Electro-sonoridades: da utilização de novas tecnologias na criação musical
"erudita" do pós-guerra
Introdução
Passava os olhos por um semanário musical de referência quando deparei com a
seguinte questão como tema de reflexão a concurso: "A tecnologia deve
condicionar a música ou é a música que deve condicionar a tecnologia?".1 A
forma como era sugerida a análise da relação música-tecnologia recordou-me as
palavras de Umberto Eco, quando este apresenta a figura do moralista cultural:
"o moralista cultural é aquele que, com indubitável inteligência,
individua o aparecimento de novos fenómenos éticos, sociológicos, estéticos.
Mas, uma vez feito isso, subtrai-se ao empenho mais perigoso, que é o de se pôr
a analisar estes fenómenos e procurar compreender-lhes as causas, os efeitos a
longo prazo, as particularidades de funcionamento'; e prefere então, com o
mesmo acume de inteligência, carimbá-los à luz de um suposto humanismo' e
relegá-los entre os produtos negativos de uma sociedade massificante e de
ficção científica" (Eco, 1991: 329).
Embora o moralismo cultural seja a solução mais fácil e difundida no nosso
universo musical (nomeadamente entre os seus sectores mais
"eruditos"), não é com certeza a mais conveniente para a compreensão
do fenómeno em causa. Tanto os meios técnicos de reprodução e de difusão
musical,2 como os equipamentos tecnológicos de produção de som,3 não vieram
inevitavelmenteprovocar a decadência da "arte musical", como
pensariam os representantes da Escola de Frankfurt há algumas décadas atrás
(Adorno, 1962; 1982).
Esta visão puristae apocalíptica da intervenção das novas tecnologias na música
não tem qualquer razão objectiva: "não há música na natureza: toda a
música é portanto sintética. É uma construção artificial do meio sonoro, um
espelho do ser humano onde este se projecta e deve reconhecer-se como em
qualquer outro elemento da cultura" (Moles, 1990: 189-190). Não esqueçamos
que, desde que temos conhecimento histórico da existência de produção musical,
em toda esta (com excepção da música vocal) a "máquina" teve uma
presença preponderante. O que são o violino, a flauta ou o piano (só para citar
alguns exemplos dos mais conhecidos) senão complexos instrumentos de produção
sonora "artificial", capazes de emitir sons apenas se forem manejados
por um "técnico"? Não resultaram, também esses instrumentos, de um
determinado tipo de conhecimento e desenvolvimento tecnológico?
Seja qual for a forma de arte, é sempre exercida sobre determinada matéria
física, exigindo a intervenção de determinado meio técnico. E a complexidade ou
a natureza do meio operacionalizado não obstaculariza necessariamente os
padrões criativos que presidem ao exercício da arte, simplesmente induzem-nos a
manifestar-se de maneiras diferentes. Basta ao músico conhecer profundamente as
possibilidades do seu equipamento sonoro, para o resultado da sua actividade
contar sempre com a medida da sua imaginação e criatividade, mesmo que opere
através de mediações electrónicas de maior ou menor complexidade. Estas não
serão, portanto, sinal de decadência da criação musical contemporânea. Pelo
contrário, poderão constituir uma boa possibilidade para a sua estimulação em
novas direcções.
Mas vejamos mais concretamente algumas das consequências verificadas no campo
musical por via das mutações tecnológicas que se aceleraram desde a II guerra
mundial, mantendo-nos ao nível dos seus efeitos no plano da produção musical da
dita "música erudita", deixando momentaneamente em suspenso os que se
fizeram sentir no plano da reprodução, difusão e consumo. O espaço da
"música erudita" será aqui tomado como um dos campos sociais com
relativa autonomia dentro do universo musical contemporâneo, no sentido
bourdiano do termo, cuja base institucional assenta "por um lado, (n)a
formação técnica e artística altamente especializada obtida em conservatórios,
escolas superiores e universidades, e, por outro lado, (n)uma vida musical'
que deve a sua existência aos artistas assim formados (compositores,
intérpretes) e a sistemas de mediação e recepção que vão deste os teatros e
salas de concertos aos meios de comunicação de massas, passando pelo disco,
pelos suportes videográficos, etc. " (Azevedo, 1998: 17-18).
Breve contextualização histórica
Depois de 1945, um número crescente de obras referenciadas no campo da
"música erudita" começaram a apresentar configurações formais e
sonoras radicalmente diferentes das que até então haviam sido desenvolvidas. Em
consequência de novos procedimentos, novas direcções de pesquisa e novas
referências teóricas, a designada música contemporânea ou nova música operou
profundos e sucessivos cortes com o passado, vivendo tensões que opunham os
velhos métodos aos resultantes da busca incessante de novas formatividades e
sonoridades. Nessa ruptura foram determinantes as inúmeras possibilidades
oferecidas por novas tecnologias que se desenvolviam, e que foram sendo
assimiladas pelo campo da "música erudita", tradicionalmente bastante
defensivo perante as ofensivas electrónicas.
De facto, uma das mais importantes alterações surgidas no âmbito dessas novas
correntes musicais do pós-guerra ocorreu ao nível dos seus meios de produção,
nomeadamente com a introdução de novos instrumentos eléctricos, electrónicos e/
ou electroacústicos. Estes instrumentos começaram por tentar corresponder às
novas necessidades expressivas que se impunham em termos de material sonoro,
perante o desgaste dos recursos sonoros permitidos pelos instrumentos musicais
até então disponíveis, cuja evolução praticamente havia estagnado desde há dois
séculos atrás: "nenhum outro desenvolvimento do período posterior a 1950
atraiu tantas atenções ou trouxe ao mundo da música um tão grande potencial de
importantes mutações estruturais como a utilização de sons electronicamente
produzidos ou manipulados" (Grout e Palisca, 1997: 745).
Este domínio começa a ser explorado pela música concretano início dos anos 50,
contra o totalitarismo dos postulados, convenções sonoras e formais da música
dita "clássica" (Bosseur e Bosseur, 1990: 125-134), e na tentativa de
emancipá-la das funções lúdicas e/ou de epígrafe pública de poder que em grande
parte lhe cabiam nas sociedades de corte, enquanto signo exterior de
distanciação e distinção social (Ferreira, 1995). Essa corrente continuou assim
o processo autopoiético de entropia artística que outras correntes musicais já
haviam iniciado, como o dodecafonismo ou o serialismo integral, utilizando como
matéria-prima múltiplos sinais sonoros naturais, ou seja, nascidos da vibração
de corpos materiais quotidianos comummente conotados com o ruído e, como tal,
até aí excluídos do domínio musical , em conjugação com os tradicionais sons
musicais (Carvalho, 1999: 124-135).
Em contraposição à nota convencional, surge então a noção de objecto sonoro,
assumido como "todo e qualquer sinal acústico susceptível de ser
manipulado, transformado, trabalhado" (Henriques, 1988: 386). Previamente
colhidos e gravados, o compositor manipula os objectos sonoros por meio de
operações electroacústicas tais como a inversão (leitura de uma fita ao
contrário), a transposição (leitura de uma fita a velocidade diferente da de
gravação), ou a filtragem (selecção de certas frequências em detrimento de
outras), sendo a composição laboriosa e lentamente realizada por processos de
colagem e montagem. Posteriormente, a obra é apresentada em suporte de fita
magnética, comportando uma série de objectos sonoros originais, reunidos sob o
ponto de vista estético do compositor.
Representando uma atitude inconformista perante o mundo real, o passo seguinte
consistiu em fazer substituir ou completar os sons de origem natural por sons
completamente gerados em estúdio, inaugurando-se em pleno a era da música
electrónica. Se os objectos sonoros da música concreta tinham sempre uma
origem, ainda que remota, no mundo material, já os sons da música electrónica
são inteiramente virtuais, produzidos electricamente por aparelhos diversos.
Uma das mais famosas entre as primeiras composições deste género, a Gesang der
Junglinge de Stockhausen,4 bem como muitas ulteriores obras deste compositor,
utilizam sons de ambas as proveniências electrónica e natural , avançando-se
o conceito de música electroacústicapara este tipo de situações.
A música electrónica começou por combinar, modificar e controlar, por processos
técnicos vários, o produto sonoro de geradores de frequências, posteriormente
gravado numa fita magnética. O compositor tinha de montar e misturar os vários
fragmentos gravados, incluindo ainda, por vezes, sons de outras proveniências.
O sintetizador, primeiro funcionando sob o sistema analógico e, a partir da
década de 70, sob o sistema digital, tornou esse processo bastante mais
simples. Com ele, o compositor consegue não apenas produzir, controlar e
reproduzir os efeitos sonoros através de um único instrumento e em tempo real,
como memorizar os percursos usados na sua obtenção, de modo a poderem ser
utilizados sempre que se deseje. Desde aí, a música electrónica passou a ser
acessível fora da hegemonia dos grandes estúdios electroacústicos.5
A informática tornou o processo ainda mais eficaz, na medida em que o
computadorfavoreceu um considerável alargamento do controlo do compositor sobre
o fenómeno sonoro. O compositor passou a conseguir controlar mais facilmente
todos os parâmetros do som a saber, a altura, a duração, a intensidadee o
timbre , características que passaram a ser digitalmente codificadas e
directamente traduzidas em música através de interfaces numérico-analógicas,
conversores dos números de código em tensões eléctricas. Ao mesmo tempo que
assegurou um controlo mais rigoroso sobre o som, o computador permitiu
igualmente um acréscimo da complexidade das fontes sonoras, na medida em que
possibilita compor ao nível do próprio som, conseguindo o tratamento específico
de cada uma das suas propriedades, sem o constrangimento do simbolismo
tradicional das notas e criando todo o tipo de sons intermediários (Henriques,
1988: 385-404).
Segundo as convenções do programa informático utilizado, o utilizador
especifica numericamente a estrutura física dos sons a sintetizar
digitalização , sendo a fórmula dada imediatamente reconvertida numa tensão
eléctrica audível. O principal problema da utilização deste tipo de programa
informático na composição musical consiste em dispor de uma descrição numérica
suficientemente complexa dos sons a sintetizar, ou seja, de uma retradução
simbólica do universo sonoro suficientemente sofisticada. Uma vez descrito, o
som pode ser sempre potencialmente reproduzido ou retrabalhado por um outro
utilizador. Não se trata, portanto, de um objecto musicalno sentido estético do
termo, mas mais de uma ferramenta cujas potencialidades sonoras poderão ser
constantemente retomadas por outros pares.
O que pensa da utilização crescente dos meios informáticos e electroacústicos
na música de hoje? Não me parece que, no referente à planificação de uma obra
e à organização do discurso, a composição electroacústica seja fundamentalmente
diferente da composição instrumental. No meu trabalho electroacústico tenho
tendência para contornar morosas operações de síntese pelo recurso à
manipulação de sons per si complexos (sons concretos ou sons sintéticos densos
submetidos a filtragens minuciosas). Para além da inegável vantagem de poderem
realizar estruturas humanamente impossíveis, as técnicas de electroacústica
oferecem grandes possibilidades de mediação entre mundos sonoros díspares.
[Virgílio Melo]
Possuo uma formação bastante dedicada no âmbito da informática musical, área
esta que tem sido extremamente importante na música do final deste século e que
continuará a sê-lo no futuro, pois põe à disposição do compositor ferramentas
que permitem inventar e edificar estruturas musicais de complexidades várias.
Ferramentas estas que, de um modo crescente, têm conduzido a um contacto mais
forte com os devaneios da imaginação, ao deixar o compositor aventurar-se e
manipular os lugares mais recônditos dos fenómenos acústicos, e levar esse
conhecimento para qualquer nível do discurso musical.
[Tomás Henriques]
Por outro lado, a utilização do computador permitiu ultrapassar dois dos
principais problemas associados à composição de música concreta. Além de um
mais fácil armazenamento e disponibilidade dos novos sons criados,
possibilitando a construção de verdadeiras sonotecas concentradas em memória
digital, o tempo de realização da obra passa a ser imediato. No caso do
compositor concreto, uma vez encontrado (na sua memória e depois nos arquivos
magnéticos) o objecto sonoro que pretendia utilizar, tinha ainda que o montar,
operação delicada e morosa, sendo menor o grau de determinação sobre a obra.
Ora, o progresso do sistema digital veio permitir efectuar esta operação em
tempo real, quer dizer, no momento em que é requerido e sintetizado o próprio
fenómeno sonoro, permitindo acelerar o processo criativo e prever o seu
resultado final.
Agora, há uma outra maneira de usar o computador e à qual eu por vezes recorro.
O facto de eu ser improvisador dá-me a possibilidade de ler a música mas também
de a inventar no mesmo momento em que toco. Faz parte da minha vida, essa
prática da improvisação. E eu, por vezes, uso o computador de uma maneira
relativamente banal, que é como gravador simplesmente. Ligo aquilo e improviso.
E depois deito fora tudo, menos um bocadinho que está lá, fantástico, e que me
vai interessar para não sei o quê
[António Pinho-Vargas)]
Por outro lado, o computador dá-me ainda a possibilidade de ouvir uma simulação
de como a música soará, através de imitações sintetizadas dos instrumentos
tradicionais o que, se bem que não deva confundir-se com o resultado real, me
parece extremamente vantajoso, especialmente do ponto de vista da audição de
longo alcance, ou seja, de tentar compreender qual o efeito da sucessão das
grandes secções da peça. É quase como ter uma orquestra privada com a qual se
fazem experiências, com a vantagem acrescida sobre o piano de não ter de me
preocupar com a execução.
[Carlos Fernandes)]
As consequências da introdução destas novas tecnologias na área musical foram
imensas e ainda hoje estão longe de ter sido completamente exploradas. A sua
aplicação implicou modificações não só a nível da difusão e das audiências,
como também, necessariamente, ao nível das próprias condições de produção e dos
aspectos formais desta última. Comecemos por averiguar esta última dimensão.
Efeitos formais na criação musical
O advento da tecnologia electrónica pôs à disposição novas e inúmeras
possibilidades operativas de criação, de manipulação e de concretização de
ideias musicais, abrindo fronteiras a caminhos sonoros até aí completamente
vedados. Com a exploração dos novos recursos tecnológicos, o compositor passou
a ter ao seu dispor uma plêiade de sons originais possíveis e musicalmente
utilizáveis que, até aí, não conseguiam ser (re)produzidos por quaisquer meios
"naturais". A experiência subversiva que possibilitou ao nível da
superação da tradição tonal e do sistema temperado igual,6 permitiu ao
compositor não apenas a descoberta de novos materiais sonoros, no plano
estritamente tímbrico, como também abrir novas perspectivas de articulação dos
sons, no plano melódico e harmónico.
Desde o século XVIII, toda a música ocidental limitava-se a utilizar uma série
de doze semitons equidistantes, que dividia de forma sistemática o espaço de
uma oitava, sistema de afinação que se convencionou chamar temperamento igual.7
Em ruptura com esta divisão do espectro sonoro, as novas tecnologias
electrónicas permitiram a concepção dos intervalos de som como um continuum,
uma série ininterrupta de sons, desde as mais baixas até às mais altas
frequências audíveis, sem distinguir notas separadas ou alturas fixas.8
Tal foi possível na medida em que as novas tecnologias aplicadas à música
permitiram ao compositor agir no interior do próprio som, sobre os elementos
físicos básicos que o constituem os harmónicos. Tal como afere Henri
Pousseur, a electrónica foi um meio de "realizar deliberadamente todas as
microestruturas acústicas que pudessem ser necessárias à composição de uma obra
musical de tipo novo" (1970: 55). Por consequência, o equipamento
electrónico apresentou-se como um meio de produzir uma gama alargada de sons
que não imitavam os da natureza ou dos instrumentos tradicionais, permitindo a
exploração de todas as relações possíveis entre as diferentes propriedades do
material sonoro, o que era inimaginável na execução instrumental tradicional
devido às suas limitações físicas: "o músico de música electrónica quer
criar os seus próprios sons", declara o compositor Luciano Berio,
"nada de microfones, mas sim geradores de sons ou ruídos, filtros,
moduladores e aparelhos de controlo que lhe permitam examinar um sinal sonoro
na sua estrutura física" (1983: 68).
Nesta perspectiva, com a adopção das novas tecnologias electrónicas consegue-
se, a um tempo, tirar partido da divisão do espectro sonoro em intervalos
inferiores ao meio-tom e escapar às convencionais relações que os intervalos no
sistema temperado mantêm entre si. Por outro lado, esses novos instrumentos
permitem também ao compositor fabricar directamente as frequências de onda que
compõem intrinsecamente a estrutura do som para a produção de novos timbres.
No que respeita a obras mais recentes Lichtung I e II, Omina Mutantur, Nihil
Interire Musicus constato que integra na sua linguagem intervalos inferiores
ao meio-tom. A que se deve a integração deste tipo de intervalos nesta fase do
seu pensamento e da sua obra? Para mim, a utilização de tais intervalos de
modo nenhum coloca em causa a minha aceitação do "temperamento" e é
importante clarificar aqui este conceito: habitualmente, entende-se por
"temperamento" a divisão equitativa de uma unidade (a oitava) em 12
partes. Eu não vejo qualquer utilidade em dividir essa unidade, por exemplo, em
24, criando assim 24 quartos de tom por oitava, com o fim de substituir essa
divisão à que temos actualmente. O pensamento de base mantém-se e uma tal
divisão, tomada como novo temperamento, não conduz a nada! O que realmente me
interessa cada vez mais é uma concepção onde as relações harmónicas transcendam
o quadro do temperamento, mas não com o fim de o substituir por qualquer outro.
Cada uma das obras que citou, pressupõe uma abordagem diversa dessa
problemática.
No caso de Lichtung I e II, existem entidades harmónicas "temperadas"
que são tocadas pelos instrumentos e que, pela intervenção da electrónica em
"tempo real", irão ser ouvidas como objectos não
"temperados", como extensões ou contracções aditivas ou logarítmicas
das suas formas originais. Não são quartos de tom: são relações frequenciais
absolutas, ou seja, acordes cujas imagens são projectadas num âmbito mais amplo
ou mais reduzido mantendo as suas proporções intervalares de base. Assim, não
há na partitura instrumental qualquer nota não temperada: toda a distorção do
temperamento é operada através do tratamento electrónico em tempo real. No
entanto esse tipo de relação não tem por objectivo um hipotético reconhecimento
auditivo da imagem em relação ao original.
[Emmanuel Nunes)]
As novas tecnologias electrónicas adaptadas à música apresentam-se assim como
opção estética provocadora e estimulante no contexto musical do pós-guerra,
onde desempenham uma função libertadora sem par na história da música
ocidental. No espaço social da produção, põem em causa a noção de
ordemdesenvolvida pelo sistema temperado, e democratizam a harmonia ao
transgredir tabus que pesavam sobre a relação de altura dos sons. No espaço
social do consumo, libertam o ouvido de hábitos melódicos, harmónicos e
tímbricos adquiridos, e demonstram a riqueza infinita do mundo sonoro que a
tradição e a convenção, assim como o comodismo e o preconceito, levavam a
ignorar ou até mesmo a rejeitar. Alargando os limites da sensibilidade auditiva
"comum", libertaram as percepções sonoras de um determinado gosto
musical que, ainda que arbitrário, era socialmente reconhecido como o Belo, o
Verdadeiro, mas apenas o legítimo.
A utilização de novas tecnologias no campo musical "erudito" produziu
ainda importantes efeitos a nível do código musical. A operação de composição
consiste em manipular os elementos de um dado repertório simbólico, constituído
tanto pelas notas da gama da música convencional, como, actualmente, pelos
objectos sonoros experimentalmente criados. Na música tradicional esse
repertório corresponde a um conjunto de sons historicamente classificados e
convencionados segundo o sistema temperado normal, supostamente universal. O
sistema temperado normal é um sistema fechado, onde os intervalos representam
diferenças de frequência acústica dos sons que se constituem segundo relações
orgânicas previsíveis e institucionalmente codificadas. A sua escrita, por sua
vez, assumiu formas e estruturas mais ou menos estabilizadas e cristalizadas no
tempo, utilizando um sistema de notação e uma lógica de composição de certa
forma dogmáticos, onde se pretende "tudo escrever" e guiar o mais
possível a interpretação.
No caso da composição experimental, onde são utilizados novos sons, inauditos
no sentido literal do termo, houve a necessidade de estabelecer novos sistemas
simbólicos que permitissem descrever graficamente os sons, novas tipologias que
representassem discursivamente as referências desse universo sonoro. O
surgimento da electroacústica proporcionou assim a inauguração de uma nova
linguagem musical, ou melhor, criou as condições para a (re)emergência da
pluralidade das linguagens musicais. Ao admitir a possibilidade de novas
materialidades sonoras que ultrapassavam os limites dos sons
"rigorosos" da notação convencional, pôs-se o problema de se ter que
criar novos sistemas de notação que previssem tais sons: "o grande
problema que surgiu foi afinal o de saber como escrever um som que não é som,
ou seja, que, segundo a tradição, é ruído e que, portanto, não se encontra
codificado (na realidade, ele está codificado do ponto de vista da física e da
acústica); pois trata-se afinal sempre de conceber elementos de um código e uma
chave de descodificação para cada som" (Lopes, 1990: 177).
Devido a alguma disfunção léxico-musical criei compensações semiográficas
extravagantes e proto-linguísticas: notação gráfica, text-komposition, jogo e
acção, vocabulários indeterministas, protocolos com autocolantes coloridos,
tablaturas mistas situações pré-codificadas de modo empirista para a
improvisação, organigramas, estratégias distributivas, mnemónicas, preparação e
tráfico, desvios, amostras, simulacros, "denotum" sinestésico (som,
cor, luz, música ), promissórias prontezas, prognósticas promorfoses.
[Jorge Lima Barreto]
Depois de definidos os métodos a utilizar na concepção da composição, inicio um
estudo sobre o tipo de notação que melhor se integre no espírito da obra: a
notação tradicional, se a peça não contiver técnicas ou acções que impeçam o
uso da simbologia convencional; notações alternativas, como sejam musicografias
em papel milimétrico, a notação espacial, notações textuais ou pictográficas,
se a composição o exigir, novas maneiras de conceber a execução musical; ou uma
notação mista que contenha traços da notação convencional misturados com novos
signos inventados propositadamente para a obra, ou já utilizados em obras
anteriores por outros compositores. A criação de novos métodos e técnicas de
compor e interpretar levou à criação de novos símbolos, que pudessem descrever
os gestos e novos timbres daí resultantes.
[Víctor Rua]
Ao propor-se sistemas de relações entre as notas radicalmente diferentes dos
tradicionais, as obras deixaram de caber no formato antigo da partitura e
passaram a pedir novos grafismos para a tradução mais clara dos efeitos
expressivos e dos sons pretendidos. A posterior supressão do pentagrama e o
infinito manancial criativo potenciado numa escrita livre e mais plástica,
consubstanciou-se num processo que assumiu um carácter de deriva, no sentido
barthesiano do termo (Barthes, 1987: 28), caminhando para uma situação de quase
total abertura do tecido discursivo ainda inexplorado a que as novas
materialidades sonoras conduziram.
O alargamento do espaço dos possíveissonoros e das fronteiras do campo musical
Perante o cenário atrás traçado, verifica-se que à introdução de novas
tecnologias no campo da música contemporânea "erudita", sucedeu um
significativo alargamento do espaço dos possíveis sonoros.9No entanto, essa
abertura no espaço dos possíveis sonoros não significou total indeterminação e
infinitas possibilidades nas formas e sonoridades musicais, ou ainda total
liberdade no acto de criação. O inventário de possibilidades disponíveis, não
esqueçamos, será sempre condicionado aos avanços tecnológicos existentes.
A liberdade absoluta, exaltada pelo mito romântico do artista pleno dos seus
poderes criativos e ontologicamente legitimados, foi uma das principais aporias
desmentidas no percurso teórico da sociologia da arte. Quando entra no jogo de
um determinado campo de produção cultural, o artista joga sempre com o
conhecimento que tem dos códigos técnicos e expressivosadmitidos como legítimos
nesse mesmo campo. Simultaneamente, na gestão da sua carreira, tenta descobrir
e manobrar o universo finito das liberdades condicionadasproposto no campo, ou
seja, a margem flexível de potencialidades objectivas, problemas a resolver,
possibilidades estilísticas ou temáticas a explorar, contradições a superar, ou
até rupturas revolucionárias a operar no campo. Ora, com a aplicação das novas
tecnologias, a experiência e concretização desta margem utópica de criatividade
é mais facilitada.
A criatividade (não) é (mais do que) um impulso em direcção ao utópico. Na
ausência de um pressentimento da utopia, a criatividade não emerge, ou torna-se
estéril. ( ) No entanto, a utopia, pondo imediatamente de lado possíveis mal-
entendidos, jamais se confundirá com o primitivismo mais ou menos magalómano e
extravagante de uma fantasia puramente arbitrária. Alguns aspectos
concomitantes com a ausência de um forte núcleo de utopia na impulsão criadora:
( ) Perigo das opções estéticas que resultam de apreciações fundadas apenas
sobre um "gosto pessoal" duvidoso sem relação contextual com as
dimensões específicas à obra, que transcendem o indivíduo ele mesmo, asfixiado
pelo vazio expressivo dos lugares-comuns estéticos da época e do meio em causa.
[João Rafael]
Esta atitude é, na maior parte dos casos, impossível de concretizar devido à
falta de meios com que o compositor se confronta. A utopia passa então a ser
por vezes só um imaginário e uma expectativa, na medida em que a evolução da
escrita instrumental só poderá atingir uma técnica extremamente minuciosa se
essa minuciosidade passar pela compreensão profunda dos limites e das
diferentes fronteiras de cada uma das técnicas instrumentais. Idealmente o
compositor deveria poder trabalhar a composição com os instrumentos, para então
poder escrever. Normalmente o compositor só aprende depois da peça estar
escrita. Num outro plano, a necessidade que o compositor tem para desenvolver
uma técnica de composição ao nível do timbre extra-instrumental, passa pela
possibilidade de pesquisar através de instrumentos complexos e inacessíveis à
propriedade particular.
[Paulo Ferreira]
Para que as audácias da investigação artística de natureza vanguardista tenham
alguma probabilidade de ser concebidas e reconhecidas no campo, é portanto
preciso que existam em estado potencial no interior do sistema dos possíveis já
realizados, enquanto lacunas estruturais que esperam ser preenchidas, enquanto
direcções potenciais de desenvolvimento ou vias possíveis de investigação. Mais
ainda, é preciso que tenham possibilidade de ser recebidas, aceites e
consensualmente reconhecidas como objecto estético, pelo menos dentro de um
determinado círculo de iniciados competentes, formado por indivíduos e
instituições com sistemas de disposições e valorações homólogos aos do
compositor que põe a sua obra em praça pública.10
É portanto um trabalho conduzido no-fio-da-navalha, que envolve um circuito de
legitimações recíprocas e que, no caso da utilização das novas tecnologias
electrónicas, extravasou, ou melhor, tende a redefinir as próprias fronteiras
tradicionais do campo da música erudita. Exemplo ilustrativo de alguma diluição
das fronteiras entre universos musiciais diferentes através da utilização de
novas tecnologias é o facto de a sétima edição do Festival Sónar um festival
anual que ocorre em Barcelona dedicado à apresentação e celebração das actuais
"novas tendências de música de dança", onde a criação e produção
electrónica é dominante ter aberto com um concerto ao vivo de Stokchausen. A
recepção deste por parte do público pautou-se por uma atitude de
"curiosidade" e "disponibilidade": "a atitude foi de
completa abertura. Nada de admirar no contexto de um festival que para além da
sua dimensão lúdica tem sabido fazer um esforço pedagógico, no sentido de
apresentar propostas estimulantes que pedem da parte do público alguma
disponibilidade. Não que aquilo que Stockhausen fez seja particularmente
revolucionário, mas porque perante uma assistência jovem que cresceu a ouvir as
linguagens da música tecno ou house conseguiu captar-lhes a atenção sem nenhum
esforço."11
À redefinição das fronteiras do campo da música "erudita"
contemporânea por via da utilização de novas tecnologias na produção sonora
também veio a proceder-se com a introdução de novas referências simbólicas e de
novos actores sociais. Com efeito, o tratamento electrónico dos materiais
sonoros ofereceu uma alternativa à tentação modernista dos diversos
revivalismos, e confortou o criador na sua pretensão ao papel e ao estatuto de
artista total músico, engenheiro, actor político, expert em
interdisciplinaridade, actor da reconciliação perdida no romantismo da arte com
a ciência, da invenção estética com a descoberta científico-técnica, da
singularidade do acto criador com a generalidade dos conhecimentos tecnológicos
disponíveis.
No sincretismoque guia esta extensão indefinida da função demiúrgica do
compositor, confluíram múltiplas referências teóricas e práticas,
tradicionalmente exteriores ao campo musical "clássico". Ao
repertório da intelectualização do acto criador que tradicionalmente recorria
ao vocabulário filosófico, juntou-se todo um arsenal retórico de inputs das
ciências e técnicas (Menger, 1986a: 247-260). Num contexto de múltiplos
intercâmbios disciplinares, ou melhor, interdisciplinares, ao mesmo tempo que
se alargou o domínio da criação reputada de "erudição", alargaram-se
também asfronteiras do mundo das artes (Becker, 1982; Santos, 1994). Neste
âmbito, a adopção de novas tecnologias no campo da música "erudita"
exerceu importantes efeitos sobre as hierarquias que estruturavam os seus
sectores mais "clássicos". As antigas demarcações vieram a perder a
sua operacionalidade e as novas passaram a ser tão diversificadas, subtis e
provisórias que ainda se encontram a ser empiricamente detectadas.
As novas competências interdisciplinares do compositor
Como tivemos oportunidade de aludir, a utilização de tecnologias electrónicas
no campo da música "erudita" contemporânea repercutiu-se na condição
social dos seus protagonistas, fazendo introduzir uma nova figura de músico/
compositor. Passou a exigir-lhe, em primeira instância, uma formação integral
num conjunto de competências específicas que não se reduzem ao talento, nem ao
capital escolar institucionalizado, baseado no conjunto de regras, de técnicas
e de instrumentos tradicionalmente produzidos e reproduzidos pelas instituições
tradicionais (como os conservatórios).12
A adopção dos meios electrónicos pelo compositor implicou, portanto, a
redefinição das suas competências específicas, que passaram a incorporar uma
familiarização sistemática com as técnicas mais avançadas de análise e síntese
sonoras e de composição. É neste sentido que Menger (1986a: 252) fala da
invenção de uma competência interdisciplinar ou multidisciplinar do compositor,
que compreende uma dupla formação: estética, em termos musicais, e científico-
tecnológica, em termos de conhecimentos particulares de engenharia e de
informática.
Sem pensar só na música quais são as tuas (outras) referências culturais,
pictóricas, científicas? Por formação, as minhas referências são sobretudo
científicas. Naturalmente tendo a colocar os problemas, ou a racionalizá-los,
de uma forma mais matemática e/ou física (ou paramatemática/parafísica) dado
que provenho da área da engenharia electrónica e dos computadores. Também por
formação, outra das minhas grandes referências é o cinema. Para além de o meu
pai ser realizador de cinema, o que fez com que eu próprio acompanhasse muitas
filmagens e sobretudo montagem de filmes, eu próprio trabalhei um pouco na área
do som. Por outro lado, também por vezes, mantenho algumas referências
pictóricas, literárias e filosóficas, talvez aqui de uma forma mais amadora e
desordenada.
[António de Sousa Dias]
Ainda falando na minha música, parece-me que a minha passagem pela Faculdade de
Ciências foi determinante para a maneira como vejo a música. Tive que estudar
diversas disciplinas científicas, que para um músico serão bastante afastadas
da sua área de conhecimentos: matemática, física, geologia, entre tantas
outras.
[Pedro Rocha]
Segundo os resultados da pesquisa efectuada por Menger (1986a) no campo da
música "erudita" contemporânea em França, os criadores de música
electroacústica são, de facto, maioritariamente engenheiros ou técnicos de
informática, alunos de música com formação específica em áreas afins, assim
como autodidactas ou amadores de música. Por outro lado, é uma actividade
artística que tende a resultar de uma investigação autoproposta e
autoproduzida, e não de uma praxisregulada pelas academias tradicionais mas por
novas instituições que são inauguradas para o efeito.13
Nasce, então, a figura do criador-investigador, conhecedor de matemática e de
física, mas sem ficar necessariamente reduzido à categoria de engenheiro, como
insinuam certos moralistas culturais. Aparentemente, a música contemporânea
parece não já exigir o domínio técnico de um instrumento, ou dos processos de
composição baseados na harmonia e no contraponto tradicionais, ou nas normas de
qualquer academia. Segundo os detractores da introdução de novas tecnologias no
campo da composição musical "erudita", com a sua utilização teria
deixado de ser necessário que o compositor fosse competente no domínio de uma
linguagem preexistente e da sua sintaxe particular (ou, como se diz
vulgarmente, que ele "saiba música"). Bastaria apenas que dominasse
os novos e complexos instrumentos da tecnologia electrónica.
Mas, de facto, não basta. Por um lado, porque com todo o equipamento
electrónico hoje disponível, e desde que movido por uma lógica
experimentalista, o compositor não delega necessariamente à "máquina"
as suas responsabilidades criativas. Pelo contrário, encontra-as potenciadas na
medida em que vê o seu espírito inventivo confrontado e estimulado por novos
caminhos sonoros, isto, claro, se não enveredar pela solução da "receita
fácil", característica do bricolage empiricista das práticas amadorísticas
da música electrónica.14
Na minha perspectiva entendo a informática musical e o computador como um
conceito/instrumento, apenas mais um, mas que é provido de uma plasticidade
jamais atingida, espécie de permanente mutante que pode ser todos os
instrumentos e nenhum, detentor de todas as possibilidades. Mas as
possibilidades serão apenas aquelas que lhe quisermos atribuir Somos nós que o
imaginamos e que o construímos adaptado às nossas necessidades específicas.
Contudo, para mim a composição não se faz por intermédio de nenhum instrumento
ou ferramenta, seja ela piano, percussão ou computador. Todos eles quando
intervêm (se é que chegam a intervir), limitam-se a cumprir funções pontuais,
cálculos ou confirmação de ideias musicais. A complexidade de certos processos
de criação não se formaliza facilmente!
[Miguel Azguime]
Durante uma entrevista efectuada numa rádio, e abordando o chato e estúpido
assunto: música acústica vs. música electroacústica, em que música
acústica=sons humanizados, e a música electrónica=inumanização dos sons, alguém
disse a determinada altura da conversa: "Até um cavalo consegue compor
música num computador ". Esta frase deu-me a ideia de criar uma série de
composições produzidas no computador. O objectivo não era, claro, compor música
como um cavalo faria, mas produzir uma música usando aquilo a que chamei:
"programas/módulos/self service", comercialmente ao dispor de
qualquer músico consumidor. Trabalhando com estes programas vi-me confrontado
com duas possibilidades: uma era a possibilidade de apresentar uma espécie de
música ready made, onde o computador ocuparia simultaneamente a posição de
intérprete e de compositor; ou então, podia fazer uma música baseada nesses
mesmos programas comerciais, mas subvertê-los numa espécie de alterações-
terroristas-em-tempo-real. Enquanto que na primeira possibilidade eu agiria
quase que como um "mero espectador", com a responsabilidade de
assinar o meu nome nesta espécie de ready made music, na segunda possibilidade
eu funcionaria como um participante-espectador, controlando de uma maneira
"imprópria" e "errática" o caminho e a evolução dos
programas, conduzindo-os dessa forma sobre a minha supervisão.
[Víctor Rua]
Por outro lado, para que a sua obra seja reconhecida pelos gatekeepers
credenciados pelo campo (críticos, programadores, pares, etc.), é necessário
que o compositor seja capaz de conceber uma proposta conceptualmente credível e
de criar um texto musical que suscite uma interpretação. Como sublinha José
Lopes, "o modelo pós-medieval (renascentista) do artista-intelectual tem
aqui toda a validade: ele deve exercer uma actividade paralela de teorização e
de fixação de uma constelação de conceitos que enquadrem a sua obra e que dêem
corpo ao seu projecto artístico" (1990: 177). Ou seja, o actual pacto
existente entre criação e novas tecnologias passa não apenas pela dotação do
compositor de uma competência técnico-musical, mas também pela sua capacidade
de gerar linguagens que aludam e se deixem penetrar por poéticas de raiz
extramusical, no sentido adoptado por Umberto Eco (1965: 10): "não um
sistema de regras rigorosas ( ), mas como programa operatório a que o artista
em dado momento se propõe; obra a fazer, tal como o artista, explícita ou
implicitamente, a concebe".
Nesta perspectiva, a acusação muitas vezes feita à música electroacústica de
estar necessariamente dominada engenheiristicamente pela máquina e de ter
perdido toda a sua dimensão humana e criativa assume o estatuto de ilusão
dogmática. Tal como perspicazmente nos refere Eco (1991: 341), "a verdade
é que as condições da invenção e da criação são modificadas, não anuladas, pelo
advento de novas técnicas. Aquilo que é modificado é o panorama psicológico e
sociológico da produção e da audição, são as características estilísticas do
produto".
Com ou sem instrumento tecnológico, a finalidade do trabalho do compositor
continua a mesma criar novos universos sonoros. O que as obras produzidas com
recurso a novas tecnologias comprometem não são os conteúdos de significação
estética diversamente atribuídos, mas a própria definição de obra de arte e de
processo criativo. É o núcleo tradicionalmente intocável da arte que se
encontra comprometido, na medida em que as imagens socialmente (re)produzidas
do artista e da obra radicadas na autenticidade do gesto, no mistério do
processo de criação, no isolamento do artista no meio das determinações causais
exteriores acabam por ser prejudicadas pelo processo de criação que as novas
tecnologias reclamam.
Considero que o acto de criação na sua essência, e tal como eu o concebo, não
existe por si só, mas é resultado de uma revelação que se processa através do
nosso Espírito para a nossa Mente, e cujas origens não podemos determinar. Para
o ateu, talvez ele seja considerado como o resultado de toda uma vivência em
termos musicais, todo o conhecimento e compreensão de um passado e presente, ou
mesmo de um reflexo ou síntese da sua experiência humanamente vivida.
Para o crente, essa revelação vem de Deus. No entanto, há uma característica
comum a ambos os casos, que é o facto que o ego do criador é de certa forma
destruído por essa revelação, tendo de se submeter a ela.
A natureza e essência dessa revelação é de certa forma efémera. Ela pode vir
durante um sonho, um momento de angústia ou alegria, um momento de reflexão,
etc., e pode consistir num som, um gesto musical, um timbre, uma frase, etc.
Partindo daí, o criador tem que dar corpo a esse momento, construindo ao redor
dele todo um complexo retórico-musical, que justificam e fortalecem a sua
essência.
Assim, cada uma das partes da minha obra musical tenta transmitir o carácter
dramático que pessoalmente (e talvez intuitivamente) lhe associei. Tudo o resto
(melodias, harmonias, tratamento tímbrico e espacial, sonoridades, etc.) deriva
daí, e não pode, nem deve, ser descrito, a não ser pelo próprio resultado
sonoro, que substitui todas as possíveis palavras.
[João Pedro Oliveira]
Uma nova divisão do trabalho musical
A mobilização de tecnologias sofisticadas e a aproximação entre o compositor e
o engenheiro põem permanentemente em causa a visão demiúrgica do criador
isolado, na medida em que instituem uma nova divisão do trabalho musical, que
exige a permanente colaboração de indivíduos fortemente qualificados do ponto
de vista científico-tecnológico, isto para além de a produção dos instrumentos
utilizados depender, em grande parte, de produção exógena ao campo da música.
Com efeito, os pioneiros inventaram e desenvolveram a criação electroacústica
combinando técnicas de registo, transformação e montagem sonoras directamente
provenientes do trabalho regular dos engenheiros e técnicos de som do cinema,
da rádio ou da indústria do disco.
As novas tecnologias acabam por fazer parte das mediações concretas através das
quais a criação mais claramente mostra as propriedades de acção colectiva,
colocando o compositor no papel de membro paritário de um conjunto mais ou
menos estruturado de actores que cooperam entre si. Se até aos anos 60 o
material sonoro produzido no campo da música "erudita" advinha
sobretudo da investigação individual do compositor, a partir do final dos anos
70, princípio dos anos 80, o "diálogo criativo" entre compositor,
técnicos e intérpretes tornou-se cada vez mais frequente: "o compositor
abandonou o isolamento da sua casa para trabalhar com técnicos e intérpretes no
estúdio electrónico" (Carvalho, 1999: 132). A sofisticação dos diversos
aparelhos empregues e a importância crescente acordada às técnicas de
transformação e produção electrónica dos sons, vieram alterar a natureza das
relações entre o compositor e os seus cooperantes, aumentando efectivamente a
integração da criação num processo de trabalho colectivo: "os estúdios
põem à disposição dos compositores um complexo de aparelhos electrónicos mais
ou menos extenso, incentivando encontros entre investigadores de horizontes
diversos e assumindo a responsabilidade da manutenção de grupos de
pesquisa" (Bosseur e Bosseur, 1990: 217).
A disposição para a cooperação não é, porém, simplesmente ditada por um
diferencial conjuntural entre a formação do músico e o esoterismo dos
conhecimentos requisitados pelo emprego de tecnologias complexas, mas também
porque o nível de exigência de cada um dos pares na busca de inovação e
novidade reforça o dever de colaboração e de especialização à medida que se
expande o espaço dos possíveis sonoros. Neste contexto, ao contrário do que
acontece no sistema de acção colectiva tradicional, onde os agentes de criação
e execução aparecem devidamente hierarquizados e segmentados, no sector da
experimentação musical que recorre às novas tecnologias é valorizada a
solidariedade entre os vários dispositivos de produção.
Segundo Menger (1986a), nos centros onde domina o modo de produção
experimental, em geral, a especialização de tarefas é muito sumária: os músicos
são tendencialmente polivalentese acumulam papéis tanto quanto os seus limites
e ambições pessoais e institucionais impõem. No interior das instituições mais
consagradas, as relações que se estabelecem entre pares variam segundo a
capacidade e o interesse de cada um em fazer evoluir a relação para uma
colaboração total. As probabilidades de dessimetria nas relações de cooperação
variam com o grau de liberdade de cada um dos cooperantes na instituição,
variável segundo a sua competência e reputação.
No caso português essa tendência para a cooperação criativa paritária é tanto
maior quanto se verifica a dificuldade de encontrar intérpretes ou formações
mais alargadas disponíveis para enfrentar os novos desafios que a música
"erudita" contemporânea põe, para os quais as principais instituições
de socialização escolar (conservatórios) não os preparam técnica e
cognitivamente. A resistência partilhada por parte de instituições, orquestras
e intérpretes mais consagrados fez com que muitos compositores deste segmento
musical tenham optado pela formação de grupos privados, recrutando os membros
nas suas redes de sociabilidade e afinidade estética mais próximas, de maneira
a conseguirem fazer tocar e ouvir publicamente as suas obras.15
Foi dentro desse período de vivências musicais extraordinárias que Peixinho
pediu a cada um de nós, membros do Grupo de Música Contemporânea, que
escrevêssemos um trecho musical inventado por nós, para ele ligar, à maneira de
Stockhausen em Musik fur eine Hause, constituindo assim a In-com-sub-sequência,
o que foi levado a efeito e executado em concertos dessa altura, nomeadamente
em Espanha. Estávamos em 1975, se não me engano. Foi a década das nossas
grandes experiências no grupo, as imporvisações colectivas, em concertos ou
acompanhando filmes mudos, action paitings com pintores, etc.
[Clotilde Rosa]
( ) tinha outra faceta que me incomodava sobremaneira: era o facto de a nossa
música raramente passar do papel, da sua forma escrita, o que eu considero não
dever ser mais do que um meio para a sua realização audível, e nunca um fim em
si. Assim, juntamente com outros colegas, compositores e intérpretes, decidimos
formar um pequeno conjunto de câmara que se dedicasse não só a executar as
nossas obras como a apresentá-las a público. ( ) (Quando componho ) Quase
sempre tenho em mente os intérpretes que irão estrear determinada obra, o que
por vezes me leva a escrever para combinações instrumentais que não são as que
eu escolheria naquele momento, isto pelo facto de eu atribuir uma grande
importância ao facto de a obra ser efectivamente realizada assim que acaba de
ser escrita. Por outro lado, sempre que possível, e durante o processo de
composição, experimento e discuto com esses intérpretes certas passagens que
eles, melhor que ninguém, me podem ajudar a escrever correctamente, modificar,
ou até eliminar.
[Carlos Fernandes]
No fundo, são relações que se aparentam "ao tipo de sociaçãocaracterística
da obra comparticipada nas artes colectivas'. E sociação porque, ao invés do
fusionismo implícito na ideia de associação, aqui a obra resulta em epicentro
de uma correlação de forças criativas pautada pela solidariedade e
concorrência. Ou efeito de confluência de desempenhos que, segundo a hierarquia
dos comandos individuais, implicitamenterepresentam sempre várias assinaturas'
na realização, mesmo se explicitamenteseja uma figura focal' a reclamar para
si o exclusivo da autoria. Da singularidade pessoal junto de criadores em
artes individuais', passamos então à co-singularização interactiva nas artes
colectivas'" (Conde, 1994: 174). O que remete para a noção de criador
enquanto co-participante presente num quadro de interacção variavelmente
complexo consoante a sobreposição de elementos e funções onde cada elemento,
pautado pela sua própria ordem de relevâncias estéticas (entretanto aferida
pelo projecto comum e este comandado pelas posições de "chefia"),
disputa a autoria nos limites consentidos pela dos outros.
A segmentação do campo musical e a utilização das NT como estratégia de
inovação e de subversão
A progressiva adopção de novas tecnologias (NT) no espaço da produção musical
"erudita" contemporânea não aconteceu sem celeuma, acalentando
tomadas de posição apocalípticasou integradas, recorrendo à terminologia de Eco
(1964, 1991), consoante os lugares ocupados no campo pelos compositores. As
novas tecnologias funcionaram, pois, como instrumento de defesa e de ataque nas
lutas internas daquele espaço social, designadamente nas que opõem os
defensores de uma suposta "arte pura" aos utilizadores de recursos
tecnológicos. São lutas que tomam a forma de conflitos de definição, onde cada
segmento visa impor os limites do campo mais favoráveis aos seus próprios
interesses, ou seja, a definição das condições da "verdadeira"
pertença ao campo.
Será que a "obra musical" pressupõe forçosamente uma transcendência
de meios técnicos e formas radicais de expressão? Não será já tempo de advertir
os mais incautos que os poderosos e eficazes meios técnicos derivados do
serialismo integral de origem matemática podem substituir impunemente o talento
musical? Não será triste constatar, por consequência, que a segunda metade dos
século XX criou a monstruosidade de haver compositores que nunca teriam
hipótese de o ser noutra época histórica qualquer? Não será forçoso afirmarmos
que os grandes mestres dos anos 50 e 60 se contam pelos dedos? Que o Boulez e o
Emmanuel Nunes, por exemplo, sejam cabeças luminares cheias de significado na
história, mas que a sua clonagem estética cria produtos tão monstruosos como
aquela ovelha escocesa? Não será já tempo de esquecermos os fundamentalismos
ascético-musicais e de libertarmos o acto criador dos paramentos solenes e
sacrossantos da "teologia da originalidade"? Se esta problemática que
lanço se enquadrasse numa atitude pós-moderna afianço-te, Sérgio, que era isso
que eu seria: um compositor pós-moderno.
[Eurico Carrapatoso]
Aceitando que muito compositores persistam numa perspectiva unicamente
instrumental, não compreendo o discurso apaixonadamente reaccionário de outros
que, relutantes (provavelmente em agonia), desdenham e humilham factos
adquiridos. Não consigo conceber a minha criação sem meios de simulação, porque
sem eles o meu trabalho não poderia nunca objectivar-se. Pessoalmente, creio
que a evolução que se verificou desde os finais dos anos 50 até aos finais dos
anos 60 ficou a dever-se ao facto da introdução de novos instrumentos que
permitiram, assim, chegar a uma nova música. Estes instrumentos, cada vez mais
indiscutíveis e indiscutivelmente importantes, continuam a evoluir e a permitir
que a própria música (ritmicamente, timbricamente) evolua e se encaminhe para
uma determinada compreensão global. Estes mesmos meios permitiram adequar e
fazer evoluir as técnicas instrumentais.
[Paulo Ferreira]
Assim, quando os mais ortodoxos, os defensores da definição mais purista do que
na música é arte o que corresponde objectivamente a uma mais estreita noção
de pertença ao campo , dizem acerca das obras de determinado grupo de
compositores mais iconoclastas que não são realmente arte, eles estão a recusar
a estes últimos a existência enquanto artistas ao mesmo tempo que,
objectivamente, tentam conservar no campo a legitimidade da sua posição e do
ponto de vista que a sustenta (Bourdieu, 1996: 255-256). Para os mais
heterodoxos, o recurso às tecnologias funciona como estratégia de inovaçãona
sua vontade tenaz de originalidade estética e, simultaneamente, como estratégia
de subversãoda doxaimplícita ao campo e de imposição do seu ponto de vista como
tão ou mais legítimo que o dos seus antecedentes.
Esta oposição inspira toda uma retórica que a materializa discursivamente:
contra os compositores-investigadores, os primeiros acusam-nos de
"obsessão tecnicista" nas suas sofisticações incessantes da síntese
sonora, argumentando que estas degeneram num culto estéril de acontecimentos
sonoros fragmentados, sensacionalistas e insignificantes ruídos. Alguns dos
compositores mais reputados, ainda que tendam a servir-se pontualmente dos
instrumentos e das aplicações da pesquisa tecnológica, concedendo-lhes alguma
mais-valia artística, estão menos inclinados (interessados) a investirem nas
cooperações duráveis com engenheiros e técnicos, na medida em que estas põem em
causa a tradicional representação demiúrgica do processo criativo.
Por sua vez, os compositores-investigadores que têm como tarefa colaborar
directamente na invenção e aperfeiçoamento das máquinas e dos novos
dispositivos formais, geralmente mais jovens e desprovidos de reputação
artística alargada e consensual, argumentam contra os que utilizam os recursos
tradicionais que o trabalho musical deve ser solidário com a evolução dos
materiais, elogiando as potencialidades oferecidas pelos novos recursos
tecnológicos no acesso às propriedades mais íntimas dos corpos sonoros e na
prática de audaciosas "manipulações genéticas" sobre estes. Nesta sua
luta, mobilizam diversas categorias de actores culturais, individuais ou
institucionais (cientistas, críticos e outros teóricos, instituições que servem
como plataforma de difusão ou até mesmo de produção), que, em campos
diferentes, estejam social ou profissionalmente implicadas em lutas de
concorrência homólogas, de modo a estabelecer aliançasque reforcem
reciprocamente a legitimidade da sua tomada de posição e do ponto de vista que
a consubstancia.
É neste contexto que se constata o carácter cada vez mais tecnológico na
pesquisa de originalidade estética, no desafio para além dos limites
convencionalmente traçados princípio orientador do desenvolvimento do campo
de criação artística contemporâneo e do reconhecimento social do valor do que
nele é produzido.16 Aqui se encontra uma das aberturas da arte à condição pós-
moderna: a relevânciaestética da obra de arte e a consequente (e pretendida)
singularidade do seu criador passa a estabelecer-se na experiência de
constantemente desafiar os limites e não de os prolongar enquanto cânones
supostamente universais, assim como de ultrapassar as próprias fronteiras que,
tradicionalmente, conservam a autonomia do campo.
Para isso põem-se em jogo novos meios materiais, entre os quais os recursos
tecnológicos, na procura, que se pretende incessante, de procedimentos
expressivos e instrumentos operatóriosque afrontem os códigos e as linguagens
instituídas e singularizem o resultado final. Neste sentido, "os meios
tecnológicos são assim colocados no plano tradicional' dos materiais, não
necessariamente para os substituir, mas sobretudo para aumentar a sua variedade
e o leque das opções formais e expressivas que podem ser geridas num
determinado percurso artístico" (Lopes, 1993: 237).
No capítulo da música puramente electrónica existem cada vez mais formas de
analisar, sintetizar e gravar som, bem como de o manipular de acordo com a
vontade do compositor. Isto abre todo um novo universo sonoro que, em minha
opinião, o compositor moderno não pode nem deve ignorar. Claro que, como
expliquei acima, não existe ainda, em relação a este tipo de música, uma
tradição de muitos séculos, como aquela de que goza a música para instrumentos
tradicionais. A sua própria natureza de constante transformação e evolução, que
muitas vezes implica o abandono de anteriores técnicas e instrumentos, torna
ainda mais difícil a constituição de uma tal tradição, o que também ajuda a que
muitos compositores, principalmente mais velhos, se sintam pouco motivados para
ela. Mas, exactamente por causa deste carácter experimental, eu penso que a
curiosidade típica de um compositor se devia sentir irresistivelmente atraída
para este mundo de possibilidades que eu, pessoalmente, considero fascinante.
Também na interligação da música electrónica com instrumentos acústicos e no
tratamento de som em tempo real se têm dado muitos passos com vista a uma maior
versatilidade, cuja falta tem sido e, até certo ponto, ainda é um verdadeiro
obstáculo à liberdade criativa. Mas penso que se trata de um campo do qual
podemos esperar muito, sobretudo porque não nega nenhuma possibilidade,
tentando, pelo contrário, aproveitar as vantagens de todas as diferentes formas
de produção sonora e pensamento musical.
[Carlos Fernandes]
Representam mais um meio de materialização de ideias musicais. Devo dizer que
neste domínio, tal como ao utilizar outros meios (piano, lápis e papel,
gravadores, etc.), o que importa é ter ao alcance um meio de expressão que nos
permita concretizar as nossas ideias. Tal como se compra papel de música com as
linhas já impressas (não tendo nós de as desenhar em primeiro lugar), estas
tecnologias tornar-se-ão um lugar tão comum que, dentro de anos, a pergunta
deixará de ter sentido. ( ) Para terminar, devo acrescentar que, dadas as cada
vez maiores possibilidades destes meios, a sua utilização chega onde chegar a
imaginação do compositor. Na verdade, um dos aspectos mais interessantes do
computador, hoje em dia, é o de já se tornar um espelho e uma extensão de nós
mesmos. Costumo dizer, embora a frase não seja de minha autoria, "a
utilização de um computador diz-nos muito pouco sobre este, mas muito sobre
quem o utiliza".
[António de Sousa Dias]
O objectivo principal do trabalho de criação é sempre, em última análise, a
personalização expressiva do seu autor, em função da qual o criador mobiliza a
sua competência artística relativa aos recursos técnico-expressivos
adquiridos e valorizados no processo de socialização artística , assim como a
sua capacidade criadora ancorada nas idiossincrasias pessoais com que o
indivíduo joga na pesquisa e exploração do tal espaço dos possíveis para chegar
a soluções inovadoras.
Como aponta Idalina Conde, "a participação do indivíduo num campo de
relevância comum dado por visões compartilhadas nunca deixa de vir orientada
pela expectativa de aí poder introduzir uma nova ordem de relevâncias, enquanto
matriz da criação individual", podendo ser a adopção e utilização de novas
tecnologias, nesta óptica, individualmente mobilizada como recurso no sentido
de atingir esse mesmo objectivo. No entanto, há que ter consciência que
"uma coisa é a relevância como valor na expectativa pessoal de, pela obra,
produzir alguma interferência significativa na arte que à escala de cada um lhe
serve de primeira referência. Outra coisa é falar do valor da relevância
reconhecida (ou não) como obra significativa; existe toda uma distância
possível que vai entre desejar ser e realmente ser um criador tido por
relevante". (Conde, 1994: 176)
Qualquer artista, seja ele compositor ou de qualquer outra área, encontra-se,
portanto, socialmente compelido a entrar nessa espiral do processo criativo
regida pela tradição da inovação, lógica institucionalizada no campo artístico
e orientadora da sua actual ordem de relevâncias. Em simultâneo, ele está
também existencialmente comprometido na (re)configuração do seu projecto
pessoal pela busca, reciclagem e superação dos limites fixados quer por si e
para si mesmo, quer na experiência intersubjectiva com os seus pares. E, note-
se, não apenas dos seus pares sociabilisticamente mais próximos, mas também dos
que constituem as suas referências estéticas mais relevantes e lhe pautam a
prática criativa, enquanto focos de identificação ou de demarcação.
O preço da incomunicabilidade
No cerne de amplas pesquisas estilísticas individuais ou colectivas, a
constante experimentação tecnológica e formal na produção musical
"erudita" contemporânea teve, sem dúvida, alguns efeitos perversos.
Ao artista de vanguarda competiria criar novos objectos artísticos, mas também
criar condições para que novos públicos deles se apropriassem simbolicamente.
No entanto, os novos objectos, ao participarem do processo endógeno de espiral
criativa, exigem, como se sabe, constantes operações cognitivas de
descontextualização e de recontextualização simbólica, que pressupõem uma
capacidade de manipular símbolos culturais quase personalizados e em permanente
mutação, a que dificilmente acedem os públicos exteriores aos mundos da
"contracultura", nomeadamente quando nestes o recurso à inovação e
exploração tecnológica é constante.
Compreende-se, assim, a atitude de resistência de uma grande parte das
clientelas culturais mesmo quando estas são, em grande medida, constituídas
por amadores ou profissionais da arte , diante da progressiva morte das
convenções expressivas e dos instrumentos operatórios que, praticamente durante
dois séculos, se encontraram estagnados.
Pesquisas como a deDario Gamboni (1983) sobre o iconoclasmo contemporâneo são
demonstrativas quanto à dificuldade de remover a barreira entre os artistas de
vanguarda e os públicos mais alargados. Como aponta Maria de Lourdes Lima dos
Santos (1994; 423), "no plano da produção, sabemos que situações e
caracteres estereotipados, repetições e redundâncias, códigos primários, enfim,
asseguram uma recepção fácil e sabemos que, pelo contrário, códigos que recusam
fórmulas lineares e deixam margem para a imprevisibilidade incitam à
interpretação crítica e criativa dos receptores". É o preço da
incomunicabilidadeque se paga pela situação daquele que, actualmente, se propõe
estimular a perplexidade num mundo de comunicação generalizada.
Também no espaço da música contemporânea "erudita" aconteceu essa
clivagem. A operação de audiçãoconsiste em processar a percepção do material
sonoro de um modo cognitivamente inteligível, em função do universo cultural de
referência do auditor. No entanto, tal como aponta Abraham Moles (1990: 194),
"a novidade destas pesquisas reside na ruptura com a tradição e a
problemática passada. ( ) Um tal desenvolvimento da pesquisa artística subverte
a nossa concepção do modo de fazer música, remete-nos para uma definição mais
fenomenológica da obra de arte, como Gestalt autónoma, quer dizer, não
tributária dos agregados já existentes (conservas culturais): um certo número
de elementos, reunidos numa certa ordem, de tal maneira que afectam, pelo seu
próprio acoplamento, o receptor da mensagem. É uma criação autênticaque corta
em princípio toda a referência a um universo musical já existente, a despeito
de eventualmente reencontrar, no termo da sua síntese, aspectos ou fragmentos
como condições humanas da percepção". O resultado foi um tipo de música
completamente dissociado de um auditório melómano mais generalizado.
A verdade é que o preço que se pagou pela libertação musical do pós-guerra foi
pesado demais: a criação erudita contemporânea ficou confinada a um guetto cujo
papel na sociedade é quase nulo. A ruptura com elementos básicos da fruição
musical, que eram comuns à música de todos os tempos e de todo o planeta, fez
com que músicos e melómanos se refugiassem na música do passado; os
compositores perderam o papel relevante que ainda tinham na primeira metade do
século. Esse hermetismo gerou, por reacção, o simplismo primário e hoje
continuamos rodeados desses fossos intransponíveis.
[Alexandre Delgado]
Com efeito, a subversão das leis convencionais da composição e do
(re)conhecimento musical, sem referência a qualquer ordem simbólica consensual
e alargada, fez com que a estrutura inerente a estas novas paisagens sonoras
fosse dificilmente perceptível e (des)entendida como caos. "Face a esta
atitude (da criação inovadora), só quem tiver cartão de entrada nos jardins do
Olimpo será digno da música do compositor" (Moles, 1990: 191), facto bem
patente na pesquisa sobre a audiência de concertos de música contemporânea
experimental efectuada por Menger (1986b).
Na tipologia proposta por este último, são distinguidas três modalidades de
procura desta espécie de concertos: uma sobre-seleccionada, outra intermediária
e, por fim, uma profana. No primeiro tipo de procura, as audiências recrutam-se
sobretudo entre os pares dos criadores (noublesse oblige); no segundo, entre os
quadros jovens do terciário cultural, com alguma predisposição para a
experiência estética contemporânea; finalmente, no terceiro, entre as fracções
das classes favorecidas, com capital escolar elevado e habitués da música
clássica. A priori, o universo de auditores surge imediatamente bastante
circunscrito, sendo profundamente caracterizado, em particular no último tipo
de consumidores, por uma fraca adequação entre as suas disposições e
competências perceptivas e as propriedades da produção em causa. Sob um eixo de
homologia aparente entre produção e consumo ocultam-se, portanto, múltiplos
desentendimentos cognitivos e perplexidades perceptivas que não se compadecem
com a constante renovação estética exigida na contemporaneidade.
Na longa conversa preliminar que tivemos antes da entrevista propriamente dita,
chegámos à conclusão de que uma das maneiras mais saudáveis de dar a música
contemporânea ao grande público seria misturá-la com a música de outras épocas
nos concertos sinfónicos e de câmara "normais", o que evitaria
compartimentações de público e logo, guettos culturais prejudiciais Estou a
sorrir porque testemunhei dois casos: um que se passou comigo e outro com
Xenakis. Um dia, no Teatro dos Campos Elísios, numas jornadas em 1977 dedicadas
a Xenakis houve um concerto dirigido pelo Seiji Ozawa, com obras de Falla e
Xenakis e, além dos apupos do público que ia para ouvir o Falla, público
venerando, houve também muitos que aplaudiram. Soube até, pelo próprio Xenakis,
que um dos músicos da orquestra assobiou a obra e foi punido pela direcção da
orquestra Existe, portanto, essa possibilidade de confrontação, em que uns
aplaudem e outros assobiam, como aconteceu com obras de Messien, Stravinsky,
Wagner, entre tantos outros mais ao longo da história da música. Em todas as
épocas houve sempre os inovadores e os conservadores. Aconteceu comigo, em
1979, num concerto em que havia Mahler, Mendelssohn e Schubert, além de uma
obra minha para orquestra e fita magnética, A-mèr-es. A fita magnética tinha
música electrónica e música por computador. O público, de facto, aplaudiu e
apupou ao mesmo tempo. E na altura sofri com isso, até porque tinha o meu pai
na sala. E no intervalo (isto foi no Grande Auditório da Fundação Calouste
Gulbenkian), duas pessoas de provecta idade dirigiram-se a mim. Um deles disse-
me (abertamente) que eu devia ser morto, e o outro a mesma coisa, apenas por
outras palavras !
[Cândido Lima]
O princípio da reciprocidade
Vimos alguns dos principais efeitos da intervenção de novas tecnologias
electrónicas no espaço da criação musical "erudita". No entanto, se
reflectirmos atentamente na relação entre estes dois termos, podemos ainda
verificar que ela não se estabelece apenas no sentido atrás apresentado. Se as
tecnologias electrónicas abriram novos caminhos à música, também o inverso é
passível de acontecer, já que a disposição para a criatividade nesta área
também tem proporcionado alguns avanços tecnológicos, designadamente quando se
procura intencionalmente satisfazer as exigências preconizadas em determinadas
ideias musicais: "a proliferação dos estudos de música electroacústica ou
electrónica originou o desenvolvimento de um equipamento técnico muito
aperfeiçoado, destinado a favorecer a produção de obras de laboratório, que
centram as suas preocupações na exploração, cada vez mais complexa, da
microestrutura do fenómeno sonoro" (Bosseur e Bosseur, 1990: 125).
A intervenção do espírito criativo no desenvolvimento tecnológico aplicado à
música contemporânea "erudita" é particularmente ilustrada pela obra
de Stockausen, compositor consagrado na área da electroacústica: nas suas
palavras "a sofisticadíssima mesa de misturas (utilizada na apresentação
pública da obra Viagem de Michael à Volta da Terra) foi construída de propósito
para a minha digressão ( ). Ontem à tarde, depois do ensaio, falei longamente
com o director da firma francesa que aluga os altifalantes, microfones e
amplificadores de som, mesas de mistura, que me acompanhará em todas as etapas
desta digressão de concertos. Durante a conversa, o director revelou-me como,
depois de ver o esquema sonoro da minha nova peça, caiu na conta de que uma
mesa de misturas apta a tão complexos trabalhos não existia ainda no comércio.
Considerado, pois, o interesse do caso e a importância do projecto, decidiu
fazer construir, propositadamente, a nova mesa que doravante me cederia, por
preço elevado, em aluguer" (Stockausene Tannenbaum, 1991: 49).
Tal depoimento deixa-nos a pensar na reciprocidadeexistente entre inovação
artística e inovação tecnológica, contrário à noção de determinismo desta
última sobre a primeira, largamente utilizada como argumento contra a
introdução de novas tecnologias na criação musical pelos seus detractores.
Todavia, é inútil pretender que a escolha do compositor, no caso da utilização
da electroacústica, dependa exclusivamente dos aspectos tecnológicos. É uma
concepção demasiado positivista da tecnologia que se traduz na imagem do
compositor prisioneiro da "máquina", alienado aos meios de produção.
De facto, não existe qualquer tipo de subordinação exclusiva na relação
tecnologia-música, mas sim um condicionamento mútuo que não se traduz de forma
necessariamente negativa, como querem fazer crer certos moralistas culturais
mais apocalípticos. A interacção entre criação artística e criação tecnológica
é uma realidade e as repercussões dessa interactividade em ambas as zonas de
criação não são inevitavelmente malévolas. Assim como a tecnologia pode ajudar
a música na sua procura de novos esquemas e referências estéticas e formais,
também essa incessante procura incentiva a área tecnológica a pesquisar novas
soluções e opções técnicas. Se não se enveredar pelo caminho das "receitas
fáceis", o produto resultante dessa reciprocidade será, com certeza,
frutuoso para ambas as partes.
E quem ficará sempre a ganhar será, com certeza, o melómano. Pois o facto é que
a actual dispersão da música contemporânea e dos caminhos insondáveis que as
novas tecnologias lhe permitem, revela estados de crise que afastam os riscos
de estagnação e provocam um estimulante voltar a pôr em questão do sentido da
audição.
Notas
1 Agradeço as revisões e sugestões feitas a este artigo por Elsa Pegado,
Sandra Palma Saleiro, João Sedas Nunes, Alexandre Melo e Maria de Lourdes Lima
dos Santos. Os depoimentos apresentados neste artigo como ilustração empírica
foram transcritos do livro A Invenção dos Sons, uma compilação de entrevistas
realizadas por Sérgio Azevedo a alguns compositores representativos de várias
gerações da contemporaneidade musical portuguesa, editada em 1998 pela
Editorial Caminho.
2 Como o vinil, o CD, o DVD ou o MP3.
3 Como os geradores electrónicos de frequência, as mesas de mistura, os
sintetizadores ou o computador.
4 "Canção dos mancebos" ou "Canto dos adolescentes"
(1956).
5 O primeiro estúdio de música electrónica estabeleceu-se em 1951 na rádio
da Alemanha Ocidental, em Colónia, dirigido por Herbert Eimert. Criaram-se
outros estúdios em Milão, Tóquio, Londres, Varsóvia, Bruxelas, Munique,
Eindhoven, Paris e Nova Iorque (Kennedy, 1994: 483). Portugal, todavia, esteve
longe de conseguir acompanhar esse processo, em virtude dos défices culturais e
infra-estruturais acumulados desde o isolacionismo que marcou a política
cultural do Estado Novo, fundamentalmente orientada para a promoção de uma arte
de formas e conteúdos marcadamente nacionalistas e folclóricos. Embora a
criação portuguesa de música electrónica e/ou electroacústica venha a destacar-
se no panorama europeu e anglo-saxónico dos últimos vinte anos, a respectiva
documentação, difusão e apoio sistemático e institucional, do ponto de vista,
quer da investigação em novos suportes expressivos, quer da edição fonográfica
das obras, quer ainda da produção de conhecimento teórico e científico, tem
sido bastante deficitária. No entanto, para além de alguns estúdios privados
construídos por alguns compositores, Portugal conta actualmente com o Centro de
Criação e Informática Musical da Juventude Musical Portuguesa CCIM , que
integra um Estúdio de Música Electroacústica desde 1993, assim como com o
Centro de Investigação em Música Electroacústica o CIME , criado em 1996 sob
a tutela do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro. O
CIME integra quatro laboratórios independentes, dotados do equipamento
necessário ao desenvolvimento e criação de obras originais, à investigação
sobre novos processos de síntese sonora e à gravação, mistura e montagem de
ficheiros sonoros. Desenvolve também um conjunto de actividades que pretendem
divulgar, estimular e apoiar as potencialidades de criação em música
electroacústica e/ou electrónica em Portugal, como a organização de concertos,
seminários e cursos, a edição fonográfica e/ou impressa de obras de
compositores portugueses e estrangeiros, bem como de material bibliográfico e
pedagógico. Projecta ainda a criação de um centro agregado de Estudos Teóricos
em Música Electrónica, equipado com partituras, gravações, discografia e
bibliografia sobre a obra electrónica do século XX, no sentido de lançar as
bases para uma investigação continuada e de qualidade científica nesta área,
possibilitando o desenvolvimento de projectos na vertente da teoria, da
estética e da análise musical complementares aos projectos de criação
existentes. Estas informações foram gentilmente cedidas pelo professor doutor
João Pedro Oliveira, um dos coordenadores responsáveis pelo CIME.
6 Ou seja, da organização formal e convencional dos intervalos entre os sons
que desde alguns séculos impera. Sobre os aspectos formais do processo de
racionalização do sistema de afinação e as suas possibilidades de fixação
"universal" (quer dizer, convencional), ver Weber (1944).
7 Este sistema de afinação triunfou para todos os instrumentos de afinação
fixa a partir do século XVIII, depois de uma dura luta travada sob a influência
teórica de Rameau, e da prática de composição e pedagógica de J. S. Bach e de
seus filhos, nomeadamente com a obra Cravo Bem Temperado.
8 As sineres na Ionisation de Varèse e outros sons electrónicos semelhantes
nas suas obras posteriores, ou os glissandos das ondes Martenot, instrumento
utilizado em Turangalîla, de Messiaen, são exemplos notáveis de aplicação do
continuum.
9 O conceito de espaço dos possíveis corresponde ao "espaço das tomadas
de posição efectivamente realizadas" em articulação com o "espaço
orientado e prenhe das tomadas de posição que no seu interior se anunciam como
potencialidades objectivas, como coisas "a fazer". ( ) A herança acumulada
pelo trabalho colectivo apresenta-se assim a cada agente como um espaço de
possíveis, quer dizer, como um conjunto de imposições prováveis que são a
condição e a contrapartida de um conjunto circunscrito de usos possíveis."
O espaço dos possíveis funciona, simultaneamente, como "verdadeira ars
obligatoria", na medida em que "define, à maneira da gramática, o
espaço do que é possível, concebível, dentro dos limites de um certo campo,
constituindo cada uma das "escolhas" operadas como opção
gramaticalmente conforme; mas trata-se também de uma ars inveniendique permite
inventar uma diversidade de soluções aceitáveis dentro dos limites da
gramaticalidade. " (Bourdieu, 1996: 268-270).
10 É esta, em boa parte, a grande lacuna no campo da música
"erudita" contemporânea em Portugal, ou seja, a falta de agentes
(individuais ou institucionais) de socialização, difusão, reconhecimento,
consagração e fruição que suportem mais sistemática e duradouramente a sua
composição e audição. É, pelo menos, nesta perspectiva que se orientam as
respostas dos compositores entrevistados por Sérgio Azevedo à sua questão sobre
"O que pensa sobre a situação da música em Portugal?".
11 Vítor Balenciano, "Com Stockhausen na plateia e no palco",
Público, 16-6-2000, p. 29.
12 Aliás, o facto é que as pesquisas tecnológicas sempre se mantiveram à
margem do circuito mais institucional do ensino e cultura musicais, enquanto as
experiências nesta área se foram generalizando sem, contudo, um grande número
de compositores deste sector de produção musical ter trabalhado, ou tendo
trabalhado muito pouco, com meios electrónicos.
13 O exemplo mais conhecido e reputado é o IRCAM (Institut de Recherche et
Coordination Accoustique / Musique, instalado no Centro de Arte Contemporânea
Georges Pompidou), criado nos anos 70 em Paris, instituto que está na origem da
consagração oficial do campo da pesquisa musical tecnológica em França.
14 Muitas delas inseridas e consagradas nos circuitos da música pop e de
alguma "nova música de dança" mais comercial.
15 Por exemplo, o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, criado em 1970; o
Grupo Música Nova, em 1973-74; a Oficina Musical do Porto, em 1978; o Grupo
ColecViva, em 1985; ou a Orquestra Sinfonietta de Lisboa, em 1995.
16 Uma das dimensões do Projecto de Música Electrónica em Portugal levado a
cabo pelo CIME, na Universidade de Aveiro, é justamente a compilação e edição
de obras de compositores portugueses com música electrónica. Cf. Andrea Cunha
Freitas, Público, 14-01-2000, p. 25. Indicador de que a utilização de novas
tecnologias electroacústicas ou electrónicas ainda não é consensual nos meios
musicais mais "eruditos", é o facto de os debates sobre a questão
continuarem a ser uma regularidade nos festivais de música contemporânea em
Portugal, assim como, também, o facto de a pergunta "o que pensa sobre a
utilização da electroacústica e da informática na composição" ter sido
recorrente no conjunto de entrevistas feitas por Sérgio Azevedo a vários
compositores portugueses contemporâneos.