O modelo dewelfare da Europa do Sul: reflexões sobre a utilidade do conceito
Hell has no fury like a mislabelled specimen
[Peter Baldwin, 1996]
Os mundos dos modelos dewelfare
O facto de as políticas sociais serem cada vez mais vistas quer como parte
integrante das economias políticas nacionais, quer como elementos definidores
da natureza dos estados modernos, tem contribuído para tornar o estudo do
estado providência particularmente popular entre os cientistas sociais.1 Assim,
estudar a forma como aqueles variam de país para país tem-se revelado
importante, não apenas para compreender dinâmicas mais gerais da economia
política, mas, também, para desenvolver hipóteses sobre países específicos.
Deste modo, a forma como hoje concebemos os estados providência é, em larga
medida, tributária de uma lógica comparativa, assente na agregação de países em
torno de aspectos institucionais e constelações de outputs.
Foi neste contexto que o amplamente citado livro de Gøsta Esping-Andersen
(1990) The Three Worlds of Welfare Capitalism despertou um interesse
renovado em torno do estudo dos estados providência nas sociedades do
capitalismo avançado. Ao abandonar a lógica das pesquisa anteriores, centradas
maioritariamente ou em configurações ideais típicas ou nos níveis e tipos de
despesas sociais, a abordagem de Esping-Andersen transformou os estudos
comparativos sobre políticas sociais. De acordo com Francis Castles e Deborah
Mitchell (1993: 100), a consequência foi que as tarefas de investigação neste
campo alargaram-se de uma descrição dos factores que determinam a natureza dos
diversos tipos de inputs, para um desafio triplo:
* estabelecer com precisão a natureza das ligações que operam em cada país, bem
como entre áreas de políticas;
* localizar as configurações amplas que providenciam o bem-estar e que
caracterizam os estados providência contemporâneos;
* procurar razões para que configurações particulares ocorram em países
específicos.
Ainda que sujeito a uma série de críticas, que ele próprio reconheceu e
procurou superar no seu livro mais recente (1999), Esping-Andersen procurou
lidar com estas três dimensões a partir de uma perspectiva macro e comparativa.
Partindo dos conceitos de desmercadorização de Karl Polanyi (1944), de
cidadania social de T. H. Marshall (1950), dos modelos ideais típicos de
políticas sociais de Richard Titmuss (1974) e, essencialmente da codificação
destes conceitos levada a cabo pela escola da power resources theory, Esping-
Andersen definiu o conceito de modelo de welfare.2 Este conceito tornou-se um
instrumento particularmente poderoso para a compreensão de como as políticas
sociais influenciam o funcionamento do mercado de trabalho, bem como estruturas
sociais mais amplas e de como neste processo uma série de factores se
interligam. Assim, Esping-Andersen agrupa países em modelos através de três
princípios teóricos que funcionam enquanto agregadores de indicadores: os
efeitos da cidadania social na posição dos indivíduos perante o mercado de
trabalho; o sistema de estratificação social que daí resulta; e a relação que
se estabelece entre estado, mercado e família na provisão social. De modo a
identificar e classificar os modelos de welfare, utiliza um conceito
determinante: desmercadorização, entendido enquanto o grau segundo o qual
aos indivíduos ou às famílias é possível manter um nível de vida socialmente
aceitável, independentemente da participação no mercado (Esping-Andersen,
1990: 37). Este conceito é uma ferramenta que visa captar a capacidade dos
estados providência para enfraquecer a supremacia da relação mercadorizada,
resultante da participação formal dos indivíduos no mercado de trabalho. De
acordo com a sua linha de argumentação, a evolução e o desenvolvimento dos
estados providência são consequência das diferentes respostas a pressões com a
vista à desmercadorização, e é através deste processo que é possível
distinguir três modelos distintos de welfare o escandinavo ou social-
democrático; o continental ou corporativo; e o anglo-saxónico ou liberal.
As características principais de cada um dos três modelos têm sido
abundantemente descritas e debatidas, pelo que dado o propósito deste artigo,
debruçar-me-ei apenas sobre o modelo corporativo, pois, frequentemente, os
países da Europa do Sul são vistos como versões menos desenvolvidas deste.3
Contrariamente à lógica desenvolvimentista dos direitos de cidadania, tal como
definida por T. H. Marshall (1950), as raízes do estado providência nos países
integrantes do modelo corporativo não se encontram no processo sequencial que
resulta da conquista dos direitos de cidadania civil, política e,
consequentemente, social, mas, sim, na tentativa de estados autoritários
conterem este mesmo processo. Nos países da Europa continental, as políticas
sociais foram frequentemente utilizadas por regimes autoritários,
simultaneamente, como forma de abrandar a mobilização dos movimentos operários
e de aumentar a lealdade dos funcionários públicos a um estado central, muitas
das vezes embrionário (note-se o caso paradigmático da Prússia no tempo de
Bismarck, claramente não movido por nenhuma ambição solidária).
4 Uma outra influência decisiva nas fundações deste modelo prende-se com a
doutrina social do catolicismo, nomeadamente através da codificação por esta do
papel da família e da comunidade na transição das sociedades feudais para as
sociedades industrializadas.5 Assim, o papel desempenhado pela tradição é
particularmente importante para a garantia do bem-estar, designadamente através
da importância concedida a estruturas pré-industriais ao mesmo tempo
distintas das forças do mercado e dos interesses das classes operárias e que se
encontravam socialmente encastradas, quer na igreja, quer na família ou
ainda, através da perpetuação pública de formas de solidariedade que precedem a
industrialização, e daí o paralelo entre as mutualidades e os esquemas
ocupacionais de seguro social (Crouch, 2001: 178). Como tal, pode mesmo
afirmar-se que o objectivo central implícito às políticas sociais nos países do
modelo corporativo é, não a desmercardorização e a promoção da mudança
social por via da redistribuição, mas, sim, a manutenção de formas
preexistentes de solidariedade, ainda que a um novo nível e procurando dar
resposta aos riscos trazidos pela sociedade industrial. É neste sentido que um
dos valores essenciais que rege as políticas sociais nestes países é a
preservação da coesão social, sendo a intervenção pública vocacionada para a
garantia da estabilidade e da segurança (Goodin e outros, 1999: 55).
Intimamente ligada a estas fundações ideológicas encontra-se uma forma
particular de concessão da responsabilidade na promoção da coesão social: o
princípio da subsidariedade (Kersbergen, 1995). Subsidariedade que implica
esquematicamente:
* que o estado não trate de forma igual todos os indivíduos e grupos sociais
mas que, numa atitude característica do corporativismo, lide com os grupos
sociais de acordo com o seu status;
* uma relutância da sociedade em delegar poderes no estado, sendo este visto
como o último recurso para a intervenção social, e somente responsável pela
intervenção quando outras instituições, de natureza intermédia, se mostram
incapazes;
* que os benefícios sociais para os homens adultos sejam capazes de substituir,
em caso de necessidade, o nível de rendimentos familiares preexistentes
(Castles, 1994: 22-3).
Para usar a distinção durkheimiana, neste modelo, o papel das solidariedades
mecânicas é fundamental, ainda que o desenvolvimento das solidariedades
orgânicas seja reconhecido como necessário. É neste contexto que deve ser visto
o papel da família patriarcal na promoção do bem-estar, com o homem ganha-pão
ligando o agregado familiar à sociedade, através da sua relação laboral, e a
mulher responsável pelo bem-estar do agregado, ligada às estruturas sociais
mais vastas através do trabalho do marido (Goodin e outros, 1999: 52).
A organização institucional e a estrutura de benefícios nos estados providência
que compõem o modelo corporativo resultam deste contexto ideológico e social.
Como sublinha Esping-Andersen, a essência do modelo corporativo' assenta numa
mistura de segmentação baseada no statuscom familiarismo" (1999: 81).
Consequentemente, todas as políticas, quer de garantia de rendimentos, quer de
saúde, encontram-se relacionadas directamente com o estatuto do agregado
familiar no mercado de trabalho. Ainda que hoje em dia se assista a mudanças e
a alguma ténue convergência por força da europeização, a lógica bismarckiana de
seguro social ocupacional obrigatório é dominante e, com a excepção da
assistência social, os benefícios sociais e as regulamentações que os regem são
diferentes de acordo com o grupo profissional de pertença. Os esquemas de
protecção social baseiam-se essencialmente em transferências monetárias,
utilizando um mecanismo horizontal de distribuição, não promovendo, de forma
generalizada, serviços de apoio à família. Uma outra característica deste
modelo prende-se com a sua natureza dualista, i.e., os insiders encontram-se
firme e efectivamente protegidos, ao mesmo tempo que os outsiders (aqueles que
ou não têm uma carreira contributiva sólida ou trabalham nas margens do mercado
de trabalho formal e no mercado informal) são discriminados e deixados sob a
protecção de redes incipientes de assistência social.
A principal consequência desta configuração, quer no que se prende com o
funcionamento do mercado de trabalho, quer no que se prende com a distribuição
de rendimentos, é que, devido à supremacia do objectivo coesão social, é dada
prioridade à protecção do adulto ganha-pão com uma relação laboral formal e
duradoura. Deste modo, nomeadamente quando comparados com os países
pertencentes quer ao modelo liberal, quer ao modelo social-democrático,
estes países apresentam níveis de desemprego mais elevados, afectando
essencialmente as mulheres e os jovens, combinados com taxas de emprego baixas
para estes dois grupos. Ainda assim, a percentagem de famílias pobres, bem como
o índice de Gini, apresentam valores não distantes dos do modelo social-
democrático usualmente visto como um benchmark a este respeito.
De acordo com Esping-Andersen, o quadro geral das características principais do
modelo corporativo adequa-se aos países do capitalismo avançado da Europa
Continental, mas, também, aos países da Europa do Sul. Especialmente nos seus
primeiros trabalhos sobre o tema, Esping-Andersen devota pouca atenção aos
países da Europa do Sul, fazendo derivar as suas características daquelas
encontradas nos países continentais e assumindo que aqueles são versões pouco
desenvolvidas destes.6 Na verdade, como referia Francis Castles, em 1995,
olhando para o output dos estudos comparados sobre o estado providência, é como
se a Europa do Sul não existisse. Entretanto, a investigação centrada no estado
providência destes países tem-se desenvolvido, levantando uma série de questões
sobre a capacidade do modelo corporativo para compreender e explicar a
diversidade dos países que, à partida, o compõem. É, hoje, claro que não só não
há razão para excluir estes países dos estudos comparativos, como, também, as
suas especificidades colocam em causa os próprios pressupostos em que assentam
estes estudos. Como escreve Luis Flaquer, referindo-se à situação actual da
Europa do Sul, os seus programas de substituição de rendimentos não são
residuais, os seus estados providência estão substancialmente desenvolvidos e
os dados disponíveis já não são disponibilizados de forma desadequada. Estes
países podem ensinar-nos bastante sobre as relações complexas que se
estabelecem entre o estado, o mercado e a família, considerados os três
alicerces do edifício do bem-estar (2000: 15). No entanto, para avaliar a
utilidade de tomar os países da Europa do Sul como constituindo um quarto
modelo, é importante ter em consideração as críticas mais genéricas à abordagem
de Esping-Andersen.
Os limites dos três mundos dewelfare
Uma determinada tipologia de welfare só é válida e útil em termos relativos e
tendo em consideração, quer o seu potencial heurístico, quer a sua relevância
analítica (Ferrera, 1997: 23-4).7
Desta perspectiva epistemológica resulta uma série de consequências para o
estudo dos modelos de welfare no âmbito da abordagem tríptica proposta por
Esping-Andersen, nas quais radica a necessidade e utilidade de criar um quarto
modelo.8 Consequências estas que se prendem com a capacidade de um determinado
modelo reflectir a diversidade interna dos países que o compõem e com a
pertinência e exaustão dos critérios utilizados para agrupar os países.
Se é verdade que a tipologia proposta por Esping-Andersen é um instrumento
poderoso para promover hipóteses e compreender de forma macro as dinâmicas dos
estados providência (assim como da interacção entre estes), o mercado de
trabalho e os agregados familiares, esta revela, contudo, limitações ao nível
da compreensão das nuances e especificidades de cada um dos países que fazem
parte de um modelo. Isto é, por sublinhar as semelhanças em detrimento das
diferenças, incorre o risco de prejudicar o seu próprio potencial explicativo.
Isto remete-nos, claramente, para os critérios em que se baseia a agregação de
países em modelos de welfare.
Podemos distinguir dois tipos de críticas aos critérios utilizados por Esping-
Andersen. Um primeiro que se prende com o carácter etnocêntrico da sua
abordagem e um segundo, ainda que interligado, que tem a ver com os limites do
conceito de desmercadorização.
Na verdade, na sua abordagem, a definição de estado providência, bem como da
forma como este se desenvolveu, é baseada no modelo escandinavo e na
perspectiva da escola de power resources. Se é verdade que esta explicação
funciona genericamente no que toca aos países escandinavos, o mesmo não se
aplica em relação a outros países. Esta estreiteza teórica cria problemas à
compreensão do desenvolvimento de estados providência noutras regiões,
limitando a compreensão das interacções que destes resultam (Boje, 1996: 17). A
utilização do conceito de desmercadorização como indicador primordial para a
classificação dos estados providência, assenta precisamente numa perspectiva
centrada na realidade escandinava, em que o principal instrumento de garantia
de bem-estar se encontra associado aos mecanismos de substituição de
rendimentos, i. e., aos esquemas de segurança social. Fazer derivar o essencial
da natureza de um modelo de welfare a partir da forma como os esquemas de
substituição de rendimentos desmercadorizam a situação dos indivíduos
relativamente ao mercado de trabalho, não só negligencia o papel de outras
dimensões na garantia do bem-estar, como pode ser um obstáculo à compreensão de
dinâmicas mais complexas e diversas das que derivam do papel dos mecanismos
formais de segurança social.
Assim, para compreender a produção do bem-estar nos países do capitalismo
avançado há, não apenas, que centrar a atenção na capacidade
desmercardorizadora do estado providência, mas, também, com intensidade
semelhante, na forma como a acção deste interage com os dois outros alicerces
desta produção: o mercado de trabalho (formal e informal) e os agregados
familiares. Foi neste contexto que surgiram as críticas que salientam a
importância das questões de género para compreender as políticas sociais, e de
forma mais ampla a formação e a estruturação dos estados providência.9
De acordo com investigadores que têm reflectido sobre a implicação do género
nas políticas sociais, as perspectivas tradicionais de investigação do estado
providência não tomaram em consideração um número de formas de provisão de bem-
estar. Como sublinha Jane Lewis, a relação crucial é não apenas entre trabalho
assalariado e bem-estar, mas entre trabalho assalariado, trabalho não
assalariado e bem-estar ( ) conceitos como desmercadorização e dependência têm
um significado de género raramente reconhecido. Quando Esping-Andersen fala de
desmercadorização enquanto um pré-requisito necessário à mobilização política,
o trabalhador que ele tem em mente é homem e a sua mobilização pode depender
tanto do trabalho feminino doméstico e não assalariado como das políticas
estatais. ( ) A divisão desigual do trabalho não assalariado embacia as
distinções dicotómicas entre dependente e independente, mercadorizado e
desmercadorizado (1992: 160-1). Deste modo, os modelos podem variar, não
apenas de acordo com a natureza da desmercardorização que promovem, mas,
também, de acordo com a forma como se afastam do paradigma do homem ganha-
pão.
No centro destas críticas encontra-se, em última análise, o papel da família na
garantia do bem-estar e, consequentemente, na configuração dos modelos ou
seja, a família não deve ser encarada como uma questão sectorial na análise da
produção do bem-estar, mas, pelo contrário, enquanto uma dimensão essencial
para a sua compreensão. É, aliás, neste sentido que Esping-Andersen (1999),
respondendo e incorporando muitas das críticas feitas, procede a uma reanálise
dos regimes de welfare, considerando de forma mais sistemática o papel da
família na provisão do bem-estar e a interacção desta com o estado e o mercado.
Para tal, procede a uma reanálise de duplo sentido. Por um lado, questiona a
forma usualmente não dinâmica como o papel da família é considerado no
triângulo que providencia o bem-estar i. e., a incapacidade revelada pela
maior parte das teorias sobre o estado providência em captar as transformações
não lineares ocorridas na família, nomeadamente o modo como frequentemente
estes processos de mudança se afastam do paradigma parsoniano. Por outro lado,
analisa a forma como as transformações na família interagem, quer com a
produção quer com o consumo de bem-estar e, mais genericamente, quais os seus
efeitos nos estados providência, bem como nas transformações das sociedades
pós-industriais (1999: 49-50). Tal reanálise assenta num conceito agregador o
de desfamiliarização que surge assim, como um complemento do de
desmercadorização e que pretende captar o nível de obrigações de bem-estar que
dependem da acção da própria família (sendo um regime de welfare familiarista
aquele que maior papel concede à família na provisão do bem-estar).
O que é a Europa do Sul?
Os modelos de welfare são o resultado de longos processos de estruturação e de
uma ampla série de factores em interacção. Para além do mais, dado o
encastramento sociopolítico das políticas sociais, uma compreensão aprofundada
dos aspectos específicos de cada modelo implica que se preste particular
atenção aos contextos históricos em que aquelas se desenvolvem. Como sublinha
Michael Shalev, os países agrupam-se nas políticas, porque se agrupam na
política (cit. Pierson, 2000: 809). Deste modo, para compreendermos os
aspectos comuns dos países que formam um modelo, é necessário compreendermos a
forma como estes têm processos sociopolíticos comuns. Assim, considerar que os
países da Europa do Sul formam um modelo de welfare depende, em larga medida,
dos aspectos distintivos das sociedades da Europa do Sul por relação às
restantes.
Uma primeira questão que se coloca prende-se com os critérios utilizados para
definir Europa do Sul. Sendo claro que existem diversas Europas, como é que
podemos distinguir entre elas? É a geografia uma ferramenta adequada? Então, os
países banhados a sul pelo mediterrâneo deveriam ser considerados como sul-
europeus? A consequência seria incluir a França e, tomando a geografia
literalmente, excluir Portugal. No entanto, para considerarmos a Europa do Sul
como um conceito agregador, é necessário olhar para a extensão dos aspectos
comuns e semelhantes das estruturas sociopolíticas destas sociedades, bem como
para os paralelismos nos seus processos de desenvolvimento. A Europa do Sul é
uma realidade baseada em factores sociopolíticos e não geográficos.
Os candidatos mais bem posicionados para se juntaram à Espanha, Grécia, Itália
e Portugal como membros da Europa do Sul seriam, por diferentes motivos, a
França, Turquia e alguns dos países que formavam a ex-Jugoslávia. No entanto,
ainda que estes candidatos tenham muitas características geográficas,
climáticas, antropológicas e económicas semelhantes às dos quatro países
usualmente aceites como sul-europeus, falta-lhes a amplitude e a intensidade
das semelhanças existentes entre estes (Malefakis, 1995: 35). Por exemplo,
incluir a França não é adequado, na medida em que o seu Sul mediterrâneo tem
sido governado a partir de Paris e tem-se desenvolvido numa direcção formatada
pela identificação com a Europa Central (Sapelli, 1995: 6).
10 A inclusão da Turquia não é adequada dado que, em termos históricos, até
muito recentemente, quando se iniciou um processo de ocidentalização, a
religião, a vida intelectual e as práticas económicas e políticas eram
distintas (Malefakis, 1995: 35). A estes factores devemos acrescentar o facto
de a Turquia não fazer parte da União Europeia, nem tal estar previsto num
futuro próximo.11 Finalmente, a não inclusão dos países da ex-Jugoslávia deve-
se ao facto de o desenvolvimento social, político e histórico destes países ser
semelhante ao de outros países balcânicos, com particular intensidade a partir
da segunda guerra mundial.
Muito sinteticamente, é possível distinguir três níveis de traços comuns entre
a Espanha, Grécia, Itália e Portugal físicos, histórico-políticos e sociais
que têm importantes implicações para o desenvolvimento e estruturação do
modelo de welfare na Europa do Sul.12
As semelhanças entre as características físicas destes quatro países são
conhecidas: clima mediterrâneo temperado, topografia montanhosa, os quatro
países são penínsulas, com costas longas, mas sem rios navegáveis. Para além do
mais, não têm muitos depósitos de carvão e de ferro.13 De acordo com Malefakis,
é possível distinguir três consequências destas características para o
desenvolvimento social destes países.
Em primeiro lugar, o padrão agrícola é trabalho intensivo e, como tal, tende a
resistir à modernização, atrasando o fenómeno de êxodo rural esta é, aliás,
uma das razões para a persistência de níveis comparativamente elevados de taxa
de emprego agrícola, ou de bruscas subidas nas taxas de desemprego durante o
processo de transição do sector agrícola para o dos serviços, sem passagem pelo
sector secundário.
Em segundo lugar, a topografia destes países cria problemas de comunicação,
fazendo com que a construção de vias, bem como de caminhos de ferro, seja
difícil e levante problemas para o desenvolvimento do comércio interno
(fenómeno particularmente gravoso depois da perda da superioridade marítima no
século XVII) e fazendo com que a penetração de um estado central nas zonas
periféricas dos países seja complexa (designadamente quando comparada com a
capacidade da Igreja para mobilizar as populações e complementar uma série de
funções administrativas do estado).
Em terceiro lugar, os recursos minerais disponíveis, nomeadamente a falta de
carvão e ferro, influenciaram o desenvolvimento societal, tornando a
industrialização difícil e, consequentemente, atrasando o desenvolvimento geral
destas sociedades.
A geografia e o meio físico não são apenas dimensões em que as semelhanças
entre os países da Europa do Sul são importantes, mas, também, importantes
factores explicativos do desenvolvimento social destes países, com um impacte
particular no funcionamento do mercado de trabalho.
No que toca aos aspectos histórico-políticos importa distinguir duas
características: o papel da religião e a existência de regimes autoritários que
estiveram no poder grande parte do século XX, mas aos quais se seguiram
transições democráticas, que levaram à consolidação de democracias e posterior
integração plena na União Europeia.
Espanha, Itália e Portugal são países católicos, nos quais o movimento da
reforma teve um impacte residual e nos quais a homogeneidade religiosa é
prevalecente. Para além do mais, até recentemente, a Igreja católica e o estado
encontravam-se intimamente ligados. Daqui derivam dois fenómenos: um atraso no
processo de secularização e um princípio da subsidariedade na produção do bem-
estar, que é particularmente intenso mesmo quando comparado com outros países
corporativos. O papel da igreja católica foi sempre determinante na protecção
social, particularmente nas políticas de assistência social, na concepção das
políticas de família e, até certo ponto, nas políticas de saúde. Como escrevem
Elisabet Almeda e Sebastià Sarasa, reportando-se ao caso espanhol, a igreja
católica exerceu uma influência forte e as políticas foram desenhadas para
apoiar o modelo de família patriarcal (1996: 155). De acordo com Peter Flora,
no Sul católico, a igreja manteve instituições de welfare autónomas ainda no
século XX, como tal impedindo o desenvolvimento de um estado providência
nacional, assim como de uma ideia de provisão de bem-estar pública legítima e
correspondentes obrigações de cidadania. Importantes para a socialização e
controlo social da população, estas instituições católicas foram alvo de
contestação por parte dos nation builders, mas com diferentes níveis de
sucesso, e frequentemente tornaram-se subsidiadas pelo estado, com pouco
controlo público (1986: xviii). O resultado foi que, no campo das políticas
sociais, como em muitos outros, a passagem para a modernidade ocorreu sem que
houvesse uma distinção clara entre os papéis dos poderes seculares e
religiosos, levando a que se desenvolvesse um compromisso entre estado e igreja
na partilha das funções de protecção social (Ebbinghaus e Manow, 2001: 523).14
Uma das dimensões em que os países da Europa do Sul revelam maiores semelhanças
prende-se com os processos políticos. Tomando como exemplo o século XX, é
possível identificar traços comuns nas trajectórias destes quatro países,
distinguindo-os dos restantes países europeus, designadamente se considerarmos
três períodos distintos.15 Um primeiro em que a burguesia começou a adquirir
poder, através do parlamentarismo ou até mesmo de um golpe de estado; um
segundo, correspondendo aos governos autoritários de extrema-direita; e um
terceiro, que se iniciou com as transições para a democracia, subsequente
consolidação democrática e adesão à União Europeia.
O primeiro período é caracterizado pela tomada do controlo das instituições
parlamentares pela burguesia e por uma diminuição do poder político da igreja.
Sob o enquadramento de partidos políticos modernos, a burguesia começou a
ganhar poder, ainda que através da exclusão sistemática da participação
política das classes populares sendo particularmente significativa a ausência
de coligações entre as classes médias progressistas e a classe operária. A
ausência de um movimento operário organizado, a generalização do sistema de
caciques, bem como o clientelismo político são características das democracias
liberais daquele período. Ainda que a sociedade tenha beneficiado de uma
diminuição de conflitualidade entre as elites, por força de uma cooperação
entre liberais e conservadores ex.: rotativismo a verdade é que esta foi
rapidamente compensada pelo aprofundamento da cooperação ilícita entre os
políticos, levando a que o liberalismo se tivesse tornado mais corrupto na
Europa do Sul do que em qualquer outro lugar (Malefakis, 1995: 54). À
semelhança das demais instituições, aquelas ligadas às políticas sociais foram
profundamente afectadas por este contexto. Se neste período ocorreram
importantes tentativas para modernizar, secularizar e alargar o âmbito das
políticas sociais, muitas vezes estas falharam, relativamente à debilidade das
fundações sociais em que assentavam designadamente por se ter tratado de
mudanças radicais, que redefiniram de forma drástica o papel da igreja e das
instituições de caridade.16
Tratou-se de um período de crescimento económico, em que, através de uma
crescente industrialização, ainda que com variações regionais, o capitalismo
lançou os seus alicerces. No entanto, a ordem democrático-liberal não se tinha
encastrado socialmente e a esfera política mantinha-se isolada da sociedade,
promovendo uma distinção entre o país oficial e o país real. A nova ordem
não tinha nem adquirido a devoção das populações, nem o respeito dos
intelectuais, faltando-lhe por isso solidez para enfrentar as tempestades que
se avizinhavam (Malefakis, 1995: 59).
O contexto para o surgimento de coligações políticas baseadas na lei e na
ordem, sustentadas em alguns casos por partidos fascistas, e que limitariam as
liberdades civis e políticas entretanto adquiridas, estava criado.
Consequentemente, as classes sociais e as corporações que haviam perdido
influência e poder apressar-se-iam a recuperá-lo ex.: a burguesia rural, a
igreja católica e alguns sectores militares. Do final dos anos 20 até a meados
dos anos 70, ainda que com nuances temporais e nacionais, regimes autoritários
de extrema direita tomaram o poder, limitando a tendência de secularização, de
modernização económica e de estabelecimento de instituições liberal-
democráticas. O corporativismo tornou-se o principal princípio organizador das
sociedades, nomeadamente devido ao facto de este conceito se ter tornado
essencial no pensamento social da igreja católica desde 1891, com a encíclica
Rerum Novarum.
Este quadro político teve implicações claras para as políticas sociais.
Primeiro, o princípio da subsidariedade readquiriu importância, quer pela
promoção e apoio das instituições de caridade e mutualidades, quer pela
intensificação do papel do modelo de família patriarcal na provisão de bem-
estar. Segundo, dado o papel de intermediação entre capital e trabalho que
supostamente deveria ser assumido pelo estado corporativo, a actividade das
corporações e organizações de trabalhadores foi extensivamente regulada
resultando deste processo a institucionalização de uma miríade de esquemas
ocupacionais de segurança social, com o objectivo primeiro de substituição de
rendimentos.
A segunda guerra mundial mudou a face da Europa do Sul, ainda que a níveis
distintos de país para país. A Itália tornou-se uma democracia,
17 a Grécia viu-se envolvida num processo de divisão interna que culminaria
numa guerra civil, enquanto Espanha e Portugal mantiveram os regimes
inalterados na sua essência. Ainda assim, a partir dos anos 50, o conjunto da
Europa do Sul passou por um período de crescimento económico sem precedentes,18
que potencializou um conjunto de dinâmicas sociais culminantes no
estabelecimento de regimes democráticos. O crescimento das classes médias, o
êxodo rural e a urbanização e, em alguns dos casos, a guerra levaram a uma
crescente discrepância entre o sistema político e as estruturas sociais (Giner,
1995: 16). Após cerca de 50 anos de autoritarismo, a situação de Espanha,
Grécia e Portugal mudaria, abrindo o caminho não só para a democracia, mas
também para uma lógica reivindicativa maximalista, resultante do adiamento da
modernização societal, bem como de uma duradoura e violenta exclusão da
oposição política. Consequentemente, ainda que as transições democráticas
tenham sido rápidas, pacíficas e sem derramamento de sangue, o período que se
seguiu foi particularmente ambicioso em termos de reivindicações.
Como refere Giulio Sapelli, na Europa do Sul, o advento da democracia política
coincidiu com o advento da social-democracia a criação de estados providência
é uma característica desta mudança (1995: 15). A tese de que as democracias
promovem, sob a forma de redistribuição, a igualdade, tem sido avançada, pelo
menos, desde o trabalho de Alexis de Tocqueville sobre a Democracia na
América. Esta perspectiva, reiterada de forma particularmente enfática pelo
trabalho marcante de T. H. Marshall (1950), baseia-se na noção de que a
extensão de direitos políticos traz consigo o desenvolvimento da cidadania
social. Ao conceder influência política a grupos sociais desprivilegiados, os
sistemas tornam-se mais expostos a pressões sociais e controlo sobre conflitos
distributivos, o que produz efeitos importantes na própria natureza dos
estados: as democracias dão lugar a sociedades civis mais poderosas, mas,
simultaneamente, a sociedades com mais recursos e mais capacidade distributiva.
O caso da Europa do Sul é paradigmático desta tendência (Maravall, 1997: 25-6).
Aliás, este é um daqueles casos em que a perspectiva da escola de power
resourcesé particularmente adequada (Korpi, 1983; Shalev, 2001) considerando
que o aumento da generosidade do estado providência foi função da predominância
da esquerda e de uma constelação política com particular influência do
movimento operário.
Na Europa do Sul as políticas sociais sofreram importantes transformações com
as transições para a democracia. Não só foram estabelecidos compromissos
simbólicos e políticos, como as despesas sociais aumentaram de forma
significativa, direitos efectivos foram garantidos e benefícios sociais, bem
como salários, cresceram de forma exponencial. Se bem que os níveis
rudimentares dos benefícios pré-existentes expliquem em parte esta tendência,
contudo, ela não é independente da forte mobilização político-social do
período. Estas transformações não devem ser vistas como uma função da remoção
das ditaduras, mas, sim, interpretadas à luz da libertação de forças reprimidas
durante o antigo regime (Castles, 1995: 306). O estabelecimento de regimes
democráticos permitiu a participação de novos grupos sociais no processo
decisório, levando à introdução de medidas sociais que visavam a melhoria do
sistema de bem-estar. Pode mesmo afirmar-se que as políticas sociais foram um
elemento decisivo na procura de consenso e na legitimação dos regimes
democráticos, na medida em que as reivindicações sociais, podendo ser
expressas, tinham, ainda que parcialmente, de ser concretizadas de forma a
legitimar e consolidar os novos regimes (Guillén, 1996: 258). De acordo com
Juan Mozzicafreddo, discutindo o caso português, num período de profunda
desarticulação do sistema económico, as políticas sociais funcionaram enquanto
factor fulcral de integração social e a resolução equilibrada do processo
revolucionário deveu-se, em parte, à configuração do estado de direito enquanto
estado providência (1992: 71-6). Deste ponto de vista, os problemas associadas
à consolidação democrática foram minorizados e compensados pelo desenvolvimento
de políticas sociais. No entanto, nestes países, o lançamento dos alicerces de
estados providência ocorreu num contexto económico recessivo, prejudicando o
seu desenvolvimento e marcando geneticamente a construção das suas instituições
e benefícios sendo o caso paradigmático de não concretização plena de
promessas iniciais o dos sistemas nacionais de saúde, construídos à imagem dos
sistemas das democracias avançadas da época, mas distantes destes na prática.
A interacção das características das sociedades da Europa do Sul aqui
brevemente apresentadas é, em larga medida, responsável pelo desenvolvimento do
seu tecido social. Na verdade, considerando o desenvolvimento recente destes
países, é possível distinguir duas grandes tendências, nas quais se podem
subsumir as restantes: um amplo processo de modernização e a consolidação de
regimes democráticos (Malefakis, 1995). Estes processos ocorreram mais tarde do
que nos seus congéneres da Europa do Norte e, designadamente por se tratar de
uma tendência tardia, não tiveram uma natureza hegemónica capaz de substituir
totalmente as estruturas pré-existentes. Como sublinha Edward Malefakis,
reportando-se às diferenças destas sociedades, quer com as da Europa de Leste,
quer com as da Europa do Centro e Norte, é possível falar-se de um museu em
que todas as tendências sociais, económicas e políticas que existiram na
Europa podem ser encontradas em alguma esquina, porque as velhas tendências não
foram suficientemente fortes para excluírem as novas, nem as novas
suficientemente fortes para vencer as velhas (1995: 41). O resultado deste
processo foi o crescimento de sociedades semelhantes às dos países
industrializados, mas ligadas a uma estrutura reprodutiva típica dos países
periféricos e caracterizada por uma marcada heterogeneidade social (Sapelli,
1995: 15). É, aliás, também, neste sentido, que Fernando Luís Machado e António
Firmino da Costa, referindo-se ao que chamaram de processos de uma modernidade
inacabada, sublinham que depois de 30 anos de rápida transformação, hoje, a
face da estrutura social portuguesa é um cruzamento singular de traços.
Enquanto alguns a identificam claramente com o padrão dos países europeus de
modernidade avançada, outros marcam, de forma vincada, a distância a esse
padrão ( ). (Revelando) marcas de modernidade que coexistem com outras que,
pelo contrário, se pode dizer resultarem, no renovado sentido do conceito, de
importantes défices de modernização (1998: 17)
Assim, aceitando que um trajecto particular de desenvolvimento socioeconómico é
responsável pela especificidade de um determinado modelo de welfare e que a
diversidade entre estes deve ser entendida enquanto resultado de diferentes
timings na criação das instituições fundamentais de welfare (Flora, 1986:
xvii), para compreender as características distintivas da produção do bem-estar
nesta região, importa dedicar especial atenção aos aspectos
desenvolvimentistas, adoptando uma narrativa histórica (Rhodes, 1997: 7;
Andreotti e outros, 2001: 43). Na verdade, todos os ingredientes do caminho
seguido pela Europa do Sul para a modernização, oferecem uma base explicativa
para os traços distintivos das suas políticas sociais (Ferrera, 1996: 30).
Como tal, a análise do sistema de bem-estar nestes países deve centrar-se não
apenas nos seus outputs e características organizacionais e institucionais, mas
simultaneamente nas peculiaridades, tradições e valores que sustêm o sistema. A
medida em que os países da Europa do Sul se afastam do modelo corporativista
depende da forma como as características do último se encastram socialmente em
tradições resistentes, muitas das vezes pré-industriais.
Um modelo dewelfareda Europa do Sul
É possível distinguir duas abordagens relativamente à natureza do modelo de
welfare da Europa do Sul. Uma primeira que tende a considerar estes países como
versões pouco desenvolvidas do modelo corporativo (cf. Castles, 1995;
Katrougalos, 1996; Esping-Andersen, 1999). Uma segunda que defende que há um
conjunto de características que dificultam uma incorporação linear destes
países naquele modelo (cf. Leibfried, 1992; Ferrera, 1996; Rhodes, 1997;
Naldini, 1999; Flaquer, 2000; Andreotti e outros, 2001).
De acordo com a primeira abordagem, os quatro países não formam um grupo
distinto, mas, antes, uma subcategoria, uma variante do modelo corporativo
não é um quarto modelo na classificação, mas uma edição com desconto do modelo
continental (Katrougalos, 1996: 43-4). Neste sentido, estes países são
considerados enquanto parte deste modelo, com padrões institucionais
semelhantes que, no entanto, não atingiram o mesmo desenvolvimento devido ao
facto de terem tido regimes autoritários até meados dos anos 70 (Castles, 1995:
309).
Uma segunda abordagem procura identificar os aspectos distintivos da promoção
do bem-estar na Europa do Sul. De acordo com esta perspectiva, o importante não
é negar a importância da tipologia de Esping-Andersen, mas, sim, sublinhar que,
para compreender melhor estes países, são necessárias ferramentas que não são
disponibilizadas por aquele enfoque. Isto na medida em que as etiquetas usadas
para caracterizar a Europa do Sul são muitas das vezes meras descrições,
incapazes de compreender a lógica subjacente à promoção do bem-estar, na medida
em que, como sublinha Luis Flaquer, afirmar que o seu aspecto distintivo é o
facto de se encontrarem atrasados por relação aos standards norte-europeus
significa frequentemente impor categorias alienígenas de pensamento a uma
realidade dissimilar (2000: 27). Sendo verdade que, considerando os esquemas
de garantia de rendimentos e o seu efeito na desmercadorização do estatuto dos
indivíduos por relação ao mercado de trabalho formal (e a tipologia inicial de
Esping-Andersen centrava-se essencialmente nesta dimensão), os países da Europa
do Sul encaixam-se bem no modelo corporativo (nomeadamente dada a natureza
bismarckiana dos seus esquemas de segurança social, quer organizacionalmente,
quer em termos de benefícios), o mesmo já não se poderá dizer se considerarmos
outras dimensões da produção de bem-estar. Como tal, para compreender a
produção do bem-estar na Europa do Sul importa olhar para a forma como
protecção social, mercado de trabalho e agregados familiares interagem, bem
como para a forma como neste processo instituições à partida semelhantes se
encastram em realidades sociais distintas.
Maurizio Ferrera (1996; 1997) procedeu ao que o próprio considerou como sendo o
levantamento de um conjunto de características dos países da Europa do Sul e
não a definição de um regime (1996: 18). Sinteticamente, estes países
caracterizar-se-iam: por terem esquemas de protecção social dualistas, gerando
a sobreprotecção dos sectores centrais da força de trabalho e, simultaneamente,
níveis rudimentares de protecção para largos sectores da população; por
apresentarem uma combinação única entre tradições bismarckianas na segurança
social e beveridgeanas na saúde; e pelo impacte das práticas políticas e
disposições organizacionais nos outputs distributivos.
Uma das críticas mais frequentes à abordagem de Ferrera remete para o facto de
esta não tomar em consideração as questões de género (González e outros, 2000:
4) e, consequentemente, não dedicar atenção suficiente ao papel da família,
nomeadamente das mulheres na provisão do bem-estar.19 Note-se que uma das
principais linhas de demarcação da Europa do Sul remete, precisamente, para o
papel assumido por esta e para a forma como valores familiares fortes se
combinam com uma fraca individualização e ausência de políticas de família
explícitas (Naldini, 1999; Flaquer, 2000; Wall e outros, 2001).
Uma outra dimensão da provisão de bem-estar na Europa do Sul está relacionada
com as formas tradicionais de solidariedade, cujo peso é muito reduzido noutras
sociedades europeias, mas que continuam a desempenhar um papel importante nesta
região ou seja, aquilo que tem sido definido enquanto sociedade providência
(Santos, 1994: 64). Estas redes de solidariedade variam no que toca ao grau de
formalização, duração, amplitude, estabilidade e frequentemente envolvem
ligações complexas que variam substancialmente de um contexto rural para um
urbano. No entanto, o papel que assumem na prática, bem como a sua actualidade
e equidade, tem sido motivo de crescente debate (Pedroso, 1998; Torres e
outros, 2000; Wall e outros, 2001), sendo questionável se na análise da
produção do bem-estar na Europa do Sul devemos tomá-las como um quarto
elemento, a juntar à protecção social, ao mercado de trabalho e à família, ou
se, pelo contrário, devemos considerá-las enquanto variante das solidariedades
privadas emanadas da família. Ainda assim, é sustentável que, para compreender
as dinâmicas em jogo na Europa do Sul, importa olhar também para o tipo de
disposição que existe entre estado providência e sociedade providência
(Martin, 1997) e que o papel desempenhado pelas solidariedades comunitárias
reforça e é parte da tradição de subsidariedade dominante na Europa do Sul,
ainda que fortemente dependente do estado (Hespanha e outros, 2000).
Deste modo, se aceitarmos que na Europa do Sul as três faces do triângulo que
consubstanciam um modelo de welfare têm características distintas e que a este
pode mesmo ser necessário acrescentar uma quarta dimensão, então, para
compreender o carácter específico destes países, é necessário afastarmo-nos da
parcimónia característica das abordagens comparativas sobre o welfare. Tal
implica que se preste mais atenção a cada um dos lados do triângulo, bem como à
forma como estes interagem. É o que procurarei fazer na próxima secção,
apresentando uma visão genérica das características da protecção social, do
mercado de trabalho e da família na Europa do Sul, privilegiando as semelhanças
em detrimento das diferenças existentes entre os quatro países.
A protecção social
Em termos de esquemas de substituição de rendimentos (i.e., pensões de reforma,
subsídio de desemprego, subsídio de doença), todos os países da Europa do Sul
têm esquemas bismarckianos, baseados no estatuto ocupacional e com uma
estrutura em tudo semelhante à dos países que compõem o modelo corporativo.
Contudo, o gasto total em despesa social em percentagem do PIB é inferior em
relação aos últimos países e combina-se com uma estrutura interna em que há
picos de protecção para certos grupos sociais (por ex., a proporção de despesas
em pensões de reforma e de sobrevivência é particularmente elevada). Tendo em
conta que os benefícios em espécie são quase hegemónicos, nomeadamente sob a
forma de pensões, podem caracterizar-se estes países como versões extremas do
modelo centrado nas transferências, característico dos países corporativos
(Ferrera, 1996: 19). Para além do mais, os esquemas de pensões são altamente
fragmentados, de acordo com uma miríade de regras ocupacionais e com diferentes
regulações, quer em termos de contribuições, quer em termos de benefícios
isto é particularmente verdade nos casos grego e italiano e menos nos espanhol
e português.20 Estes esquemas caracterizam-se por taxas de substituição
bastante favoráveis para alguns grupos profissionais nomeadamente os sectores
bem remunerados da força de trabalho, com relações salariais estáveis e
duradouras, bem como os funcionários públicos , gerando frequentemente um
dualismo entre indivíduos bem protegidos e outros protegidos de forma
incipiente.
Estas características, que configuram uma versão extrema do modelo dualista
bismarckiano, coexistem com uma utilização instrumental do sistema, quer pelos
seus agentes, quer pelos beneficiários. As apropriações particulares dos
recursos do estado providência constituem uma característica endémica da Europa
do Sul, reforçando o clientelismo que caracteriza o seu sistema político
(Ferrera, 1996: 25-29). A ausência de administrações movidas pela racionalidade
weberiana, juntamente com o clientelismo político e vastas economias informais,
criaram o contexto para que as provisões da segurança social funcionassem
enquanto suplemento de rendimentos insuficientes, bem como instrumento para a
criação de clientelas políticas. Frequentemente, os cidadãos, de modo a
maximizar os benefícios, ainda que de forma irregular, utilizam lacunas nos
regulamentos, resultando num número significativo de beneficiários de pensões
de invalidez, subsídios de doença e de pensões de reforma antecipadas, que
muitas das vezes são equivalentes funcionais a medidas de garantia mínima de
recursos, até há pouco tempo inexistentes. A outra face da mesma moeda é a
forma como as provisões sociais funcionam enquanto mecanismos de criação de
lealdades partidárias. Nas regiões mais deprimidas destes países, os baixos
salários e os níveis de desemprego persistentemente altos têm sido geridos com
o auxílio de esquemas de protecção assentes em níveis elevados de
discricionaridade. Níveis estes que contribuem para o desenvolvimento de um
sistema de patrocínio, em que os partidos políticos, designadamente aos níveis
regional e local, trocam favores e benefícios por apoio político, reproduzindo
a síndroma existente.21
No entanto, se os sistemas de segurança social contributivos da Europa do Sul
são concebidos claramente de acordo com princípios bismarckianos, o mesmo não
se pode dizer dos sistemas de assistência social. Na verdade, as primeiras
tentativas de compreender as diferenças entre os sistemas destes países e os
dos restantes países europeus centraram-se precisamente neste subsistema.
Centrando a sua atenção no interface entre pobreza, segurança social e
políticas de combate à pobreza, Stephen Leibfried (1992) distinguiu quatro
modelos, sendo o quarto o que chamou de modelo latino (latin rim). Estes
países caracterizar-se-iam por níveis de protecção rudimentar, semelhantes aos
países anglo-saxónicos, nomeadamente no que toca ao residualismo da protecção
social e à entrada forçada no mercado de trabalho. No mesmo sentido, José
Pereirinha (1997) defende que as disposições institucionais de combate à
pobreza e exclusão social indicam a existência de um modelo latino.
Perspectiva corroborada pelo facto de na Europa do Sul uma proporção mais
pequena de agregados familiares receber benefícios sociais, ao mesmo tempo que
uma proporção mais elevada de agregados vive exclusivamente desses benefícios
revelando uma maior dependência das transferências sociais, ainda que a sua
capacidade de diminuição da pobreza seja inferior. Numa abordagem genérica dos
esquemas de assistência social na Europa do Sul, Ian Gough (1996) caracteriza-
os como tendo uma natureza nacional que, contudo, apresenta um grau importante
de fragmentação, à qual está associada uma ausência de coordenação. Intimamente
ligada com esta característica encontra-se a existência de esquemas que cobrem
certos grupos, mas que na prática se traduzem, frequentemente, por benefícios
altamente discricionários. Estes benefícios são comparativamente baixos e têm
um peso reduzido nos sistemas de segurança social o que é paradoxal,
designadamente se considerados os níveis elevados de pobreza destes países
(Capucha, 1998). A este nível, o desenvolvimento nos últimos anos de uma nova
geração de políticas sociais, resultante quer de dinâmicas exógenas (ex.: o
processo de europeização das políticas sociais), quer de dinâmicas endógenas (a
ascenção ao poder de governos de centro-esquerda na segunda metade da década de
90) configura um redesenhar do sistema, que não deixará de produzir uma
recomposição da situação de partida (Guillén e outros, 2001). Particularmente
importante para o despoletar deste processo foi a implementação de políticas de
garantia mínima de rendimentos, na medida em que estas afrontam uma série de
dimensões estruturantes, quer da pobreza, quer das políticas de luta contra a
pobreza na Europa do Sul (Silva, 1998; Pinto, 2000).
Mercado de trabalho
O mercado de trabalho nos países da Europa do Sul não é idêntico. Enquanto
Espanha, Grécia e Itália têm maus desempenhos no que toca quer à taxa de
emprego, quer à taxa de desemprego, o mesmo já não se pode dizer de Portugal.
Aqueles três países, no que mais uma vez pode ser considerado como uma versão
extrema da síndroma corporativa, apresentam níveis de emprego baixos e taxas
de desemprego altas, com particular intensidade durante o período recessivo do
início da década de 90. Portugal, pelo contrário, tem uma performance mais
positiva a este nível taxas de desemprego persistentemente baixas e taxas de
emprego acima da média europeia e sendo mesmo as mais altas quando considerado
o emprego feminino a tempo inteiro.22 Aliás, a singularidade do caso português
ao nível do funcionamento do mercado de trabalho desafia a agregação deste país
num modelo da Europa do Sul, levantando questões sobre a própria natureza deste
último, tal como aceite pela literatura (Silva, 2002).
Ainda assim, é possível identificar um conjunto de características comuns aos
mercados de trabalho da Europa do Sul. Sendo verdade a asserção de Francis
Castles de que menos pessoas trabalham ou procuram trabalho nos países
católicos e que daqueles que o fazem menos o encontram (1994: 32), é possível
afirmar que esta patologia assume contornos ainda mais definidos em Espanha,
Grécia e Itália. Em termos de participação absoluta no mercado de trabalho,
estes países encontram-se na pior situação em termos europeus, com uma
segmentação interna que afecta particularmente as mulheres e os jovens. Este
quadro encontra-se, aliás, em sintonia com a cultura política dominante do
corporativismo, i. e., a promoção do emprego e a redução do desemprego centrada
no homem ganha-pão.
No que toca à participação feminina é possível distinguir dois tipos de
divisão. Em primeiro lugar, há um problema genérico de falta de emprego que
afecta de forma particularmente intensa as mulheres, visível nos níveis
elevados do desemprego e do desemprego de longa duração feminino, combinado com
taxas de emprego persistentemente baixas, variando entre o mínimo espanhol de
38,3% e um máximo grego de 40,3%, quando a média da União era de 53, 1% e
Portugal apresentava valores comparativamente excepcionais 59,4%.23 Em
segundo lugar, a segmentação, quer horizontal, quer vertical, das ocupações em
função do género cria um nível elevado de dependência do rendimento dos homens
(González e outros, 2000: 23). O espaço para a integração das mulheres é
frequentemente nos sectores mais precários do mercado de trabalho, sob a forma
de contratos a prazo, auto-emprego e em pequenas empresas, que se caracterizam
por oferecer salários mais baixos, tempo de trabalho mais irregular, menos
segurança e poucas oportunidades de progressão através de formação profissional
(Cousins, 2000: 111-17).
Este contexto, em que níveis baixos de protecção social se encontram combinados
com participação reduzida no mercado de trabalho e desemprego alto, contribui
para o desenvolvimento de economias e mercados de trabalho informais, que, por
sua vez, sustentam socialmente o mau desempenho do mercado de trabalho formal.
Utilizando uma metáfora rokkaniana, é um estratégia de hiding(enquanto oposto a
voice), através da qual certos grupos sociais evitam a pertença social ou
minorizam os seus custos, operando na economia subterrânea e/ou fugindo às
contribuições (Ferrera, 2000: 5). Este mercado informal, profundamente
enraizado nas estruturas sociais da Europa do Sul, desempenha um papel crucial,
não apenas na diminuição do impacte do desemprego e dos baixos salários, mas,
também, na garantia da sustentabilidade de sectores centrais da economia formal
o exemplo do turismo, especialmente no sul da Europa do Sul, é paradigmático.
Novamente, a modernidade inacabada das sociedades da Europa do Sul e a
consequente debilidade das suas economias e esquemas de protecção social,
transformam o que a priori pode ser visto enquanto sinais de subdesenvolvimento
em activos que compensam esse mesmo atraso, ainda que levantando questões muito
importantes, quer em termos de equidade, quer de igualdade.
Sendo verdade que o papel desempenhado pela economia informal ajuda a
compreender a forma como as sociedades da Europa do Sul lidam com os níveis
baixos de participação no mercado de trabalho, contudo, não nos fornece uma
explicação sobre a forma como este quadro se desenvolveu. Ainda que a taxa de
emprego tenha apresentado persistentemente níveis baixos, o mesmo não se pode
dizer da taxa de desemprego. Se olharmos para as taxas de desemprego nos
inícios dos anos 70, os países da Europa do Sul apresentavam valores que, ainda
que ligeiramente superiores aos dos restantes países da UE, eram
significativamente inferiores aos actuais e menos distantes da média. Desde
então, estes valores têm aumentado, sendo a situação mais impressionante a da
Espanha que, de uma taxa de desemprego média de cerca de 3% desde os anos 60
até 1974, viu este valor aumentar para 11,3% no período de 1974-85, para
atingir valores acima dos 20% no início da década de 90. Importa, contudo,
salientar a inversão de tendência a que se tem assistido, com particular
intensidade, na segunda metade da década de 90. No caso dos países que fazem
parte do modelo corporativo, a má performance do mercado de trabalho é, em
larga medida, explicada pelas pressões colocadas pela transição para sociedades
pós-industriais, bem como pelo papel desempenhado neste processo por objectos
inamovíveis bismarckianos (Iversen e outros, 1998; Pierson, 1998; Esping-
Andersen, 1999), ou seja, o processo captado pelas metáforas bem-estar sem
trabalho ou fordismo congelado (Esping-Andersen, 1996; Scharpf, 1997).24
Diferentes explicações têm sido sugeridas para compreender o caso da Europa do
Sul, novamente remetendo para a especificidade do seu percurso de
desenvolvimento.
Ainda que seja verdade que os mecanismos bismarckianos de superação dos riscos
associados aos mercados de trabalho estejam presentes nos países da Europa do
Sul maximreforma antecipada , com os efeitos perversos que lhes estão
associados (Castles, 1994: 33-4), a perda de empregos e o crescimento irregular
das taxas de participação é explicável, predominantemente, pelo carácter tardio
e pela debilidade do processo de industrialização (Sapelli, 1995). O êxodo
rural foi gerido, na maior parte dos países europeus, através do crescimento de
emprego no sector industrial. Este não foi o caso na Europa do Sul, onde este
processo ocorreu mais tarde, coincidindo quer com a reestruturação do sector
secundário e o crescimento do terciário (ou seja, ao declínio do emprego no
sector primário não se seguiu um pico de emprego no secundário, mas, sim, um
salto quase directo para o terciário), quer com novas pressões demográficas
nomeadamente o aumento do número de pessoas a procurar emprego, particularmente
mulheres (Sapelli, 1995: 6-7; Almeda e outros, 1996: 160; Esping-Andersen,
1999: 25).
Família
A família na Europa do Sul tem especificidades que a distinguem da do resto da
Europa Ocidental. De acordo com Roussel, considerando indicadores demográficos
relativos à família, é possível agrupar os países europeus em três grupos
homogéneos: os países escandinavos; os da Europa Central e os mediterrâneos,
juntamente com a Irlanda (cit. Guerrero e outros, 1997; Martin, 1997). Neste
último grupo, a maior parte dos indicadores apresenta aspectos distintivos. O
tamanho do agregado familiar médio tem vindo a decrescer, mas ainda assim
apresenta os valores mais elevados da Europa, com os jovens solteiros a ficarem
em casa dos pais até mais tarde,25 com uma baixa proporção dos agregados de
pessoas sós e uma elevada proporção de agregados atípicos. Estes países
caracterizam-se ainda por terem taxas de nupcialidade elevadas, taxas de
fertilidade e de divórcio baixas e poucas uniões de facto ou filhos fora do
casamento, indiciando níveis baixos de coabitação (Martin, 1997: 26; Almeida e
outros, 1998: 57). Para além do mais, nas sociedades da Europa do Sul as
famílias têm mais vínculos internos e muitas das vezes o agregado familiar
funciona enquanto um sistema de redistribuição (Wall, 1995; Bermeo, 1999: 275).
No entanto, o dinamismo das transformações destas sociedades tem levado a uma
recomposição da estrutura familiar, que alguns autores, reportando-se ao caso
português, apelidam de duplo movimento (Almeida e outros, 1998: 51). Por um
lado, um movimento de familiarismo renovado, assente numa melhoria geral das
condições de vida das famílias e caracterizado por níveis altos de
nupcialidade, menos celibato definitivo, rejuvenescimento da idade média do
casamento e diminuição dos nascimentos fora deste; e por outro lado, de
modernização, consistindo na transformação dos valores e das práticas no seio
da família, na promoção do valor da igualdade entre os cônjuges e numa maior
valorização do indivíduo. Mais uma vez, este conjunto de transformações remete
para o processo de modernidade inacabada e para a combinação particular de
indicadores de tradição (ex.: agregados maiores) com indicadores modernos (ex.:
baixa das taxas de fertilidade).
Às especificidades da família na Europa do Sul há que acrescentar o papel que é
atribuído à mulher nestes países, nomeadamente no que toca à divisão do
trabalho pago e não pago no seio do agregado em que há uma clara divisão de
género, cabendo às mulheres quase em exclusivo, quer as tarefas relativas à
casa, quer os cuidados com as crianças e idosos. Esta situação é tanto mais
problemática se considerarmos que, apesar da entrada maciça de mulheres no
mercado de trabalho (e a situação portuguesa é particularmente significativa),
a esta não correspondeu uma maior colaboração do cônjuge nas tarefas
domésticas. Pelo contrário, a tendência de aumento das taxas de participação
femininas, que se tende a intensificar, resulta apenas num acumular de esforço
por parte da mulher (Torres e outros, 2000), limitando as opções das mulheres
no que toca à entrada no mercado de trabalho (Daly, 2000: 49).
Tem sido defendido que um número importante de consequências para o modelo de
welfare da Europa de Sul resulta das características da família nesta região,
aqui apresentadas brevemente, e da forma como o familiarismo produz efeitos,
quer nos esquemas de protecção social, quer no mercado de trabalho.
Como referido, os esquemas de protecção social na Europa do Sul são enviesados
a favor do homem ganha-pão. Este pressuposto encontra-se profundamente
incorporado nos esquemas de substituição de rendimentos, mas tem consequências
que vão muito para além daquele. Os benefícios de assistência social, bem como
os serviços à família são disto exemplo. Como sustentam Teresa Guerrero e
Manuela Naldini, reportando-se aos casos espanhol e italiano, a titularidade do
nível dos benefícios e dos serviços sociais encontra-se, na maior parte das
vezes, relacionada com a unidade e com o rendimento familiares, não se
encontrando aqueles institucionalizados como direitos individuais (1997: 61-2).
Ao mesmo tempo, os serviços à família encontram-se pouco desenvolvidos e,
através da sua inacção, reproduzem o pressuposto ideológico de que a família é
o principal promotor de bem-estar. Como numa espécie de profecia que se auto-
realiza, o outcome de uma política de família passiva é que as dificuldades
enfrentadas por cada família não são enfrentadas através da mobilização de
recursos públicos, mas, sim, através de estratégias privadas. Isto cria um
efeito de feedback negativo que reforça e reproduz o sistema, e que leva a que
a solidariedade familiar seja simultaneamente a explicação e o resultado de uma
política de família pouco desenvolvida (Flaquer, 2000: 27). Esta ideia vai ao
encontro do paradoxo identificado por Manuela Naldini, segundo o qual quanto
maior o papel concedido à família menor é o desenvolvimento dos serviços de
apoio à família e o nível de benefícios para as famílias com crianças (1999).
Esta situação é particularmente gravosa na medida em que, de acordo com estudos
recentes (Wall e outros, 2001), as redes de suporte familiares tendem a
proteger de forma mais intensa as famílias de maiores recursos ainda que,
mesmo nestes casos, apenas parcialmente , promovendo uma reprodução das
desigualdades e protegendo menos aqueles que, à partida, mais necessitariam.
Conclusão
Neste texto procurei mostrar que a abordagem de Esping-Andersen aos modelos de
welfare é um instrumento de análise poderoso. No entanto, ao mesmo tempo que
permite amplas comparações entre países, revela limitações na compreensão dos
aspectos específicos de cada país. O caminho desbravado pelo seu trabalho
fornece importantes pistas, mas também requer que se vá para além de uma
perspectiva excessivamente centrada em conceitos agregadores de indicadores,
que diminuem, consequentemente, a sensibilidade da teoria à compreensão de
casos específicos e tendencialmente dissonantes.
A Europa do Sul é um dos casos que tem vindo a reivindicar a existência de um
quarto modelo a juntar à divisão tríptica proposta por Esping-Andersen e hoje
amplamente adoptada. Neste texto procurei mostrar que não há, à partida,
nenhuma contradição entre a abordagem dos três mundos e desenvolver uma análise
centrada naqueles países. A tarefa é precisamente começar com a tipologia de
Esping-Andersen e, considerando-a um instrumento ideal-típico de análise,
prestar maior atenção a cada um dos três mecanismos produtores de bem-estar
i.e.: protecção social, mercado de trabalho e família. Isto é particularmente
útil no caso dos países da Europa do Sul, nos quais os esquemas de substituição
de rendimento, apesar de aparentemente semelhantes aos dos países do modelo
corporativo em termos organizacionais e institucionais, desempenham um papel
funcionalmente diverso, e onde o papel destinado à família e ao mercado de
trabalho é não só distinto, como apresenta dinâmicas particulares. Há,
portanto, importantes nuances na produção de bem-estar na Europa do Sul, que
requerem um policy mix com aspectos distintos do dominante na Europa
continental.
Esta abordagem é contrária à perspectiva de que os países da Europa do Sul têm,
por relação aos países centrais, mais diferenças de grau do que de tipo. A
ideia de uma posição intermédia ou atrasada numa sequência de etapas de
desenvolvimento tem sido amplamente criticada por abordagens mais amplas que
vão para além do estudo do modelo de welfare, na medida em que negligencia a
forma como a interacção de diferenças espaciais e temporais produz um tipo
diferente (Pires, 1990). Para capturar as nuances nos tipos importa prestar
maior atenção a categorias que, ainda que aparentemente semelhantes,
desempenham papéis funcionais diferentes. Tal implica que seja necessário
afastarmo-nos das limitações colocadas por uma abordagem estritamente
tipológica. O duplo risco, que resulta da superficialidade e da agregação de
variações em categorias muito genéricas, faz com que seja necessário estudar a
forma como países específicos divergem do ideal-tipo que à partida os
compreenderia. Há um trade-off entre parcimónia e complexidade com o qual
estamos a lidar permanentemente ao estudar a realidade, e ele aplica-se de
forma particularmente premente ao estudo dos modelos de welfare.
Destas assunções resultam dois tipos de consequências. Um primeiro que se
prende com a necessidade de compreender a forma como outcomes semelhantes se
encontram social e historicamente encastrados em realidades específicas o que
remete para a perspectiva mais ampla de famílias de nações, enunciada, ainda
que superficialmente, por Francis Castles e Deborah Mitchell (1993). Um segundo
que sublinha a necessidade de evitar o risco resultante de focar a atenção em
conceitos agregadores genéricos, fazendo derivar a natureza da interacção que
promove o bem-estar da análise sintética daqueles.
Como tentei demonstrar neste texto, é possível defender a agregação da Espanha,
Grécia, Itália e Portugal na história e na política e, consequentemente, nas
políticas. Subsumir a forma como estes países divergem dos países da Europa
continental em diferenças de grau, limita claramente a capacidade explicativa,
não só do seu modelo de welfare, como, também, dos desafios e pressões que
enfrenta a reforma deste. Esta perspectiva vai ao encontro da abordagem
histórico-institucionalista26 e da consequente valorização da análise das
escolhas e opções, quer estruturais, quer normativas, que são feitas durante um
período longo de tempo, para a compreensão das dinâmicas em jogo. Tal implica
uma refutação do a-historicismo que caracteriza muitas das análises da produção
de welfare e requer um estudo que examine diversas variáveis e promova uma
análise aprofundada da forma como sequências históricas e opções políticas
produzem determinados outputs(Skocpol e outros, 1980).
Uma segunda consequência remete para a forma como conceitos agregadores de
indicadores, como desmercadorização e desfamiliarização, são instrumentos
analíticos pertinentes, na medida em que as dinâmicas por estes captadas
limitam-se a um contínuo de mais ou menos, não revelando sensibilidade à
complexidade característica de cada caso. Se falar de um modelo é, para
utilizar a formulação de Esping-Andersen, denotar que na relação entre estado
e economia um conjunto complexo de características legais e institucionais
encontram-se sistematicamente entrelaçadas (1990: 2), então para compreender
esse entrelaçamento é necessário considerar a complexidade dos factores que o
consubstanciam, deixando de parte, por momentos, a parcimónia. Estudar as
afinidades electivas (Ebbinghaus e outros 2001) que se desenvolvem entre as
várias dimensões da produção do bem-estar requer, não apenas um enfoque nas
dinâmicas destas, mas, também, que se dedique atenção à forma como se encastram
nas estruturas sociais.
Para além do mais, considerando o estado ainda não suficientemente desenvolvido
da literatura focada no sistema de bem-estar da Europa do Sul, assumir que o
modelo destes países é uma versão pouco desenvolvida do modelo corporativo
pode funcionar enquanto obstáculo epistemológico, colocando constrangimentos à
necessária exploração deste campo científico. De modo a iluminar a natureza
ainda não totalmente clarificada da interacção entre protecção social, mercado
de trabalho e família nesta região, importa omitir as semelhanças entre estes
países e os do modelo corporativo e prestar maior atenção aos seus aspectos
distintivos. A abordagem de Esping-Andersen, dadas a sua popularidade e poder
analítico, concede-nos uma boa desculpa para, criticando-a, olhar para trás,
para um tempo anterior ao seu papel quasi-hegemónico, e observarmos com maior
pormenor a complexa matriz de interacções existente na Europa do Sul.
Notas
1 Este texto foi inicialmente escrito para a parte curricular do programa de
doutoramento em ciências sociais e políticas no Instituto Universitário
Europeu, tendo sido posteriormente apresentado enquanto comunicação à
conferência O Modelo Latino de Protecção Social, realizada no ISEG, nos dias
21 e 22 de Setembro de 2001. O Miguel Cabrita, como paga de uma estadia em
Florença, acedeu ler e comentar uma versão prévia. Devo ainda à Sílvia Sousa e
a dois avaliadores anónimos um conjunto de comentários muito úteis e
substantivos.
2 A hipótese geral da teoria power resourcesé que quanto maior o poder de
partidos social-democratas ou trabalhistas maior é o desenvolvimento de
políticas sociais favoráveis aos interesses dos trabalhadores assalariados. Por
sua vez, a configuração de modelos de provisão social resulta da forma como
relações de classe específicas a um dado país são enquadradas por instituições
democráticas, designadamente os parlamentos e a concertação social. Para uma
visão clássica desta perspectiva, cf. Walter Korpi (1983), para uma acualização
desta corrente, cf. Michael Shalev (2001).
3 Para uma discussão das características essenciais de cada um dos modelos cf.
Goodin e outros, 1999; Esping-Andersen, 1999; ou, disponível em português,
Ferrera e outros, 2000b.
4 Para uma discussão detalhada das políticas sociais bismarckianas e dos seus
objectivos implícitos cf. Baldwin, 1990.
5 Kees Van Kersbergen (1995), no seu estudo da relação entre democracia cristã
e estado providência, disseca com particular pormenor este tema.
6 Para além da Itália, que é incluída no seu livro de 1990, não há qualquer
referência a Espanha, Grécia ou Portugal ainda que Esping-Andersen tenha sido
um dos primeiros autores a lidar com as características dos estados
providências espanhol e português de um ponto de vista comparativo (1993).
Contudo, esta análise não só era focada num número limitado de despesas
sociais, durante um período de tempo curto, como não se relacionava
directamente com a sua abordagem comparativa mais ampla.
7 É possível distinguir, de forma esquemática, três razões que fazem das
tipologias importantes instrumentos de análise: a) ao promoverem a parcimónia
ajudam-nos a olhar para a floresta e não apenas para as árvores; b) ao
agregarem diversas espécies de acordo com atributos semelhantes, facilitam a
identificação de lógicas comuns de movimento e até mesmo relações causais; e c)
ajudam-nos a gerar e testar hipóteses (Esping-Andersen, 1999: 73). Como
sabemos, desde as primeiras abordagens comparativas, para compreender a
sociedade e uma determinada realidade é fundamental fazer comparações. E de
modo a fazer comparações é necessário classificar e fazê-lo com critérios
analiticamente pertinentes, que possibilitem a definição de tipos. Esta
abordagem levanta uma série de questões metodológicas, que se prendem quer com
a própria potencialidade do método comparativo para compreender uma determinada
realidade, quer com os critérios em que determinada comparação se baseia. Na
verdade, há um equívoco frequente nas ciências sociais e que assenta na
explicação de um determinado fenómeno empírico através do lugar ocupado numa
tipologia, baseada numa construção conceptual. No entanto, e como demonstrado
pela abordagem compreensiva de Max Weber, a definição de uma tipologia, no caso
concreto de ideais tipos, é útil, não enquanto explicação teórica da realidade,
em que a compreensão de um determinado fenómeno resulta de uma conceptualização
detalhada deste através das lentes da tipologia, mas, sim, enquanto elemento
que nos auxilia na organização da pesquisa e na compreensão da realidade. Ou
seja, assim entendidas, as tipologias não têm como objectivo a definição
detalhada e exaustiva de cada um dos tipos, mas antes a definição de critérios
de comparabilidade e a identificação de dimensões analiticamente pertinentes
(Pires, 1990: 84-5). Aliás, para Weber, a construção de ideais tipos não era de
forma alguma um fim do conhecimento, mas, sim, um meio para esse mesmo
conhecimento. Definir um tipo implica sempre sublinhar certos aspectos da
realidade em resultado dos objectivos prévios em que assenta o projecto de
investigação, ou seja, o acto de criar tipologias assenta numa decisão
eminentemente conceptual, que visa estabelecer quais os aspectos a considerar,
agregar e comparar. Neste sentido, é a teoria que cria a tipologia e não a
tipologia que cria a teoria (Baldwin, 1996: 29), pelo que, de acordo com o
projecto de investigação seguido, certos aspectos da realidade podem ser mais
relevantes e merecer prioridade analítica.
8 As reivindicações para a criação de um quarto modelo não se limitam à Europa
do Sul. Para além deste caso, a consideração de um modelo das antípodas
caracterizado por se tratar de uma combinação do modelo liberal e do modelo
social-democrático, nomeadamente quando considerado o sistema de arbitragem
salarial (Castles e Mitchell, 1993) , bem como de um modelo do leste Asiático
caracterizado por um liberalismo de estado, combinado com um corporativismo
autoritário, um movimento operário fraco e um familiarismo resistente (Esping-
Andersen, 1999: 90-2) é frequentemente referida pela literatura.
9 Dada a natureza deste artigo, não tratarei extensivamente das críticas de
género à perspectiva de Esping-Andersen. Paul Pierson faz um resumo geral
destas críticas e de que forma colocam em causa o modo como vemos a construção
dos estados providência (2000: 802-4). Para uma crítica feminista de Esping-
Andersen, cf. Lewis, 1992, 1997; Sainsbury, 1996.
10 Maurizio Ferrera defende que a França apresenta importantes diferenças, quer
quanto à morfologia do seu estado providência, quer quanto ao contexto mais
genérico do seu desenvolvimento, para que seja passível de inclusão num modelo
da Europa do Sul (1996: 35). Ainda assim, numa das primeiras tentativas de
sistematizar as reflexões em torno do estado providência na Europa do Sul, a
França foi incluída cf. as actas da conferência Comparer les systèmes de
protection sociale en Europe du Sud, organizada pela Mission de Recherche et
Expérimentation (Mire, 1997), uma organização pública francesa. Para uma
análise das semelhanças entre o modelo de welfare francês e o de outros países
da Europa do Sul cf. Bonoli e outros, 1997.
11 Ainda assim, Giulio Sapelli (1995: 8) inclui a Turquia na sua análise da
Europa do Sul, nomeadamente porque, juntamente com o argumento geográfico, este
país, tal como os restantes quatro, tem revelado, nos últimos cinquenta anos,
um crescimento rápido e importantes dinâmicas de mudança, bem como um sistema
de democracia parlamentar sem paralelo no médio oriente.
12 Malefakis (1995) desenvolve uma análise sistemática e aprofundada das
semelhanças entre estes quatro países. Conferir também o trabalho de Sapelli
(1995) focado na segunda metade do século XX e de Giner (1995) com uma
interpretação mais sociológica dos processos de mudança nestas sociedades.
13 Neste ponto utilizo de forma extensiva os argumentos de Malefakis (1995: 36-
9).
14 O caso da Grécia, que pode ser visto como excepcional, dada a existência de
uma igreja nacional de cristianismo ortodoxo, é, de acordo com Giner, menos
distinto, se considerarmos a identificação das diversas ditaduras com o
helenismo e o essencialismo bizantino (1995: 40).
15 Neste ponto adapto duas abordagens. A primeira, proposta por Malefakis
(1995), que sugere uma divisão dos séculos XIX e XX em quatro períodos: de 1814
a 1870 início traumático ; de 1870 a 1914 consolidação imperfeita ;
de 1915 a 1949 conflito e colapso e, finalmente, 1950-92
transcendência e redenção. A segunda, proposta por Giner (1995), que
distingue quatro períodos, com limites temporais não definidos claramente:
governo oligárquico com exclusão popular extrema; consolidação burguesa com
exclusão popular; ditaduras fascistas ou parafascistas; e, finalmente,
democracia liberal e constitucional com corporativismo capitalista.
16 Como sublinha Colin Crouch, onde a Igreja católica foi culturalmente
hegemónica o mais provável foi que a oposição à autoridade tradicional
assumisse uma forma totalizante e contracultural. Isto na medida em que
historicamente o catolicismo foi totalizante e hegemónico no sentido
gramsciano (2001: 179). Este é o caso de Portugal, de forma particularmente
intensa durante a primeira república (cf. Guibentif, 1997).
17 Ainda que haja autores que datam a consolidação da democracia em Itália do
final dos anos 70, com o compromisso histórico de Aldo Moro, cerca de trinta
anos depois da transição (Gunter e outros, 1995: 22).
18 Novamente com variações regionais. A este nível o caso português é de um
particular atraso, entre outras razões devido à conhecida antipatia de Salazar
pela ideia de modernização económica. Para além do mais, a guerra colonial foi
responsável, em larga medida, pela absorção do boom económico.
19 Ainda que o assunto do familiarismo não seja central no argumento de
Ferrera, ele refere-se explicitamente à família e ao seu papel compensatório
(clearinghouse) (1996: 21).
20 Para uma descrição do caso italiano cf. Niero, 1996 e Ferrera e outros,
2000; do caso espanhol, cf. Moreno e outros, 1993; Almeda e outros, 1996; e
Guillén, 1996; do grego, cf. Katrougalos, 1996; Symeonidou, 1997; e Venieris,
1997; e do português, cf. Guibentif, 1997; e Mozzicafreddo, 1997.
21 Os casos dos Plan de Empleo Rural (PER) em Espanha e dos Programas
Ocupacionais (POC) em Portugal são, em larga medida, exemplos disto.
22 As especificidades do mercado de trabalho português são um dos paradoxos
mais interessantes que se colocam aos cientistas sociais que estudam os países
da Europa do Sul. Como escrevem Blanchard e Jimeno (cit. em Glatzer, 1999), o
desemprego alto em Espanha e baixo em Portugal pode ser o maior desafio
empírico que enfrentam as teorias do desemprego estrutural ou, como sustenta
Mary Daly, focando-se na participação feminina, os padrões de Portugal opõem-
se a muitas, senão todas, as explicações convencionais e serviram para desafiar
em pontos chave a análise desenvolvida (Daly, 2000: 508). Ainda que não sendo
aqui o local para discutir extensivamente a especificidade do caso português,
importa sublinhar que Portugal, apresentando dados do emprego e desemprego
semelhantes aos dos países escandinavos, caracteriza-se por ter uma taxa de
emprego de esforço, em que as mulheres combinam emprego a tempo inteiro com
trabalho doméstico não assalariado (Torres e outros, 2000) isto num contexto
em que o número de serviços à família, pese embora a importante evolução
recente, é ainda baixo. Para além do mais, Portugal tem uma taxa de emprego
agrícola bastante superior à média da União (12,6% e 4,5%, respectivamente),
bem como números elevados de auto-emprego (27,5% e 16,3%, respectivamente)
(Eurostat, 2000), que muitas das vezes encobrem situações não regulares, bem
como o que tem sido denominado de pluriactividade (Cabral, 1999). Os níveis
baixos de produtividade, juntamente com os baixos salários, as baixas
qualificações e o nível reduzido da protecção no desemprego, criam um contexto
propício para altos níveis de emprego e baixos níveis de desemprego. Para
termos uma explicação genérica da situação portuguesa, há que considerar ainda
o papel das actividades económicas trabalho-intensivas (sendo os casos
paradigmáticos o desenvolvimento da construção civil e obras públicas depois da
adesão à UE e consequente usufruto do Fundo de Desenvolvimento Regional), o
papel do Fundo Social Europeu no apoio a políticas activas de emprego, o
crescimento rápido do sector dos serviços (nomeadamente em actividades que
requerem mão-de-obra barata e pouco qualificada, maioritariamente feminina) e o
papel decisivo do ajustamento via salários e não no emprego em períodos
recessivos. Para um dianóstico genérico do funcionamento do mercado de trabalho
português cf. os sucessivos planos nacionais de emprego, existentes desde 1997,
bem como Rodrigues, 1988.
23 Para uma abordagem da especificidade da participação feminina no mercado de
trabalho em Portugal, cf. André e outros (2000) e Sousa (2001).
24 Em inglês: immovable objects; welfare without work; e frozen fordism.
25 Na Europa do Sul, os jovens tendem a ficar comparativamente mais tempo em
casa dos pais. De acordo com González e outros (2000: 21), tal acontece devido
à ausência de um emprego estável e de habitações acessíveis, e também porque é
culturalmente aceite nomeadamente como consequência da lógica de
solidariedade intergeracional. Mesmo quando os jovens têm um emprego bem
remunerado, permanecem em casa dos pais até que tenham fontes de rendimento
estáveis e tenham acumulado poupanças suficientes para adquirirem uma casa
própria. Tendo em conta que as estruturas de autoridade no seio da família se
alteraram, os jovens podem utilizar com alguma liberdade a sua família enquanto
fortaleza, dentro da qual se preparam para um início seguro da sua vida de
adultos. Assim, o caminho para a emancipação dá-se dentro da família e não a
partir da família como sucede nos restantes países europeus. Becker e outros
(2001), num artigo centrado no caso italiano, demonstram como os jovens tendem
a ficar mais em casa dos pais consoante estes têm um emprego estável e menor
propensão para o desemprego, havendo uma relação directa entre a instabilidade
da relação laboral dos pais e a saída dos filhos de casa.
26 Para uma discussão dos vários institucionalismos, cf. Guy Peters, 1996.