Em busca de um lugar no mapa: reflexões sobre políticas culturais em cidades de
pequena dimensão
Preâmbulo
Ao falarmos de políticas culturais ou da importância do sector cultural na
dinamização de novas estratégias de desenvolvimento para as cidades de pequena
dimensão, somos levados a realçar a crescente centralidade dessas actividades
nas políticas urbanísticas de "terceira geração", onde se valoriza, antes de
mais, o terciário de "forte valor estratégico" e as transformações qualitativas
operadas num conjunto de domínios de forte carga simbólica.1
Aliás, num contexto de fortíssima competição entre cidades, o investimento na
imagem de cidade ganha contornos decisivos enquanto vantagem comparativa. As
actividades culturais, não o esqueçamos, podem "colocar no mapa" territórios
esquecidos ou marginais, conferindo-lhes um dinamismo capaz de os inserir no
"território-rede" de subsistemas urbanos em interacção.2
As novas políticas urbanas têm vindo, pelo acumular de estudos de caso, a
rejeitar fatalismos anteriormente tidos como insuperáveis. De facto, não só não
existe uma identificação automática entre dimensão populacional e dinamismo
demográfico e socioeconómico, como a posição ocupada na hierarquia do sistema
urbano não corresponde, necessariamente, ao potencial de um centro urbano.3
Claro que há dificuldades que não se podem escamotear. Desde logo, a existência
de patamares mínimos, quer do ponto de vista demográfico (com especial
incidência na capacidade de se formarem audiências que legitimem, pelo lado dos
poderes públicos, a introdução de uma lógica de mercado assistido ou, pelo lado
dos privados, de rentabilidade), quer do ponto de vista de infra-estruturas
(equipamentos, espaços ), quer de recursos humanos qualificados, quer, ainda,
de recursos financeiros.
No entanto, as actividades culturais estão cada vez mais a
desterritorializarem-se, diluindo aos poucos a polarização exercida pelos
grandes centros urbanos. Aliás, muitas das subfileiras inovadoras do campo
cultural movimentam-se, precisamente, no domínio das novas tecnologias da
comunicação, de suporte electrónico (o caso do multimédia, em franca expansão),
o que faz diminuir significativamente o impacto de contextos físicos e
territoriais específicos. Por outro lado, as cidades de pequena dimensão que
forem capazes de integrar a estrutura reticular do sistema urbano português
encontrarão certamente oportunidades de, mediante um marketing territorial
audaz e coerente, fazer passar a mensagem do seu investimento nos "mundos da
cultura", atraindo audiências e recursos exógenos.
O campo cultural como detonador de processos de desenvolvimento local
Para algumas cidades de pequena dimensão, a estruturação de um campo cultural
activo pode ser o elemento decisivode uma estratégia de desenvolvimento que não
se limite à visão autárcica do paradigma endógeno. De facto, ao contrário das
visões fatalistas de uma globalização que apenas uniformiza em função dos
interesses económicos dos centros dominantes (e que, para tal, constrói um
megadiscurso homólogo de legitimação cultural e simbólica, difundido à mais
larga escala), acreditamos na possibilidade de cruzamentos e interpenetrações
resultantes de movimentos de diversificação territorial e cultural.4 Entre um
modelo que reifica a perspectiva de "um centro que fala e periferias que
escutam", e um outro que se traduz por "vários centros e periferias em
diálogo", preferimos este último, ainda que cientes das condições extremamente
desiguais em que tal diálogo, com dificuldade, se processa.5 É possível, nos
dias que correm, "furar" a hierarquia dos sistemas urbanos e estabelecer
parcerias estratégicas com agentes e instituições periféricos de outros países,
criando redes de itinerância de produções culturais (espectáculos,
exposições ), promovendo o intercâmbio de criadores e técnicos e organizando,
em momentos excepcionais, grandes festivais culturais que, não raramente,
ganham projecção regional ou mesmo nacional.
Não ignoramos, no entanto, como refere Pedro Costa, que a pequena escala se
torna um pesado obstáculo quando os campos culturais, e em particular a esfera
da criação/produção, dependem das "condições locativas e tecnológicas (acesso
aos meios de produção e inputsrequeridos e a recursos humanos qualificados)".6
Ainda assim, há actividades, como anteriormente referimos, que desprezam as
inserções territoriais, descentralizando-se ou desterritorializando-se. As
pequenas cidades podem estruturar os seus campos culturais em função de uma ou
outra especificidade que, sendo competitiva, contribuirá para a localização de
infra-estruturas, equipamentos e recursos, mesmo que se alimente de uma procura
parcialmente externa. Dito de outro modo, poderão constituir pequenos meios
inovadores altamente atractivos para segmentos, ainda que relativamente
restritos, dos mundos da cultura.
Além do mais, a pequena escala tem uma vantagem adicional, ao permitir redes de
comunicação informais, flexíveis e ágeis, desburocratizando processos de
decisão e densificando os contactos entre os agentes culturais, tornando o seu
trabalho mais colectivo, tendência que caracteriza crescentemente os "mundos da
arte".7
O poder local e os campos culturais
O poder local desempenha um papel preponderante, enquanto elemento animador e
regulador dos processos de mudança. Cabe-lhe, antes de mais, assumir as
responsabilidades de serviço público da cultura, criando as condições de um
mercado assistido de base local. Mas, para além disso, as autarquias são as
entidades privilegiadas para organizarem e gerirem o "jogo" local de relações,
isto é, a rede de agentes directa ou indirectamente envolvidos, os seus
interesses e os seus conflitos.
As cidades de pequena dimensão carregam consigo uma característica de efeitos
ambivalentes. A sua dimensão demográfica, favorável ao interconhecimento,
permite tanto arranjos e concertações felizes em torno da definição de uma
identidade local e de projectos estruturantes, como conflitos dificilmente
sanáveis entre agentes e instituições que lutam por palcos de protagonismo e
pelo monopólio de recursos escassos. De igual modo, o forte intervencionismo do
poder local, legitimado, em boa parte, pela debilidade da sociedade civil ou
pela exiguidade do sector privado implicado na produção e distribuição
culturais, cria redes clientelares e mesmo efeitos perversos de imposição
arbitrária de segmentos particulares de gosto. Não raras vezes, a política
cultural da autarquia, reflectindo o presidencialismo municipalista, é o
reflexo pouco subtil do gosto do seu responsável máximo.8
Um estudo de caso, tendo por unidade de observação a cidade de Mirandela,
mostra como a relativa paralisia do sector associativo e a inexistência de
pequenas empresas, ou mesmo de cooperativas ou grupos informais ligados à
produção cultural, concentra a actividade cultural numa tríade omnipresente a
Câmara Municipal, o Centro Cultural (edifício polivalente, administrado pela
autarquia e onde estão sediados um pequeno auditório, a biblioteca e o museu
municipais) e a Escola Profissional de Arte e Música.9 Não deixa de ser
interessante verificar, aliás, uma curiosa definição de categorias: as despesas
com cultura (note-se bem: cultura) são na sua maior parte absorvidas por gastos
com transportes e infra-estruturas escolares! Para além do suporte financeiro a
associações, constata-se a inexistência de apoios a manifestações culturais
propriamente ditas. Aliás, é o próprio edil a assumir, em entrevista, que,
devido "aos orçamentos baixos das câmaras, o que fica para trás é a cultura".10
No entanto, é possível encontrar exemplos de sinal contrário. Mértola granjeou
um enorme capital de prestígio que ultrapassou mesmo as fronteiras nacionais,
associando de forma inovadora a descoberta e a preservação do património com a
formação cultural dos munícipes, em particular dos jovens, e o estímulo aos
meios artísticos locais, num contexto de defesa do ecossistema e da qualidade
ambiental. De certa forma, logrou subverter as relações verticais das
hierarquias do sistema urbano nacional, lançando directamente pontes à escala
global, numa utilização eclética mas programada de valores materialistas (a
preocupação com a segurança económica e o emprego das populações) e pós-
materialistas (a defesa da qualidade de vida, a ênfase no estético e na
cultura). Claro que, para que esta particular constelação de estratégias e
valores surtisse efeito, tornou-se necessário atrair recursos humanos altamente
qualificados, fixando-os na região, objectivo assumido pela autarquia.
Entretanto, a aposta na formação dos jovens revela-se crucial, já que, devido
ao seu efeito multiplicador, propicia, a médio e longo prazos, em íntima
associação com o progresso dos níveis de escolaridade, um novo perfil de
necessidades, aspirações, atitudes e comportamentos. De qualquer modo, desde
cedo se gerou um consenso tácito, que atravessou quase todos os sectores da
população, no sentido de uma redefinição da identidade cultural local em função
do novo modelo de desenvolvimento.
Alguns estudos mais recentes permitem-nos um olhar panorâmico sobre as
evoluções actuais do sector da cultura no poder local. E, convenhamos, as
tendências não são animadoras. Segundo a equipa da Comissão Coordenadora da
Região Norte, liderada pelo sociólogo José Maria Cabral Ferreira, "há muitos
municípios que não chegam a atribuir 1% do orçamento a cultura", o que se
reflecte, nos casos mais graves, em valores per capita claramente inferiores a
um conto por habitante gasto em cultura.11 Aliás, ao desagregarem as categorias
orçamentais, logo os autores se aperceberam de que quase metade das verbas são
investidas no desporto. Por outro lado é notório, do ponto de vista simbólico,
que o trabalho no sector da cultura não é significativamente valorizado pelos
principais responsáveis autárquicos. Finalmente, existe uma certa oposição
entre litoral e interior: ali, as despesas aumentam e as actividades culturais
diversificam-se, escapando à constelação folclórico-gastronómica; no interior,
escasseiam os investimentos e afloram as concepções tradicionalistas. Se
considerarmos, embora com alguma inexactidão e margem de erro, que uma boa
parte das cidades intermédias se situa na faixa litoral, e que, paralelamente,
as cidades de pequena dimensão proliferam no interior, compreenderemos melhor o
conjunto da questão. Aliás, nestas últimas, constata-se frequentemente uma
descoincidência entre os números relativos às despesas com cultura e as
representações que os autarcas fazem da sua própria acção, como se imaginassem
que efectivamente gastaram mais dinheiro com o sector cultural
Dificuldades inerentes às cidades de pequena dimensão: de novo a
territorialidade
Os dados construídos por Pedro Costa provam, com particular clarividência, que
se verifica uma brutal concentração de equipamentos e públicos nas duas áreas
metropolitanas, com especial destaque para a Grande Lisboa: "a NUT Grande
Lisboa, por si só, tem sempre mais de 50% das actividades, chegando a atingir
um valor superior a 60% dos visitantes de museus e quase 3/4 da tiragem anual
da imprensa".12 Seguem-se, a considerável distância, o grande Porto e as NUT
III onde estão inseridas cidades de média dimensão. A mesma tendência,
incontornável, está presente na distribuição territorial de estabelecimentos e
pessoal ao serviço na fileira da cultura.
Para o autor não existem dúvidas de que os meios urbanos favorecem, de forma
intensa, a localização, em particular, das esferas da criação/produção e da
recepção/consumo. É todo um ambiente onde se cruzam e reforçam, muitas vezes em
círculo, uma multiplicidade de factores.
Às cidades de pequena dimensão faltam limiares mínimos de oferta e de procura,
economias de escala, diversificação e especialização de mercados (tão
necessários à acumulação flexível e ao ciclo breve dos produtos num contexto
produtivo pós-fordista), bem como um universo de valores e práticas centrados
na procura de consumos culturais mundanos e em estratégias auto-identitárias,
de apresentação de si e de valorização de estilos de vida próprios de um
individualismo expressivo e relacional. O volume e densidade populacionais,
como já faziam notar, embora de forma determinista, os teóricos da Escola de
Chicago, estimulam a diversidade subcultural (ainda que, por vezes, ela surja
sob o manto diáfano de uma certa aura ilusória, bem patente no discurso
publicitário), bem como o leque de alternativas possíveis que encontram suporte
adequado num determinado tipo de economia, da qual o melhor exemplo será a
economia da noite,13 intimamente associada ao nomadismo cultural dos urbanitas
e às ecléticas redes de sociabilidade da cultura de saídas das cidades pós-
industriais.14 Nestas pequenas cidades são ainda muito magros os contigentes
das "novas classes médias urbanas", abarcando os quadros superiores, os
profissionais técnicos e de enquadramento intermédios, as profissões
científicas, intelectuais e artísticas. Em alguns casos há ainda um peso
relativamente elevado das profissões agrícolas, do pequeno comércio
independente e dos assalariados pouco qualificados.
Em suma, constata-se uma viragem na hierarquia dos factores locativos em
direcção à economia soft, adquirindo proeminência o monopólio da informação
especializada, da pesquisa e da qualificação, elementos escassos nos pequenos
centros.15
De qualquer maneira, parece-nos apressado ou redutor postular um qualquer tipo
de impossibilidade de desenvolvimento dos "mundos da cultura" em cidades de
pequena dimensão. Não existe, aliás, como diversos autores o têm demonstrado,
uma relação determinista inequívoca entre dimensão e densidade populacional e
nível de pujança cultural. Um estudo recente aponta um sentido positivo na
relação entre os municípios de pequena dimensão e o investimento no sector da
cultura.16 De facto, é nos pequenos centros que se verifica a taxa de variação
mais positiva em despesas com a cultura no período 1986-97.17
Ainda assim, são claramente os concelhos de média dimensão a revelar uma franca
aposta no sector da cultura, a que não será alheio, por um lado, o estímulo que
resulta de um ambiente de feroz competitividade entre cidades e, por outro, o
facto de partirem já de limiares satisfatórios de oferta e de procura. Não
deixa de ser curioso, no entanto, que os municípios de pequena dimensão gastem
preferencialmente em "recintos culturais". Por outras palavras, denota-se a
preocupação de partir de "baixo", isto é, de uma rede mínima de infra-
estruturas e equipamentos culturais, aquilo a que poderíamos chamar o grau zero
do desenvolvimento do campo cultural local. No entanto, como bem refere José
Maria Cabral Ferreira, a obsessão na edificação de recintos com fins culturais
torna-se por vezes um alibi para descurar outras áreas e formular uma autêntica
política cultural: "Daí o contraste verificado: concelhos onde existem espaços,
equipamento, a materialidade de algum serviço, de algum acontecimento (musical,
plástico ) e contudo a vida cultural estagna; concelhos em que as carências são
muitas (de recursos materiais) e contudo há uma vida cultural interessante e
sustentada, mediante o recurso a instrumentos subsidiários (uma Igreja em vez
de um auditório, um quartel em vez de uma galeria )".18
Primeiro passo: a formulação de uma política cultural
Confunde-se, amiúde, uma política cultural com um inventário de iniciativas e
projectos. Esquece-se, com facilidade, que importa, antes de mais, optar, tendo
em conta um conjunto de cenários existentes. E que essas opções, em termos
territoriais, jamais poderão ser feitas numa representação de auto-isolamento.
O território funciona em rede e as cidades, grandes, médias ou pequenas,
competem entre si.
Uma política cultural para uma cidade de pequena dimensão implica, pois,
previamente, "uma atitude política para a cultura", sabendo-se que "esta
dificilmente existirá se não houver uma verdadeira formulação política
global".19 Por outras palavras, impõe-se a ideia de projecto, com a definição
de objectivos, meios disponíveis e cenários de resultados esperados, com a
necessária flexibilidade para rectificar, mediante processos auto e hetero-
avaliativos, as estratégias seguidas. Assim entendida, a política cultural
desempenha um papel decisivo na legibilidadeou imaginabilidade da cidade,
importando um conceito já antigo que remete para "aquela qualidade de um
objecto físico que lhe dá uma grande probabilidade de evocar uma imagem forte
num dado observador".20 Reside aqui, provavelmente, o nó górdio da questão no
que se refere às cidades de pequena dimensão: uma política cultural activa
poderá ser um contributo insubstituível para que não se apague a imagem de
cidade no contexto de grande competição interurbana. A cidade legível é uma
urbe com identidade, distinta, facilmente perceptível.
O grande problema reside, a nosso ver, numa perspectiva que tende a assemelhar
a cultura a um conjunto de objectos sacralizados num paradigma fixista de
tradição. Trata-se, afinal, da museologização dos usos, artefactos e costumes;
trata-se, igualmente, em uma concepção de cultura popular baseada na crença de
uma "essência", "aura" ou "alma" incorruptíveis, avessas a qualquer processo
inovador. As novas configurações urbanas, também patentes, embora com
idiossincrasias, nas pequenas cidades, revelam-se necessariamente mais
orientadas para um perfil mundano, lúdico, convivial e diversificado, em boa
parte devido à visibilidade dos grupos juvenis que, entretanto, beneficiam do
alargamento do período de moratória que lhes advém do prolongamento da
escolaridade e do adiamento da entrada na vida adulta.
Assim, podemos falar de um
segundo passo: a criação de meios inovadores
Augusto Santos Silva, autor de análises comparativas sobre políticas e práticas
culturais em várias cidades, assinala obstáculos que remetem, uma vez mais,
para o poder político instituído: "a generalidade dos autarcas tem grande
dificuldade em entender, de forma não instrumental, a natureza e o alcance das
manifestações que resultam destes ambientes urbanos e se concretizam em
participação, interacção e expressão cultural ( ) já sabem que é preciso, por
exemplo, diversificar os programas das festas concelhias ( ) Mas têm avançado
bastante menos no plano de uma leitura mais sociopolítica das raízes e do
significado das novas possibilidades e expressões urbanas, na sua articulação
com os desafios e as oportunidades de evitar a degradação das condições e dos
modos de vida nas cidades de hoje e melhorar, nelas, o grau e as formas de
coesão social".21
Ora, uma alteração de atitude política dos detentores de cargos públicos
resultará, a nosso ver, não tanto de uma valorização expressiva da cultura ou
de uma crença nas suas potencialidades intrínsecas, mas antes da crescente
possibilidade de demonstração dos seus efeitos nas estruturas económicas
locais. Falamos, em concreto, da atracção de segmentos qualificados da
população activa, da criação de emprego (e o emprego, no sector cultural, tem
um efeito multiplicador, como referem vários economistas),22 do incremento do
turismo cultural (com consequências benéficas na instalação de hotéis e
empresas de transporte) ou mesmo da captação de algum investimento externo.23
Alguns centros urbanos de pequena dimensão (Montemor-o-Novo constitui um
excelente exemplo) têm tentado criar ocasiões de mudança, preparando, com
antecedência, e recorrendo a círculos qualificados de discussão, programas
ousados de animação cultural. Outros municípios experimentam, com obstáculos e
retrocessos, diálogos entre a tradição e a modernidade, fazendo apelo a
leituras não essencialistas das raízes culturais. Trata-se, por vezes, de
processos armadilhados, em particular quando se pretende, sem prévia
sensibilidade sociológica, aproximar expressões artísticas de vanguarda das
camadas populares, como se essa aproximação se fizesse por mero contacto ou
contágio com o dom mágico impregnado nas obras, ou com o "choque" catártico
através do qual propõem (impõem?) uma nova visão do estético e do mundo. Não
raras vezes, por ausência de um trabalho de formação de públicos que desenvolva
os próprios mecanismos de incorporação de predisposições estéticas, assiste-se
ao explodir de reacções de iconoclasmo contemporâneo, como as relatadas por
Idalina Conde a propósito das Bienais de Vila Nova de Cerveira.24
Assim, a aposta na diversificação de actividades, géneros e formas culturais,
para além da matriz historicamente definida como local ou "autóctone", deve
caminhar a par com a renovação dos repertórios das populações, o que se
consegue, parcialmente, pela oportunidade de contacto recorrente e
contextualizado com uma pluralidade de produções culturais mas, não menos
importante, com programas de formação de públicos capazes de aproximarem autor,
obra e receptor, desinibindo, dessacralizando, familiarizando, sem intuitos de
paternalismo etnocêntrico de quem vai explicar a verdade sobre o que está em
apreciação.
A criação de meios inovadores terá, então, em particular nas cidades de pequena
dimensão mais afastadas dos grandes circuitos das culturas contemporâneas, de
saber lidar, cuidadosamente, com a tensão modernidade/tradição sem pretender
que uma se dissolva artificial e arbitrariamente na outra e aproveitando,
inclusivamente, criativas imbricações.
Claro está que todo o esforço será em vão se não existir uma rede mínima de
equipamentos, em particular recintos culturais. Mas, certamente tão importante
quanto a sua construção, é o modelo de gestão adoptado. Merece destaque o papel
extremamente dinâmico de algumas bibliotecas da rede pública em cidades de
pequena dimensão, funcionando, simultaneamente, como local de formação,
animação e mesmo produção cultural, com ateliers vários, workshops, leituras
dramatizadas, debates e encontros com criadores, videoteca, ludoteca, sala de
internet, auditório para espectáculos, etc.25
Certamente que, subjacente a um determinado equipamento, deve existir um
programa de animação, a começar pelo próprio projecto de arquitectura (é
fundamental conceber os espaços físicos e os edifícios como cenários de
interacção que, necessariamente, condicionam a experiência social,
constrangendo-a e/ou potenciando-a) e prolongando-se no modelo de gestão, que
requer técnicos adequados. Daí a necessidade de as cidades de pequena dimensão
dominarem bem os circuitos e os organismos da formação, para neles integrarem
os seus técnicos ou mesmo para criarem os seus próprios programas. Esta ênfase
na formação justifica-se ainda enquanto estratégia de requalificação do
movimento associativo, fazendo-o sair da penumbra onde por vezes se encontra,
abrindo-o às novas causas, incitando-o a intervir no espaço público e a opinar
sobre a (re)construção da identidade da cidade. O movimento associativo
necessita, não só de quadros dirigentes mais jovens, mas igualmente de um
contacto estreito com novos instrumentos de gestão e de acesso à informação.
Um salto no futuro
Acabamos de mencionar um ponto fundamental. Nada justifica, a nosso ver, que o
desenvolvimento cultural das micrópoles tenha de seguir um qualquer modelo de
cariz evolucionista, calcorreando os passos que outros, supostamente mais
avançados e no caminho da verdade, já percorreram. Trata-se de defender
caminhos originais assentes na manipulação criativa, a favor das periferias,
das tecnologias da informação e da comunicação: estabelecer pontes no
ciberespaço, conhecer experiências com poder ilustrativo (exercitando o que
Boaventura de Sousa Santos apelida de teoria da tradução), conquistar
parcerias.26 Nada impede, se burocracias ou outros entraves (muitas vezes de
tipo "bairrista" ou paroquial) travam a interacção com os territorialmente mais
próximos, que se definam, por exemplo, circuitos de itinerância artística com
cidades de pequena dimensão de outros países.
Mas iríamos mais longe e proporíamos o alargamento rápido do programa das
cidades digitais às urbes de pequena dimensão, com as agendas culturais
disponíveis on-line e abertas à incorporação de sugestões, críticas ou
comentários (o que só seria possível mediante a multiplicação de postos de
acesso à internet em locais públicos, como por exemplo as juntas de freguesia,
as escolas, as associações e as bibliotecas) e com a criação de canais
temáticos de discussão sobre a própria identidade e imagem da cidade.27 A
criação de sites interactivos sobre a oferta da cidade (longe da lógica
panfletária, tosca e panegírica dos "antigos" folhetos turísticos) poderia,
igualmente, alargar os horizontes, as procuras e as lógicas do turismo cultural
local.
O salto, para muitos, pode parecer mortal. Mas as regras do jogo "local/global"
não implicam, fatalmente, o apagamento dos mais fracos. Podem oferecer, pelo
contrário, se habilmente manipuladas, um conjunto de ousadas e irrecusáveis
oportunidades para a implantação de novas escalas capazes de baralhar as
hierarquias tradicionais dos sistemas urbanos nacionais.
De novo, uma questão (de) política
Se o multiculturalismo, a segmentação de mercados culturais diversificados e a
liminaridade que permitem a afirmação das "margens culturais" e das suas marcas
transgressoras não fazem parte das agendas culturais e políticas de boa parte
das cidades de pequena dimensão;28 se a debilidade demográfica de certos grupos
da estrutura social não permite a afirmação de "meios inovadores" consistentes
e atractivos, a questão deve ser remetida, uma vez mais, para o que Jim
McGuigan apelida de
"condições da cultura".
29 Estas constituem o ângulo de análise privilegiado das políticas culturais,
já que implicam os contextos
"
materiais e, também, as determinações discursivas no tempo e no espaço da
produção cultural e do consumo".30 Dito de outra forma, importa perceber as
modalidades de criação e circulação cultural das obras e mensagens culturais.
Adquire aqui papel decisivo a margem de manobra dos agentes culturais locais,
bem como as representações simbólicas dos actores políticos e o grau em que a
interiorização da centralidade das actividades culturais estrutura o seu
habituse, consequentemente, as suas práticas e decisões. No entanto, não menos
importante, urge propiciar, mesmo por impulsos externos de políticas públicas,
a estruturação de condições que alimentem uma pressão social que force a
diversificação e a qualidade do circuito cultural local.
Trata-se, uma vez mais, de defender a emergência de esferas públicas locais
onde a produção, circulação e consumo culturais se assumam com a dignidade
própria dos temas geradores de discussão, conflito e clarificação.
Notas
1 Ver João Ferrão, Eduardo Brito Henriques e António Oliveira das Neves
(1994), "Repensar as cidades de média dimensão", Análise Social, 129, pp. 1142-
1144.
2 Idem, ibidem, p. 1132.
3 Idem, ibidem, 1133.
4 Ver Rogério Roque Amaro (1991), "Lógicas de espacialização da economia
portuguesa", Sociologia, Problemas e Práticas, 10, pp. 161-182.
5 Ver João Teixeira Lopes (1994), "Estruturas espaciais e práticas sociais:
a inexistente opção entre o local e o global", Sociologia: Revista da Faculdade
de Letras, IV.
6 Ver Pedro Costa (1999), "Efeito de meio' e desenvolvimento urbano: o caso
da fileira da cultura", Sociologia, Problemas e Práticas, 29, p. 132.
7 Ver Howard Becker (1982), Art Worlds, Berkeley, University of California
Press.
8 Ver Juan Mozzicafreddo e outros(1990), "O grau zero do poder local", A
Sociologia e a Sociedade Portuguesa na Viragem do Século, Lisboa, Editorial
Fragmentos.
9 Ver Sofia Alexandra Cruz (1999), "Um retrato de desenvolvimento singular",
em AA.VV., O Lugar da Leitura na Oferta Cultural Concelhia: Os Casos de
Mirandela e Guimarães, Lisboa, Instituto Português do Livrose das Bibliotecas/
Observatório das Actividades Culturais.
10 Citado em Sofia Alexandra Cruz, op. cit., p. 37.
11 Ver José Maria Cabral Ferreira (org.) (1999), O Sector da Cultura nas
Câmaras Municipais da Região Norte, Porto, Comissão de Coordenação da Região
Norte, p. 34.
12 Ver Pedro Costa, art. cit., p. 133.
13 Ver Maria do Carmo Cabêdo Sanches e Humberto Martins (1999), "Traços
nocturnos: percursos juvenis na noite do Bairro Alto", em José Machado Pais
(org.), Traços e Riscos de Vida, Porto, Ambar.
14 Ver João Teixeira Lopes (2000), A Cidade e a Cultura, Porto,
Afrontamento.
15 Ver Jolanta Dziembowska-Kowalska e Rolf H. Funck (1999), "Cultural
activities: source of competitiveness and prosperity in urban regions", Urban
Studies, 36 (8).
16 Ver José Soares Neves (2000), Despesas dos Municípios com Cultura,
Lisboa, Observatório das Actividades Culturais.
17 Idem, ibidem, p. 46.
18 José Maria Cabral Ferreira (org.), op. cit., p. 69.
19 Idem, ibidem, p. 68.
20 Ver Kevin Lynch (1990), A Imagem da Cidade, Lisboa, Edições 70, p. 20.
21 Ver Augusto Santos Silva (1995), "Políticas culturais municipais e
animação do espaço urbano: uma análise de seis cidades portuguesas", em Maria
de Lourdes Lima dos Santos (org.), Cultura & Economia, Lisboa, ICS, p. 262.
22 Ver David Pratley op. cit, "The role of culture in local economic
development", em Maria de Lourdes Lima dos Santos, op. cit., p. 250.
23 Há quem considere que os factores locativos provenientes da fileira
cultural são de cariz soft, ao contrário de outros que, exercendo efeitos
directos na obtenção de lucros e sendo "determinados através da intervenção
directa do mercado", são apelidados de hard. No entanto, os seus efeitos,
apesar de serem mais difíceis de medir e quantificar, têm sido tudo menos
suaves, contribuindo intensamente para tornar as áreas urbanas atractivas,
criando "novas oportunidades de investimento". Ver Jolanta Dziembowska-kowalska
e Rolf H. Funck, art. cit., p. 1389.
24 Ver Idalina Conde (1987), "O sentido do desentendimento nas Bienais de
Cerveira: arte, artistas e públicos", Sociologia, Problemas e Práticas, 2.
25 A colecção de estudos de caso promovida e publicada (já existem duas
séries) em parceria pelo Observatório das Actividades Culturais e pelo
Instituto Português do Livro e das Bibliotecas fornece, a esse respeito,
excelentes ilustrações.
26 "Daí a necessidade da teoria da tradução como parte integrante da teoria
crítica pós-moderna. É por via da tradução e do que eu designo por hermenêutica
diatópica que uma necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura
pode ser tornada compreensível e inteligível para outra cultura", em Boaventura
de Sousa Santos (2000), A Crítica da Razão Indolente, Porto, Afrontamento, p.
30.
27 Este programa das cidades digitais é extremamente inovador; tendo tido a
cidade de Aveiro como uma das pioneiras, resultou da parceria entre a
universidade local, a autarquia e a Portugal Telecom, S. A.; ver www. aveiro-
digital. pt
28 Ver Pedro Costa, "Centros e margens: Produção e práticas culturais na
Área Metropolitana de Lisboa", Análise Social, 154, pp. 957-983.
29 Ver Jim McGuigan (1996), Culture and the Public Sphere, Londres,
Routledge, p. 22 e seguintes.
30 Idem, ibidem, p. 22.
*João Teixeira Lopes. Sociólogo, Universidade do Porto.
E-mail: jmteixeiralopes@mail.telepac.pt.