A música e o processo de identificação dos jovens negros portugueses
A música e o processo de identificação: a performance identitária
A relação entre a música e o "processo de identificação", como o
define René Gallissot, estabelece-se em duas dimensões.1 A primeira, através da
metáfora do walk-man. Iain Chambers (1994) compara as narrativas de vida às
caminhadas do walkman, walk-man, walking-man. Nesta óptica, as referências
estéticas, as variantes, partes compósitas do processo de identificação, são os
sons, as músicas que compõem a banda sonora portátil, de bolso (portable
soundtrack) do indivíduo, e que, em última instância, o definem. A escolha da
banda sonora, assim como a experiência do walk-mané sobremaneira uma
experiência privada (intensively private experience) em relação ao mundo que o
rodeia, sem deixar de delimitar este último, através da presença do corpo e das
suas movimentações, isto é, através daquilo que poderíamos chamar as linhas de
segmentaridade do walk-man. Estas linhas definiriam os contornos do corpo na
própria experiência de walking-man, e, simultaneamente, as "linhas de
desterritorialização" (Deleuze, e Guattari, 1980), tornando possível a
extensão da experiência, da escolha das narrativas "portáteis", para
o mundo, o ambiente, que as rodeia. O corpo reafirma o processo de
identificação através de escolhas estéticas, coladas e interligadas
circunstancialmente umas às outras (mutable collage), para dar o seu sentido às
narrativas, e manifesta a presença participação destas narrativas no
ambiente que circunda o próprio corpo (soundscape). Finalmente, o corpo-em-
trânsito, definindo as linhas de desterritorialização fuga e de
segmentaridade do próprio processo de identificação, ele também, e
consequentemente, em movimento, em diáspora (diasporic identity). Diáspora, que
permite a definição dos contornos identitários sob a forma de um design, que se
evidencia por um conjunto intermutável de narrativas de vida e/ou de vidas
possíveis ou ainda, como refere Iain Chambers (1994), por um conjunto de
"micronarrativas".
Assim, a música define o território do corpo, numa intensa experiência pessoal
privada, pela escolha particular de uma colagem mutável de sons referências/
variantes formando, em síntese, a própria banda sonora identificação de
bolso, portátil, móvel, em diáspora.
A segunda dimensão remete para o facto de essa escolha particular/pessoal de
uma banda sonora de bolso definir o "outro espaço", o espaço dos
"outros ausentes", a outra-realidade, o soundscape: espaço da
comunidade de consumidores no seu todo, onde, por último, se processa a
identificação, ou a experiência de uma identidade musical, enquanto experiência
de uma identidade estética, que remete para a escolha e para o movimento:
"( ) um ir sendo e não um ser"(Frith, 1997: 109). Experiência
identitária musical em movimento, em constante transformação, que alude à
performance, à estória e à estética, no sentido em que se relaciona com o
imaginário, com uma imagética visual. A identidade estética, esse imagined
self, e simultaneamente imagined self of possible lives, ou ainda self-in-
process (idem: 109), fazendo confundir-se "o que se é" e "o que
se quer ser", "o ser negro em geral" e "o ser negro
português". O soundscape é, em suma, um mediascape, um conjunto de
referências estéticas musicais cuja reapresentação se efectua pela
validação transnacional dos seus significados: estético, identitário,
colectivo. Como a etnicidade, a música transfigura-se na sua imagética
reapresentada, nas formas desterritorializadas que assumem as suas
reapresentações estéticas; a música é, então e também, uma realidade endótica,
que se reapresenta o exótico, o passado-presente, por forma a tornar válida a
sua mutação enquanto metáfora performativa narrativa da identidade.
Neste sentido, e debruçando-nos sobre a forma como Simon Frith (1997) efectua a
ligação entre os conceitos de música e de identidade, o enfoque está colocado
no movimento e na problemática do sentido do espaço (de identificação).
Deste modo, como salienta o referido autor: "O problema pós-moderno é o
nosso medo do sentido do lugar ( ) o que está em jogo nesse tipo de discussão é
o problema do processo, da nossa experiência do movimento entre posições"
(idem: 110). A metáfora do walk-man, experiência de identificação gerada numa
tensão entre a presença do corpo o eu e o soundscape o dehors, os outros,
os outros ausentes serve para validar a hipótese de que a música a prática
de relacionamento com a música no sentido lato é a chave para entender os
contornos do processo de identificação. Com efeito, a música possibilita a
construção das noções do eu e dos outros, no contexto de uma
performanceidentitária, que se serve das referências/variantes como elementos
estéticos desterritorializados e redesterritorializáveis. Neste sentido, a
música é uma prática esteticizada que não define o processo de identificação,
mas que, ao invés, está contida neste último; articulada com as demais práticas
que remetem para os códigos éticos e para as ideologias sociais (ibidem), e
que, por fim, situa o eu no dehors e vice-versa. O carácter estético da prática
consumo/ experiência musical não remete para a realidade, como se esta
estivesse num outro plano de análise. Pelo contrário, a esteticização da
prática musical é a própria ritualização dessa realidade a comunidade de
consumidores no seu todo, o soundscape contida na própria prática. Por outras
palavras, a actividade (acto: consumo, etc.) musical ritualiza a identidade ou
o próprio processo de identificação.
A música coloca então, segundo Simon Frith, a questão dos espaços de
identificação, através da problemática da delimitação entre o individual e o
colectivo, que se traduz na problemática da escolha individual face aos
constrangimentos de uma lógica colectiva familiar, que o autor chama
"lógica cultural" (cultural logic): "( ) Existe um mistério no
que diz respeito aos nossos próprios gostos musicais pessoais ( ) alguém terá
ditado as convenções" (1997: 121). Isto é, como é que se define o gosto
musical para um indivíduo, previamente sujeito a uma escolha musical que não
fez, mas que lhe foi transmitida através do seu contexto familiar, como se essa
escolha simbolizasse, ou ritualizasse, a experiência imediata de uma
consciência de pertença comunitária, consciência de pertença de we-group
etnicizado?
No entanto, a questão não está na articulação entre o "individual" e
o "colectivo", como Simon Frith a entende. Outra tensão é gerada
entre um individual e um colectivo, ambos derivados da permuta entre a
problemática anterior e uma outra, uma "nova" problemática. Essa
mesmo vem dar ênfase ao sentido do colectivo não etnicizante, mas enquanto
referência ou variante estética, porque interpenetrada de significado imagético
através da sua presença no mediascape. O colectivo, cedendo o seu lugar à sua
própria reapresentação, transforma-se numa referência esteticizada e assume o
carácter de referência, deixando de lado o seu potencial de pertença. A
"lógica cultural" permuta, assim, com um novo significado de
referência a um colectivo. Esse significado assume os contornos de uma escolha
de narrativa para um "colectivo" esteticizado. Com isto, e voltanto a
Simon Frith, não só o individual como o colectivo são matérias de escolhas que
remetem para reapresentações do valor estético, inclusive da prática musical.
A identidade, ou o processo de identificação é então esta (micro)narrativa, que
I. Chambers (1994) vê sob a forma de banda sonora, microcontextualizando o
indivíduo e o soundscape colocados num mesmo plano, gerando a tensão que gera a
própria narrativa. Esta é a narrativa de bolso, o processo de identificação
portátil. Para Simon Frith (1997), o equilíbrio entre o colectivo e o
individual gera uma coerência pessoal, que não é mais, se pensarmos no
colectivo enquanto referência transesteticizada, que o exacto ponto crítico o
hífen entre "o que se é" e "o que se quer ser", o ponto
de convergência/confluência de todas as identificações por referência, ou de
todas as "vozes artificiais" (Frith, 1997: 122), que determinam, em
última instância, o processo de identificação, o play-acting identitário:
"( ) a unidade da vida através de uma crença recorrente na coerência
pessoal" (idem).
A correspondência entre a identidade, ou o processo de identificação, e as suas
formas narrativas, estabelece-se com a ficção das identificações por
referência, reapresentadas nas estórias de vida, tornando familiares afinidades
inventadas, e tornando circunstanciais proximidades derivadas de "lógicas
culturais", como as define Simon Frith. Esta ficção da identidade ganha,
através da prática musical, os contornos de um exercício de construção
identitária; delimita-se um percurso do consumo de música, onde estão
projectados no quotidiano, sob a forma de uma performancede ventríloquo
blackface performer (ibidem) os encontros ficcionados entre "o que se
é" e "o que se quer ser", os encontros entre "o ser
negro" e "o ser português", entre "o ser negro
português" e "o ser negro em geral".
A música africana: world music e diáspora digital
A relação entre a prática musical o exercício do consumo de música e o
processo de identificação dos jovens negros portugueses passa, então, pelo
desempenho da tal performancede ventríloquo, que promove a reapresentação no
quotidiano de estéticas transestéticas vinculadas ao mediascape, que, pela
via da escolha, facultam a posse de uma identificação de bolso, intercambiável,
portátil, do eu e dos outros, individual e colectiva. Dessas estéticas, cuja
reapresentação por parte dos jovens negros portugueses passa pela prática do
consumo de música, duas se destacam: uma que alude ao espaço de reapresentação
de uma imagética "africana", outra que remete para uma imagética
"negra". Assim, das estéticas africana e negra sobressaem as músicas
africana e negra; opções, escolhas, derivadas de transestéticas vinculadas aos
mediascape/soundscapeque os jovens negros portugueses reapresentam. Importa,
portanto, clarificar o que se entende por música africana e música negra, e o
que, em termos estéticos/transestéticos, estas opções e escolhas têm de
"valor de propriedade" (Deleuze e Guattari, 1980) ou de valor de
identificação para estes últimos.
A música africana, aqui entendida enquanto "ritmo local", seguindo
Vladimir Monteiro (1998), remete para estilos tais como a morna, a coladera, o
funaná, assim como para estilos tais como a kizomba, o kuduro, e o zouk. Estes
estilos, prossegue ainda Vladimir Monteiro, manifestam um sentido do local
africano através de sons sinónimos de cantos de sofrimento, de esperança,
sensuais, satíricos e urbanos, sejam eles cabo-verdianos, se nos referirmos à
morna, à coladera, e ao funaná, ou sejam eles angolanos, se nos referirmos à
kizomba, ao kuduro e, de certa maneira, ao zouk, embora este último remeta para
a kizomba, ela própria uma reapropriação do som zoukdas Antilhas francesas
(Guadalupe, Martinica, etc.). Numa abordagem preliminar, estes estilos,
inseridos no domínio da "música africana", parecem aludir ao universo
da "lógica cultural" de que nos fala Simon Frith (1997): uma música
africana que remete para o étnico, naquilo que o étnico tem de pertença, de
identificação por pertença de uma consciência intergeracional de grupo étnico
we-group partilhável de pais para filhos. A presença da música africana no
processo de identificação dos jovens negros portugueses seria a presença de
mais um factor de consolidação do "étnico", enquanto "dado
natural" ou "activo cultural intelectual", citando,
respectivamente, K. Mannheim e W. Ditley (emContador 1998: 58). Estas noções
reafirmam, por um lado, a identidade por pertença ao colectivo etnicizado, e
reafirmam, por outro, o facto de as referências disponíveis se situarem num
território cultural natural com proeminente realce geográfico, classista e
etnográfico. Neste sentido, a música africana, enquanto referência ao étnico,
viria colocar de novo a análise do processo de identificação dos filhos dos
imigrantes africanos por contraponto, ou por mimetismo, em relação às formas de
inserção integração, aculturação, aspiração dos próprios pais na sociedade
portuguesa.
No entanto, outra análise é possível. A música africana corporiza, por
excelência, a etno-referência, a reapresentação imagética da etnicidade, do
étnico, que passa pela reapresentação do imagético dado pela inserção dos pais
na sociedade portuguesa. Os processos de integração, aculturação e aspiração,
vivenciados pelos pais, assim como o ritmo tribal e a cadência repetitiva do
fraseado sónico amelódico da música africana, passam para o lado do mediascape,
para o lado das referências e variantes ao étnico, disponibilizadas pelo seu
conteúdo esteticizado. Isto porque estas referências remetem, por um lado, para
um imaginário da diáspora secular africana em direcção ao ocidente, que inclui,
num mesmo plano, a migração dos pais, a migração dos conterrâneos dos pais, a
exploração da mão-de-obra vinda de África, a escravatura e o próprio tráfico de
escravos; e remetem, por outro, para um imaginário que transfigura o mito do
eterno retorno em valor ecológico ocidental, ligado ao mito do paraíso perdido.
Neste caso, a música africana ganha contornos de "nova" música
africana, e metamorfoseia-se em world music; uma música uma estética ligada
ao imaginário ocidental transnacional que propõe uma visão estereotipada dos
espaços de novo geograficamente circunscritos de referência, repondo na
ordem do dia a questão do equilíbrio entre "centro" e
"periferia". Por outras palavras, o imaginário produzido em torno da
world music remete para uma world aesthetic, para a recriação de um espaço
território etnocêntrico do outro, dos "outros ausentes"
incorporados numa periferia de produção cultural musical que se define pelo
"autêntico", pelo "exótico", pela "tradição" e
"pureza", por contraponto a um centro cultural ocidental
"desvirtuado", "desregrado", "endótico" e
"contaminado". Com o ressurgimento da questão da bipolarização da
produção cultural, dividida pelo tal eixo genético "centro/
periferia", é posta em causa a noção deleuziana de "zonas de
vizinhança". Esta reapresentação endótica da noção de espaço do eu, e de
espaço do outro, alude não só a uma análise psicodramática da noção de hiper-
realidade, no sentido em que esta reflecte o esvaziamento dos significados
securizantes de distância, genuinidade e unicidade culturais, como também alude
à reapresentação do próprio passado no tempo presente, enquanto recriação,
reinvenção da ascética nostalgia de um passado não vivido, reinvenção do
próprio passado, do outro, isto é, das próprias diferença, genuinidade e
unicidade culturais, centrais e periféricas: "( ) a orgia das diferenças
tem todas as qualidades de um melodrama, de um psicodrama ( ) simulamos e
dramatizamos num acto acrobático a ausência do outro" (Baudrillard, em
Erlmann, 1996: 468).
Contudo, a produção desta "nova" diferença, salienta ainda Veir
Erlmann (1996), não está mais ligada à noção de que é o próprio sistema que
produz a diferença, enquanto antítese dos valores que lhe estão associados.
Neste caso, ao invés, a diferença está contida rizomorficamente no próprio
centro, enquanto seu elemento excêntrico. Este elemento, este valor,
autoproduz-se por um processo de criação, desterritorialização e reapresentação
de novos significados, novas referências, que alimentam a própria noção de
diferença, ou seja, que a mantêm "viva". É, portanto, aqui que se
enquadra a música africana, ela própria desterritorialização dos seus
significados que, por força, a "territorializam" num constantemente
novo "autêntico", "genuíno", "puro",
"exótico", e "periférico" re-inventados a partir do centro
e para o centro: "( ) A world music não é a nova música do non-western
world'" (Erlmann, 1996: 475).
No entanto, inevitavelmente, o eixo "centro/periferia" fracturou-se.
A produção dessa nova diferença legitima o etnocentrismo, mas coloca o próprio
centro numa espécie de periferia de si próprio; isto é, os anteriores valores
que viabilizavam a distância, a unicidade cultural, não estão mais à mercê das
relações de proximidade, no uso cómodo e lógico de uma rede de significados
dependentes da troca directa. Os novos significados e valores, voltando a Jean
Baudrillard (1997), surgem, proliferam, a partir de contingências, de estados
de emancipação ocasionais, transitórios, sem o mínimo ponto de ancoragem, isto
é, sem território, sem corporização, sem terra-de-origem, sem origem, sem
raízes e sem passado de pertença. A produção de uma nova diferença faz apelo a
raízes "alugadas" a um passado "de aluguer", de bolso,
portátil, e tudo isto em função de um gosto, de escolhas, que reflectem um
imaginário mediatizado, flutuante, mas centrípeto: "A world music, neste
ponto de vista, parece ser o soundscape de um universo que por detrás de toda
essa retórica a propósito das raízes se esqueceu da sua própria génese"
(Erlmann, 1996: 475).
Importa, aqui chegados, focar do novo o papel dos média, do mediascape, na
produção e na validação dos novos significados da diferença que não são
legitimados, como vimos, pelo retorno à dicotomia "centro/periferia".
Isto porque o mediascape desterritorializa o próprio centro e a própria
periferia, incorporando estes seus novos sentidos num gosto criado num único e
novo centro que, por contingência, também ele deixou de o ser. Por isso, os
únicos territórios que subsistem são o mediascapee o corpo lembrando
novamente a metáfora do walk-mande Iain Chambers (1994) do novo agente
cultural por excelência: o "homem-terminal", ou
"teleactor", como o designa Paul Virilio (1995). Assim, apagando-se
os significados de "centro" e "periferia", com eles vão
também os significados de "emissor" e "receptor", num
desaparecimento simulado, imaginado, inventado, que, contudo, volta a colocá-
los de novo em acção num terreno, agora, visual, numa paisagem landscape
televisiva e colectiva, por isso una, por isso com um novo sentido do eterno.
Um eterno que não tem nada para se reapresentar: "( ) se não houver mais
nada para representar, a procura de alguma experiência autêntica com um sentido
do verdadeiro transforma-se num empreendimento em vão"(Erlmann, 1996:
481).
A música negra: a negritude acessível a custo moderado
A primeira hipótese levantada no que diz respeito à relação entre a música
negra e o processo de identificação dos jovens negros, e em particular dos
jovens negros portugueses, é a de que a música negra ritualiza, por excelência,
a tal transestética negra veiculada pelo mediascapee vinculada ao mesmo. Um
ritual com características de autodidactismo popular, atribuindo ao conceito de
negritude uma forma outernational, e servindo-se das etnoreferências
referências a África, à diáspora africana, ao tráfico de escravos, etc. para
vincar o carácter rizomórfico da própria negritude, produzida e espalhando-se
desterritorializando-se no "centro", a ocidente, com um discurso
pronunciadamente periférico. Contudo, vários autores, nomeadamente Les Back
(1996), salientam que a cultura negra, e por conseguinte a música negra, surgem
do encontro, da tensão, contingencial entre as noções de tradição,
autenticidade e arcaísmo, atribuídas à periferia, e entre a reapresentação
destas mesmas noções num espaço de recriação, que se serve, por via da música,
da electrónica e das novas tecnologias coisas do "centro" para as
reposicionar numa estética/transestética televisiva e colectiva, que perde em
africanidade o que ganha em negritude. Assim como a música africana, a música
negra promove o mesmo discurso, a mesma estética de world music, erguida com as
noções de back to Africa, back to the roots, Motherland, isto é, erguida com
noções que remetem para uma esteticização da etnicidade que, não só
reinterpreta afinidades históricas etnicizadas, como, sobretudo, as inventa,
esteticizando-as, inventando o próprio discurso afrocêntrico, contra um
ocidente visto como nefasto e "civilizador/colonizador".
Este é, em larga medida, e entre outros, o discurso do estilo musical negro
denominado rap. Parte de um mais vasto leque de expressões artísticas plásticas
e performativas,2 o rap é a expressão musical por excelência da juventude negra
e urbana dos Estados Unidos a partir da década de 70. Acerca do ritmo, quando
se fala de rap, argumenta-se com a linearidade e o estilo inconfundivelmente
repetitivo e sincopado que o caracteriza, levando a que se teçam paralelismos
entre o ritmo tribal da música africana, apelidada de tradicional, e o do rap.
Acerca da prosa e da poesia, imputa-se-lhes ausência de metaforização e bolimia
de controvérsia à volta de um desígnio de eterna periferia cultural, cuja voz
negra proclama a autenticidade das raízes africanas e o sentido de uma
negritude construída bem longe geograficamente de África. Como se a nova ágora
das cidades dos Estados Unidos e a partir de meados da década de 80 de uma
grande parte das urbes europeias e ocidentais se tivesse transfigurado em
block party, num acto ou performanceimprovisada, juntando os dois ícones
proeminentes do rap: por um lado, os seus actores disc jockeys, mestres de
cerimónia, breakdancers, graffiters e consumidores em geral do estilo musical
rap , e por outro, a reapresentação de uma estética urbana e negra que lhe
está associada e que se desenvolve na recriação ficção dos mitos das
origens da africanidade e da negritude.3 O take offcomercial do rap,
indissociável da sua presença no mediascape, marca o reforço do uso popular
autodidacta da tecnologia no domínio da produção musical popular, numa amálgama
conceptual que junta um certo revivalismo do espírito festivo do be-bop,do
R&Be do funk, com as vanguardas estéticas europeias sobretudo alemãs
que fazem da electrónica o alicerce das novas linhas de montagem musical. A
cadência irreverente da batida ou break beat em parelha com a indolência de
uma linha de baixo circular, são o cenário sonoro auspicioso para as guerras de
rimas, verdadeiras batalhas vernaculares onde o arrojo da estiga,ou insulto
verbal,prevalece em detrimento de um fraseado poético, melódico e metafórico
próprio da música pop em geral. O rap é antielíptico porque introduz nas rimas
as estórias de vida dos negros do Bronx(Nova Iorque) ou de Watts (Los Angeles),
cruzando-as com a distopia legitimada pela ética estética do sonho
americano. O rap é, por isso, indissociável dessa tensão entre group
established e group outsider, voltando às definições de Norbert Elias (1994).
Consequentemente, o rap apresenta-se enquanto banda sonora, soundscape, dessa
tensão.
O rap é parte de uma "nova" urbe, cujos limites extravasam os seus
simples contornos geográficos, desterritorializando-se em novas reapropriações
das suas estruturas, dos seus espaços, das suas ruas, das suas paredes e muros,
dos seus "não-lugares". O rap, enquanto componente do hip-hop,
participa na desterritorialização do corpo da urbe, transformando-a,
ficcionando-a, identificando-a, num conjunto de não-lugares
desterritorializados. O palco do rap é, por excelência, a rua, não-lugar,
metáfora ou parábola da desterritorialização do "todo-cidade", onde
floresce o calão, novilíngua que dá corpo aos faits-divers, aos clichés e às
estórias quotidianas. Sendo esta novilíngua, ela própria, uma linha de fuga,
uma desterritorialização de um conjunto de referências linguísticas
inventariadas e reapresentadas. O rap verifica este princípio de
heterogeneidade da língua, avançado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980);
o calão, o crioulo-língua-de-calão, que alguns jovens negros portugueses usam
nas canções rapque praticam, participa na sua desterritorialização, na criação
das suas linhas línguas de fuga, e, por conseguinte, na validação do
rapenquanto forma de expressão artística e performativa de uma negritude
ficcionada logo vivida pelos jovens negros portugueses.
Onde situar o rapem crioulo-língua-de-calão produzido e consumido pelos jovens
negros portugueses? No espectro da "nova" música africana ou na
categoria de rapportuguês negro?
O rapem crioulo-língua-de-calão é uma nova desterritorialização da negritude
vinculada a uma transestética negra media mediate e esteticizada, num espaço de
definição identitário que também abarca as desterritorializações ou as
reapresentações de uma certa portugalidade: reapresentações das expressões e
formas culturais territorializáveis no espaço da sociedade portuguesa. A essa
portugalidade, ficcionada e vivenciada pelos jovens negros portugueses,
acrescentam-se as reapresentações da africanidade e, sobretudo, como avança
Paul Gilroy (1996), as reapresentações da negritude que perturbam, promovendo a
criação das suas linhas de fuga, a definição do sentido do eu sense of self
dos jovens negros portugueses. Na prática, e ainda segundo Paul Gilroy, estas
reapresentações da negritude definem-se pela manifestação de uma espécie de
resposta negra à modernidade, traduzível na legitimação de uma linguagem
transestética particular. Linguagem essa que, no caso dos jovens negros
portugueses, poder-se-á traduzir na criação e no uso de um crioulo-língua-de-
calão, mas também por códigos gestuais e comportamentais específicos, expressos
através de uma postura estereotipada do black modernism. Postura ou performance
do rapper negro português num cenário prosaico acrioulizado, onde coabitam um
quotidiano português e a expressão da opressão secular do povo africano, do
povo negro. Posturas estéticas negras exploradas a partir de uma transestética
negra que reafirma a negritude esteticizada enquanto "( ) play acting' de
uma consciência negra global. ( ) A identidade negra ( ) é vivida como um
coerente (senão sempre estável) e experimental sentido do ser"(Gilroy,
1996: 73).
Este é o rap, música negra, seguindo ainda Paul Gilroy, sinómino de blackism,
mais do que blackness, no sentido em que o primeiro motiva a construção de um
sentido da negritude recortada, "samplada" (de sampling)e que, no
exacto ponto onde se situam as suas expressões dominantes e seleccionadas, se
cruza com outras expressões dominantes, seleccionadas, apropriadas,
reapresentadas. Este entrecruzamento define a tensão, o equilíbrio crítico,
onde se joga num novo espaço posicional de identificação, ou third space
(Bhaba, emSharma, Hutnyk e Sharma, 1996: 55) identitário, em constante
expansão, fuga, das possibilidades de movimentações e conexões entre "o
que se é" e "o que se quer ser". Mas onde se joga, também, a
constante "digitalização", desterritorialização das estórias
particulares de vida dos jovens negros portugueses, "( ) fora de uma
experiência particular, de uma cultura particular"(Hall, emSharma, Hutnyk
e Sharma, 1996: 41).
Notas
1 O conceito de "processo de identificação", segundo René
Gallissot (1987a), vem dar conta da impraticabilidade da plenitude identitária,
no caso, por exemplo, dos filhos de imigrantes. Furtando-se à lógica, presente
no discurso comum das ciências sociais, do determinismo das expressões
culturais dominantes a cultura dos pais e a cultura do país receptor ou de
origem dos filhos na elaboração de uma definição operacional de identitade
ou identidade étnica, René Gallissot, avança com a necessidade de se
evidenciarem outros determinismos. Outros determinismos, ou simulacros de
outros referenciais culturais transnacionais, que, no mesmo sentido de os
precedentemente citados, vão ser outras tantas referências disponíveis em ordem
à elaboração, não de uma noção de identidade stricto sensu, mas de uma matriz
de possibilidades de modulação dos próprios referenciais culturais e, por
conseguinte, de modulação do processo de identificação dos filhos dos
imigrantes.
2 Como sejam o break dance, a dança performativa (acrobática) do ritmo
sónico sincopado ou break beat imposto pelo rap; ou o graffiti, expressão
artística e plástica fazendo uso de sprays para, nos suportes mais variados e
com técnicas, regras e hierarquias próprias, definir a expressão plástica por
excelência de todo o movimento juvenil, urbano, artístico e performativo
denominado hip-hop. O hip-hopabarca, portanto, os componentes citados, a saber:
o estilo musical rap, que se desdobra em duas dimensões, o DJing ou a prática
de manipulação sonora através do uso de gira-discos e, mais tarde, do sampler e
do sequenciador e o MCing (MC mestre de cerimónias), ou a prática de
introduzir a prosa e a poesia amplificada por um microfone nos ritmos do rap.
E, finalmente, obreak dance e o graffiti. Veja-se a este propósito: Contador e
Ferreira, 1997; Rose, 1994.
3 A block party designa a festa ilegal, improvisada num bairro cercado para
o efeito. Estas festas marcam o início do rap, porque lá se juntavam osDJe
MCque viriam a fazer história deste estilo musical. Para além destes actores da
cena hip-hop, juntavam-se-lhes os breakdancers em grupos, ou crews. Movidos por
uma invariável e necessária rivalidade, os breakdancers desafiam-se em figuras
e estilos acrobáticos num clima de batalha performativa com vista a uma fama
bairrista, cuja posteridade dependia do renovar do arrojo das próprias
actuações ou performances. Ver: Rose, 1994; Contador e Ferreira, 1997.