Oito temas para debate: violência e segurança pública
O tema da violência no Brasil assumiu grande importância na discussão pública e
tomou um rumo muito marcado pela recente história política do país e pelo papel
que nela tiveram os intelectuais que trabalhavam nas universidades e
organizações não governamentais. Os últimos 25 anos cobrem um período da
história do país marcado por profundas mudanças políticas, sociais e
econômicas, das quais os cientistas sociais participaram como pesquisadores e
como cidadãos. O grande desafio para eles, bem como para os militantes de
movimentos políticos e os cidadãos do país foi explicar como, justamente no
período em que o país recuperava as instituições da democracia, ocorreu grande
aumento da criminalidade e das violências, seja a institucional, seja a
doméstica, seja a difusa violência urbana. Nas paradoxais tentativas de
encontrar respostas para este enigma, muitas foram as proposições repetidas ad
nauseam nos meios de comunicação de massa ou nos estudos mais especializados.1
1A pobreza é a causa da criminalidade.Esta afirmação, repetidamente utilizada
na defesa dos pobres, mas que justifica a preferência, carregada de suspeitas
prévias, que policiais têm pelos pobres, baseia-se no pressuposto utilitarista
de que, movido pela necessidade, o homem agiria para sobreviver. Há uma redução
da complexa argumentação para o primado do homo economicus, comandado
exclusivamente pela lógica mercantil do ganho e da necessidade material. Essa é
uma das dimensões a serem consideradas, mas de fato explica a ambição de
enriquecer de todos, sem importar o nível de sua renda e a sua origem social.
Estudos recentes mostram que os pobres são as maiores vítimas de furtos, roubos
e assassinatos, estes últimos nos locais onde o tráfico de drogas domina e não
há policiamento que proteja a população. Esse argumento economicista não deixa
enxergar a dimensão do poder, do simbólico e da paixão destrutivos: o triunfo
sobre o outro, o orgulho pela destruição do outro, o prazer de ser o senhor da
vida e da morte, o gozo no excesso de liberdade na festa dentro da comunidade
dos comparsas, presentes tanto em assaltos à mão armada quanto em grandes
massacres. Wolfgang Sofsky (1998),2 sociólogo alemão que estudou o terror e
escreveu um tratado sobre a violência, narra com crueza o que vem a ser essa
paixão. Escolhe, para ilustrá-la, o personagem Gilles De Rais, nobre francês
contemporâneo de Joana D'Arc, que adquiriu o gosto de matar durante a Guerra
dos Cem Anos e continua a fazê-lo quando não há mais guerra. Caçou, torturou e
matou meninos com a ajuda de seus servos, conforme suas confissões. A redução
da criminalidade violenta à pobreza tampouco permite analisar os seus efeitos
inesperados. Essa criminalidade aumenta a pobreza e os sofrimentos dos pobres,
na medida em que impede o acesso aos serviços e instituições do Estado, tais
como escolas, postos de saúde, quadras de esporte, vilas olímpicas etc., e
ameaça os profissionais que atendem a população pobre. Também ameaça os jovens
pobres que, em função da atividade que exercem em seus empregos, são obrigados
a entrar em favelas inimigas e são mortos enquanto trabalham para viver, caso
sejam reconhecidos como moradores de favelas inimigas.
2A desigualdade social é a explicação da violência.Baseada principalmente no
diferencial de renda entre os mais ricos e os mais pobres, ou no diferencial de
IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), essa tese pressupõe que a revolta
moveria os homens a agir violentamente para diminuir as distâncias e as invejas
que a desigualdade provoca. Considera a dimensão do poder, mas não aprofunda a
dimensão subjetiva da desigualdade, nela incluída a da violência já mencionada.
A desigualdade, por ser medida em índices, tende a ser reduzida ao que é
quantificável, principalmente à renda monetária, à escolaridade e à expectativa
de vida. Continuam excluídos dos índices, no entanto, os efeitos menos visíveis
da violência institucional e da violência difusa no social, assim como o acesso
à justiça. No caso da violência policial, a dualidade observada por A. L.
Paixão (1988) permanece: a polícia para os moleques, elementos e marginais (os
pobres) e a polícia para os doutores e senhores (os ricos).
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No plano social, no entanto, há processos igualitários que amenizam a
violência, por um lado, e aumentam a revolta, por outro. Na Índia, por exemplo,
país considerado pelos índices internacionais muito menos desigual que o
Brasil, vigora um sistema de castas que proíbe certas ocupações superiores aos
membros das castas mais baixas, atribuindo-lhes as consideradas mais vis. O
casamento intercasta também é proibido. Dois jovens enamorados que pertenciam a
castas diferentes foram mortos por seus respectivos parentes no ano de 2001. Há
várias dimensões da desigualdade que não foram incorporadas nos índices: a
civil (inclusive a existência de leis anti-racistas), a política, a cultural, a
institucional etc. Além disso, os homens que se juntam nas hordas, bandos ou
quadrilhas de transgressores ou marginais, muitas vezes ainda festejados como
opositores à ordem vigente, não agem violentamente para acabar com a violência
ou inverter a ordem social, visto que a desigualdade existe em alto grau dentro
das organizações e redes da criminalidade transnacional contemporânea, dominada
pelo mercado selvagem dos tráficos. A desigualdade é parte da microestrutura de
poder no interior das quadrilhas e se manifesta não só na divisão do butim que
cabe a cada um, mas também no diferencial de submissão aos instrumentos da
violência. Os que estão nos escalões mais baixos sofrem muito mais o medo e o
martírio de viver ameaçados pela morte cruel e implacável nas mãos dos
inimigos. Vivem sob o império do interdito da traição e da ação independente do
comando. A violência cria um abismo absurdo entre o que detém o instrumento,
que obriga a submissão, e a sua vítima, que não tem defesa nem recurso. Tem que
obedecer. Essas formas extremas de violência desmantelam culturas e
possibilidades de associação culturas que teriam sido inventadas para conter
tais paixões ou impulsos humanos , sem que consigam fazê-lo completamente.
3A cultura da violência existe e cresce.Segundo essa assertiva, uma cultura
específica encapsularia a violência em certas sociedades ou civilizações. Mas a
violência não se refere aos critérios de tal ou qual civilização, nem às regras
de uma sociedade dada, nem mesmo de um tempo histórico determinado. Ela é
imanente ou presente, mesmo que limitada ou relativamente controlada, em todas
as culturas, assim como a cultura da paz. Tem outros nomes na antropologia:
reciprocidade negativa ou positiva e destruição de coisas e pessoas ou
construção de laços sociais mesmo entre inimigos, numa visão que é dicotômica
mas que não exclui a tensão permanente entre esses dois pólos nos confrontos
competitivos e conflitivos do potlacht, do esporte moderno e de muitas trocas
agônicas. Nessas trocas, as regras que impedem a completa destruição dos outros
são acordadas e vigoram para que o jogo continue. Quando a violência irrompe,
muitas vezes, por uma conjunção de ações retroalimentadas por outras ações
individuais ou coletivas, ela é governada não apenas pelo cálculo racional, mas
pela paixão ou emoção descontrolada. A violência absoluta se exalta e se
propaga indefinidamente no circuito das vinganças, mas também dos prazeres
destrutivos que se tornam viciados e excessivos. Quando baseada no massacre ou
no terror, ela inverte o mundo familiar, cria a incerteza, destrói a
previsibilidade das ações. Os olhares tornam-se vagos, não há mais terreno
seguro, perde-se o chão, o abrigo e a proteção, tal como vimos acontecer ao
vivo e em cores no dia 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, mas também no
Iraque e no Afeganistão. Tais ações descontroladas não são mais combates entre
duas quadrilhas ou grupos em guerra, mas verdadeiros massacres de quem não está
envolvido e não tem meios de defesa, porque os massacres acontecem dentro de
ambientes fechados (como nas torres do WTC). Esses excessos, no Brasil, são
promovidos pelos grupos de extermínio, sejam eles compostos de policiais ou
traficantes, dentro de casas, bares, favelas, onde o fator surpresa impede que
as vítimas fujam (às vezes para serem caçadas) ou se defendam com armas de
potência similar. As conseqüências sociais são catastróficas na medida em que
não é mais possível prever o comportamento alheio, deixando portanto de
funcionar os parâmetros do perigo e da ordem, assim como os fundamentos da
confiança, sem a qual não existe vínculo social positivo. Nessas situações, é o
medo sem direção, isto é, o pânico que prevalece. Atinge, embora desigualmente,
tanto os pobres e camadas médias da favela quanto os pobres e camadas médias do
asfalto, os primeiros porque estão no centro da ação de guerra e são vítimas de
crimes violentos, os segundos por estarem na periferia da ação e por serem
vítimas de crimes contra a propriedade. Uma estratégia pública muito bem
pensada e muito eficaz precisa ser montada para interromper esse circuito.
Dizer que o medo aqui é fruto da manipulação da mídia é, portanto, uma
afirmação ideológica que tenta negar o que acontece: não apenas a violência
institucional, mas sobretudo a violência que resulta das transações selvagens e
ilegais dos tráficos no crime-negócio.
4Contam-se os mortos e os danos para avaliar o crescimento da violência. Além
dos mortos e feridos que podem ser contabilizados em delegacias e hospitais, há
também que se levar em conta os sofrimentos psíquicos e morais. Os primeiros
são visíveis e publicitáveis. Os segundos são invisíveis, e deles pouco se
fala. As vítimas da violência que sobrevivem não têm apenas as deficiências
físicas que decorrem das agressões sofridas. As marcas traumáticas no seu
psiquismo são tão ou mais graves, e muitas jamais cicatrizam. Parentes e amigos
das vítimas que sobrevivem têm também o seu ordálio de sofrimentos. Um exemplo
é a própria humilhação sofrida cotidianamente por jovens (homens e mulheres)
que não podem dizer não aos chefes muito bem armados das quadrilhas ou aos
policiais que se comportam também como déspotas, nos locais onde suas ações não
podem ser denunciadas por causa do terror já implantado entre seus moradores.
Denunciar a polícia como instituição, numa tentativa infantil de afirmar que
não se precisa dela, é negar sua importância crucial na garantia dos direitos
civis ou humanos o direito à vida e à propriedade e abdicar de torná-la
mais capaz de um controlo democrático da criminalidade, que vitimiza
principalmente os pobres. É preciso, portanto, modificar a polícia e seus
métodos de enfrentamento dessa situação terminal com a máxima urgência. Acabar
com a guerra entre comandos, e de policiais versus bandidos, para preparar
policiais e moradores nas novas relações de cooperação que se fazem
necessárias.
5O monopólio legítimo do uso da violência é que gera o medo e a violência
disseminados no social.Este monopólio, que nunca existiu no Brasil, agora, com
o armamento do crime organizado, dos grupos de extermínio, dos justiceiros e
das empresas de segurança privada, continua não existindo, ainda mais
claramente do que algumas décadas atrás. Mas o Estado brasileiro nunca foi
suficientemente forte para impedir o uso da violência privada pelos
proprietários de terra e por grupos particulares de segurança. Mais uma razão
para não negar o medo e confundi-lo com ideologia manipulada pela mídia. O
Estado brasileiro nunca cumpriu nem medianamente a principal função de todo
Estado: dar segurança a seus cidadãos, um direito muito valorizado por todos
sem importar a escolha sexual, a religião, a cor da pele, o gênero, o nível de
renda, a escolaridade etc. , mas particularmente importante para todas as
categorias minoritárias que não possuem os meios para sua defesa, no caso do
ataque de quem está mais bem armado. Esses grupos precisam da proteção estatal
contra seus predadores.
6A posse e o porte de armas pelos habitantes da cidade (cidadãos), que as
compram na ilusão de que se protegem, estão na raiz do problema.De fato, a
facilidade de obter armas, tanto no comércio legal como no contrabando, tem
contribuído para o aumento dos homicídios e das lesões sérias nas vítimas de
agressões. Mas os acidentes decorrentes da imprudência de manter uma arma em
casa têm incidência muito baixa. Não se pode tampouco tomar o depósito da
polícia, conhecida pela sua ineficácia e minada pela corrupção, como o
indicador do tipo de arma que prevalece entre os moradores da cidade. As mais
poderosas, tecnologicamente superiores, mais caras e cobiçadas não vão para o
depósito. Trocam de mãos no comércio clandestino que flui entre policiais e
bandidos, assim como no tráfico ilegal que viaja clandestinamente em navios e
caminhões. O Porto do Rio de Janeiro, assim como de outras cidades, é o centro
dessa importação feita nas trevas dos porões e das noites. Por isso mesmo, a
maior taxa de homicídio no Rio de Janeiro está na região do Centro. Por isso,
também, a guerra entre os comandos ocorre agora pelo domínio militar das
favelas ao redor da Baía de Guanabara. As armas importadas, embora
tecnologicamente superiores (foram feitas para guerras entre Estados e desferem
dezenas de tiros em segundos), são consideradas leves e podem ser carregadas
por crianças. Essa revolução tecnológica nos armamentos tem sido amplamente
utilizada, tanto nas guerras civis fratricidas quanto nos conflitos sangrentos
entre quadrilhas e comandos do crime-negócio. Muito mais atenção deve ser dada,
portanto, ao tráfico ilegal e internacional de armas.
7Traficantes que nasceram nas favelas são vítimas, mais do que responsáveis,
pelo tráfico no Brasil.O mercado sem limites institucionais e morais é
importante no comércio de drogas e armas. Estão imbricados com os fluxos de
dinheiro para paraísos fiscais, como outras formas de comércio ilegal e
corrupção. Impossível, portanto, que para movimentar as toneladas de drogas e
os milhares de armas que aqui circulam, não haja redes interconectadas de
negociantes que envolvem vários personagens da economia legal e ilegal do
país. Se os tráficos são males que aumentam a desigualdade, empobrecem ainda
mais o povo e pioram o bem-estar social, então é preciso encontrar as formas de
controlá-los e combatê-los. Não há como continuar a silenciar a respeito dos
feitos de traficantes simplesmente porque são marginais e a origem humilde de
alguns deles explica, justifica e faz perdoar seus atos. A luta por uma nova
ordem mundial deve incorporar esses argumentos que estão por trás da tragédia
do povo afegão, mas também do paquistanês e de vários países do sudeste
asiático. Novas formas de investigação e intervenção são indispensáveis para
que se possa falar de uma nova polícia. Não é com prédios novos, computadores
ou viaturas apenas que isso será alcançável.
8A segurança pública não pode ser a preocupação central dos que atentam para a
consolidação da democracia no país. Ao contrário, este é o ponto nevrálgico
para continuar o processo que se interrompeu por causa das indefinições e
oscilações das políticas públicas no Brasil. Refazer os circuitos da
reciprocidade positiva significa integrar a população nas próprias atividades
da segurança pública. Uma estratégia que não negue o conflito, e sim socialize
os jovens na forma mais civilizada de lidar com ele, o que inclui os jovens que
aderem às forças policiais. É preciso mais atenção à pedagogia e à formação
oferecida nas escolas e quartéis no que diz respeito à socialização para uma
sociedade em que a civilidade, a confiança mútua e a previsibilidade dão as
condições básicas para novos arranjos e práticas sociais. A participação é
importante na medida em que não há segurança sem que as pessoas compreendam os
perigos e riscos que correm e façam, elas mesmas, o que podem para controlá-los
ou evitá-los. A participação é igualmente importante, pois é o que permite
passar da normatividade burocrática e autoritária para uma normatização melhor
aceita pelos que devem internalizar e praticar suas regras. Bairrismos só
atrapalham. Preparar cidadãos e policiais para a cooperação que se faz mais que
imprescindível é condição sine qua non. O modelo da polícia comunitária não
funciona onde os traficantes controlam militarmente o território e impõem medo
aos moradores. O alcance do trabalho policial é pequeno e ainda se expõe a
acusações de conluio com os criminosos. Antes, faz-se preciso tirar as pessoas
de seus refúgios privados, onde se aprisionam naquilo que N. Elias chamou homo
clausus e H. Arendt, a solidão organizada, base do totalitarismo moderno. Esse
é o grande desafio e o grande passo a ser dado no Brasil, em todos os seus
estados, em todos os seus pequenos, médios e grandes municípios.
Notas
1 Este texto foi preparado, numa versão original, para a apresentação do
congresso da Associação de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), no final
de outubro de 2001. Nele procurei resumir os argumentos apresentados na
discussão de algumas das afirmações mais frequentemente repetidas.
2 Sofsky, Wolfang (1998), Traité de la Violence, Col. NRF Essais, Paris,
Gallimard.
3 Paixão, Antônio Luís (1988), Crime, controlo social e consolidação da
cidadania, em F. W. Reis, e G. O'Donnell, A Democracia no Brasil: Dilemas e
Perspectivas, Vértice, São Paulo.
* Alba Zaluar é professora titular de Antropologia no Instituto de Medicina
Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, coordenadora do NUPEVI
(Núcleo de Estudos das Violências) e assessora do Prefeito do Rio de Janeiro
para Segurança Participativa. E-mail: azaluar@openlink.com.br