Classes sociais na Europa
Introdução
O presente artigo pretende apresentar um conjunto de contributos, sintéticos
mas integrados, para a análise dos processos de recomposição das estruturas de
classe actuais na União Europeia, com a preocupação particular de situar a
sociedade portuguesa nesse contexto.1
A escassez de trabalhos com este âmbito em termos de escala e de
problematização constitui, por si só, razão suficiente para sistematizar
informação empírica pertinente a tal respeito e para suscitar, a propósito
dela, um certo número de hipóteses, de interrogações ou, mais modestamente, de
simples chamadas de atenção analíticas. É o que se faz aqui, de maneira
necessariamente breve e parcelar, assumindo que muitas dimensões de análise
adicionais seriam necessárias para uma abordagem mais satisfatória do tema.
A ausência dessas outras dimensões, pelo menos em termos de referências
empíricas de carácter extensivo, deve-se a duas ordens de razões: por um lado,
muito simplesmente, à indisponibilidade dos indicadores correspondentes; por
outro lado, às opções teórico-analíticas aqui tomadas, num texto em que se
teria de ser sempre bastante restritivo nos aspectos a seleccionar.
A indisponibilidade de indicadores tem várias causas, desde as que decorrem de
lacunas na produção de informação estatística institucional, ou de dificuldades
no respectivo acesso, até às que têm a ver com determinados aspectos da
realidade social em questão. São causas, aliás, em certa medida
interdependentes. Por exemplo, muitas das actividades económicas informais e
das situações profissionais precarizadas não são facilmente susceptíveis de
registo extensivo, estandardizado e comparável, pelas próprias características
sociais de tais fenómenos e pelas orientações que têm presidido à formatação
dos sistemas de indicadores institucionais.
Quanto às opções de delimitação selectiva das dimensões a contemplar de maneira
central na análise, se tiveram de atender às restrições informativas
assinaladas, seguiram como principais critérios o de procurar alicerçá-las em
fundamentos teóricos sólidos e o de fazê-las corresponder a uma potencialidade
cognitiva elevada sobre o domínio substantivo em investigação.
Quer isto dizer que não se dá conta aqui de tudo o que seria importante
analisar, mas tal não é razão para preferir a ignorância de algo que se pode
conhecer. O que se analisa de seguida não é uma parte ignorável ou
menosprezável da realidade social. Pelo contrário, ver-se-á que se trata de um
conjunto de vertentes nucleares de estruturação das relações sociais
contemporâneas, em torno das quais muitas outras se organizam o que não
significa que estas se reduzam àquelas ou que delas possam ser simplesmente
deduzidas.
Algumas clarificações sobre a actual sociologia das classes sociais
Será talvez necessário, perante a tendência recorrente para argumentos menos
pertinentes ou menos informados a este respeito, insistir no ponto anterior.
A concepção sociológica de classes sociais aqui utilizada não parte do
princípio de que todas as facetas relevantes da realidade social sejam
redutíveis às relações de classe ou necessariamente delas decorram, muito menos
de maneira directa e linear, sem mediações. E também não entende que as
relações de classe possam ser reduzidas, de modo apriorístico e imutável, a uma
determinada dimensão de estruturação social, por mais relevante que ela seja,
em concreto, neste ou naquele contexto.
Mas o que se acabou de afirmar, por sua vez, não significa, como qualquer um
pode compreender, que as condições de existência das pessoas tenham deixado de
ser condicionadas por relações assimétricas de poderes e por distribuições
diferenciadas de recursos e oportunidades. Nas sociedades actuais, os sistemas
estruturados de desigualdades e distinções sociais não deixaram de ser, entre
outros, elementos constitutivos fundamentais dessas sociedades. A jusante, por
seu turno, essas diferentes condições de existência continuam a estruturar,
também diferencialmente, os valores e os comportamentos dos actores sociais.
É este duplo entendimento no que rejeita e no que salvaguarda que preside à
análise aqui apresentada, numa linha de elaboração conceptual e operatória,
assim como de investigação empírica, desenvolvida ao longo de trabalhos de
diversos âmbitos como, entre outros, Almeida (1986), Costa (1987), Almeida,
Costa e Machado (1988), Machado, Costa e Almeida (1989), Costa, Machado e
Almeida (1990), Almeida, Costa e Machado (1994), Machado, Ávila e Costa (1995),
Machado (1998), Machado e Costa (1998), Costa (1999) ou Almeida, Capucha,
Costa, Machado e Torres (2000).
No mesmo sentido geral, aliás, vão as concepções que podem ser encontradas na
maior parte dos especialistas actuais neste domínio, tais como são
referenciáveis, nomeadamente, para mencionar apenas algumas das obras mais
significativas da última década, em Eder (1993), Scott (1996), Bourdieu (1994,
1997), Marshall (1997), Wright (1997), Levy, Joye, Guye e Kaufmann (1997) ou
Milner (1999) apesar das diferenças nos respectivos quadros teóricos ou nas
terminologias por eles preferidas.
As declarações, periodicamente renascidas, sobre supostos "fins" das relações
de classe não revelam qualquer consistência conceptual nem recolhem em sua
corroboração qualquer tipo de verificação empírica pertinente. Em vários casos,
trata-se de ressurgimentos, eventualmente sob novas expressões retóricas, de
velhos reflexos de preconceito ideológico ou profetismo social. Podem também
decorrer de uma atitude de "limpeza de imagem", por parte de alguns,
preocupados acima de tudo em dar sinal público do seu afastamento de versões
redutoras ultrapassadas, das quais tinham sido antes porta-vozes veementes, em
igual tom de afirmatividade dogmática.
Esta atitude vem muitas vezes sintonizada, aliás, com a constelação ideológica
actual do "novo espírito do capitalismo", bem diagnosticada em trabalho recente
de Boltanski e Chiapello (1999), na qual a promoção da noção de "redes" como
metáfora omnipresente vai de par com uma rejeição apriorística e um esforço de
desconstrução a todo o custo das representações categoriais dos mais diversos
tipos o que é, no mínimo, epistemologicamente inconsequente.
Tudo isto pode traduzir-se na procura apressada de "fins" para as mais variadas
coisas, não só fim das classes mas também fim das ideologias, fim da história,
fim dos valores, fim da família, fim do trabalho, fim do social, etc., etc.
"Fins" estes que só por absurdo, excesso de voluntarismo terminológico ou
reificação ingénua de vagas metáforas, se poderiam tomar como enunciados
cognitivos caracterizadores da realidade social contemporânea.
Noutros casos ainda, de maneira mais séria, o questionamento das análises de
classes corresponde a uma necessidade efectiva de reconceptualização
actualizada, mas realizada por vezes em moldes tributários de algum
desfasamento em relação ao que é hoje o "estado da arte" no domínio
especializado da sociologia das classes sociais e da estratificação, supondo-
a ainda presa de concepções reducionistas e rigidificantes, nela
predominantemente ultrapassadas, ou ignorando algumas das aquisições
científicas mais importantes nos desenvolvimentos recentes desta área de
investigação.
Seja como for, não só a crítica apropriada à hipotética perda de actualidade e
pertinência das análises de classes está feita, nomeadamente em Lee e Turner
(1996), Marshall (1997), Milner (1999) ou Costa (1999), entre muitos outros,
como essa actualidade e pertinência são evidenciadas por múltiplos trabalhos
que se têm vindo a desenvolver directamente neste domínio ou em clara
intersecção com ele por exemplo, limitando a referência a publicações
portuguesas recentes, para além das dos autores deste texto, os de Grácio
(1997), Cabral (1998), Queiroz (1999), Pereira (1999), Pinto (2000) ou Estanque
(2000).
No conjunto, pouco haverá de mais fundamentado teoricamente e verificado
empiricamente, no campo da sociologia, do que serem as relações assimétricas de
poderes e as distribuições inigualitárias de recursos e oportunidades, ou,
noutros termos, os sistemas estruturados de desigualdades e distinções sociais
ou, ainda, nas designações mais usuais neste domínio, as estruturas de classe
e as hierarquias de estratificação elementos constitutivos fundamentais das
sociedades contemporâneas.
Interessa, por conseguinte, tentar conhecer as configurações que eles assumem e
as transformações por que passam, as dimensões mais relevantes que os
estruturam e as modalidades em que estas se inter-relacionam, os factores e as
dinâmicas que os influenciam e os vão reconfigurando, as situações e os
processos que, por sua vez, eles contribuem para gerar. Mas só é adequado fazê-
lo assumindo que as respostas não estão dadas de uma vez por todas em qualquer
sede teórica apriorística, sendo necessário investigar, em cada caso, seja ele
de maior ou de menor amplitude, como é que estes aspectos se concretizam.
Interessa também analisar as articulações que estes sistemas de desigualdades e
distinções estabelecem com outros parâmetros da vida social e as maneiras como
se interligam com os diversos campos específicos de relações sociais, em regime
de maior ou menor autonomia recíproca. São questões a submeter igualmente a
investigação, atendendo aos referentes substantivos em causa.
Importa, enfim, investigá-los quanto ao grau e ao modo variáveis como
condicionam e potenciam a existência, o pensamento e a acção dos protagonistas
sociais, as suas práticas individuais e as suas formas de acção colectiva.
Assim como, em sentido inverso, importa investigar o grau e o modo igualmente
variáveis como a acção individual e colectiva dos protagonistas sociais vai
contribuindo para reproduzir ou transformar as relações assimétricas de poderes
e as distribuições desiguais de recursos e oportunidades.
Tudo isto representa, assim, um domínio de problematização e um campo de
pesquisa e não um qualquer eventual reportório de repostas pré-fabricadas. É
precisamente esse o âmbito, por excelência, da investigação sociológica
contemporânea sobre classes sociais e estratificação social. A sociologia tem
vindo a produzir uma importante acumulação cognitiva neste domínio, quanto a
conhecimentos substantivos e quanto a instrumentos teóricos e operatórios, sem
que isso conduza, nos desenvolvimentos recentes, ao enquistamento numa qualquer
dogmática. Bem pelo contrário, tem levado a uma capacidade progressivamente
maior de desenhar e conduzir programas de investigação amadurecidos.
Não é evidentemente este o local oportuno para proceder ao exame alargado das
questões teóricas, metodológicas e substantivas mais importantes que se colocam
hoje neste domínio. Quando muito, é possível assinalar alguns dos traços fortes
que balizam actualmente este campo de investigação sociológica, remetendo o
leitor interessado para tratamentos mais desenvolvidos (Costa, 1999: 208-225).
Em jeito de inventariação sumária, podem destacar-se:
1) uma focalização nos protagonistas sociais (na sua caracterização em
termos de composição social) e nas mediações que estes estabelecem entre
estrutura e acção; ou, num registo mais operatório, a focalização em análises
de três tipos e, muito em especial, na exploração das virtualidades cognitivas
da articulação entre elas em concreto, as análises dos efeitos das
transformações estruturais nas recomposições sociais das populações (as classes
sociais como "variáveis dependentes"), as análises dos efeitos destas últimas
na pluralidade de práticas e representações observáveis no quotidiano (as
classes sociais como "variáveis independentes") e, ainda, as análises dos
protagonistas e processos da acção colectiva, nomeadamente naquilo que tenham a
ver, como causa e como efeito, com as referidas recomposições sociais;
2) uma concepção multidimensional, estrutural erelacional, procurando
determinar, para cada configuração em estudo, quais os parâmetros relevantes do
espaço social das classes e quais as articulações que estabelecem entre si,
atendendo à prioridade conceptual das posições relativas sobre as condições de
existência intrínsecas e das relações de classe sobre os conjuntos sociais mais
ou menos nitidamente delimitáveis (estes últimos, convém insistir, não são
entidades fixas, teoricamente pressupostas, mas sim construções sociais
contingentes, acerca das quais se impõe, em cada caso, investigar o grau de
estruturação e os contornos específicos);
3) uma orientação forte no sentido de integrar elaboração teórica
aprofundada com investigação empírica rigorosa; integração para a qual se
recorre, entre outros procedimentos, tanto aos estudos de caso intensivos como
aos inquéritos extensivos, tanto à análise multivariada como à construção
cuidadosa de sistemas de indicadores com grande densidade dimensional
(designadamente indicadores socioprofissionais e indicadores socioeducacionais,
para as sociedades contemporâneas), susceptíveis de proporcionar a
operacionalização de diversos quadros conceptuais, em parte diferenciados, mas
também com importantes sobreposições quanto a áreas de problematização e
referentes substantivos;
4) uma tendência para a integração reflectida e criativa de referências
teóricas com origens distintas, num domínio de problematização que se desdobra
em diferentes níveis de análise (de âmbitos mais ou menos amplos) e em diversos
tipos deobjectos de estudo preferenciais; contam-se entre estes, nomeadamente,
as estruturas de classes, os processos de mobilidade e fechamento social, as
instâncias e os processos de formação de classes, as hierarquias simbólicas de
posição social, assim como as articulações (variáveis) das classes com os
campos diferenciados de relações sociais, com as estratégias sociais e as
formas de acção colectiva, incluindo as que se estruturam em movimentos
sociais, com as práticas e representações quotidianas, com as identidades
culturais e os estilos de vida.
A análise de que este artigo se ocupa não abrange, claro está, todo este
domínio de problematização. Mas procura tê-lo sempre presente, como pano de
fundo, na abordagem do objecto específico de que se ocupa.
Definido de maneira mais precisa, o objecto de estudo centra-se aqui na
recomposição das estruturas de classes observáveis na União Europeia, tais como
podem ser caracterizadas a partir de um conjunto limitado mas crucial de
indicadores socioprofissionais e socioeducacionais, e problematizando a
pertinência actual, perante os processos de globalização contemporâneos, das
unidades geográficas de análise nacionais e supranacionais neste género de
investigações. Dá-se particular atenção ao posicionamento da realidade social
portuguesa no referido contexto europeu.
A análise de classes em contexto de globalização
A análise dos processos contemporâneos de globalização tem incidido sobre um
conjunto de aspectos, nomeadamente económicos e tecnológicos, políticos e
ideológicos, comunicacionais e culturais, ambientais e migratórios,
institucionais e militares. Quais as repercussões destes processos em termos de
classes sociais? E de que modos estas os influenciam?
Em certo sentido, logo desde as primeiras propostas de teorização relevantes,
as análises sobre classes sociais equacionaram-nas a vários níveis e em
particular, no que aqui está mais directamente em causa, como contendo, de modo
não trivial, importantes dimensões tanto nacionais como transnacionais. Na obra
de Marx isso é notório, nomeadamente quando se refere à emergência do
capitalismo, aos processos do seu desenvolvimento e à acção revolucionária do
proletariado como se encontra expresso, de maneira muito clara, por exemplo,
em Marx e Engels (1848, 1969) ou Marx (1867, 1977). Mais tarde, para mencionar
apenas outro dos marcos fundadores deste domínio analítico, apareceram com a
sociologia empírica de matriz funcionalista, tendo-se tornado referência
obrigatória, os estudos comparativos internacionais de composição estrutural e
mobilidade social, como os de Lipset e Zetterberg (1956, 1967) ou de Mayer
(1964, 1967), entre muitos outros.
De modo mais geral, a necessidade de considerar diversos níveis analíticos e de
prestar particular atenção às respectivas articulações, mesmo quando, como é
corrente, os objectos de estudo se situam privilegiadamente num deles,
representa um pressuposto teórico partilhado pelas principais orientações
paradigmáticas que incidem neste domínio de problematização e investigação. Em
termos operatórios, isto tem tradução, entre outros aspectos, nas escalas
espaciais e nas amplitudes temporais adoptadas.
Mas o equacionamento dos níveis de análise pertinentes para a investigação de
determinados objectos de estudo é, antes de mais, um problema de ordem
substantiva, relativo portanto às dimensões conceptuais fundamentais que esses
objectos de estudo integram, de acordo com a perspectiva analítica adoptada.
Não se reduz nem se confunde, pois, com a delimitação de unidades de
observação, nomeadamente das unidades geográficas de recolha sistemática de
informação empírica, por mais importante que esta última operação também seja.
Por exemplo, há diversos trabalhos neste domínio cuja pesquisa observacional é
conduzida sobretudo a escalas locais ou regionais, mas que se reportam a
objectos de estudo, no sentido conceptual, implicando (também) estruturas e
dinâmicas cuja constituição remete para níveis mais amplos como acontece,
entre muitos outros, nos estudos de caso locais de Pinto (1985), Almeida
(1986), Almeida (1993), Costa (1999) e Estanque (2000), ou nas análises
extensivas operacionalizadas à escala do concelho para o conjunto do território
nacional de Ferrão (1982; 1985).
O quadro nacional-estatal tem constituído o horizonte de referência principal
de boa parte das pesquisas sobre classes sociais, pelo menos como unidade
geográfica de análise empírica. Há, por um lado, razões teórico-substantivas
pertinentes para isso, se se considerar que, em grande medida, as estruturas,
instituições e processos que contribuem para a formação de relações de classe
se têm estabelecido no contexto dos estados nacionais, em consonância com o
carácter crucial destes na configuração das condições sociais da modernidade,
em sentido amplo, incluindo o período contemporâneo.
Mas há também, por outro lado, um conjunto de problemas aqui implicados. A
operação de pesquisa que consiste em tomar o quadro social nacional-estatal
como unidade geográfica de observação nomeadamente em casos de análises
extensivas de tipo quantitativo nem sempre é acompanhada de uma
problematização da respectiva relação com o objecto de estudo em sentido
conceptual, e submetida teoricamente a esta. O contexto nacional-estatal tende
assim a ser "naturalizado" e "absolutizado", como se não fosse necessário
averiguar se é pertinente, ou suficiente, para a análise dos fenómenos em
estudo, ou como se os seus modos de relação com outros níveis de estruturação
das relações sociais não fossem historicamente variáveis. Se este é um problema
a ter sempre em conta, coloca-se ainda com mais acuidade em contexto de
globalização.
Não são muitas as análises que se tenham debruçado de maneira directa e
aprofundada sobre as relações entre "classes sociais" e "globalização" ou,
dito de outro modo, sobre como é que as relações sociais de classe se
reconfiguram e se repercutem socialmente no âmbito dos processos contemporâneos
que se têm vindo a subsumir sob o termo de globalização. Em todo o caso, é
possível localizar dois tipos de contributos relevantes.
O primeiro tipo tem a ver com contributos não pertencentes ao domínio
especializado das análises de classes, mas que, ao ocuparem-se do estudo de
processos contemporâneos de mudança social à escala planetária, enfrentam um
certo número de processos com incidência importante nas relações de classe.
Entre outras, são particularmente interessantes as análises de tendências para
a constituição de relações de classe a nível mundial, e mesmo, em certa medida,
de novas classes, ou classes reconstituídas em novos moldes, de âmbito global.
Encontram-se em diversas pesquisas ou ensaios, alguns bem conhecidos.
É o caso, por exemplo, das referências de Reich (1991, 1993) à condição
eminentemente cosmopolita dos "analistas simbólicos", na nova segmentação
socioprofissional prevalecente a nível mundial. É o caso das anotações do Grupo
de Lisboa (1994) sobre as "novas elites globalizadas" constituídas por círculos
de investidores, gestores e técnicos de empresas multinacionais, funcionários e
peritos de instituições supranacionais e de organizações não governamentais, de
jornalistas, cientistas e outros "viajantes globais". É o caso, também, de
análises como a de Portes (1999) sobre a crescente importância das "comunidades
transnacionais", envolvendo fluxos de empresários e trabalhadores entre
diversos países ou continentes, ou como a de Peixoto (1999) sobre a actual
"mobilidade internacional dos quadros". Isto para já não falar das extensas
análises de Castells (1996; 1997; 1998), para quem se verifica, na "sociedade
de rede" da "era de informação", uma efectiva e intensa interdependência global
que atravessa e dinamiza os processos de recomposição das estruturas do emprego
e de transformação das relações de classe a nível mundial, reconfigurando os
sistemas de clivagens sociais. Para ele não se pode no entanto falar por ora de
uma força de trabalho global, excepto em relação a um conjunto restrito mas
crescente de quadros, técnicos e cientistas.
Pelo seu lado, na sociologia das classes sociais contemporânea, alguns
trabalhos têm também fornecido contributos valiosos. É o caso, nomeadamente, de
pesquisas importantes, com elevado nível de elaboração teórica e metodológica,
nas quais se procede a estudos comparativos, de âmbito alargado, entre diversas
sociedades nacionais. De entre elas, podem destacar-se as de Erikson e
Goldthorpe (1993), de Esping-Andersen (1993) ou de Wright (1997). Correspondem
a problematizações teóricas, soluções operatórias e horizontes empíricos
diferentes entre si, mas qualquer delas acabou por constituir-se em referência
decisiva na área.
Acontece que essas pesquisas tomando como objectos de estudo aspectos como as
estruturas de classe, as dinâmicas de mobilidade social, os processos de
recomposição social ou os quadros de valores e representações debruçam-se,
com maior ou menor desenvolvimento, sobre repercussões de processos
constituídos à escala global na reconfiguração das estruturas, culturas e
práticas de classe, tais como elas ocorrem a nível de diversas sociedades
nacionais. Mas não é de modo nenhum líquido que a actual análise das relações
de classe possa ficar por aí.
Que sentido fazem ainda, em contexto de globalização, as análises de classes a
nível nacional? Que articulações se podem estabelecer entre estas e as análises
de classes a níveis supranacionais?
Como salientam Breen e Rottman (1998), estão aí problemas susceptíveis de
debate teórico e de investigação empírica. Os desenvolvimentos que se seguem,
centrados na análise substantiva de estruturas de classe e processos de
recomposição social na União Europeia, poderão contribuir para o respectivo
exame, mesmo que de maneira circunscrita e exploratória.
Parâmetros de recomposição social na União Europeia
As relações estruturais e os processos de recomposição social aqui em análise
ocorrem num contexto sui generis, o espaço de integração supranacional que se
designa hoje por União Europeia. Uma das suas particularidades é que se trata
de "um universo em expansão". Actualmente a União Europeia tem uma população
que ronda os 370 milhões de habitantes. Tomando como referência o período que
vem desde 1986, ano da inserção de Portugal neste espaço, verifica-se que o
acréscimo populacional entretanto verificado se ficou a dever sobretudo à
adesão de três novos países (Áustria, Finlândia e Suécia) e à incorporação na
Alemanha da antiga RDA.
Pelo seu lado, o crescimento demográfico (saldos natural e migratório) nos doze
países membros em 1986 foi comparativamente bastante pequeno, embora em quase
todos eles a população tenha aumentado um pouco (quadro_1). Deste último ponto
de vista, Portugal apresenta-se como excepção, com um pequeno decréscimo, se
bem que marginal. A reduzida taxa de natalidade neste período (Almeida,
Capucha, Costa, Machado e Torres, 2000) e a persistência dos movimentos de
emigração, por vezes subavaliados mas efectivos (Baganha e Peixoto, 1997;
Peixoto, 1999), foram dois factores desta estagnação populacional, mal
contrabalançados por outras duas tendências: o aumento gradual da esperança de
vida e a crescente recepção de imigrantes, tendo estes, no entanto, um peso
relativo ainda bastante reduzido no conjunto da população (Machado, 1997;
Machado, 1999; Pires, 1999).
Quadro1 Indicadores de recomposição social na União Europeia,1986-1998 (em
percentagens)
A estrutura etária da população da UE envelheceu um pouco na base e no topo,
isto é, a percentagem de crianças e jovens com menos de 15 anos diminuiu e a de
pessoas com 65 e mais anos aumentou. Observa-se, por outro lado, a estabilidade
da faixa populacional compreendida entre 15 e 64 anos.
As diferenças a este respeito entre os diversos países não podem ser
menosprezadas. As tendências de envelhecimento na base e no topo da estrutura
etária ocorrem mais acentuadamente neste período em Portugal, assim como nos
outros países da Europa do Sul (e em certa medida na Irlanda), ao contrário da
relativa estabilidade verificada nos restantes. Portugal é também um dos poucos
países em que a faixa etária "central" (15-64 anos) regista acréscimos
percentuais significativos, acompanhado nalguma medida pela Espanha e,
sobretudo, pela Irlanda.
São diferenças que correspondem a conhecidos fenómenos, nomeadamente de entrada
mais tardia destes países do Sul europeu em processo de decréscimo rápido e
acentuado das taxas de natalidade, numa altura em que os países da Europa
atlântica e setentrional começavam, neste domínio, a estabilizar nos patamares
entretanto atingidos, ou mesmo a registar ligeiros acréscimos. Isto, ao mesmo
tempo que, em vários deles, a incorporação de imigrantes atingia pesos
percentuais bastante superiores aos verificados nos países da Europa
meridional.
Tão ou mais importante, quanto aos parâmetros fundamentais que balizam os
processos de recomposição social na União Europeia desde meados da década de 80
até à actualidade, é a evolução das taxas de actividade. Os dados do quadro_1 a
este respeito são relativos às taxas de actividade na faixa populacional dos 15
aos 64 anos, a qual é hoje correntemente considerada como a "população
potencialmente activa" do ponto de vista profissional.
Note-se, de passagem, que tal assunção tem vindo a ser, cada vez mais,
submetida a questionamento, na sequência, precisamente, de processos de
recomposição social que se encontram hoje na ordem do dia. Com efeito, entre os
mais novos, está em causa o prolongamento da escolarização inicial e, de modo
mais geral, o alongamento dos processos de transição para a vida adulta, aliás
com variantes nacionais perceptíveis no contexto europeu (Lewis, Smithson,
Brannen, Guerreiro, Kugelberg, Nilsen, e O'Connor, 1999). Entre os mais velhos,
pelo seu lado, verificam-se actualmente tendências de sinal contrário, tais
como, nuns casos, a antecipação da saída da actividade profissional, em geral
compulsiva, e, noutros casos, o respectivo adiamento, parte dele sob a pressão
da necessidade material, mas cada vez mais, também, enquanto manifestação
assumida de vontade de prolongamento activo de vivência pessoal e estatuto
social plenos, numa população com vida mais longa e saudável do que nas
gerações anteriores.
Em todo o caso, a faixa etária dos 15 aos 64 anos é, sem dúvida, a mais
importante para o ângulo de análise que de momento aqui importa desenvolver. É
também aquela para a qual são mais seguros os indicadores comparativos
disponíveis. Além disso, em registo metodológico, permite que as diferenças de
estrutura demográfica atrás assinaladas não interfiram nas comparações entre
países.
Como evoluiu então, nesta faixa etária, a repartição entre população
profissionalmente activa e população profissionalmente inactiva? O quadro_1
evidencia, a este respeito, vários traços importantes. De entre eles destaca-se
o facto de, na União Europeia, a taxa de actividade crescer um pouco, mas na
confluência de dois processos de sentido inverso: alguma diminuição da taxa de
actividade masculina e aumento mais do que compensatório da taxa de actividade
feminina. A diferença entre ambas é agora de 20 pontos percentuais quando,
menos de década e meia antes, era de 30. É a acentuação de um processo de
recomposição social do maior alcance e da mais ampla repercussão em
praticamente todos os planos da vida social: o da aquisição alargada por parte
das mulheres de um elemento essencial do estatuto social de cidadania plena nas
sociedades contemporâneas, o estatuto profissional.
Só por caricatura ou distorção ideológica levada ao limite se pode subvalorizar
a importância do trabalho ou, em termos sociológicos talvez mais precisos, da
esfera profissional nos modos de vida e nas configurações de sociedade
actuais. Basta reparar em aspectos, por demais conhecidos, como as relações
entre qualificações profissionais e estilos de vida ou entre desemprego e
exclusão social, como a centralidade das políticas de emprego no debate
público, nas prioridades de governação e nas estratégias de competitividade
internacionais contemporâneas, ou como as exigências crescentes de realização
pessoal enquanto horizonte de expectativas na vida profissional. O processo de
inserção alargada das mulheres na esfera profissional constitui precisamente
mais um destes aspectos, porventura dos de maior relevo actual.
Mas se esta é uma tendência geral na União Europeia, observam-se igualmente
contrastes nacionais acentuados. Aliás, se há algumas variações nas taxas de
actividade masculina, as principais diferenças registam-se nas taxas de
actividade feminina. Entre países escandinavos como a Dinamarca, a Suécia ou a
Finlândia, de um lado, e países mediterrânicos como a Itália, a Espanha ou a
Grécia, do outro, a distância chega a quase 30 pontos percentuais a favor dos
primeiros. Em meados da década de 80, o fosso ainda era maior, tendo a subida
daí para cá sido muito mais intensa na Espanha do que na Itália, com a Grécia
entre elas, apesar de as taxas permanecerem comparativamente baixas em qualquer
destes países.
Próximo destes é o caso da Irlanda, com uma taxa de actividade feminina à
partida muito reduzida e tendência de crescimento recente bastante forte. A
Bélgica, com taxas igualmente em aumento substancial, não atingiu valores muito
diferentes da Irlanda, apesar de ter partido de situação mais favorável.
Verificou-se, do mesmo modo, crescimento significativo da presença feminina na
esfera profissional em países onde ela já era relativamente alta (como o Reino
Unido ou a França) e sobretudo onde tinha valores intermédios (como nos casos
da Holanda e da Alemanha).
Vale a pena destacar, neste contexto, a "excepcionalidade portuguesa", onde a
taxa de actividade feminina era, já em 1986, mais elevada do que os valores
médios europeus, muito acima das dos outros países da Europa do Sul, em
princípio mais próximos em termos socioeconómicos e socioculturais. Para isso
terão contribuído os processos de emigração e mobilização militar dos homens
nas décadas de 60 e 70, combinando-se mais recentemente a premência de
necessidades de consumo básico perante padrões de vida em mutação com dinâmicas
de procura de autonomia e emancipação pessoais por parte das mulheres (Almeida,
Capucha, Costa, Machado e Torres, 2000).
O crescimento continuou intenso daí para cá, estando a taxa de actividade
feminina em Portugal, no final da década de 90, próxima da de países como a
Alemanha, Áustria, França e Holanda. Só os países nórdicos e, em certa medida,
o Reino Unido, se situam num patamar um tanto superior. A maior incidência de
profissionalização das mulheres portuguesas torna-se ainda mais notória se se
atender a que predomina largamente o trabalho a tempo inteiro, em comparação
com as proporções elevadas de tempo parcial na maioria dos países com taxas de
actividade feminina mais alta, e se se atender também ao valor comparativamente
muito elevado que a actividade profissional a tempo inteiro assume entre as
mulheres portuguesas com filhos menores (Almeida, Guerreiro, Lobo, Torres e
Wall, 1998).
Este percurso rápido por alguns dos parâmetros básicos dos processos de
recomposição social na União Europeia não poderia deixar de fazer uma primeira
referência aos níveis de escolaridade. A educação formal é hoje um dos
elementos mais decisivos, tanto de organização dos quotidianos e dos trajectos
de vida pessoais como de configuração das sociedades e dos seus processos de
desenvolvimento. Constitui, actualmente, do mesmo modo, um dos mais importantes
eixos segundo os quais se hierarquizam as distribuições desiguais de poderes,
recursos e oportunidades, a nível pessoal e a nível societal.
Os processos de recomposição social nomeadamente no que têm a ver com
mobilidade social, qualificação profissional, capacitação cultural e mutação
dos estilos de vida têm sido em grande medida impulsionados pelas dinâmicas
de alargamento da escolarização, quanto à amplitude dos universos sociais
abrangidos e quanto aos níveis de escolarização atingidos. Do mesmo passo,
estas dinâmicas não deixaram de arrastar consigo novas subalternizações ou
mesmo novas exclusões sociais.
No quadro_1 toma-se como indicador simples a aquisição, pela população entre os
25 e os 64 anos, de pelo menos um grau equivalente ao ensino secundário, cada
vez mais considerado como requisito minimamente ajustado aos horizontes
contemporâneos de uma sociedade da informação e do conhecimento. A média
europeia de escolarização secundária e superior, nesta faixa etária, é
relativamente elevada, tendo passado de um pouco mais de 50%, no princípio da
década de 90, para quase 60%, à medida que a década se aproximava do fim.
Mas as desigualdades entre países europeus são, neste plano, muito acentuadas.
No terceiro quartel da década de 90, a situação variava entre percentagens de
80% e 70%, em países como a Alemanha, Dinamarca, Suécia, Áustria e Finlândia,
passando por outros com valores entre os 65% e os 55%, casos da Holanda,
França, Bélgica ou Reino Unido, até outros que ainda não ultrapassavam os 50%,
descendo daí até a alguns pontos acima dos 30%, nos quais se incluem a Irlanda,
Luxemburgo, Grécia, Itália e Espanha. Continuando por ordem decrescente, abaixo
só surge um país, Portugal, ainda pouco acima dos 20%.
Entre os extremos a diferença é abissal: vai dos 80% (Alemanha) aos 22%
(Portugal). Nas outras dimensões acima examinadas, apesar das diferenças,
poder-se-ia ainda assim considerar estar-se perante estruturas demográficas
convergentes e níveis de profissionalização não muito dissemelhantes. Mesmo
para as taxas de actividade feminina, onde os perfis são mais diferenciados, o
intervalo entre os valores máximo (Dinamarca) e mínimo (Itália) não passa dos
30 pontos percentuais. Mas quanto aos níveis de escolaridade os contrastes são
enormes.
A questão é tanto mais importante quanto é em grande medida neste domínio que
se jogam hoje as estratégias de competitividade e as políticas de
desenvolvimento o que tem implicações fortes a nível das sociedades nacionais
(no que elas têm de unidades diferenciadas) e, por consequência, nas relações
que estabelecem entre si. De outro ponto de vista, é também um dos parâmetros
mais decisivos segundo os quais se posicionam, em termos de hierarquias de
capacidades, de oportunidades e até, tendencialmente, de qualidade de vida, as
pessoas e os segmentos populacionais que integram a União Europeia, tomada no
seu conjunto, enquanto unidade agregada supranacional.
Acresce ainda que, no período considerado, Portugal foi dos países em que menos
aumentou a percentagem de população adulta com estes graus de escolaridade,
apesar do crescimento rápido do número de alunos matriculados nesses níveis de
ensino. No entanto, como se vê, tal crescimento ainda não produziu efeitos de
recuperação significativa das distâncias que separam as taxas de escolarização
secundária e superior da população portuguesa relativamente às médias
europeias. A maioria dos outros membros da União Europeia não permaneceu
estática, aliás, a este respeito. Países que, no período considerado, partiam
igualmente de níveis baixos, embora não tanto, como a Itália, Irlanda, Espanha,
Grécia ou Luxemburgo, aumentaram bastante mais. Mesmo a Bélgica ou o Reino
Unido, em que os níveis anteriores eram claramente mais altos, registaram
subidas bem maiores no período em causa.
Resta mencionar que, na União Europeia como um todo, as percentagens de
escolaridade secundária e superior são um pouco mais elevadas nos homens do que
nas mulheres, embora essa assimetria tenha vindo a atenuar-se. Mas também aqui
as diferenças nacionais são significativas. Segundo os dados recolhidos para o
quadro_1, na Suécia, Finlândia e Irlanda, estes níveis de escolarização
registam percentagens mais elevadas nas mulheres do que nos homens.
Em Portugal, as percentagens são praticamente idênticas, tendendo as mulheres a
passar para a frente, sobretudo por força da frequência do ensino superior, com
cerca de mais 20% de mulheres do que de homens no terceiro quartel da década de
90 (PNUD, 2000). Em países como a Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grécia,
Itália e Luxemburgo, as mulheres ainda apresentam percentagens alguns pontos
mais baixas do que os homens, mas a tendência de aproximação é clara. Noutros
casos, finalmente, como os da Alemanha, Áustria, Holanda e Reino Unido, as
assimetrias são ainda bastante fortes em desfavor das mulheres.
Lugares de classe e recomposições socioprofissionais
A partir deste primeiro panorama, os processos de recomposição social na União
Europeia tornam-se susceptíveis de análise um pouco mais fina, sendo o recurso
aos indicadores socioprofissionais de classe de grande utilidade. Com efeito,
estes indicadores permitem combinar de maneira sintética diversas dimensões
essenciais de estruturação das relações sociais de classe contemporâneas.
O indicador socioprofissional aqui utilizado (quadro_2), integra, como
variáveis principais, a profissão e a situação na profissão. Além disso, de
maneira complementar, inclui informação relativa a aspectos da condição perante
o trabalho, da qualificação profissional, da posição hierárquica e do sector de
actividade.2 Do modo como foi construído, isto é, com as dimensões de análise
que agrega e com a tipologia classificatória em que se desdobra, consegue dar
tradução operatória a distinções conceptuais teoricamente nucleares neste
domínio e, ao mesmo tempo, corresponder às configurações empíricas mais
importantes na actualidade, em termos de escalas de grande amplitude societal.
Por outro lado, pode tomar como dados de base os que estão hoje correntemente
disponíveis nas estatísticas institucionais.
Quadro 2 Recomposições socioprofissionais na União Europeia, 1986-1997 (em
percentagens)
Além disso, esse indicador socioprofissional possibilita a operacionalização de
questões controversas no debate entre diversos quadros teóricos relevantes no
âmbito deste campo de investigação. Aliás, os pontos de contacto com outras
tipologias classificatórias, como as de Goldthorpe (Erickson e Goldthorpe,
1993), Esping-Andersen (1993) ou Wright (1997), são facilmente identificáveis,
assim como não custará reconhecer as vantagens conceptuais e operatórias do
presente sistema de categorias, aqui retomado na sequência de vários trabalhos
anteriores (Almeida, Costa e Machado, 1994; Machado, Ávila e Costa, 1995;
Benavente, Rosa, Costa e Ávila, 1996; Machado e Costa, 1998; Machado, 1998;
Costa, 1999; Almeida, Capucha, Costa, Machado e Torres, 2000).3
Podem referir-se, muito brevemente, algumas dessas vantagens. Por comparação
com o de Goldthorpe, este modelo tem o carácter de uma segmentação tipológica
teoricamente alicerçada, e não meramente descritiva. Vem permitir, assim,
remissões dos resultados empíricos para análises situadas em planos mais
abstractos de problematização e, em termos operatórios, admite agregações
destinadas à investigação do efeito relativo e dos modos de articulação de um
conjunto de dimensões de fundo das relações de classe, dimensões essas
analiticamente distinguíveis, mas às quais as categorias de Goldthorpe são em
boa medida opacas.
Quanto à comparação com a tipologia de Esping-Andersen, as vantagens radicam
basicamente na multidimensionalidade do indicador socioprofissional que aqui se
utiliza, e também, de algum modo, na não associação apriorística de certas
categorias a configurações separadas e datadas das estruturas de classes
contemporâneas. Se, no primeiro aspecto, os ganhos são de ordem semelhante aos
que se podem obter perante as classificações de Goldthorpe, no segundo estão em
permitir analisar as articulações de conjunto das categorias
socioprofissionais, atendendo às transformações de conteúdo substantivo e de
posição relativa pelas quais essas categorias podem passar sob efeito das
evoluções de vectores económicos, tecnológicos, institucionais e culturais
estruturantes das sociedades contemporâneas.
Em relação às propostas de Wright, as vantagens da tipologia aqui utilizada têm
a ver, sobretudo, com uma maior desagregação das categorias assalariadas de
base, questão importante em vários planos. No plano teórico, possibilita a
inclusão de dimensões de análise por esse autor descuradas. No plano empírico,
atende a dinâmicas hoje em muitos aspectos claramente diferenciadas entre os
assalariados de base da indústria e dos serviços. E, no plano operatório, evita
categorias com efectivos completamente desproporcionados entre si, o que,
quando acontece, como com as de Wright, para além de conduzir na prática a
trabalhar com escalas diferentes num mesmo conjunto classificatório, torna
problemáticas, em análises quantitativas, as operações estatísticas.
A mesma lógica de construção do indicador socioprofissional de classe de que se
faz uso neste texto pode aplicar-se a diferentes unidades de análise
(individual ou familiar, nomeadamente), pode abranger situações de
pluriactividade e pode traduzir-se em maiores desdobramentos ou maiores
agregações categoriais, consoante o objecto de estudo e o nível de análise.
No caso presente, o indicador possível, a partir das fontes estatísticas
institucionais, sofre de várias restrições: é um indicador individual (não
permite estabelecer relações entre membros dos grupos domésticos), sincrónico
(não fornece indicações sobre trajectórias pessoais de mobilidade social),
relativo à ocupação profissional principal (não capta as situações de
pluriactividade) e deixa de fora uma parte não aferível da economia informal.
Além disso, esta versão da tipologia classificatória é muito agregada, em sete
categorias apenas. Cada uma delas abrange, inevitavelmente, grande diversidade
interna. Mas possibilita, do mesmo passo, uma análise de conjunto viável à
escala pretendida. Tudo está em dotar as categorias de conteúdo conceptual
pertinente e controlável. Em estudos diferentes deste, a desagregação poderá e
deverá ser maior, assim como noutros convirá um grau ainda superior de
agregação.
Os indicadores socioprofissionais, este incluído, não recobrem toda a amplitude
dimensional que as relações de classe podem conter. Mas nem por isso deixam de
operacionalizar aspectos decisivos dessas relações. Recorde-se que os dados
apresentados abrangem uma grande maioria da população adulta, como se viu no
ponto anterior. Não representam, pois, informação respeitante apenas a uma
qualquer hipotética minoria, de importância secundária no tecido social ou em
processo de extinção, como pretendem fazer crer algumas teses apressadas sobre
o "fim do emprego".
O aspecto porventura mais saliente, para a União Europeia como um todo, é o
aumento rápido e significativo, verificado entre meados dos anos 80 e o
terceiro quartel da década de 90, do peso percentual atingido pelas duas
categorias melhor posicionadas na estrutura social: os "empresários, dirigentes
e profissionais liberais", situados no topo das distribuições sociais de
recursos, poderes e status, e os "profissionais técnicos e de enquadramento",
basicamente as novas classes médias assalariadas, dotadas de níveis
significativos de qualificações (técnicas, científicas e culturais) e/ou
ocupando lugares intermédios nas hierarquias organizacionais. Em conjunto,
representam agora quase 30% da população com actividade profissional. Em meados
da década anterior pouco passavam dos 20%.
Na primeira dessas categorias, o acréscimo (da ordem dos 8% para a dos 14%) tem
sobretudo a ver com a proliferação de pequenas e médias empresas,
correspondente às dinâmicas de reorganização das unidades empresariais nos anos
80 e 90: focagem e externalização, concentração e subcontratação, nova
empresarialidade tecnológica e auto-emprego de recurso. Em todos os países o
acréscimo foi intenso, mantendo-se aproximadamente as posições relativas, com
um máximo no Reino Unido (quase 20%) e um mínimo no Luxemburgo (perto de 10%).
Portugal quase triplicou o peso percentual desta categoria, atingindo os 11,5%.
Outra evolução importante, a nível da União Europeia e de cada um dos países,
deu-se na relação entre homens e mulheres. É uma categoria ainda muito
maioritariamente masculina (os homens são mais do dobro das mulheres), mas
importa sublinhar que a distância se encurtou de maneira visível (na data
anterior a relação era cerca de quatro para uma).
Na segunda das categorias referidas, a dos profissionais técnicos e de
enquadramento, a subida de 10 pontos percentuais (da ordem dos 14% para a dos
24%) acompanha as tendências de fundo da chamada sociedade da informação e do
conhecimento, com incorporação crescente de tecnicidade operatória e
relacional, simbólica e analítica numa parte significativa das actividades
económicas e dos serviços públicos. Acompanha igualmente outra tendência
pesada, relativa à expansão dos "consumos qualitativos": lúdicos e culturais,
estéticos e desportivos, de educação e saúde, entre outros. As duas tendências
têm, aliás, conexões fortes entre si.
O peso relativo destes profissionais qualificados parece ser particularmente
sintomático dos níveis de modernização das estruturas sociais e das capacidades
competitivas das populações num mundo de crescente interdependência global.
Noutros termos, tende a traduzir o respectivo posicionamento relativo, mais ou
menos favorável, conseguido perante os processos interligados de inovação
tecnológica e de globalização, no contexto dos quais a redistribuição das
actividades profissionais dos segmentos mais qualificados e remunerados, como
estes, por um lado, e dos que o são bastante menos, por outro se faz em
termos planetários, cada vez com maior intensidade e de forma muito polarizada.
Os dados de recomposição socioprofissional apresentados no quadro_2 evidenciam
os modos relativamente privilegiados de inserção da União Europeia neste
contexto mundial. Mostram também que, no seu interior, a situação está longe de
ser homogénea. Entre a Suécia, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Holanda e
Luxemburgo, com cerca de 30% de profissionais técnicos e de enquadramento, e os
menos de 15% da Grécia e Portugal, a distância é muito grande. A Espanha,
Itália e Irlanda estão um pouco acima, aproximando-se dos 20%, patamar já
alcançado pelo Reino Unido ou pela Áustria. A Bélgica e a França ultrapassam um
pouco os 25%.
Portugal, no período considerado, parte dos níveis mais baixos e duplica o peso
relativo da categoria, subindo cerca de 7 pontos percentuais (da ordem dos 7%
para a dos 14%). A Espanha, saindo aproximadamente do mesmo nível, sobe
bastante mais; e a Grécia, começando melhor, atinge apenas situação idêntica à
portuguesa. Na maioria dos outros países, pelo menos até onde é possível fazer
comparações diacrónicas, os acréscimos variam entre cerca de 5 pontos
percentuais e, em bastantes casos, perto de 10, ou mesmo bastante acima. São
subidas tanto mais significativas quanto se reportam a casos em que os pesos
relativos de partida eram já, na altura, bastante elevados. Destacam-se aqui
exemplos como os da Bélgica, França ou Holanda, e, mais ainda, Luxemburgo e
Alemanha.4
Os profissionais técnicos e de enquadramento são uma das categorias
socioprofissionais em que a presença de ambos os sexos é mais equilibrada. Já
na década de 80 a diferença não era enorme e aproxima-se agora de valores
paritários, no conjunto da União Europeia. As dinâmicas de escolarização
feminina contribuem decisivamente para este processo, numa categoria
socioprofissional em que, cada vez mais, a detenção de níveis elevados de
educação formal é condição de acesso. Em países como a Dinamarca, Finlândia e
Suécia verifica-se mesmo, no terceiro quartel dos anos 90, uma presença
feminina maioritária, no que são acompanhados de resto por Portugal,
possivelmente numa manifestação mais da "excepcionalidade" atrás referida.
O outro conjunto mais importante na estrutura dos lugares de classe da União
Europeia, tal como é possível captá-la através de indicadores
socioprofissionais com as características deste, é constituído também por duas
categorias, a dos "operários industriais" e a dos "empregados executantes". São
ambas formadas por assalariados de base, sem qualificações elevadas nem poderes
hierárquicos significativos. Os primeiros desempenham tarefas de produção
fabril, oficinal, de estaleiro e de transporte; os segundos ocupam-se de
actividades administrativas, comerciais, de segurança e de serviços pessoais
variados.
Há várias objecções fortes à conhecida proposta de Wright (1997) a este
respeito, de indistinção destas duas categorias num amplo "proletariado"
actual. Com efeito, elas evidenciam atributos bastante distintos entre si:
quanto à especificação técnica do trabalho que executam, quanto ao contexto
relacional em que o desenvolvem, quanto às carreiras profissionais prováveis,
quanto a tendências pesadas da sua evolução quantitativa, quanto à composição
por sexos dos efectivos de cada uma e ainda quanto às suas auto-imagens de
classe. Isto, não obstante a partilha de uma mesma condição assalariada de base
e os laços sociais que as interligam no quotidiano profissional e
extraprofissional. Torna-se, pois, analiticamente mais produtivo, poder-se
examiná-las em separado, sempre que isso seja pertinente, não perdendo assim de
vista aspectos significativos dos processos contemporâneos de estruturação
social. É sempre possível agregá-las quanto ao que nelas se inscreva de
condição comum.
No período em análise, o conjunto das duas categorias passa, na União Europeia,
de perto de dois terços da população profissionalmente activa para pouco mais
de metade. Ainda é, de longe, o segmento mais numeroso das pessoas com
actividade profissional. Mas o decréscimo é muito significativo.
Mais especificamente, os operários passam de quase 30% para pouco mais de 23%,
o que corresponde a processos conhecidos, tanto de intensificação tecnológica
da produção industrial como de transferência de unidades fabris para áreas do
globo em industrialização recente, com custos de mão-de-obra directos e
indirectos muito mais baixos. Claro está que as variações nacionais não
podem, também aqui, ser menosprezadas. Há uma diferença efectiva entre os mais
de 25% de operários no tecido socioprofissional de países como a Alemanha,
Áustria, Espanha ou Portugal, num extremo, e os menos de 20% da Holanda, Reino
Unido e Grécia, no outro.
Estas diferenças, em todo o caso, não podem ser tomadas como indicadores
lineares de níveis de desenvolvimento das estruturas sociais. Basta reparar nos
dois subconjuntos de países acima assinalados, com as suas heterogeneidades
internas, para dar conta de que o que está em causa é algo de mais complexo. O
que se passa é a combinação de tendências gerais, manifestando-se em termos de
conjunto a nível da União Europeia em concreto, uma diminuição sistemática do
peso relativo do operariado industrial , com especificidades nacionais,
respeitantes quer aos padrões de especialização produtiva, quer aos graus de
modernização do tecido económico prevalecentes em cada país. Nem a omissão
apriorística, na análise, daquelas tendências globais, nem a destas
especificidades nacionais, conduzem a resultados cognitivos esclarecedores.
A descida do peso relativo dos empregados executantes é porventura mais
surpreendente ou, pelo menos, tem sido menos analisada. Teses variadas,
relativas a uma nova proletarização alargada nos países europeus, desta vez
pela expansão crescente de um "proletariado pós-industrial", terciarizado e
feminizado, não se viram completamente confirmadas nesta última década, pelo
menos nas suas versões mais correntes.
É certo que a categoria socioprofissional dos empregados executantes
assalariados de base dos escritórios, comércio e serviços esteve em
crescimento até há pouco tempo na generalidade dos países da actual União
Europeia (o que de algum modo justifica a proposta de teses como as referidas),
tendo atingido, em todos estes países, uma das posições maioritárias na
estrutura social, quase a par ou mesmo acima do operariado industrial. Ao
contrário deste, no entanto, constituiu-se como categoria socioprofissional de
dominante feminina. Foi através dela que, em grande parte, se processou a
entrada maciça das mulheres na esfera profissional.
Mas, pelo menos desde a década de 90, a tendência de conjunto começou a
inverter-se, como algum tempo antes tinha acontecido com o operariado
industrial. Aliás, em países como Portugal e Grécia, onde a expansão dos
empregados executantes é mais recente, ainda se verificou um certo crescimento
no período em análise, correspondente sobretudo a uma intensificação do
processo de feminização da categoria. Na Espanha, pelo seu lado, uma
estabilização aparente dos empregados executantes esconde também uma
feminização interna. Em quase todos os outros países, o movimento é de descida,
nalguns casos bastante forte, como na Alemanha, França, Holanda, Luxemburgo ou
Reino Unido. Nestes casos, mesmo a componente feminina, maioritária, começa a
diminuir, dando o tom geral à União Europeia. Uma excepção é a Dinamarca, com
um certo acréscimo do peso relativo da categoria em causa, devido à sua
componente feminina.
No conjunto, estas tendências parecem apontar para a confluência de dois
processos importantes. Do lado do tecido económico, tudo indica que, também nos
serviços, embora de maneira internamente diferenciada e gradual, tenha
finalmente começado a assistir-se a acréscimos significativos de produtividade,
acompanhando a introdução das novas tecnologias da informação. Do lado do
tecido social, como já se viu atrás, o aumento dos níveis de qualificação
escolar das populações foi também bastante intenso.
Os dois processos convergem, na maior parte dos países europeus, numa
reorganização da divisão social do trabalho, em direcção a taxas crescentes, na
população activa, de profissionais de níveis médios ou elevados de
qualificação, não só na produção fabril mas também nas funções administrativas,
nas actividades comerciais, nos serviços prestados às empresas, nos serviços
pessoais e nos serviços públicos, com correspondente perda de peso percentual
dos empregados executantes. Tudo isto acontece em graus diferentes, consoante
os sectores e os países, e acarreta, aliás, do outro lado da moeda,
desvalorização relativa de segmentos mais ou menos extensos das actividades
assalariadas de base, nos serviços como na indústria.
Poderá estar também interligado com estes um processo adicional, o de
relocalização, noutras regiões do globo, de tarefas executantes dos serviços,
com remunerações muito abaixo das praticadas na União Europeia, mesmo nos
países que, como Portugal, têm níveis de rendimento dos trabalhadores
consideravelmente inferiores à média europeia.
Apesar de esta relocalização ser, à partida, bastante menos generalizável do
que no caso da produção industrial, devido ao carácter face-a-face de muitos
serviços, verifica-se que uma parte crescente deles pode ser prestada à
distância, com apoio nos dispositivos tecnológicos baseados na informática e
nas telecomunicações. São tarefas comandadas e encomendadas a partir de zonas
mais desenvolvidas do planeta, nomeadamente o espaço europeu, onde tendem a
concentrar-se componentes destes serviços mais intensas em concepção técnica e
estética, assim como em funções de coordenação. É muito difícil avaliar o grau
em que tal processo será já responsável por parte do retrocesso percentual dos
empregados executantes europeus, no essencial a favor dos profissionais
técnicos e de enquadramento, mas a tendência está inscrita nas dinâmicas de
globalização actualmente observáveis.
Aliás, um processo paralelo a este, integrante da mesma lógica global, é a
relocalização de sentido inverso, através da mobilidade internacional de força-
de-trabalho proveniente de países menos desenvolvidos, com inserção de parte
significativa dos e das imigrantes em segmentos pouco qualificados, precários e
mal remunerados do trabalho disponível, nomeadamente do emprego executante dos
serviços.
Ao contrário dos anteriores, este último processo poderia contrariar, em alguma
medida, a diminuição do peso relativo dos empregados executantes. Mas,
nomeadamente em casos como Portugal, não só a importância percentual destes
imigrantes no conjunto da população activa, apesar de crescente, permanece
bastante reduzida, como parte deles, colocada em situações muito vulneráveis de
trabalho informal, torna-se invisível à informação estatística institucional.
Seja como for, à escala da União Europeia, o facto de, apesar deste fluxo
imigratório, ser nítida a descida proporcional dos empregados executantes, vem
sublinhar ainda mais o carácter estrutural dessa tendência.
Quanto aos "trabalhadores independentes", desenvolvendo actividade por conta
própria nos sectores secundário e terciário,5 apesar de uma significativa
persistência intersticial na estrutura socioeconómica (Freire, 1995; Wright,
1997), não deixam de, no período em estudo, parecer estar em queda proporcional
na União Europeia, ao contrário do que tem sido convicção frequente. No
conjunto, ficam aquém dos 5% da população activa. A situação varia bastante, no
entanto, de país para país. Destacam-se, com taxas da ordem dos 10%, a Grécia e
a Itália. A seguir, em torno dos 7%, aparecem Portugal, Espanha e Áustria.
Falta mencionar que os "assalariados agrícolas" se tornaram completamente
residuais no espaço da União Europeia. Os "agricultores independentes" também
atingiram níveis de peso percentual no conjunto da população activa bastante
reduzidos, embora isso não signifique que tenham passado a ser socialmente
insignificantes, longe disso, em termos económicos, políticos, sociais e
ambientais. A situação não é igual em todos os países, salientando-se o peso
relativo que os agricultores independentes ainda têm na Grécia, um tanto menos
em Portugal e, de certo modo, na Irlanda.
Aliás, em países como estes, não se pode fazer justiça à importância efectiva
da actividade agrícola no plano social, mesmo que não tanto no plano económico,
se não se atender à larga mancha de pluriactividade envolvendo ligação
complementar à agricultura. É um aspecto não captável por indicadores que se
baseiam apenas na profissão principal, como o aqui utilizado. Os dados
estatísticos relativos a actividades profissionais complementares, sobretudo
com incidência comparativa, ou não existem, ou são pouco fiáveis. Mas os
estudos de caso monográficos são elucidativos a esse respeito (por exemplo,
para Portugal: Pinto, 1985; Almeida, 1986; Silva, 1994; Silva, 1998).
Formação de classes e recomposições socioeducacionais
A educação formal é hoje um dos elementos fulcrais tanto da organização dos
quotidianos e dos trajectos de vida pessoais como da configuração das
sociedades e dos seus processos de desenvolvimento. Constitui, do mesmo modo,
um dos eixos actualmente decisivos de estruturação das distribuições desiguais
de recursos, poderes e oportunidades, condicionando e capacitando
diferentemente as pessoas para a vida social e contribuindo, de maneira cada
vez mais acentuada, para a estruturação das relações de classe.
A distinção clássica operada, aliás, por diversos paradigmas teóricos entre
os lugares nas estruturas de classes ou nos sistemas de estratificação, por um
lado, e as distribuições das pessoas por esses lugares, por outro lado, não
pode ser tomada senão como um expediente analítico, um "parêntese metodológico"
(para retomar um conceito processual de Giddens), destinado a viabilizar a
concentração analítica em aspectos específicos dos objectos de estudo, mas na
condição de se ter sempre bem presente o carácter provisório da distinção.
Algumas abordagens, hoje ultrapassadas, reificaram os termos da polaridade,
tendendo a absolutizar redutoramente um deles, fossem as estruturas sociais,
fossem os processos de mobilidade. Em contraponto, tornou-se há já bastante
tempo aquisição teórica integrante da sociologia das classes sociais e da
estratificação o reconhecimento de que os dois aspectos se interligam
substancialmente no âmago mesmo da constituição das relações de classe.
Nenhum aspecto ilustra hoje melhor essa articulação entre estruturas de lugares
de classe e processos de formação das classes no que nestes últimos respeita,
especificamente, às principais instâncias e dinâmicas que limitam e habilitam
as pessoas no acesso a diferentes posições relativas no espaço social do que
a aquisição de formação escolar e a obtenção dos respectivos certificados. Os
graus de escolaridade não são, evidentemente, o único recurso socialmente
relevante distribuído desigualmente nas sociedades contemporâneas. Mas
tornaram-se um dos mais importantes e, possivelmente, daqueles que têm vindo a
provocar impacte mais profundo e mais alargado nas reconfigurações do espaço
social.
É também um dos domínios em que se observam, com clareza, quer a importância
crescente dos processos transversais que hoje ocorrem a nível mundial, em
contexto de globalização, quer a presença persistente das diferenças nacionais,
se bem que elas próprias igualmente em transformação. Entre estas salientam-se
tanto os diferentes padrões socioculturais que se vão estabelecendo nas
diversas sociedades (com as suas sedimentações de longo prazo e as suas
mutações mais ou menos rápidas), como o impacte das diferentes configurações
institucionais e das diferentes políticas públicas de âmbito estatal duplo
conjunto de factores este, aliás, acerca do qual está ainda por esclarecer, de
maneira satisfatória, qual o peso relativo de cada um e quais os modos de
articulação entre ambos nos processos de desenvolvimento por que têm passado os
diversos países.
Quadro 3Recomposições socioeducacionais na União Europeia, 1992-1997 (em
percentagens)
Seja como for, os dados que se apresentam no quadro_3 são esclarecedores acerca
dos efeitos simultâneos, neste domínio, das dinâmicas partilhadas a nível da
União Europeia como um todo e das configurações específicas, institucionais e
socioculturais, das diversas sociedades nacionais-estatais dela integrantes.
Não fazem mais, aliás, do que tratar com pormenor adicional (em termos de
escalões etários e de graus de ensino) a informação que, a este respeito,
consta do quadro_1. Seria redundante, pois, retomar aqui toda a análise feita
atrás a propósito dessa informação.
Entre a primeira e a segunda metade da década de 90, a população europeia, na
faixa etária dos 25 aos 64 anos, aumentou os níveis de escolaridade de maneira
que se pode considerar significativa, tendo em conta o curto período analisado.
Tanto os valores do nível secundário como os do nível superior cresceram 2 ou
mais pontos percentuais cada um. O que quer dizer que, hoje, quase 20% da
população adulta da União Europeia tem o ensino superior, perto de 40% o ensino
secundário e cerca de 40% o ensino básico.
Na faixa etária mais nova considerada, entre os 25 e os 34 anos, esses valores
são mais avançados: aproximadamente 22% para o superior e 46% para o
secundário; só 32% tinham escolaridade inferior, no fundamental o ensino
básico. A melhoria gradual dos níveis de escolarização fica evidente comparando
esta distribuição com as dos dois escalões etários imediatamente mais velhos.
Por exemplo, tomando como comparação o escalão dos 45 aos 54 anos, verifica-se
que a percentagem dos que alcançaram o ensino superior subiu quase 4 pontos
percentuais e a dos que atingiram o ensino secundário cresceu à volta de 11
pontos.
As diferenças entre os diversos países são muitos grandes, neste plano,
traduzindo percursos históricos, padrões socioculturais e políticas de ensino
de carácter bastante diferenciado. Têm, por outro lado, implicações não menos
relevantes no presente imediato e no futuro a médio prazo, nomeadamente em
termos de posicionamento relativo perante um contexto de sociedade da
informação e do conhecimento. Implicações importantes, também, são as que daqui
decorrem quanto aos diferentes perfis de composição social nos países
respectivos.
Assim, as principais variantes na escolarização actual dos países da União
Europeia, a par dos patamares atingidos pelos valores agregados do ensino
secundário com o ensino superior, atrás analisados (ver quadro_1), encontram-se
na proporção relativa destes dois níveis de ensino. É de ter em conta, no
entanto, que os graus de ensino são cumulativos, havendo sempre valores
implícitos de ensino secundário subsumidos nos do ensino superior.
Quer nos casos em que o conjunto das percentagens de ensino superior e ensino
secundário são das mais altas, quer naqueles em que estes valores são
intermédios, as proporções relativas desses dois graus não são sempre
idênticas, em correlação com estruturas económicas, sistemas de ensino-formação
e perfis culturais de atribuição de status bastante variáveis.
Um caso extremo, por exemplo, é o da Áustria, com fortíssima formação de nível
secundário e taxas relativamente pequenas de ensino superior. Exemplo inverso é
o da Bélgica, com níveis de ensino superior dos mais elevados, mas com
percentagens de ensino secundário abaixo da média europeia. Os dois graus de
escolaridade são em simultâneo dos mais altos em países como a Alemanha,
Dinamarca e Suécia, e ainda, em certa medida, como a Finlândia e a Holanda. Um
pouco abaixo, as proporções relativas no Reino Unido e na França são de sentido
inverso, o primeiro com valores mais elevados do que a segunda no ensino
superior mas acontecendo o contrário quanto ao ensino secundário.
Nos países com mais baixos perfis de escolarização a situação também não é
homogénea. Destes, a Irlanda é o que maiores valores apresenta, no conjunto, e
dos que têm também percentagens mais próximas nos dois níveis, secundário e
superior. A Espanha apresenta valores mais altos no superior do que no
secundário, acontecendo o contrário com a Grécia e, sobretudo, com a Itália.
Portugal tem percentagens aproximadamente iguais para estes dois graus de
ensino, sendo desse ponto de vista mais parecido com a Irlanda, mas com metade
ou menos das percentagens. Em concreto: 11% no superior e 11% no secundário, o
que significa 78% da população considerada com, no máximo, o ensino básico
completo. Comparando com a média europeia de, aproximadamente, 19%, 39% e 42%,
respectivamente, a distância é enorme. Isto para já não falar do que se passa
relativamente a vários países do centro e do norte da Europa.
Mesmo em confronto com a Espanha ou com a Grécia, as distâncias são
significativas. Tanto mais quanto, no período de referência, a percentagem de
população portuguesa entre os 25 e os 64 anos com ensino superior só subiu meio
ponto percentual, enquanto na Espanha subiu 6 pontos e na Grécia mais de 3.
Quanto ao ensino secundário, Portugal aumentou perto de 2 pontos percentuais,
enquanto na Espanha o aumento foi de 3 e na Grécia quase de 6. São
discrepâncias crescentes, pelo menos por enquanto, o que é corroborado pelo
facto de, em relação a estes dois países, as distâncias a que se encontra
Portugal serem ainda maiores no escalão etário mais novo (25-34 anos), apesar
de, internamente à população portuguesa, aqueles valores terem, num intervalo
de vinte anos (isto é, comparando com o escalão etário dos 45 aos 54 anos),
quase triplicado quanto ao ensino secundário e aumentado em cerca de 50% quanto
ao ensino superior.
Algumas consequências são evidentes, no que respeita à formação de relações de
classe na União Europeia e à posição da população portuguesa nelas. Começando
por este último aspecto, uma dessas consequências é que a composição social que
se vem formando em Portugal tende a assumir perfis bastante mais
desqualificados, do ponto de vista das competências cognitivas e dos recursos
profissionais, do que na maioria dos restantes países, se não mesmo em todos
eles, pelo menos até ao terceiro quartel da década de 90. Outra é que, em
países como Portugal, a estrutura de classes tende a constituir-se de maneira
muito mais polarizada do que naqueles em que prevalecem distribuições mais
avançadas de recursos educativos. Consequência ainda, ligada às anteriores, é
que, considerando desta vez, não os diversos países, mas sim a União Europeia
como um todo, a maioria da população portuguesa tende a concentrar-se nos
lugares mais subalternos e desfavorecidos desse espaço social integrado se
bem que isso não aconteça com toda ela, como é óbvio.
Num outro plano, com implicações teóricas de carácter geral, o que mais uma vez
se verifica, agora com a análise destes indicadores socioeducacionais, é que,
nos processos actuais de formação de relações de classe observáveis na União
Europeia, se combinam duas ordens de factores. Uns têm a ver com dinâmicas
globais, de incidência transnacional, e traduzem-se no facto incontornável de
que a formação das relações de classe passa hoje, em larga medida, por intensos
processos de qualificação escolar incluindo, importa não esquecer, o ónus
redobrado que, neste contexto, passa a recair sobre as situações de
subqualificação escolar ou mesmo de exclusão dessas qualificações.
Outros, não menos significativos, são factores relativos aos impactes de
estruturas sociais e culturais específicas aos diversos países, bem como de
instituições e políticas públicas nacionais diferenciadas, na formação das
relações de classe. A medida em que essas estruturas, instituições e políticas
se inscrevem no âmbito de regulação dos vários estados nacionais está em
mutação mas permanece significativa, resultando nas diferenças bem marcantes
entre países evidenciadas por estes indicadores, mesmo tão simples e parcelares
como os que tem sido possível aqui utilizar.
Esta sobreposição de factores manifesta-se também, aliás, na composição
socioeducacional por sexos. O processo de escolarização feminina, partindo de
níveis inferiores às taxas masculinas mas tendendo a ultrapassá-las, é
relativamente transversal ao espaço europeu, como se viu. Mas também aqui as
variações nacionais se mostram bastante significativas. Mesmo considerando
apenas a faixa etária mais jovem, o quadro_3 evidencia padrões distintos, desde
casos em que as percentagens relativas ao ensino superior são claramente mais
elevadas nas mulheres (como na Suécia, Dinamarca ou Finlândia, Bélgica ou
França, Grécia ou Portugal), ou daqueles em que isso acontece tanto no
secundário como no superior (Irlanda, Espanha, Itália), ou ainda apenas no
secundário (Áustria, Holanda), até aos casos em que as taxas do sexo feminino
são nitidamente mais baixas no superior (Alemanha), no secundário (Bélgica) ou
em ambos (Reino Unido, Luxemburgo).
Novas desigualdades?
Uma das questões mais discutidas, neste domínio, ao longo da última década, é o
surgimento de novas desigualdades sociais, em sobreposição ou mesmo em
substituição das "antigas", entendendo-se por estas as de "classe". Como terá
já ficado claro, há aqui um duplo equívoco, conceptual e factual.
No plano conceptual, isso significa entender a análise de classes de maneira
ultrapassada, como um qualquer modelo explicativo unidimensional e redutor, ou
mesmo como um simples sistema de categorias rígidas e inalteradas. Ora, a
análise de classes, em vez de propor respostas pré-fabricadas, faz do tema das
desigualdades, distinções e diferenças sociais um campo de problematização e
investigação.
Procura, nomeadamente, investigar que relações assimétricas de poderes e que
distribuições desiguais de recursos tendem a configurar-se em cada contexto,
segundo que parâmetros, com que peso relativo recíproco e através de que modos
de interinfluência entre eles, procurando também analisar causas e efeitos,
assim como as articulações com outros domínios e outras dimensões do
relacionamento social. Pode-se sempre fazer isto sem recorrer à terminologia de
"classes" ou de "estratificação", embora seja em geral vantajoso na produção
científica utilizar vocabulários conceptuais comunicáveis e produtivos. O que
será certamente negativo, em todo o caso, é prescindir não só da terminologia
mas também do conhecimento especializado desenvolvido, testado e acumulado
neste domínio.
No plano factual, o que acontece é que muitas das supostas novas desigualdades
não são nada novas e muitas das hipoteticamente desaparecidas antigas
desigualdades estão bem presentes hoje em dia muito embora tenham mudado,
evidentemente, em maior ou menor grau, de conteúdo e implicações. As
hierarquias de status, as distinções associadas a diferentes estilos de vida,
as desigualdades sociais entre homens e mulheres, a importância das clivagens
étnicas, a autonomia relativa e os modos de constituição específicos das formas
de acção colectiva perante as categorias de condições sociais de existência
tudo isso só por caricatura se pode considerar emergência recente. Basta
relembrar, por exemplo, as contribuições fundadoras de Max Weber (1922, 1978) a
respeito de muitos destes aspectos. No mundo actual assumem configurações
diferentes e importâncias diversas de outras anteriores? É o que interessa
precisamente investigar, em vez de apenas postular. A questão está em aferir
como, em que medida e segundo que modalidades é que tal acontece, em vez de
fechar prematuramente a análise com uma qualquer generalidade apriorística.
Por outro lado, indicadores como os que se têm vindo a analisar, entre vários
outros possíveis, bem como múltiplos estudos em produção permanente, mostram
bem que as desigualdades associadas a categorias socioprofissionais ou a
formações escolares, por exemplo, estão longe de ter desaparecido da paisagem
social contemporânea ou deixado de produzir efeitos marcantes na vida das
pessoas e na organização das sociedades. Basta olhar as diferenças de
oportunidades, de rendimentos, de possibilidades de consumo ou de realização
pessoal, ou então as diferenças de sensibilidades, preferências e estilos que
lhes estão associadas, não como monocausalidade determinista mas como alguns
dos factores, mais ou menos decisivos, de tendências identificáveis em campos
estruturados de possibilidades. Que reconfigurações estão em curso nestes
aspectos? É também isso que importa investigar, em vez de, mais uma vez, os
elidir aprioristicamente do horizonte de observação.
É sabido como são hoje importantes as fragmentações do tecido social, as
polarizações de rendimentos, os processos de exclusão social, as precarizações
profissionais, as oscilações de trajectória de vida. São fenómenos que ganham
actualmente novos contornos, os quais carecem de pesquisa. Mas só quem não
tenha um mínimo de perspectiva histórica ignorará que, poucas décadas atrás, em
Portugal mas não só, a pobreza era endémica e as polarizações de rendimentos
abissais, na generalidade o assalariamento era precário e as trajectórias de
vida estavam maciçamente sujeitas às contingências da emigração e das
reconversões rurais-urbanas. Convém, pois, investigar novas configurações, mas
sem tomar as imediatamente anteriores por mundos quase eternos que de repente
teriam desabado. Pelo contrário, essas situações sociais de referência
comparativa não passaram, muitas vezes, de etapas com duração relativamente
curta.
A absolutização como definitivos de processos em grande medida conjunturais tem
levado a generalizar excessivamente, por exemplo, a respeito do problema do
desemprego. São conhecidos pretensiosos edifícios teórico-especulativos
construídos, nas últimas duas décadas, sobre a inevitabilidade do fim do
emprego. Ora não só o trabalho assalariado de carácter minimamente formalizado
estava efectivamente a aumentar de forma acentuada em termos mundiais (um dos
aspectos da globalização), como nos países da União Europeia se assistia à
entrada em larga escala da população feminina na esfera profissional fenómeno
socioculturalmente tão irreversível quanto o pode ser qualquer processo social.
Isto para já não falar da diminuição significativa das taxas de desemprego no
final da década de 90, designadamente na União Europeia.
Certo é que, também a este respeito, se combinam tendências globais,
partilhadas, com situações específicas e percursos muito diversificados, tanto
em termos nacionais como sectoriais, tal como se combinam oscilações de
conjuntura com articulações fortemente estruturadas. O que interessa, do ponto
de vista cognitivo, é analisar essas combinações e não postular simplificações.
Os quadros_4, 5 e 6 contêm indicadores que permitem ilustrar estas combinações
multidimensionais.
Quadro 4 Desemprego, emprego a tempo parcial e contratos a prazo na
população dos 15 aos 64 anos, União Europeia, 1998 (em percentagens)
É possível observar por exemplo, no quadro_4, as importantes diferenças de
desemprego nos diversos países em 1998, apesar da imersão comum tanto nos
processos de globalização e inovação tecnológica como no quadro institucional
da União Europeia. Dos mais de 11% de desempregados em Espanha, no total da
população dos 15 aos 64 anos, aos menos de 2% no Luxemburgo, as diferenças
nacionais não se podem considerar insignificantes.6 Em muitos países o
desemprego feminino era maior que o masculino, mas noutros passava-se o
inverso. Em quase todos o desemprego jovem era maior do que a média, mas nuns
casos muito acima e noutros nem tanto. Além disso, em diversos países o
desemprego de longa duração era mais de metade do total de desemprego, mas
havia casos em que não passava de um terço ou menos.
Se o desemprego, apesar das diferenças de nível entre os diversos países,
oscila com as conjunturas de maneira mais ou menos sincronizada em grande parte
deles, já o trabalho a tempo parcial aparece mais enraizado em padrões
nacionais, sexuais e etários relativamente persistentes, se bem que não
imutáveis.
É possível, assim, verificar que o trabalho a tempo parcial é muito mais
feminino do que masculino, no conjunto da União Europeia; que varia entre menos
de 10% do conjunto de empregados nos países da Europa do Sul até quase 40% de
toda a população empregada na Holanda, passando por valores também bastante
altos em países como a Dinamarca, Suécia e Reino Unido, ou intermédios na
generalidade dos outros; e que se está perante lógicas sociais claramente
diferenciadas quando, de um lado, o emprego a tempo parcial é em grande medida
característico de uma fase de juventude, como na Finlândia, Dinamarca ou
Holanda, ou pelo menos assume nessa faixa etária maior importância percentual,
como na maioria dos países europeus, e, de outro lado, predomina entre os mais
velhos, como em Portugal, Áustria e Alemanha.
A percentagem de contratados a prazo é igualmente bastante variável, mais alta
do que a média europeia em países com percentagens de desempregados também
elevadas, como a Finlândia e sobretudo a Espanha, mas também mais alta em
Portugal, onde os níveis de desemprego são comparativamente baixos. São
situações que representam combinatórias diferentes de factores de precariedade
no mercado de trabalho, correlativas, aliás, de modalidades e qualidades
diferenciadas na prestação estatal de segurança social. Os casos de taxas de
contratos a prazo claramente abaixo da média europeia Áustria e Bélgica,
Irlanda e Itália, Luxemburgo e Reino Unido não remetem também para situações
homogéneas entre si.
Mas se estes indicadores, em si mesmos, nos valores que apresentam, remetem
tanto para processos oscilatórios em larga medida conjunturais como para
vincadas particularidades nacionais de tecido sociocultural e de regulação
institucional, já as relações que estabelecem com parâmetros fundamentais de
caracterização social, como os analisados em pontos anteriores, se revelam
fortemente estruturadas e acentuadamente transversais. Pondo a questão de outro
modo, muitas vezes esses indicadores percebem-se melhor analisando as
respectivas articulações, não raro bem identificáveis, com dimensões que se
revelam, nas sociedades contemporâneas, profundamente organizadoras, no espaço
e no tempo, das relações sociais. São destas exemplo privilegiado, como se viu
atrás, as dimensões socioprofissionais e socioeducacionais.
A título de ilustração, apenas, basta ver como as taxas de desemprego, mesmo
nas conjunturas do passado próximo em que atingiram valores muito elevados,
estão estruturalmente associadas aos níveis educacionais. O quadro_5, com dados
de 1997, mostra que a relação é sistemática: quanto maior o grau de ensino,
menor a taxa de desemprego. Isto tanto para a União Europeia no seu conjunto
como para os diversos países, tanto para escalões etários muito amplos como só
para os mais jovens, tanto para os homens como para as mulheres, e variando
gradualmente no mesmo sentido ao longo dos diversos níveis educacionais.
Quadro 5Taxas de desemprego segundo o nível educacional, União Europeia, em
1997 (em percentagens)
É claro que há padrões algo diferentes e pequenas excepções. Há países em que
as taxas de desemprego registam maior quebra na passagem das pessoas com ensino
básico para as que atingiram o secundário, mantendo-se depois relativamente
estabilizadas, enquanto noutros, pelo contrário, o ganho principal de
empregabilidade acontece na passagem do secundário para o superior. Noutros,
ainda, os valores vão sempre variando regularmente, de grau para grau de
ensino. É esta, aliás, a relação que se estabelece na União Europeia tomada
como um todo.
As características de cada país, quanto aos respectivos tecidos económicos,
sistemas de ensino-formação e percursos de escolarização das populações, ajudam
a perceber as variantes, ou mesmo as excepções pontuais. Uma destas ocorre,
aliás, em Portugal, com um pico mais elevado de taxa de desemprego no segmento
com o ensino secundário. Traduz-se aqui o perfil muito pouco profissionalizante
que este tem vindo a assumir no país, bem como a importância ainda nele vigente
das actividades económicas que fazem apelo a trabalhadores com baixos níveis de
qualificação.
No conjunto o padrão é claríssimo, não só no seu registo empírico, mas também
na sua inteligiblidade analítica, como terá ficado suficientemente esclarecido
ao longo das considerações feitas anteriormente acerca da crescente importância
profissional dos recursos educacionais nas sociedades contemporâneas. De novo
ressalta a imbricação de dimensões altamente estruturantes das relações de
classe actuais, como as de ordem socioprofissional e socioeducacional.
Quadro 6Condição perante o trabalho segundo o nível educaional na população dos 25
aos 59 anos, União Europeia, 1997 (em percentagens)
Os dados do quadro_6 corroboram esta análise e permitem ampliá-la. As relações
examinadas valem para o confronto, não só da população empregada com a
desempregada, mas também destes dois segmentos com o da população inactiva.
Também neste aspecto se podem observar particularismos nacionais, mas no quadro
de um padrão de relações global muito bem definido: entre os empregados os
perfis de escolaridade tendem a ser melhores do que entre os desempregados, e
os perfis de escolaridade dos inactivos são em regra ainda mais fracos.
Aliás, considerando em particular as taxas de escolarização no ensino superior,
o posicionamento relativo destes dois últimos segmentos da população adulta
(desempregados e inactivos) regista enorme regularidade: a única excepção surge
na Suécia, suscitando, como em tantos outros casos, possibilidades de focagem
analítica de grande interesse, mas que estão aqui, como é óbvio, fora de
alcance e de oportunidade.
Note-se apenas, quanto a Portugal, que a grande diferença, nas percentagens
relativas ao ensino superior, se manifesta entre os empregados e todos os
restantes, aparecendo a população desempregada com perfil semelhante ao da
população inactiva. Quanto às percentagens relativas ao ensino secundário, as
maiores proximidades são, pelo contrário, entre empregados e desempregados o
que aponta quer para clivagens de exclusão difíceis de superar, quer para
fluxos de circulação tendencialmente facilitados, consoante o posicionamento
nas distribuições desiguais de recursos escolares.
Conclusão
A discussão a que aqui se procedeu, centrada na análise das tendências actuais
de reconfiguração das estruturas de classes na União Europeia, não pôde deixar
de aflorar, se bem que apenas de passagem, um certo número de questões de ordem
geral, hoje em dia relevantes no âmbito da sociologia das classes sociais e da
estratificação. Em especial, foi necessário fazer referência à questão
substantiva da globalização, à questão teórica do alcance actual da análise de
classes, à questão metodológica das unidades de análise pertinentes, à questão
operatória das tipologias classificatórias e dos indicadores, à questão técnica
das fontes de informação.
Quanto ao objecto de investigação propriamente dito, muitos indicadores
adicionais poderiam ser convocados para uma abordagem mais completa dos temas a
que se reporta. Seria evidentemente muito interessante fazê-lo, quer no sentido
da elucidação mais fina dos aspectos atrás examinados das relações de classe,
quer no da incorporação na análise de outros aspectos, não menos importantes,
incidindo sobre fenómenos sociais presentemente relevantes, mas não tratados
neste texto, ou nele apenas aflorados. Entre estes podem destacar-se, a título
ilustrativo, aspectos como os da exclusão social e do exacerbamento da
competição, da intensificação cognitiva e das conexões em rede, das
homogeneizações e fragmentações concomitantes dos estilos de vida, do
cosmopolitismo e do fundamentalismo nas suas formas actuais.
Terá sido possível, porém, clarificar o que se colocava aqui como questão
principal. Em contexto de globalização, há tendências de estruturação das
relações de classe que se configuram de maneira largamente transnacional, em
particular a nível de espaços sociais alargados em crescente integração, como é
o caso da União Europeia (Bradshaw e Wallace, 1996; Waters, 1999). No entanto,
em simultâneo, as sociedades nacionais-estatais estão longe de se ter diluído,
mesmo neste espaço integrado. As configurações institucionais, os modos de
regulação estatal, os tecidos económicos e os padrões socioculturais, nas suas
especificidades nacionais, produzem também efeitos decisivos nessa estruturação
das relações de classe.
A persistência e o peso destes últimos factores, muitas vezes descartados com
excessiva ligeireza da análise desde que a globalização entrou na ordem do dia
científica e mediática, têm sido, aliás, objecto de importantes contributos
recentes, no âmbito das ciências sociais, como, por exemplo, os de
Mozzicafreddo (1997), Smith (1995, 1999), Esping-Andersen (1999), Ferrara,
Hemerijck e Rhodes (2000). Tais contributos, embora desenvolvidos segundo
perspectivas variadas, convergem na evidenciação do referido tipo de efeitos.
Estes, por sua vez, não se concretizam ao abrigo dos processos de globalização,
mas em múltiplas modalidades de interligação com eles, cuja análise aprofundada
e sistemática apenas se começa a esboçar.
Trabalhando os indicadores referidos com base nos principais recursos teóricos
e operatórios que têm vindo a ser desenvolvidos pela sociologia das classes
sociais e da estratificação contemporânea, e procurando elaborar de maneira
cuidadosa a informação captável através deles, foi possível lançar alguma luz
sobre como, na União Europeia, se articulam duas vertentes fundamentais da
formação das relações de classe: a constituição de "lugares de classe", na
medida sobretudo em que ela está ligada a dinâmicas estruturantes do tecido
económico-organizacional, e a constituição de "classes de agentes", cada vez
mais tributária dos sistemas de educação/formação.
Ambos os processos, sem deixarem de comportar lógicas sociais específicas,
estão, como se viu, profundamente interligados, confluindo designadamente nas
recomposições das categorias socioprofissionais. Sublinhe-se, todavia, que
nestas recomposições intervêm também outros factores, aqui não directamente
analisados, relativos às lógicas sociopolíticas da acção colectiva e às lógicas
simbólicas das classificações sociais.
Que ajustamentos e desajustamentos se verificam entre aqueles processos? De
momento, a análise realizada chama sobretudo a atenção para que as dinâmicas
observáveis na União Europeia são de carácter fortemente transnacional no que
respeita às reconfigurações estruturais dos "lugares de classe", e mais
dependentes dos quadros de regulação nacionais-estatais quanto às recomposições
sociais associadas à formação de "classes de agentes" para usar um par
terminológico que peca por formalismo mas tem a virtude da concisão. Seria
evidentemente redutor isolar os planos e descurar as imbricações mútuas. Além
de que se trata, como é sempre verdade, de processos em aberto, sujeitos a
tensões fortes e a possibilidades de mudança significativa em intervalos de
tempo relativamente curtos. A análise sociológica respectiva está, a este
propósito, a dar os primeiros passos.
Notas
1 O presente artigo resulta do projecto de investigação "A modernização das
estruturas sociais", coordenado por João Ferreira de Almeida, realizado por uma
equipa do CIES e apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (programa
Praxis XXI). Uma primeira análise da informação empírica aqui apresentada foi
objecto da comunicação de João Ferreira de Almeida, "Duas fotografias
comparadas", ao 4º Congresso Português de Sociologia (APS, Coimbra, Abril de
2000).
2 Para uma especificação pormenorizada do modo de construção deste
indicador, e de outros relacionados, pode consultar-se Costa (1999: 226-245).
3 Aliás outros autores com contributos recentes na área, sem aderirem ponto
por ponto a estas propostas nem referirem expressamente os trabalhos aqui
mencionados, acabam, eventualmente por influência delas, por apresentar e
utilizar tipologias classificatórias muito próximas (Cabral, 1998).
4 No caso da Alemanha a comparação diacrónica é menos precisa, uma vez que
os dados de 1986 referem-se apenas à antiga Alemanha ocidental e os de 1997 à
Alemanha unificada.
5 Não se incluem aqui os profissionais liberais de qualificação, rendimento
e status elevados, exercendo actividade por conta própria, considerados parte
da categoria "empresários, dirigentes e profissionais liberais", atrás
analisada.
6 Os valores de desemprego referidos no quadro_4 são as percentagens de
desempregados no total da população dos 15 aos 64 anos e não as taxas de
desemprego, como habitualmente consideradas, as quais se calculam como
percentagens de desempregados por relação apenas à população activa. O
indicador aqui utilizado tem, nas comparações internacionais, a vantagem
analítica de não depender da taxa de actividade, ela própria bastante variável
de país para país, e a vantagem operatória de, combinado com as taxas de
actividade (quadro_1), permitir reconstituir directamente a decomposição da
população nos três subconjuntos de empregados, desempregados e inactivos. Tem
também desvantagens, mas são provavelmente cada vez menos importantes, à medida
que as fronteiras entre população activa e inactiva vão ficando menos rígidas.