Metodologias de pesquisa empírica com crianças
Sociologia da infância
Pretende-se aqui apresentar e debater alguns aspectos metodológicos
desenvolvidos no contexto de uma pesquisa no domínio da sociologia da
infância.1
Trata-se de uma abordagem ao grupo social das crianças pela via dos núcleos e
processos de construção das suas identidades, que procura representar um
contributo para o desenvolvimento da sociologia da infância em Portugal.
Esta postura radica-se na modificação do estatuto tradicional da criança no
seio da sociologia, que ascende ao papel de actor e de construtor social de si
própria.
Considera-se a infância como uma categoria ontologicamente distinta das outras
etapas do percurso social dos agentes, afastando definitivamente uma imagem das
crianças como desprovidas de qualquer valor próprio que não fosse o de meros
objectos de socialização. Esta postura permite caracterizar não apenas a
infância mas também a sociedade onde esta se encontra inserida como construções
mutuamente interdependentes. Consideram-se assim as crianças "( ) componentes
de um grupo social que tem um lugar na estrutura social mais vasta" (Corsaro,
1997: 26).
O termo infância é utilizado como categoria estrutural integrada na sociedade e
construído comparativamente com outras estruturas sociais. Deste modo, torna-se
uma das tarefas da sociologia da infância "( ) delinear as formas e as
fronteiras existentes nas relações de dependência, poder e autoridade,
destacando as actividades das crianças e a posição da infância nestes domínios"
(Qvortrup, 1994: 5).
A sociologia da infância, enquanto investigação desenvolvida em torno da
atribuição de visibilidade sociológica às vozes e aos olhares das crianças, tem
testemunhado a existência de identidades das crianças fortemente edificadas
sobre as bases da importância dos mundos sociais vividos e dos contextos de
interacção entre pares. Tais identidades são alimentadas por saberes práticos
derivados de geradores práticosdas práticas sociais quotidianas. Entende-se
assim que cada criança faz parte de um universo amplo e complexo enquanto
legítima unidade de análise.
O acento tónico é colocado nas capacidades de protagonismo social das crianças,
enquanto agentes sociais específicos, aptos a desempenhar um papel fundamental
nos mecanismos de produção social das suas próprias identidades. Afirma-se,
deste modo, a legitimidade do grupo infantil enquanto grupo social específico,
detentor de um complexo conjunto de práticas e representações específicas e
características que conferem às crianças identidades particulares.
Nos mecanismos sociais de produção das identidades, nenhum conjunto de
significados contextualizados socialmente produz os seus efeitos alheado das
acções mediadoras decorrentes dos esquemas de atribuição de sentido social dos
actores. Torna-se assim necessário atribuir um papel fundamental às acções de
protagonismo social das crianças na construção das suas próprias identidades.
É quando a criança passa a ser considerada como legítima unidade de observação
sociológica que o seu lugar como objecto de estudo de facto e de direito se
conquista no seio da sociologia.
A infância é, em primeiro lugar, um segmento específico da trajectória social
dos agentes. Genericamente, julga-se que cada segmento do trajecto social dos
agentes tende a desenvolver um conjunto de relações e sentidos sociais que vão
produzir determinadas linhas de continuidade entre os seus membros
relativamente a práticas e representações comuns. Estes vão também actuar no
sentido de produzir e reforçar socialmente tais práticas e representações, de
acordo com as características das suas capacidades de intervenção enquanto
protagonistas sociais.
Pode-se então definir a infância como um grupo social específico, localizado
num segmento concreto do trajecto social dos actores. A infância caracteriza-se
por um núcleo próprio de relações intergrupais protagonizadas pelas crianças,
capazes de intervir socialmente através da autonomia atribuída pela própria
experiência social.
Chegar às crianças através da escola
A escola pode ser eleita como um lugar privilegiado para observação do grupo
das crianças, já que se constitui como um importante contexto de interacção
para este grupo, assim como um agente de socialização muito significativo para
a infância. As posições teóricas tradicionais, que apontam cronologicamente
para o ambiente escolar como o segundo agente de socialização mais importante a
seguir à família, podem observar-se à luz do contexto actual das vidas
quotidianas de crianças e adultos, para verificar o grau de importância
crescente que a instituição escolar tem vindo a representar para a infância.
Com pouca idade, muitas crianças iniciam o seu contacto com o ambiente das
instituições escolares, por meio do que se pode designar basicamente como
ensino pré-escolar, que compreende as creches, os jardins de infância e o
ensino pré-escolar propriamente dito, numa amplitude etária que varia entre os
três meses e os cinco anos de idade. Deste modo, pode-se dizer que a chamada
socialização primária se encontra, actualmente, bastante dividida entre a
escola e a família, se tivermos em linha de conta o tempo útil que as crianças
passam inseridas num e noutro contexto.
Partindo do pressuposto da intercomunicabilidade entre as diversas esferas do
mundo da infância, considera-se que o ambiente escolar, com as suas
características de acessibilidade, pode fornecer um canal de contacto com as
outras dimensões da vida social e privada das crianças. À partida, a escola e a
família não constituem contextos completamente separados para as crianças,
notando-se actualmente um crescente esforço institucional para criar laços
entre o ambiente escolar e o ambiente familiar, no sentido de promover um
processo educativo conjunto que não fragilize nem ponha em confronto, mas que
reforce mutuamente, as competências sociais adquiridas pelas crianças em ambos
os lugares.
Se, de algum modo, na família e na escola as crianças se encontram sujeitas a
um conjunto de normas ditadas pelos adultos, é, no entanto, necessário não
perder de vista que o carácter das experiências quotidianas das crianças nos
dois ambientes pode ser diverso, tornando-se importante reconhecer as variantes
dos constrangimentos e possibilidades oferecidos por ambos os cenários sociais.
O procedimento metodológico de chegar às crianças através da escola não implica
que os cenários onde se desenrolam as interacções quotidianas das crianças
sejam considerados ontologicamente idênticos ou equivalentes, significa apenas
que em termos empíricos a escola proporciona um ambiente privilegiado para
desenvolver trabalho de campo com crianças.
A delimitação do grupo das crianças enquanto observáveis
A escola constitui uma excelente oportunidade de contacto com um número muito
significativo de crianças, cuja organização própria do sistema de ensino já
permite encontrar agrupadas segundo características comuns - a idade e o nível
de ensino frequentado -, encontrando-se estes dois atributos em correspondência
mais ou menos directa.
Tendo em linha de conta a já referida importância da inserção das crianças no
sistema escolar, julga-se que cada uma das suas etapas produz determinadas
competências intelectuais e modos de apropriação e entendimento da realidade
social, que vão evoluindo à medida que as crianças progridem nos vários graus
de ensino. Julga-se que estes pressupostos podem servir de orientação nas
delimitações etárias de observáveis recrutados no grupo social das crianças.
É no primeiro ano do primeiro ciclo do ensino básico que as crianças começam a
desenvolver os contactos mais sólidos e sistematizados com a linguagem escrita
e oral, o que lhes proporciona formas mais amplas de comunicação, expressão e
percepção do mundo à sua volta, permitindo um reajustamento dos seus papéis
enquanto actores sociais. Tal não significa, de modo algum, que as crianças não
sejam entendidas como actores sociais antes deste momento do seu percurso
social. No entanto, tem-se a firme convicção de que o trabalho de campo com
crianças na fase anterior ao ensino básico implica a utilização de metodologias
de pesquisa empírica construídas de forma bastante mais meticulosa e cuidada e
que não têm sido alvo de desenvolvimento no contexto deste percurso de
investigação. Este factor permite definir, portanto, a delimitação etária a
montante destes observáveis, ou seja, crianças entre os 6 e os 7 anos de idade,
a frequentar o primeiro ano do primeiro ciclo do ensino básico.
A estrutura da organização escolar sofre alterações profundas na transição do
primeiro para o segundo ciclo do ensino básico, visto que as crianças transitam
de um regime de vários anos, onde têm muito frequentemente um professor e uma
sala de aulas, para uma situação escolar caracterizada por vários docentes e
diversos espaços de aulas, sendo os próprios conteúdos programáticos, os
objectivos a atingir, as relações entre professores e alunos e todo o ambiente
circundante em grande medida distintos daqueles onde a criança se encontrou
inserida durante o ensino pré-escolar e o primeiro ciclo do ensino básico.
Julga-se que esta transição estimula de modos diferentes, quer a utilização das
competências intelectuais das crianças, quer as práticas e representações
acerca do mundo social que as envolve, suscitando nestas novas formas de
protagonismo social que se encaminham para a fase da adolescência.
É assim que na interacção entre o sistema escolar e as acções de protagonismo
das crianças enquanto actores sociais se pode encontrar a delimitação etária a
jusante dos observáveis recrutados no grupo da infância, que diz respeito a
crianças com idades compreendidas entre os 9 e os 10 anos, a frequentar o
quarto ano do primeiro ciclo do ensino básico.
Assim, e no contexto deste percurso de investigação, a amplitude etária dos
observáveis tem sido compreendida entre os 6 e os 10 anos de idade, o que
corresponde a crianças a frequentar o primeiro ciclo do ensino básico. Tal
delimitação, que implica necessárias exclusões etárias a montante e a jusante,
constitui a solução que mais argumentos de consolidação tem encontrado no
domínio desta pesquisa. No entanto, diversas outras delimitações podem ser
encontradas.
Ambos os centros [jardins de infância] tinham cerca de sessenta crianças ( )
entre os 2 e os 5 anos de idade. As minhas observações focalizaram-se nas
idades entre os 2 e os 4 anos em ambos os locais (Mandel, 1994: 41).
A recolha de dados foi feita com ( ) crianças entre os 11 e 12 anos ( )
(Montandon, 1997: 24).
O material aqui discutido provém de um projecto escrito levado a cabo numa
turma de uma escola suíça com crianças de 8 e 9 anos de idade (Halldén, 1994:
64).
Para os objectivos desta obra, a infância vai incluir a pré-adolescência, que é
geralmente definida como o período dos sete aos treze anos de idade (Corsaro,
1997: 163).
O facto de diversos investigadores adoptarem soluções diferentes para a mesma
questão prende-se não apenas com os quadros conceptuais de referência adoptados
como também com as realidades sociais envolventes. Tendo em mente a importância
da variável escalão etário, testada em diversos momentos deste percurso de
investigação, tem-se a firme convicção de que as opções centradas em torno de
uma idade única não permitem verificar o aspecto dos percursos das crianças
enquanto actores sociais, mas tal poderá não fazer parte das aspirações de quem
observa. Poder-se-á então dizer que a delimitação da amplitude etária dos
observáveis depende, em última análise, dos objectivos de trabalho propostos
pelo investigador, podendo-se admitir que as opções empíricas são
constantemente adaptadas e coerentes com tal princípio.
Ponto comum a todas as modalidades de investigação é, no entanto, a definição
dos observáveis tendo em conta a variável idade que, tal como refere Qvortrup
(1994: 4), para vários objectivos práticos (por exemplo, a selecção de uma
população para estudo), é um factor a ser considerado.
Adaptar as técnicas clássicas a um novo grupo de observáveis
As metodologias empíricas aplicadas no contexto da sociologia da infância têm
vindo a caracterizar-se pela necessidade de adequações e reajustamentos
sucessivos das técnicas de pesquisa de terreno tradicionalmente utilizadas pela
sociologia de um modo geral. Uma estratégia de pesquisa no terreno que pretenda
realizar trabalhos empíricos com crianças depara-se com um conjunto de
preocupações específicas, tendo em conta as características particulares destes
observáveis. É importante que a construção das técnicas seja elaborada com base
em ferramentas metodológicas que procurem ser permeáveis às especificidades do
grupo social da infância e às particularidades de cada criança enquanto actor
social pleno.
As estratégias metodológicas a utilizar caracterizam-se pela extrema
necessidade de desenvolvimento de um carácter qualitativo que apele e faça
referência a níveis de decifração interpretativa. Manuel Pinto enquadra esta
postura no que parece surgir como tendência actual:
Grande parte das propostas recentes que se constituem como contributos para
construção de uma sociologia da infância são teórica e metodologicamente
inspiradas nas correntes da sociologia interpretativa, de inspiração
fenomenológica, nomeadamente o interaccionismo simbólico e a etnometodologia
(Pinto, 2000: 84).
No domínio metodológico qualitativo é possível identificar estratégias de
carácter tendencialmente mais intensivo e outras de carácter mais extensivo.
Assim, os textos ilustrados e legendados podem ser considerados uma técnica
extensiva de recolha qualitativa de informações, enquanto que as entrevistas-
conversa constituem uma técnica intensiva de recolha de materiais empíricos.
A recolha sistemática intensiva: as entrevistas-conversa
A entrevista-conversadistingue-se da entrevista não estruturada pelo facto de
ser orientada por grandes blocos temáticos intercomunicáveis que permitem uma
deambulação temática que se afigura constantemente pertinente e lógica, porque
todos os temas planeados têm pontos de comunicabilidade, mais ou menos
evidentes e mais ou menos fáceis de conduzir e orientar.2
A entrevista-conversa não é sinónimo de uma técnica de entrevista menos baseada
nos princípios do rigor científico da investigação empírica sociológica. É,
pelo contrário, uma técnica que implica um conjunto de preocupações adicionais
na sua preparação, desenvolvimento e aplicação.
Como procedimentos de base para a construção do guião da entrevista-conversa há
que ter em conta a definição dos objectivos em torno dos quais o conjunto das
questões será orientado. Neste domínio, é importante que na organização do
guião sejam definidos com clareza o bloco temático inicial, o tema central, os
temas adjacentes e o seu encadeamento interno, estruturando as questões de cada
bloco temático e planeando cuidadosamente as possíveis vias de convergência
intertemática entre os diversos blocos, de forma a tornar operacional a
intercomunicabilidade dos assuntos.
A condução das entrevistas-conversa
O registo dos conteúdos temáticos a serem abordados nas entrevistas-conversa
realiza-se de modo a destacar a lógica da convergência dos círculos
intertemáticos.
Esta metodologia de entrevista implica um trabalho prévio e cuidado de
preparação por parte do entrevistador, que espera assegurar uma eficaz
orientação da mesma, por meio de ágeis e sucessivas passagens de núcleo
temático para núcleo temático, procurando-se que a coerência da entrevista
nunca seja perdida. Desta forma é possível, e acontece frequentemente, que
durante o período da entrevista se volte, alternadamente, aos mesmos núcleos
temáticos, para tentar explorar todas as questões planeadas para cada um deles.
O bloco temático inicial e, sobretudo, a questão de abertura da entrevista,
podem delinear o modo como irá decorrer todo o processo. Assim, mesmo nos casos
onde se pretenda abordar assuntos do foro mais pessoal, é desejável que o
primeiro bloco temático tenha um carácter "menos sério", de forma a estabelecer
uma sólida plataforma inicial de conversa. Os amigos, as brincadeiras e os
animais de estimação são assuntos significativos para as crianças e constituem
alguns dos melhores temas para marcar um início de entrevista onde se procura a
plena colaboração da(s) criança(s).
As crianças são geralmente bons interlocutores de conversa, se o entrevistador
souber propor temas interessantes aos olhos destas. Quando os assuntos não
interessam, são considerados aborrecidos, tratados com insistência e durante
demasiado tempo consecutivo, a criança começa a ficar impaciente, irrequieta, e
procura terminar a conversa o mais rapidamente possível.
Em geral todas as crianças gostam de falar e de contar coisas sobre as suas
vidas quotidianas. Essas coisas podem afigurar-se muitas vezes como banais e
sem interesse para os objectivos da investigação, mas, em grande parte das
oportunidades, torna-se possível encaminhar a criança para o assunto que se
pretende abordar a partir das coisas que a criança está disposta a contar.
As crianças são extremamente astutas na captação de todos os sinais verbais e
não verbais transmitidos no decurso da entrevista pelo investigador. É
importante procurar transmitir uma atitude de grande serenidade, mesmo que a
situação de entrevista esteja a decorrer de modo particularmente difícil.
As crianças fatigam-se relativamente depressa com uma situação de entrevista.
Raramente se consegue que uma entrevista dure mais que 30-40 minutos sem que a
criança mostre sinais de cansaço e, muitas vezes, após os 15-20 minutos tal
começa a acontecer. Há que estar muito atento a esses sinais, uma vez que é de
todo o interesse para o sucesso do trabalho que o momento da entrevista seja
considerado um momento divertido, descontraído e agradável. Cabe ao
entrevistador tornar, ou não, a entrevista num momento interessante para a
criança.
A entrevista-conversa é um momento de interacção por excelência. Torna-se assim
fundamental que a criança olhe para o entrevistador como um interlocutor de
conversa e que esta tenha mesmo a oportunidade de colocar algumas questões ao
entrevistador naquilo que se designa por processo de inversão de papéis. Numa
situação de entrevista onde o investigador esteja ciente dos objectivos que
pretende atingir, as próprias questões que a(s) criança(s) possa(m) colocar
podem ser utilizadas em proveito dos temas a abordar.
A importância do ambiente físico nas entrevistas-conversa
O ambiente físico onde decorre a entrevista-conversa é fundamental para o
sucesso da mesma. Um sítio que seja familiar à criança e no qual não existam
quaisquer factores que a deixem menos à vontade será mais propício.
As entrevistas em casa das crianças conseguem, em muitos casos, ser bastante
proveitosas, quando existe um clima de alguma confiança por parte da criança e
quando ninguém mais decide assistir - facto que não é absolutamente nada
favorável à condução da entrevista.
Uma vez em casa da criança, é conveniente que o investigador deixe que seja a
própria a escolher o local onde se vai realizar a entrevista - em que divisão
da casa e em que local da divisão. O entrevistador pode preparar-se para uma
multiplicidade de situações, num contexto onde se torna importante conceder às
crianças uma margem de actuação suficientemente grande para que os seus
comportamentos sejam o mais espontâneos e o menos direccionados possível.
As conversas com a Margarida, o Francisco e o Bernardo foram totalmente
registadas no quarto que foi o espaço da casa onde as crianças quiseram estar a
maior parte do tempo. No entanto, as gravações foram interrompidas várias
vezes, visto que estas crianças permaneceram pouco tempo seguido em conjunto de
modo a que as suas vozes pudessem ser registadas. Com frequência, abandonavam a
roda que fizéramos sentados no chão, para ir pular para cima da cama, buscar um
outro objecto lúdico para brincar enquanto conversávamos ou simplesmente
criando situações de "non sense" caracterizadas pelo tom caótico das três
crianças a falar ao mesmo tempo, brincado com as palavras e produzindo sons
variados. Estes momentos exprimiam a necessidade sentida pelas crianças de
fazer uma pausa na ordem criada pelas conversas, para se poderem manifestar
mais livremente, ou seja, menos ordeiramente. ( ) (Margarida, Francisco e
Bernardo com 7 anos de idade, a frequentar o 1.º ano do 1.º ciclo do ensino
básico; extracto do Relatório de Trabalhos de Campo do Projecto Identidades,
1998).
Os jardins públicos e, sobretudo, as zonas equipadas para as actividades
lúdicas ao ar livre constituem também excelentes locais para realização de
entrevistas com crianças. Os recintos de recreio das escolas, uma pastelaria/
esplanada (onde a entrevista decorre em simultâneo com um lanche) ou a praia
são também sítios que podem proporcionar óptimos locais para desenvolvimento de
entrevistas-conversa, desde que o investigador prepare o guião tendo em conta
as possíveis interferências externas que um local público pode eventualmente
suscitar.
O registo magnético das entrevistas-conversa
A utilização do gravador torna-se um recurso dificilmente prescindível numa
situação de entrevista, seja esta de que natureza for. Na entrevista-conversa é
importante que se proceda a uma utilização deste material com alguns cuidados
adicionais.
Em primeiro lugar, há que naturalizar e desmistificar a utilização do gravador
perante a criança:
O gravador serve apenas para registar as vozes porque é difícil recordar tudo
aquilo que é dito durante a conversa em momentos posteriores e porque é
importante que toda a conversa possa ser recordada.
Esta atitude de explicação perante a utilização do gravador não apenas
secundariza a sua presença como atribui uma importância especial à conversa no
contexto da qual a criança tende a sentir-se gratificada pelo facto de naquele
momento a pessoa com quem está a interagir estar francamente interessada em
tudo aquilo que a criança possa querer dizer.
Um modo de familiarizar as crianças que têm menos contacto com os gravadores é
fazer uma pequena sessão inicial de questões mais simples, logo seguida por um
período de audição das mesmas, onde as crianças geralmente se divertem bastante
a ouvir o registo magnético das suas próprias vozes. Em situações de
entrevistas de grupo, chega mesmo a ser motivo de jogo a identificação da
pertença das vozes.
Após os minutos iniciais da entrevista, e partindo do princípio que o gravador
não produz nenhum ruído que identifique o seu funcionamento, em geral a(s)
criança(s) esquece(m)-se de que a entrevista está a ser gravada. Deve-se evitar
a todo o custo a necessidade de o entrevistador segurar o gravador na mão ou
mantê-lo em frente dos olhos da(s) criança(s). Não é absolutamente nada
aconselhável a utilização de microfone. Por este motivo há que utilizar um
gravador com um bom alcance de registo de vozes, de modo a que possa ser
colocado num local discreto.
Uma situação que surge frequentemente quando são utilizadas cassetes de 60
minutos é, numa altura em que a entrevista decorre em bom ritmo, a fita
terminar e ouvir-se o disparo do gravador que denuncia a sua presença. Tal
situação pode causar algum "arrefecimento" da conversa, que pode ser remediado
com uma rápida mudança da cassete, continuando-se no mesmo tom e dentro do
mesmo assunto.
As modalidades de entrevistas-conversa
As entrevistas-conversa adaptam-se a um número flexível de entrevistados. A
selecção dos interlocutores a entrevistar toma em linha de conta a natureza das
relações estabelecidas entre os mesmos, de modo a que tal factor constitua uma
mais-valia para o processo da entrevista.
Temos assim três modalidades de entrevista-conversa: a entrevista-conversa com
uma criança, denominada entrevista-conversa singular; a entrevista-conversa com
duas e até quatro crianças, chamada entrevista-conversa relacional;e a
entrevista-conversa com um grupo de crianças de seis a oito elementos,
designada entrevista-conversa de grupo.
A decisão de optar por um dos três tipos de entrevista-conversa é orientada
pelos objectivos estabelecidos por meio da construção dos núcleos temáticos.
Poderá também acontecer que seja o contacto com uma situação concreta que o
investigador considere importante aprofundar pela via da técnica do inquérito
por entrevista, a indicar qual das três modalidades de entrevista-conversa se
mostra mais adequada.
A entrevista-conversa singular é apropriada para o aprofundamento de núcleos
temáticos do foro pessoal e íntimo, que se entendam particularmente melindrosos
e/ou delicados para a criança, sobre os quais esta não se sinta à vontade para
falar na presença de pares, mesmo que estes sejam muito próximos em termos de
laços familiares e/ou de afectividade. Contudo, não constitui tarefa fácil para
quem conduz a entrevista levar a criança a abordar temas que a melindram ou
deixam pouco à vontade. Nestes casos mostra-se importante que haja um
conhecimento prévio entre os interlocutores, onde o adulto entrevistador possa
ter estabelecido um determinado grau de conhecimento ou até mesmo amizade com a
criança.
M: Não sei, não sei muito bem explicar mas acho que foi o juiz que decidiu que
a minha irmã ia com a mãe e que eu fico com o pai.
Eu: Hum e o que é que tu achaste dessa decisão M?
M: Achei que foi bem, porque a minha irmã andava desde pequenina num colégio e
ainda não conseguia bem pronto, perceber e pensava, "pronto eu vou para outro
colégio se calhar ainda melhor do que este", mas agora eu foi muito difícil
habituar-me à escola primária, então achei que isso foi uma decisão certa,
porque eu já estava na primária custou-me muito a entrar a custou-me
mesmo muito.
Eu: Por que é que achas que te custou muito a entrar? ( )
M: Foi (a mudança). Só conhecia lá uma menina e tudo e então foi um bocado
difícil, perdi quase todos os meus amigos lá da escola, só encontrei ainda
quatro e isso tudo foi muito difícil para mim e então não podia passar outra
vez aquela dificuldade ( ).
M: Não isso eu quando estão a conversar comigo sobre isso eu desvio a
conversa.
Eu: É?
M: É porque não gosto que me lembrem que os meus pais estão divorciados não
gosto que me lembrem ( )
M: Pois, não gosto de falar com outras pessoas, nem gosto de desabafar com
ninguém nem nada ( ).
([M] Género feminino, 8 anos de idade, 3.º ano do 1.º ciclo do ensino básico;
extracto do Relatório de Trabalhos de Campo do Projecto Protagonismo, 2000).
Aentrevista-conversa relacional adequa-se a blocos temáticos directamente
relacionados com situações de interacção privilegiada desenvolvidas entre
pares, tais como fortes laços de amizade e/ou de parentesco.
Eu: Então e digam-me uma coisa, vocês gozam muito com os vossos colegas?
Todas: Sim!
Eu: E eles gozam com vocês?
Todas: Gozam
Eu: Com o que é que eles gozam?
Joana: A gente às vezes tamos a fazer uma brincadeira e eles gozam logo
Olga: Às vezes nós estamos a fazer figuras e eles começam a fazer troça de nós.
Joana: Pois é! ( )
Eu: Porque é que vocês gozam com um colega, é para o chatear ou porque é
engraçado gozar com os colegas?
Olga: É pa brincar
Eu: É pa brincar? Mas eles ficam chateados, ou não? De vocês gozarem?
Dora: Ficam.
Eu: Ficam? (risos) Então e isso é engraçado?
Todas: É! (risos)
Mária: A Carina quando a gente às vezes goza com ela, tem que ir logo contar à
professora
Olga: E depois a gente chama-lhe a queixinhas (risos).
(Dora, Mária e Joana com 7 anos e Olga com 8 anos, a frequentar o 1.º ciclo do
ensino básico; extracto do Relatório de Trabalhos de Campo do Projecto Brincar,
1993).
A entrevista-conversa de grupo permite abordar temas mais abrangentes e
considerados menos delicados para as crianças. Nestes casos, a elaboração da
estrutura da entrevista é planeada com cuidados adicionais, uma vez que cada
interveniente tem a possibilidade de introduzir novas pistas de debate, o que
pode tornar mais complicada a tarefa de direccionar o grupo para os núcleos
temáticos definidos. Este tipo de entrevista-conversa é particularmente
adequado às fases exploratórias dos trabalhos de pesquisa com crianças.
Eu: Então e vocês costumam brincar todos juntos, ou brincam os mais velhos
separados dos mais novos?
Rapaz: Tudo junto. E as raparigas agora estão a brincar com os rapazes aos
polícias.
Eu: Brincam sempre? A vossa brincadeira é essa? Então e quem são os polícias e
quem são os ladrões?
Rapaz: Os polícias é a gente e os ladrões é as raparigas.
Rapaz: A gente faz o barulho dos polícias e elas são os fugitivos.
Rapaz: E depois a gente corre atrás delas. ( )
Rapaz: A gente mete-as em cima da casa da bomba (pequena construção em cimento
que possui uma bomba artesanal que extrai água de um poço subterrâneo).
Rapaz: A gente metia-as lá e depois ficava lá um a guardar para elas não
fugirem.
Rapaz: E no fim da gente as apanhar todas, deixávamo-las fugir.
Eu: E é sempre a isso que vocês brincam?
Rapaz: Não, às vezes é ao "pisa"
[Entretanto, um outro rapaz ( ) juntou-se ao grupo] ( ).
(Rapazes entre os 7 e os 10 anos, a frequentar o 1.º ciclo do ensino básico;
extracto do Relatório de Trabalhos de Campo do Projecto Brincar, 1993).
Nem sempre o número de entrevistados define o tipo de entrevista-conversa em
causa. Se é óbvio que as entrevistas-conversa singulares se destinam apenas a
uma criança, por outro lado, as entrevistas-conversa relacionais podem dirigir-
se a um conjunto de duas, três crianças ou mesmo mais, de acordo com a natureza
dos atributos relacionais que o investigador pretende aprofundar. Pode-se
pensar no exemplo de um grupo de amigos, e/ou colegas, ou mesmo de irmãos, que
estabeleçam entre si relações de interacção importantes para os objectivos do
estudo. Neste caso, e apesar do número de intervenientes na entrevista, esta é
considerada de tipo relacional e não de grupo.
A recolha sistemática extensiva: os textos ilustrados e legendados
Os textos ilustrados e legendados constituem uma técnica de trabalho de campo
que tem vindo a ser alvo de aperfeiçoamentos sucessivos ao longo deste percurso
de investigação. Esta metodologia adequa-se a turmas do primeiro ciclo do
ensino básico e tem como espaço físico de desenvolvimento as respectivas salas
de aulas.
Esta actividade tem início com a revelação do tema de trabalho e respectivo
registo no quadro preto. Todas as crianças possuem já uma folha própria para
desenvolver a actividade. Segue-se um período de explicação do tema e de
esclarecimento de dúvidas que antecede o começo dos trabalhos. Todo o processo
de desenvolvimento desta actividade numa turma, que de um modo geral tem a
duração aproximada de duas horas, é acompanhado e orientado pela investigadora.
Embora estes trabalhos sejam destinados a uma realização individual, as
crianças têm sempre oportunidades de trocar impressões com os colegas mais
próximos, num contexto onde as interacções entre pares contribuem também para
os resultados finais obtidos.
É solicitado às crianças que, de acordo com o tema sugerido, escrevam um
pequeno texto, façam uma ilustração a propósito do conteúdo do texto e,
finalmente, escrevam uma legenda que, de algum modo, explique a ilustração
feita.
As folhas onde as crianças desenvolvem estas actividades são previamente
preparadas de acordo com os diversos anos escolares. Genericamente são folhas
formato A4 lisas e brancas onde se desenvolvem espaços adequados aos objectivos
pretendidos, ou seja: zona de identificação, zona do texto, zona da ilustração
e da respectiva legenda. Contudo, estas folhas reservam uma grande margem de
manobra, permitindo que as crianças possam fazer delas usos diferenciais de
acordo com as suas preferências.
Nos períodos de desenvolvimento destas actividades com as turmas, os
respectivos professores têm uma participação muito reduzida ou mesmo nula,
cabendo à investigadora a orientação e condução do grupo.
A adaptação aos diversos níveis de conhecimentos
Atendendo aos distintos níveis curriculares dos percursos de aprendizagem
estabelecidos, esta técnica procura adequar-se ao grau médio dos conhecimentos
adquiridos pelos alunos de cada um dos quatro anos que compõem o primeiro ciclo
do ensino básico. Assim, as tarefas propostas às crianças que frequentam o
primeiro ano consistem basicamente na elaboração de uma ilustração sobre o tema
e na tentativa de redacção de pequenas frases ou palavras que procurem explicar
o conteúdo das ilustrações feitas. Nos primeiros meses de aulas é frequente que
a maioria das crianças necessite de bastante auxílio na parte escrita, tarefa
que vão conseguindo desenvolver com margens progressivas de autonomia ao longo
do primeiro ano. Estas crianças recebem uma folha de formato A4, branca e lisa,
preparada para ser utilizada na horizontal, com espaços devidamente assinalados
no canto superior esquerdo, para escreverem o seu nome, idade e data da
realização da actividade.
As crianças a frequentar o segundo ano possuem já, de um modo geral,
conhecimentos suficientes para a elaboração de um pequeno texto. Deste modo, a
folha de trabalho fornecida a estas crianças é preparada para ser utilizada na
vertical, contém um cabeçalho para preenchimento de dados pessoais
identificativos (nome, idade, data, ano e turma) e um conjunto de cinco linhas
para redacção do texto. No restante espaço as crianças desenham e escrevem
livremente a legenda acerca da ilustração.
Às crianças dos terceiro e quarto anos, cujos níveis escolares permitem a
elaboração de textos comparativamente mais desenvolvidos que os dos alunos dos
primeiros anos, é facultada uma folha de trabalho com 10 linhas. A restante
configuração da página é igual à descrita para o segundo ano.
A construção das folhas de trabalho foi sendo aperfeiçoada ao longo dos vários
momentos de recolha de materiais empíricos com estas características, tendo em
conta uma observação cuidadosa das utilizações que as crianças faziam das
folhas. Pontualmente procedeu-se a algumas trocas de impressões com as próprias
crianças, no sentido de procurar entender qual seria o formato mais adequado
para a folha de trabalho, tendo em conta as características do modo como as
crianças levam a cabo as tarefas propostas neste contexto.
No desenvolvimento desta metodologia, torna-se fundamental criar um ambiente de
trabalho com as crianças que seja distinto daquele que norteia as actividades
escolares habituais. Procura-se então atingir um contexto caracterizado por uma
fraca directividade nas instruções fornecidas para o desenvolvimento do
conteúdo da actividade e pela constante preocupação em sugerir temas de
trabalho que habitualmente não constam dos currículos escolares.
Familiarizadas com um processo de trabalho fortemente regulado, frequentemente
as crianças manifestam surpresa perante uma situação onde lhes é concedida uma
enorme autonomia para construir os conteúdos dos seus trabalhos. Também acerca
dos materiais a utilizar no desenvolvimento da actividade as crianças têm total
liberdade de escolha.
Motivar sem direccionar
"É para escrever o quê?" e "Não sei o que hei-de dizer!" são dois exemplos de
questões e comentários das crianças. Sobretudo quando os temas são mais
invulgares é notória uma certa desorientação perante uma proposta de trabalho
tão fracamente regulada, situação pouco usual no quotidiano da sala de aula.
Perante esta situação torna-se essencial motivar e estimular, procurando evitar
a todo a custo direccionar e influenciar. No sentido de tentar atingir este
objectivo recorre-se frequentemente à estratégia de transformar a actividade
num momento em que cada criança procura explicar por escrito a uma criança
imaginária algo que esta não sabia à partida. Por exemplo, foi solicitado às
crianças que o desenvolvimento do tema "O que é uma família" fosse dirigido a
uma hipotética criança que não tinha família e que, portanto, não sabia o que
tal significava. Este modo de colocar a situação, onde as crianças não elaboram
a actividade para o professor, nem para a investigadora, nem para um qualquer
adulto, mas para um par imaginário, contribui para tornar o seu desempenho mais
próximo daquilo que são as interacções intergrupais da infância.
Fazendo uso destes procedimentos, foi já trabalhado um número muito
considerável de temas, de entre os quais se apresentam alguns que se destacaram
pela sua operatividade e pelo valor analítico dos resultados obtidos:
· "O meu sítio ideal para brincar"; tema desenvolvido no contexto do Projecto
Brincar, 1993;
· "O que eu penso dos adultos"; "O que eu penso dos rapazes" (feito pelas
raparigas); e "O que eu penso das raparigas" (feito pelos rapazes); temas
desenvolvidos no contexto do Projecto Infância, 1994;
· "O que eu penso sobre a televisão"; "O que é um segredo"; e "As coisas de que
eu tenho medo"; temas desenvolvidos no contexto do Projecto Identidades, 1997 e
1998;
· "Se eu pudesse mandar no mundo"; "Como se faz para arranjar um(a) namorado
(a)"; "O que eu penso sobre Deus"; e "Os problemas das crianças"; temas
desenvolvidos no contexto do Projecto Protagonismo, 1999 e 2000.
O facto de as actividades serem propostas às turmas por alguém exterior à
escola, tende a surgir aos olhares das crianças como desligado dos laços
institucionais que unem os professores aos alunos e aos respectivos pais e
produz um efeito positivo, já que se constata que as crianças tomam a
actividade proposta como uma oportunidade de expressão paralela àquela que a
escola quotidianamente lhes proporciona.
Operacionalizar esta técnica de pesquisa
Foi já referido o modo como as especificidades do grupo das crianças implicam a
utilização de estratégias de trabalho empírico constantemente renovadas.
Esta técnica de recolha de informações empíricas junto do grupo das crianças
revela-se exigente do ponto de vista interaccional e afectivo. Há que ter em
conta o número significativo de elementos pertencentes a cada turma (entre 20 a
25 elementos), já que a sua maioria solicita um apoio frequente para a
realização da tarefa em causa, procurando esclarecimento de dúvidas ou
simplesmente esperando apoio e incentivo para continuar. Para além destas
situações, que correspondem à vulgaridade dos casos, há que atender às
situações das crianças com necessidades educativas especiais e que necessitam
de um apoio permanente para a realização do trabalho.
Torna-se também necessário um conjunto de cuidados redobrados no sentido de
transmitir e explicar às crianças o tema sobre o qual se sugere que trabalhem,
sem, no entanto, fornecer orientações que direccionem ou enviesem a natureza
dos resultados.
Um outro aspecto a considerar é a relativa facilidade com que as crianças
passam de um sentimento de interesse e entusiasmo a um sentimento de monotonia
e desinteresse. Sobretudo aquelas crianças que preferem os cálculos matemáticos
à expressão escrita questionam por que motivo as actividades propostas são
sempre elaborar um texto, surgindo questões como: "Hoje não podemos fazer antes
contas de dividir?". Com o intuito de diversificar os trabalhos, procurando
assim que se tornem o menos possível monótonos, nas situações de continuidade
temporal de recolha de informações junto dos mesmos observáveis, tem-se
efectuado um esforço para propor temas que as crianças considerem
interessantes, muitas vezes sendo necessário utilizar uma grande dose de
imaginação, procurando-se que o tema vá ao encontro das dimensões analíticas
que se pretende estudar.
As preocupações com os trabalhos de recolha não se prendem apenas com os seus
conteúdos, mas também com a sua forma. Mais uma vez com o intuito de
diversificar as tarefas, tentou-se propor textos redigidos em grupos de dois ou
três elementos. No entanto, e na sequência dos efeitos de liderança no seio dos
grupos de pares, verificou-se que a opinião do conjunto é muito influenciada
pela opinião do líder, registando-se assim um enviesamento nos resultados
obtidos. Assim, um procedimento que agrada muito à maior parte das crianças - o
trabalho em grupo - tem-se mostrado pouco eficaz para os objectivos que se tem
pretendido atingir neste percurso de investigação.
Contudo, a grande maioria das crianças é bastante receptiva às actividades
propostas, sobretudo porque os temas de trabalho diferem daqueles que
habitualmente se debatem em contexto escolar. É muito frequente que um tema
considerado pelas crianças como "difícil", ou seja, um tema que nunca haviam
sido solicitadas a abordar, se revele um tema interessante após serem
incentivadas a uma reflexão sobre o assunto. É notório o agrado do conjunto das
crianças pela valorização das suas opiniões.
Como a qualquer outro método de trabalho de campo, à recolha de textos
escritos, ilustrados e legendados produzidos pelas crianças podem apontar-se
vantagens e limitações. No domínio das vantagens, destaca-se o facto de tornar
possível recolher quantidades consideráveis de informação de um conjunto de
observáveis aos quais foram transmitidos os mesmos tipos de estímulos e níveis
de informação.
No campo das limitações, temos a considerar as diferenças provenientes dos
diversos graus de competências escolares em termos de expressão escrita,
conhecimento de vocabulário e nível de progressão na aprendizagem, que
representam, sem dúvida, assimetrias nos resultados finais, desfavorecendo
aqueles que mostram dificuldades maiores em termos de expressão escrita, em
favor daqueles que evidenciam mais competências nesse domínio. Contudo, estas
questões podem ser atenuadas por meio de um apoio mais próximo e sistemático às
crianças que manifestam mais dificuldades no desenvolvimento das actividades
propostas. Estas dificuldades surgem associadas frequentemente a quadros de
necessidades educativas especiais. Cabe ao investigador, nestes casos, adequar
a actividade às capacidades em causa, procurando valorizar todas as
participações, numa atitude de profundo respeito pela individualidade de cada
criança.
Os textos escritos ilustrados e legendados têm vindo a evidenciar-se, no
contexto deste percurso de investigação, pela sua operacionalidade, pela
extrema riqueza dos conteúdos que permitem recolher e pela oportunidade que
significam de proceder a uma recolha com algum carácter extensivo junto do
grupo da infância.3
Texto: "A televisão tem casos sérios, casos animados, casos futebolistas, etc.
Eu gosto de todos eles, uns um bocado mais, outros um bocado menos. Os que eu
gosto mesmo muito são: Casos de Polícia, Buéréré, Dragon Ball Z, Power Rangers,
Futebol, etc. Quando vejo futebol é com o meu pai, quando vejo desenhos
animados é sozinho e quando vejo as coisas sérias é com a minha mãe".
Legenda da ilustração: "Sou eu a brincar com o Homem-Aranha e a vê-lo na
televisão".
(Transcrição integral do texto e da legenda da ilustração da actividade
desenvolvida segundo o tema "O que eu penso da televisão", criança do sexo
masculino, 8 anos, 3.º ano de escolaridade; material empírico recolhido no
contexto do Projecto Identidades, 1997).
Texto: "Um segredo é' frases que se dizem ao ouvido de outra pessoa. É muito
feio fazer segredos ao pé de outra pessoa. Um segredo serve para as pessoas não
ouvirem as coisas que tem' de ser secreto. Às vezes digo segredos aos meus
colegas. Algumas vezes no futebol americano dizem em segredo as tácticas. Às
vezes as pessoas contam o dinheiro em segredo. Alguns dias brinco ao telefone
avariado que é em segredo".
Legenda da ilustração: "Aqui está um menino a dar um segredo a outro menino".
(Transcrição integral do texto e da legenda da ilustração da actividade
desenvolvida segundo o tema "O que é um segredo", criança do sexo masculino, 10
anos, 4.º ano de escolaridade; material empírico recolhido no contexto do
Projecto Identidades, 1998).
Texto: "É uma pessoa que conheço e que tem problemas. Os problemas são: não
consegue arranjar amigos, ninguém lhe liga, mas eu como sou amiga dela ligo-lhe
e ela sabe que quando precisar ela pode contar comigo para qualquer ocasião,
mesmo que seja pouco importante".
Legenda da ilustração: "Sou eu e a minha amiga".
(Transcrição integral do texto e da legenda da ilustração da actividade
desenvolvida segundo o tema "Os problemas das crianças", criança do sexo
feminino, 8 anos, 3.º ano de escolaridade; material empírico recolhido no
contexto do Projecto Protagonismo, 2000).
Destaca-se a enorme importância da continuidade no desenvolvimento desta
técnica junto dos mesmos observáveis, em estudos que pretendam contemplar as
vertentes dos efeitos da evolução temporal no grupo das crianças.
De salientar que esta actividade é acompanhada por um registo escrito dos
momentos mais significativos da interacção desenvolvida entre pares e entre as
crianças e a investigadora durante a elaboração dos trabalhos propostos. Este
procedimento tem como objectivo que todo o processo de análise e interpretação
dos materiais empíricos recolhidos possa ser elaborado tendo em conta as
especificidades contextuais, localizadas e particulares do seu desenvolvimento.
Os relatos das observações empíricas
O registo escrito das interacções contextuais desenvolvidas entre as crianças
durante os processos de recolha de materiais empíricos - tanto no caso das
entrevistas-conversa como no caso dos textos ilustrados e legendados -
constitui uma técnica de pesquisa de extrema importância. Acerca desta técnica
de inspiração etnográfica, escreve Pinto (1997: 68):
( ) a construção do novo paradigma teria muito a beneficiar com o recurso à
etnografia enquanto metodologia particularmente adequada ao imperativo de dar
voz às crianças ( ).
Tão significativos quanto os testemunhos produzidos pelas crianças mediante um
determinado estímulo, são as relações espontaneamente desenvolvidas entre pares
e por vezes mesmo com o investigador, a pretexto da situação em causa. Nestes
registos encontram-se frequentemente marcas de núcleos configuradores
importantes dos mundos sociais vividos, das interacções e, portanto, também das
identidades das crianças.
"Tu também percebes destas coisas?" Perguntou a Sara com um ar entusiasmado
quando me viu aparecer na sala de aulas da sua turma com duas folhas cheias de
personagens Pokémon.
Em poucos outros momentos me tinha sentido tão próxima do mundo das crianças
como neste. O esforço de quem procura construir instrumentos sistemáticos de
recolha de informações junto das crianças nem sempre é tão frutuoso como
gostaríamos. É feito de avanços e recuos, de tentativas e de experiências. Não
é sensato pensar que algum dia poderei ser considerada por uma criança como um
verdadeiro par de interacção. No entanto, naquele momento abriu-se um
importante "portal de entrada" no mundo das crianças. (Sara: 9 anos, 4.º ano de
escolaridade; extracto do Relatório de Trabalhos de Campo do Projecto
Protagonismo, 2000).
Por outro lado, o relato das observações representa uma oportunidade de
monitorização dos processos de construção das ferramentas empíricas, na medida
em que contribui para reposicionar constantemente os procedimentos neste
domínio, fazendo uso de um esforço de distanciamento relativamente às pré-
noções dos investigadores enquanto influenciados por uma visão e atitude
adultocêntricas do mundo, das interacções, de si próprios e dos outros. Esta
tendência inscreve-se no contexto da utilização de uma abordagem fenomenológica
no estudo das crianças, na linha de autores como Frances Waksler. Tendo por
princípio que em muitos aspectos importantes as concepções das crianças são
diferentes das dos adultos, esta autora avança a seguinte perspectiva:
Adultos e crianças têm versões diferentes da infância. Ser adulto é uma
perspectiva, um modo de estar no mundo que dá forma a uma atitude particular
perante as crianças, uma atitude que permite aos adultos lidar com as crianças
na vida quotidiana, mas que limita o conhecimento sociológico. ( ) suspendendo
as crenças adultas sobre as crianças, os sociólogos podem reivindicar as
crianças como plenos objectos do conhecimento sociológico. (Waksler, 1991: 66-
67)
A linha de investigação fenomenológica parte para o estudo da infância
destacando como factor fundamental aquilo que a autora chama a suspensão das
crenças adultas sobre as crianças(Waksler, 1991). É esta operação de
distanciamento entre os juízos de valor do adulto e o procedimento científico
do sociólogo que vai permitir uma base credível para o estudo da práxis ou da
experiência vivida pelas crianças.
O registo etnográfico das observações de carácter participante constitui-se
como técnica principal de pesquisa de grande relevância no domínio da
sociologia da infância. William Corsaro, entre outros, utiliza mesmo esta
técnica como procedimento predominante nos seus processos de investigação
empírica com crianças.
Na minha investigação etnográfica ( ) o meu objectivo é sempre descobrir as
perspectivas das crianças ( ). Para fazer isto, tive que ultrapassar a
tendência das crianças para me verem como um adulto típico. Um grande problema
é o tamanho físico; sou bastante maior que as crianças. Nos meus primeiros
trabalhos descobri que um método de trabalho de campo "reactivo" funciona
melhor para entrar no mundo das crianças. Em termos simples, eu entrava em
zonas de brincadeiras, sentava-me e esperava que as crianças reagissem a mim.
( ) Após algum tempo as crianças começam a pôr-me questões, põem-me a par das
suas actividades e definem-me gradualmente como um adulto atípico. O tamanho
continua a ser um factor, contudo as crianças chegam a ver-me como uma criança
grande, frequentemente referindo-se a mim como o "Bill grande". (Corsaro, 1997:
29)
No contexto dos trabalhos de campo com crianças, torna-se importante que o
investigador se preocupe com criar um espaço de interacção com os observáveis
que de algum modo seja distinto dos padrões comuns de relacionamento entre
adultos e crianças, já que estas recebem fortes influências das condutas
reguladoras socialmente instituídas. Escapando ao padrão típico de
relacionamento adultos-crianças, o investigador estimula o desenvolvimento de
um novo espaço de interacção, fracamente regulamentado, no qual ambas as partes
têm oportunidade de estabelecer normas de actuação e de produção de sentido
específicas da situação em causa.
As metodologias de pesquisa empírica com crianças: uma tarefa inacabada
O trabalho de campo com crianças, provavelmente como com qualquer outro grupo
de observáveis, implica uma vigilância, reflexão e revisão constantes sobre os
procedimentos de recolha de informações empíricas. Neste domínio é fundamental
que sejam tidas em atenção todas as pistas retiradas dos diversos momentos de
interacção com as crianças no decurso das recolhas sistemáticas de informações.
Devidamente enquadradas nos procedimentos metodológicos ditados pelo
conhecimento científico, algumas das opiniões das crianças acerca do modo como
se estabelecem os parâmetros das interacções com o investigador podem
constituir informações preciosas que conduzem a caminhos frutuosos na recolha
de informações empíricas.
Nesta área o investigador move-se num território mutante, já que as interacções
com os observáveis se desenvolvem contextualmente recebendo influências das
suas condições de desenvolvimento particulares, localizadas, específicas e, no
limite, únicas em cada momento.
Trata-se também de uma procura constante de adequação dos métodos de trabalho
de campo aos objectivos estabelecidos pelas coordenadas conceptuais da
pesquisa. A tradução de uma linguagem científica numa outra, acessível aos
contextos de produção de sentido das crianças, implica um processo complexo de
descodificação e de recodificação que apenas as aproximações sistemáticas
sucessivas aos mundos das crianças em contextos de recolha de informações
permitem entender e distinguir com alguma clareza.
Ao longo deste percurso de investigação académica tem persistido a consciência
permanente do carácter de tarefa inacabada que consiste em afinar e apurar as
metodologias de pesquisa empírica com crianças. Simultaneamente, toma forma a
convicção de que quanto mais longe for o investigador neste processo, mais
perto estará dos mundos e das identidades próprias das crianças.
Notas
1 Esta pesquisa teve início durante a licenciatura em sociologia no ISCTE, e
as suas continuidades têm permitido o cumprimento das sucessivas etapas do
percurso académico, encontrando-se actualmente em fase de desenvolvimento a
dissertação de doutoramento em Comunicação, Cultura e Desenvolvimento pelo
ISCTE. Deste modo, os projectos referidos no corpo deste texto equivalem a
momentos concretos do percurso académico que passo a indicar: Projecto Brincar:
trabalhos realizados durante a licenciatura em sociologia, no ano lectivo 1992/
93; Projecto Infância: trabalhos realizados para a dissertação de licenciatura
durante o ano lectivo 1993/94; Projecto Identidades:trabalhos realizados para a
dissertação de mestrado, 1997 e 1998; Projecto Protagonismo: trabalhos
realizados para a apresentação futura da dissertação de doutoramento e
iniciados em 1999.
2 A temática da entrevista-conversafoi alvo de referência numa comunicação
apresentada no IV Congresso Português de Sociologia, Coimbra, Abril de 2000,
embora aqui se encontre mais desenvolvida e com exemplos ilustrativos.
3 Questões relativas ao processo de impressão gráfica impedem que se
apresentem aqui exemplos dos trabalhos originais realizados pelas crianças no
contexto desta técnica. Remetem-se os leitores interessados para a seguinte
referência bibliográfica: Saramago, Sílvia, 1999, pp. 6-17, onde podem ser
encontrados diversos exemplos deste tipo de trabalhos.