da pergunta: Já algum
amigo te disse para fazeres coisas ilegais ou proibidas?.
Orientações normativas conformistas. Há três escalas envolvidas e todas elas
relacionadas com a tolerância em relação às práticas de infracção. A primeira
avalia a tolerância através do grau de gravidade (de nada grave a muito
grave) que o inquirido atribui a determinados actos, como andar à pancada,
vender objectos roubados ou destruir ou danificar equipamento e material da
escola. As outras duas escalas reflectem a tolerância que o inquirido supõe
que pais e amigos manifestariam em relação às práticas de infracção. Os actos
descritos nos quatro indicadores que integram as duas escalas são iguais (por
exemplo, faltar às aulas sem justificação ou roubar alguma coisa). Graus
elevados de gravidade expressos nas três escalas representam em termos da
variável latente uma forte orientação convencional.
Reacções negativas. Esta variável latente baseia-se na hetero-imagem de
infractor que o inquirido constrói a partir das opiniões que julga que pais e
amigos fazem em relação a si próprio. Essas opiniões dão origem a duas escalas
(uma para os pais, outra para os amigos) que se desdobram, cada uma, em dois
indicadores (pensam que me meto em grandes sarilhos e problemas e pensam que
faço coisas proibidas ou que não são permitidas) e em relação aos quais o
inquirido manifesta o seu grau de concordância ou de discordância.
Sentimentos negativos. Igualmente formada por três escalas compostas por
múltiplos indicadores. As escalas são as seguintes: alienação (alheamento face
à vida), auto-estima e controlo. Os níveis de medição traduzem a frequência com
que se experimentam determinados sentimentos ou opiniões em relação a si
próprio, como sou feliz, sou uma pessoa com valor ou, pelo menos, com o
mesmo valor que os outros ou sinto-me seguro em relação à maior parte das
coisas da vida, só para citar um indicador de cada uma das escalas.
Relacionamento familiar. Apoia-se em duas escalas de comunicação: uma com o
pai, outra com a mãe. Os indicadores são os mesmos. Alguns exemplos: quando
tenho problemas costumo falar com o meu/minha pai/mãe, converso com o/a meu/
minha pai/mãe sobre os meus planos para o futuro, o/a meu/minha pai/mãe
elogia-me quando faço o bom trabalho. O relacionamento familiar expressa a
intensidade (de nunca a muitas vezes) com que os actos referidos ocorrem.
Classe social. Seria abusivo falar de classes sociais, atendendo à forma como a
variável é medida. A conjugação do grau de escolaridade e do estrato
ocupacional, obtido a partir da classificação profissional, dá apenas origem a
uma variável de posição social e não a uma diferenciação social baseada na
teoria das classes sociais. A variável permite diferenciar, de forma cómoda,
entre as posições elevadas e as baixas.
Desvio juvenil. É uma variável compósita resultante da aglutinação de cinco
escalas relativas a práticas de infracção: a) a escala de agressão interpessoal
composta por nove indicadores (alguns exemplos: andei com uma arma escondida
diferente do canivete de bolso, bati numa pessoa com a ideia de a magoar
gravemente); b) a escala dos delitos atípicos formada por oito indicadores
(como conduzi uma mota/ carro sob o efeito do álcool ou de outra droga ou
fugi de um acidente em que me envolvi sem me ter identificado); c) a escala
dos furtos inclui dez indicadores (são exemplos: roubei (ou tentei roubar) de
uma loja alguma coisa, não paguei coisas que devia pagar, como bilhetes de
cinema, de transportes públicos, etc. ou tirei ou tentei tirar coisas que
não devia de um casaco, de um armário, do bar ou de outro sítio; d) a escala
das transgressões constituída por oito indicadores (como fugi de casa e passei
a noite fora, conduzi uma mota/carro bastante acima da velocidade legal ou
faltei às aulas sem os meus pais saberem); e) a escala de vandalismo composta
por onze indicadores (por exemplo: danifiquei ou destruí coisas de uma casa,
loja ou de um edifício público (cadeiras, mesas, etc.), atirei objectos (tais
como pedras, bolas ou garrafas) a carros, pessoas ou janelas de edifícios ou
danifiquei ou parti de propósito um vidro, um espelho ou outra parte de um
automóvel. A variável compósita traduz o número de actos recenseados a partir
das cinco escalas.
Notas
1 Este resultado tem sido especialmente destacado no âmbito dos inquéritos de
delinquência auto-revelada. No entanto, é justo notar que a diminuição do crime
em função da idade é uma das proposições mais antigas e de aceitação
generalizada na criminologia, apesar de essa relação continuar a gerar polémica
entre os partidários da tese segundo a qual a distribuição do crime não está
dependente das variações de tempo e de espaço, independentemente da categoria
criminal considerada, e os que contrapõem o papel fundamental dos factores
sociológicos (como a integração social, as orientações e os valores
convencionais ou o receio das sanções) enquanto variáveis de mediação entre a
idade e o crime. A defesa dos argumentos em confronto pode ser encontrada,
respectivamente, em Travis Hirshi e Michael Gottfredson (1983), Age and the
explanation of crime, American Journal of Sociology, 89, (1), pp. 552-584, e
David F. Greenberg (1985), Age, crime, and social explanation, American
Journal of Sociology, 91 (1), pp. 1-27.
2 A classificação (e agrupamento) das teorias do desvio juvenil em dois modelos
o do controlo social e o da cultura foi avançada por Ruth R. Kornhauser
(1978), Social Sources of Delinquency: An Appraisal of Analytic Models,
Chicago, University of Chicago Press. Uma leitura mais ampla da relação entre
os dois modelos e a análise sociológica do desvio encontra-se desenvolvida em
Pedro Moura Ferreira (1999), Infracção e censura representações e percursos
da sociologia do desvio, Análise Social, 151.
3 A construção e a problematização do conceito de desvio e do respectivo campo
de inquirição encontram-se mais desenvolvidas no artigo citado na nota
anterior.
4 Mesmo assim, nem todo o tipo de infracção foi contemplado na definição
operacional da variável dependente, cuja descrição aparece em anexo. A exclusão
mais evidente refere-se ao consumo de drogas. A justificação radica na
possibilidade de esse consumo, sobretudo quando tornado regular, poder obedecer
a uma etiologia distinta da que caracteriza as outras infracções. Por esta
razão, e mesmo sabendo que envolve aspectos ilegais, o consumo de drogas deve
ser lido mais como um comportamento problemático do que como simples
infracção, até porque os riscos e conotações sociais que suscita são também
completamente distintos.
5 A questão aparece formulada em T. Hirschi (1969), Causes of Delinquency,
Berkeley University of California Press.
6 T. Hirschi (1969), op. cit.
7 A perspectiva do controlo interno aparece muito associada às orientações pró-
sociais do selfe à ideia de que essas orientações constituem uma barreira ao
desvio. Como as orientações estão muito ligadas ao desenvolvimento,
especialmente ao desenvolvimento infantil, a perspectiva do controlo interno
chama a atenção para os efeitos da socialização primária sobre a estruturação
do self[cf. Robert J. Sampson e John H. Laub (1992), Crime and deviance in the
life course, Annual Review of Sociology, 18, pp. 63-84].
8 As obras, especificamente visadas, são O Suicídio e A Divisão Social do
Trabalho.
9 A teoria da anomia é tomada no sentido da interpretação realizada por Merton
[cf. R. Merton (1970), Sociologia: - Teoria e Estrutura, São Paulo, Editora
Mestre Jou).
10 Walter B. Miller (1958), Lower-class culture as a generating milieu of gang
delinquency, The Journal of Social Issues,14, pp. 5-19.
11 P. E. Willis (1977), Learning to Labour, Hampshire, Gower.
12 E. Erickson (1968), Identity: Youth and Crisis, Nova Iorque, Norton.
13 A. Sedas Nunes (1968), Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento, Lisboa,
Moraes.
14 Id., ibid., p. 94.
15 Martin Baethge (1985), L'individualisation comme espoir et danger: apories
et paradoxes de l'adolescence dans les sociétés occidentales, Revue
International des Sciences Sociales, XXXII, pp. 480-492.
16 A. Sedas Nunes, op. cit., pp. 84-85.
17 Id., ibid., p. 98.
18 Nicholas Emler e Stephen Reicher (1995), Adolescence and Delinquency,
Cambridge, Blackwell Publishers.
19 P. E. Willis, op. cit., p. 26.
20 Howard B. Kaplan e Hiroshi Fukurai (1992), Negative social sanctions, self-
rejection, and drug use, Youth & Society, 23 (3), pp. 275-298.
21 Peter M. Bentler (1995), EQS Structural Equations Program Manual,
Califórnia, Multivariate Software Inc.
22 O programa proporciona várias medidas que permitem avaliar a qualidade da
adequação do modelo. A medida mais importante é o CFI (comparative fit index).
A medida, que varia entre 0 e 1, traduz a comparação entre o modelo de
independência e o modelo hipotético. Se o valor for 1 significa que o modelo
hipotético dá conta de uma forma completa e perfeita da covariação dos dados.
Não sendo a perfeição uma expectativa realista, valores acima de 0,90 reflectem
uma adequação aceitável do modelo aos dados [cf. Barbara M. Byrne (1994),
Structural Equation Modelling with EQS and EQS/Windows: Basic Concepts,
Applications and Programming, Thousand Oaks, Califórnia, Sage].
23 A teoria do rótulo destaca as consequências negativas resultantes do acto de
classificar ou rotular alguém como desviante ou delinquente. O processo de
construção do rótulo ou da classificação inicia-se pelo desvio primário. Os
primeiros actos delinquentes de um adolescente ou de uma criança são
geralmente pouco prejudiciais. Do ponto de vista do seu autor, esses actos
assemelham-se a brincadeiras ou a travessuras, mas, do ponto de vista da
sociedade, em sentido geral, são considerados graves ou mesmo infracções
legais. A resposta da sociedade, que inclui inicialmente as reacções dos pais,
dos professores e dos amigos a esses actos, consiste em classificar ou rotular
a criança ou o adolescente como mau ou como desviante. O rótulo, por seu
turno, influencia a auto-imagem da criança ou do adolescente, que começa a ver-
se a si mesmo como mau ou delinquente e a comportar-se de acordo com essa
imagem. Para o propósito da presente análise vale a pena referir os trabalhos
de Tannenbaum e de Lemert e os conceitos de dramatização do mal e de desvio
secundário por eles desenvolvidos [cf. Frank Tannenbaum (1938), Crime and the
Community, Boston, Ginn, e E. Lemert (1951), Social Pathology, Nova Iorque,
McGraw-Hill].
24 Edwin H. Sutherland (1939), Principles of Criminology, 3.ª ed., Filadélfia,
Lippincott.
25 Howard B. Kaplan, Steve S. Martin e Robert J. Johnson (1986), Self-
rejection and the explanation of deviance: specification of the structure among
latent constructs, American Journal of Sociology, 92 (2), pp. 384-411.
26 Razões de espaço obrigaram a limitar a caracterização numérica relativa aos
modelos de medição e a descrição completa dos indicadores que integram as
escalas. Toda essa informação pode ser solicitada ao autor ou consultada em
Pedro Moura Ferreira (1999), Desvio e Juventude: Causas Sociais da Delinquência
Juvenil, Lisboa, ISCTE (dissertação de doutoramento).