Maus Fígados: A construção social da tomada de decisão médica
Introdução
A tomada de decisão médica constitui o exercício mais completo do poder médico.
Trata-se de uma espécie de fim em si mesmo, quase sinónimo da missão do
exercício da medicina: tratar o doente. Assim, os vários momentos de tomada de
decisão resultam de uma construção entre diferentes conhecimentos e discursos
médicos, abordagens, olhares e estratégias que se entrecruzam e que se
materializam nas práticas médicas onde se exibem as diversas tecnocracias
médicas (Serra, 2006).
Neste sentido, e a partir de um estudo de natureza etnográfica que teve lugar
numa unidade hospitalar de transplantação hepática (UT), pretende-se analisar e
discutir os processos de tomada de decisão médica em torno do acesso dos
doentes candidatos ao transplante hepático, assumindo-os como constituindo o
culminar e, ao mesmo tempo, o início de vários saberes/poderes que se expressam
na prestação de cuidados médicos quotidianos. Não se trata de um poder
repressivo, mas antes produtivo; o poder que está decidido a gerar forças, a
fazê-las crescer e a ordená-las, e não a impedi-las, a torná-las submissas ou a
destruí-las (Foucault, 1997 [1963]). Trata-se de um campo múltiplo e móvel de
relações de força, onde são produzidos efeitos de dominação nunca completamente
estáveis. Tomando como alicerce este modelo, podemos afirmar que sempre que se
estabelece uma relação de poder existe a possibilidade de resistência. De
facto, nesta perspectiva, o poder não só implica, inevitavelmente, resistência,
mas depende, de facto, de uma multiplicidade de pontos de vista, muitas vezes
contraditórios, que constituem o suporte dos vários intervenientes nas relações
de poder.
A problemática em questão justifica o traçado metodológico da investigação: a
pesquisa de terreno. Optou-se por uma metodologia qualitativa, que inclui como
técnica central de recolha de dados a observação participante e continuada numa
unidade hospitalar de transplantação hepática e, como técnica complementar,
entrevistas semiestruturadas e aprofundadas, aplicadas aos diferentes actores
representados no terreno de observação.
1
Assim, percorrendo o circuito de transplantação hepática, elegemos os momentos
que nos pareceram mais relevantes na tomada de decisão médica, evidenciando os
processos complexos de negociação entre as diferentes especialidades médicas em
presença.
Neste sentido, não foram aqui considerados os modelos da tomada de decisão
referidos como clássicos, apresentados na sociologia das organizações. Esses
modelos englobam orientações distintas e são agrupados de acordo com categorias
prescritivas e descritivas. Os primeiros têm como objectivo desenvolver métodos
que apoiem a tomada de decisão racional/óptima e os segundos a compreensão dos
processos de tomada de decisão nos mais variados contextos organizacionais. De
igual modo, a tomada de decisão tem sido abordada de acordo com os níveis
individual, grupal e organizacional, destacando-se o modelo racional que se
constitui enquanto modelo normativo. A teoria da racionalidade limitada
2
representa uma resposta alternativa ao princípio da maximização proposto pelo
modelo racional. No mesmo sentido, a maioria dos trabalhos acerca da tomada de
decisão nas organizações, seja ao nível individual ou de grupo, assumem como
ponto de partida as limitações do modelo racional. Também os contributos
utilizados nesta investigação constituem alternativas às análises tradicionais
da tomada de decisão, salientando-se o carácter plural dos processos e a sua
interligação com os contextos de acção que lhes estão associados.
Assim, será à luz das abordagens mais recentes, que se enquadram no
construtivismo social e que evidenciam as relações entre conhecimento e
discurso na construção de estratégias de poder, que num primeiro momento se
propõe um modelo analítico para o estudo da tomada de decisão médica. Segue-se
a apresentação dos resultados de investigação em torno dos processos de tomada
de decisão médica na admissão de doentes no Programa de Transplantação
Hepática. Posteriormente, exploram-se os aspectos relacionados com a gestão do
risco e da incerteza, bem como os resultados que ilustram o papel do(s)
discurso(s) médico(s) na construção dos processos de tomada de decisão médica.
Este artigo finaliza com a exploração de alianças estratégicas na tomada de
decisão médica, em busca de consensos.
A construção social da tomada de decisão médica: que modelo analítico?
Pela sua natureza, a tomada de decisão médica não dispensa um olhar em torno
das abordagens mais recentes da sociologia médica. Estas abordagens, nas quais
se alicerça o nosso modelo analítico, evidenciam o conhecimento e discurso
médico na construção de estratégias de poder. Para Foucault o conceito de poder
está directamente ligado ao conceito de conhecimento, categoria que o autor
transporta para a análise da produtividade das técnicas modernas de poder. Na
linha de inspiração foucauldiana, interessa entender as relações entre o
discurso médico (um discurso do conhecimento científico) e o exercício do poder
médico, particularmente nos momentos que envolvem tomadas de decisão, onde
podemos observar as divergências entre os vários participantes neste processo a
propósito de um caso clínico. Deste modo, poder e conhecimento estão
intimamente relacionados nos trabalhos de Foucault, de tal modo que o autor
utiliza muitas vezes a expressão pouvoir-savoir (power/knowledge), por forma a
expressar esta unidade. Também nesta esteira, o trabalho de Carapinheiro (1993)
em torno dos saberes/poderes no hospital reflecte esta preocupação, salientando
a autonomia profissional dos médicos na divisão do trabalho médico. Trata-se de
uma autonomia funcional, científica e tecnológica, que permite à profissão
definir, para além das práticas médicas institucionalizadas, as diferentes
áreas de especialização e o controlo dos processos de formação médica.
A noção de power/knowledge sintetiza uma cumplicidade entre estes dois termos.
Barber (1990: 313-314), embora numa perspectiva diferente de Foucault, avança
com duas dimensões do poder: o conhecimento e a tomada de decisão,
apresentando-as interligadas e intersignificativas. Assim, a tomada de decisão
médica surge numa linha de continuidade, uma espécie de consequência da
construção do conhecimento e discursos médicos. As relações entre poder,
conhecimento e discurso parecem, portanto, inevitáveis. Os vários discursos são
em simultâneo delimitadores e estruturantes das práticas médicas e, ao mesmo
tempo, produtivos. Os discursos conduzem à criação de entidades, tornando
visíveis determinados aspectos do corpo e da doença, fazendo a distinção entre
os vários tipos de doentes e doenças.
Nesta linha, Crozier e Friedberg (1977) apresentam a análise estratégica das
organizações, onde os contextos organizacionais são encarados como construções
sociais que não se resumem unicamente a aspectos estruturais. Aqui, a
componente estratégica desta abordagem concebe a organização como um conjunto
de relações vividas por actores que confrontam estratégias recíprocas, aspecto
crucial para o que se propõe apresentar no presente modelo analítico. O
contributo destes autores revela-se, de facto, primordial, na medida em que se
privilegiam as relações de poder no conjunto das relações, procurando-se
identificar as estratégias dominantes nas oportunidades e constrangimentos que
são aproveitados na construção de estratégias recíprocas e que utilizam a
incerteza como dado fundamental, em sistemas de acção concretos.
De referir ainda os modelos de análise do discurso mais relevantes,
nomeadamente os de cariz construtivista, como os trabalhos de Atkinson (1995) e
Fox (1992). No caso de Atkinson, na sua observação da especialidade médica de
hematologia, o autor foca as questões relacionadas com a identificação e
análise dos discursos médicos utilizados por estes especialistas nas suas
práticas quotidianas. Trata-se de um modelo particularmente útil para a análise
dos discursos das várias especialidades envolvidas no transplante hepático, e
que permite identificar, nas várias trajectórias que compõem o circuito de
transplantação hepática, as formas particulares de poder médico em diferentes
momentos de tomada de decisão. De referir que estes momentos de tomada de
decisão não se limitam apenas às reuniões formais onde são discutidos os casos,
mas também a ocasiões várias onde os actores, através do discurso e práticas
médicas, põem em prática as suas estratégias, influenciando, muitas vezes de
forma decisiva, a trajectória dos doentes e da doença.
Deste modo, discurso e conhecimento médico constituem as duas faces da mesma
moeda, que nos permitem escrutinar as diferentes formas de tecnocracias médicas
presentes nas práticas médicas e, em particular, nos processos de tomada de
decisão. Assim, elegemos determinados cenários do circuito de transplantação
hepática, por forma a identificar os elementos acima referidos. Entre eles
destacam-se as reuniões entre especialidades (encontros onde se discutem casos
clínicos ou práticas médicas quotidianas), sejam elas formais ou espontâneas,
que proporcionam uma oportunidade de partilha da tomada de decisão.
A tomada de decisão clínica, e aquilo que é possível observar, parece
contrastar, de acordo com Atkinson (1995: 49), com a análise tradicional da
tomada de decisão. Procedendo a algumas considerações acerca da literatura
nesta área, o autor refere os principais trabalhos sobre a tomada de decisão
médica, apontando algumas insuficiências na abordagem desta questão. Estudos
que utilizam modelos estatísticos, ou simulação por computador, ou na área da
psicologia experimental, constituem exemplos de representações da tomada de
decisão no mundo real e pouco mais do que isso, permitindo apenas perceber como
é que estas abordagens representam essa realidade, simplificando-a, ou mesmo
distorcendo-a (Atkinson, 1995: 51). Deste modo, o autor propõe utilizar esses
modelos e simulações como se se tratasse de tipos ideais, confrontando-os com a
observação directa e a interpretação sociológica. O processo de tomada de
decisão tende a ser retratado como sendo de natureza privada e individual. No
caso da prática da medicina o modelo utilizado é o do encontro inicial entre o
doente e o médico a consulta. Se do ponto de vista experimental este modelo é
razoável, na perspectiva sociológica trata-se de uma abordagem parcial e
redutora do trabalho médico. A prática da medicina decorre em vários e
complexos cenários organizacionais, em diferentes espaços e tempos, sendo a
própria tomada de decisão uma actividade organizacional colectiva.
Mas, para além da questão dos actores envolvidos na tomada de decisão, temos
ainda a questão do tempo, que de um modo geral é bastante restrito. O tempo
limita todo o processo, dando a ilusão de que a tomada de decisão constitui um
acto mais ou menos unitário, de curta duração e que se baseia numa sequência
simples de actos cognitivos. Porém, em muitos contextos, o timing para a
decisão pode ser muito mais difuso, prolongado ou cíclico, já que o processo de
tomada de decisão pode estar disperso na divisão do trabalho, por segmentos
muito variados caracterizados por tempos, horários, rotinas e prioridades
diferentes. A própria divisão do trabalho médico implica não só uma
distribuição diferenciada do conhecimento, mas também uma dispersão de tarefas
e procedimentos em tempos diferentes. O timingdas decisões e acções dos
intervenientes parece assentar numa ordem temporal diferente, i. e., na prática
médica o tempo para decidir é complexo e múltiplo.
Resta a questão do espaço na tomada de decisão médica. Decidir com base em
diagnósticos e terapêuticas não está circunscrito a um espaço único. Ao longo
da complexa divisão do trabalho, a informação relevante para efectuar o
diagnóstico está dispersa por vários momentos e por vários lugares. Mais uma
vez, trata-se de uma reflexão onde muitos actores estão envolvidos, mas a
questão é muito mais complexa do que isso. Cada segmento da organização da
prática médica gera a sua própria informação e múltiplas decisões, fruto do
trabalho de diversos segmentos: laboratórios clínicos, serviços de imagiologia,
etc. Cada um destes elementos produz a sua própria informação, materializada
sob várias formas de representação, constituindo por si só um produto do
processo de tomada de decisão que será alvo de várias interpretações, as quais
envolvem a sua tradução física (de um espaço para outro) e de discurso (de um
registo linguístico para outro).
A este propósito, Atkinson (1995) refere o contraste existente entre as versões
descontextualizadas da tomada de decisão clínica e a abordagem da sociologia
que, repetidamente, chama a atenção para o modo como as características sociais
e os contextos culturais influenciam a tomada de decisão. Então, as práticas e
o conhecimento não convergem linearmente de modo a produzirem uma rede coerente
de acções tendo em vista a tomada de decisão. As diversas especialidades
definem o seu trabalho e os seus interesses de formas contrastantes, sendo de
acrescentar as exigências do trabalho quotidiano, diferentes para cada uma das
especialidades em espaços e tempos diversos. Como consequência dos estilos e
interesses diferentes, a informação clínica não deve ser tomada como um dado
inquestionável. Pelo contrário, a divisão técnica do trabalho e a distribuição
diferenciada do conhecimento entre os vários especialistas significa que
determinados intervenientes e a informação que produzem ocupam uma posição
privilegiada no processo de tomada de decisão, como é o caso de algumas
especialidades médicas, cuja opinião pode prevalecer na tomada de decisão e ser
adoptada como definitiva.
Deste modo, as várias informações para a tomada de decisão encontram-se
dispersas pelos vários especialistas, por toda a organização, em espaços e
tempos diferentes, extravasando a unidade de observação em questão. A partilha
dessa informação é sempre mediada pela interpretação de valores e resultados de
exames fornecidos pelos próprios especialistas em determinada altura do
processo, sendo o conhecimento construído através de encontros informais ou
reuniões onde se discutem os casos, através de uma narrativa e retórica
próprias, partilhadas entre as várias especialidades médicas. Tal como a
informação que está dispersa no espaço e no tempo, distribuída por vários
indivíduos e especialidades, também os processos de discussão, argumentação,
negociação e decisão estão igualmente dispersos. Assim, podemos afirmar que o
processo de tomada de decisão médica não constitui de modo algum um acto
isolado.
Desta forma, a proposta de modelo analítico para a tomada de decisão médica que
aqui se apresenta pretende escrutinar a actividade médica conduzida por actores
em contextos sociais e não apenas enquanto intervenção técnica. Nesta linha e
de acordo com a perspectiva de Fox (1992), trata-se de relacionar as vertentes
social e técnica, o que, à partida, implica duas questões essenciais: qualquer
actividade social é interpretada pelos outros e, assim sendo, também o é o
significado social da actividade médica e, em particular, o nosso objecto de
estudo; os processos sociais associados ao transplante hepático derivam da
tecnicalidade. Assim, importa perceber de que modo ocorrem, já que a técnica é
também um produto social.
Partindo destes pressupostos podemos, assim, argumentar que os processos
sociais através dos quais todos os grupos envolvidos no processo de
transplantação hepática constituem o seu trabalho e afirmam a sua autoridade
enquanto poder são construídos, em parte, através dos procedimentos técnicos,
processando-se quotidianamente ao longo da actividade médica das várias
especialidades envolvidas.
Deste modo, nas páginas que se seguem, importa entender como cada uma das
especialidades médicas se constitui, de forma a construir e consolidar a sua
autoridade enquanto poder, no exercício pleno das respectivas tecnocracias, não
devendo esta ser encarada como um dado consumado, mas como algo que é
continuamente negociado através de estratégias sociais nas interacções
quotidianas. Portanto, a questão da autoridade, enquanto poder, é aqui encarada
como um fenómeno fragmentado, não unitário, mediado pelo acesso que os
diferentes actores têm ao que é aceite como conhecimento num determinado
contexto social. A autoridade profissional dos médicos, traduzida enquanto
conhecimento e domínio de tecnologias médicas específicas, tem poder para
definir e impor o sentido e as formas que a actividade médica assume,
particularmente nos momentos concretos de tomada de decisão médica.
Uma questão de prioridades: risco e incerteza na tomada de decisão
A admissão de doentes no Programa de Transplantação Hepática constitui um dos
momentos mais importantes no que diz respeito à tomada de decisão médica. Os
cenários que traduzem este momento constituem testemunhos centrais acerca das
formas a partir das quais as diferentes estratégias de poder médico são
exercidas. Trata-se de momentos únicos, onde é possível observar o confronto
entre os vários conhecimentos e discursos médicos que expressam os vários
olhares em relação a uma mesma realidade.
A decisão acerca dos doentes que passam a integrar uma lista de espera assenta
no estudo rigoroso de determinados parâmetros médico-científicos e de
informações acerca do doente e da doença de base que deu origem a toda a
trajectória, até chegar à UT como candidato ao transplante hepático. Todo o
processo de decisão passa por diferentes momentos onde as várias especialidades
médicas intervêm com maior ou menor peso.
Nestas reuniões nem sempre estão presentes todas as especialidades que intervêm
na transplantação hepática. Hepatologistas e cirurgiões, juntamente com o
director da unidade, são, de facto, os únicos grupos que estão sempre presentes
e, mesmo assim, em algumas ocasiões, a reunião efectua-se apenas entre os
hepatologistas, com um ou outro cirurgião que, na altura, está disponível para
estar presente. No que diz respeito aos anestesistas e intensivistas, fazem-se
representar pelo coordenador das duas áreas, mas apenas em situações em que é
solicitada a sua presença para discutir casos mais polémicos.
Nestes momentos precisos de tomada de decisão as especialidades de cirurgia e
hepatologia assumem um peso fundamental. De facto, é entre estes dois grupos
que o equilíbrio de forças se estabelece e é sobre estes aspectos que vamos
centrar a nossa análise.
A reunião semanal entre as especialidades médicas envolvidas na transplantação
hepática constitui certamente um dos cenários mais importantes. Uma vez por
semana, num dia específico, no final da manhã, o director da unidade,
hepatologistas e cirurgiões, encontram-se à porta fechada para discutir os
novos casos que chegaram à consulta de pré-transplante durante a semana. A
apresentação dos casos é feita pelos hepatologistas que, individualmente,
apresentam os seus novos doentes com base em todo um conhecimento que foi sendo
acumulado e construído. Quando apresenta o doente, cada um dos hepatologistas
tem já uma posição assumida em relação à inclusão, ou não, do doente na lista
de espera, como refere um dos hepatologistas:
Nós recebemos os doentes. Como regra temos uma primeira consulta, há sempre uma
primeira consulta, demora mais tempo, tem de ser mais prolongada o doente é
mais exaustivamente visto na primeira vez, porque há uma série de factores que
têm de ser definidos à partida. Depois o doente faz os exames e quando tem os
exames, depois é visto. E a sua admissão à lista activa é discutida entre todos
nós. É proposto por um de nós e depois é discutido se sim ou não Todos os
casos. Os casos banais são apresentados e ninguém se opõe. Só dá conhecimento.
Há casos que são polémicos, tumores, ou em outros casos, a indicação pode ser
mais ténue, ou a indicação pode já estar ultrapassada, pode ser um caso já
terminal, ou pela idade. (MH
3
UT 12)
Os casos que não apresentam quaisquer dúvidas são automaticamente incluídos na
lista de espera, não oferecendo qualquer oportunidade de discussão. Trata-se de
casos cujas características encaixam nos parâmetros médico-científicos
presentes no protocolo de transplantação hepática, sendo, assim,
automaticamente elegíveis como candidatos. No entanto, existe um conjunto de
situações que podem ser designadas como polémicas e que constituem o ponto de
partida para o confronto de conhecimentos e discursos vários, perspectivas e
posturas científicas diferentes, não apenas entre especialidades, mas também
entre elementos da mesma especialidade. Trata-se, certamente, de um dos
momentos mais esclarecedores acerca das formas como se constroem as decisões e
resoluções conjuntas que, depois de autênticos momentos de esgrima científica,
conduzem a um consenso possível entre os vários intervenientes. As soluções
finais, longe de serem pacíficas, escondem verdadeiras situações conturbadas,
onde muitas vezes os ânimos se exaltam em tentativas de impor as diversas
estratégias individuais e/ou conjuntas. No final, a decisão conjunta é assumida
por todos os intervenientes.
Na entrevista que se segue, podemos perceber a forma como um dos hepatologistas
retrata estes momentos de tomada de decisão, evidenciando as diferentes
posturas em face da mesma realidade. Assim os cirurgiões são descritos através
de um comportamento comum que os caracteriza e que evidencia o peso do acto
cirúrgico enquanto técnica privilegiada, uma espécie de solução major na
resolução do problema. Desta forma, e de acordo com os hepatologistas, a
imposição da técnica cirúrgica constitui um dos mais relevantes pontos de
fricção entre estas duas especialidades no exercício das respectivas
tecnocracias. Outro aspecto importante revelado nesta entrevista tem a ver com
os tipos de discurso utilizados no processo de discussão dos casos específicos.
De referir os mecanismos de persuasão utilizados pelos interlocutores, que
apelam a uma série de argumentos que ultrapassam as questões meramente
científicas. Nos argumentos utilizados por ambas as partes, verificamos o peso
que a incerteza assume na decisão médica. Tanto hepatologistas como cirurgiões,
sobretudo os segundos, são sensíveis às situações, embora excepcionais, em que
se verificou que o transplante foi positivo, contrariando tudo o que está
descrito na literatura médica.
É assim, em princípio, teoricamente, eles mandam-nos os doentes. A gente vê o
problema e depois discute com eles. E normalmente os cirurgiões aceitam o que
nós dizemos. Só que há confrontos às vezes e os cirurgiões acham que a cirurgia
resolve tudo. Quando há, por exemplo, casos em que é mais previdente, que o
doente só perde se o transplantarmos Mas eles acham sempre que, enfim Mas, eu
acho que isto é uma coisa que está na cabeça deles, não é por percebe? E temos
tido já grandes aborrecimentos nesse sentido. E o primeiro doente, o doente foi
transplantado com um tumor, não tinha indicação nenhuma, nenhuma! Portanto, nós
temos uma grande polémica em relação aos tumores. Por exemplo, mandam-me uma
doente que [um cirurgião] apresentou. Apresentou com um tumor do tamanho de não
sei quê, com contra-indicações. Oh ( ), você não diga nada. Nem dê opinião, eu
trago-a cá, você vai vê-la, você vai vê-la, tenho a certeza, você tem bom
coração. Eu disse: Isto não é a Santa Casa da Misericórdia. Nós temos de ser
sérios, correctos, quer dizer, não podemos estar a fazer coisas que vamos
piorar. Mas você vai ver, você vê-me a doente depois fala com ela, e depois,
ela está tão boazinha. (risos) Bem, oiça, só que, entretanto, transplantaram-
se uns tumores que não tinham muita indicação porque tinham mais do que dois
nódulos e de dimensão um bocado maior e que estão mais ou menos estáveis,
percebe? Às vezes o [um dos hepatologistas] diz: Ah, isto realmente tem
contra- indicações mas eles lá vão aguentando. É tudo muito complicado. Eu
realmente vi a rapariga, um tumor enorme que ele não conseguiu tirar, abriu
numa recessão e não conseguiu. E eu olhei para a cara, tinha vinte e poucos
anos e pensei: ela vai morrer se não, se não se tirar, não é? Se ela morrer
depois do transplante, olhe paciência. Incorrecto medicamente!! Ela está, está
bem, os marcadores tumorais estão bem. Está bem, está feliz, está a ver o filho
a crescer. ( ) Mas tento impor-me! E nisso os hepatologistas estão comigo. É
raríssimo a gente discordar em questões médicas porque todos temos a mesma
escola, todos pensamos da mesma maneira. Agora que há facilidades, há. Que a
pessoa pensa, pronto. Porque eu também percebo, a gente tem de pensar, se eu
tivesse uma filha, eu também gostava que a transplantassem. Mas oiça, meter
isto tudo na cabeça! Você sabe que eu às vezes venho de lá cheia de dores de
cabeça, porque é um esforço que eu tento para ser justa mas não ser incorrecta
medicamente e a coisa sair certa. E é complicado quando às vezes há um fígado e
a gente tem de discutir se é este se é aquele e dá muita importância quando
está um à morte e depois está a pôr noutro, percebe. É muito complicado. Este
problema é muito complicado. (MH UT 11)
A propósito da incerteza que se faz sentir na discussão dos casos mais
polémicos, Fox (1988: 575) refere o seguinte: o facto de uma bateria poderosa
de conhecimento científico e técnico ser aplicada à doença e às preocupações
humanas mais profundas', o seu despertar não elimina a incerteza da medicina.
Começando pela sua natureza, a ciência é um modo de pensamento aberto e de
pesquisa, bem como uma forma organizada de levantar questões e dúvidas
sistemáticas sobre aquilo que é assumido como conceitos, factos e métodos
estabelecidos, enquanto desenvolvimento de conhecimento e competência. Apesar
de os avanços médico-científicos resolverem determinados problemas, também
ajudam a produzir e a manter dois tipos de incerteza. O primeiro tipo deriva
das lacunas, limitações e erros que caracterizam o conhecimento médico em
qualquer altura. O segundo tipo de incerteza resulta do facto paradoxal de que,
apesar das suas inadequações, a ciência médica é tão vasta e altamente
desenvolvida que ninguém pode acompanhá-la totalmente ou dominá-la
perfeitamente.
Então, todos os procedimentos médicos são acompanhados de incerteza,
constituindo a lógica do pensamento médico a probabilidade de raciocínio no
qual o diagnóstico diferencial, decisões de tratamento e prognóstico se baseiam
uma expressão codificada do factor de incerteza na medicina. Neste sentido,
todos os actos médicos são aproximações, estando por isso sujeitos a erros de
vários tipos, alguns dos quais possíveis de calcular e de evitar, outros não.
Porém, as inovações médico-científicas na área da transplantação trazem consigo
novas incertezas, nomeadamente as que dizem respeito aos efeitos secundários
das novas técnicas, que frequentemente não são previsíveis. Por exemplo, os
efeitos cancerígenos dos imunossupressores constituem um argumento muito
utilizado pelos hepatologistas contra os cirurgiões nas discussões mais
polémicas. Ao enfraquecer a capacidade de inibir os processos de rejeição do
fígado, os imunossupressores inibem, igualmente, os mecanismos de defesa contra
o desenvolvimento de células cancerígenas.
Existem ainda outros factores que também pesam na tomada de decisão, tais como
a idade do receptor,
4
a existência de família dependente, bem como o facto de se tratar de um doente
socialmente recuperável.
5
Neste sentido, verificamos que outros critérios, para além dos critérios
médicos, são tomados em consideração, mesmo que de uma forma pouco clara. Os
critérios rigorosos de decisão, centrados exclusivamente no bem-estar do
doente, e não nos efeitos na sociedade, nem sempre são possíveis de aplicar de
forma taxativa, no que diz respeito à selecção dos receptores para transplante.
Aqui, a questão não é a escolha do tratamento para o doente individual, mas uma
escolha social onde os doentes recebem um recurso escasso que não está ao
alcance de todos (Brock, 1988: 91).
Logo à partida, tornam-se evidentes as oposições entre hepatologistas e
cirurgiões, dois corpos que agregam conhecimentos e experiências específicas e
que correspondem à cisão clássica entre a visão do médico e a do cirurgião.
Assim, a postura mais intervencionista no que diz respeito à cirurgia que, de
uma forma geral, caracteriza o cirurgião, parece ser ainda mais reforçada nas
palavras deste hepatologista:
Em termos globais, os cirurgiões são sempre muito mais intervencionistas, é uma
escola muito intervencionista. E depois como têm uma técnica boa e não sei quê,
realmente conseguem bons resultados, relativos, claro E portanto, pronto, têm
essa atitude mais Há um bocado essa divergência. Mas eu não digo que seja
propriamente em relação ao transplante, em relação ao acto de transplantar (MH
UT 13)
Esta atitude por parte dos cirurgiões denuncia, de facto, uma menor aversão em
face do risco, em comparação com a postura dos hepatologistas. Como seria de
esperar, o próprio acto cirúrgico que caracteriza a prática médica dos
cirurgiões é caracterizado pelo risco e incerteza constantes, que se apresentam
de uma forma muito mais assumida na actividade dos cirurgiões do que em relação
a outras especialidades médicas, tal como confirma um dos cirurgiões:
Algumas vezes tem que se arriscar. Na nossa profissão tem que se arriscar. Há
alguns casos em que se tem de arriscar. Tem de se dar o benefício da dúvida
(MC
6
UT 10)
A partir das entrevistas efectuadas com os cirurgiões, verifica-se que, em caso
de dúvidas, a postura é, quase sempre, de arriscar, mesmo que isso implique
avançar contra os cânones científicos. Assim, perante uma indefinição de
critérios em relação aos casos mais polémicos, a tendência, por parte dos
cirurgiões, é para avançar para o transplante, sob o olhar atento dos
hepatologistas que, na maioria dos casos, assumem a postura oposta. Para o
cirurgião há que avançar para a solução cirúrgica num contexto em que a
medicina já não consegue fazer mais nada pelo doente.
7
(n. t. c.
8
) Acresce que, mais uma vez vemos reforçada a importância da experiência
clínica, neste caso cirúrgica, na construção do conhecimento médico, sendo que,
aqui, assumir o risco funciona como um enzima que permite que a ciência avance.
Estou um bocadinho como o [director] diz, há critérios e critérios. Há
critérios definidos, que a gente sabe, é impossível, não vale a pena, mas há
outros indefinidos, que não se sabe. Muitas vezes vai-se descobrir novas coisas
por causa disso mesmo, algumas vezes descobre-se algo, outras vezes não se
descobre nada. A ciência nasce dessa aventura e dessa disponibilidade. Não
estamos a fazer experimentação. Pelo menos arriscou-se, tentou-se alguma coisa
e foi no tentar (MC UT 10)
Acresce ainda que esta atitude de pró-inclusão de todos os doentes no Programa
de Transplantação Hepática, mesmo aqueles que não têm indicação para
transplante, é directamente influenciada pela atitude do próprio director que,
de acordo com as entrevistas e a observação efectuada, procura excluir o menor
número de doentes possível.
Do outro lado, os hepatologistas contra-argumentam, fazendo apelo aos
parâmetros científicos, chamando a atenção para as contra-indicações do
transplante em relação a casos específicos e para a escassez de órgãos. No que
respeita a este último aspecto, o discurso chama a atenção para o facto de se
estar a desperdiçar órgãos em doentes que não podem beneficiar deles, enquanto
que outros que têm maiores probabilidades de sucesso não podem usufruir desta
técnica devido a esta atitude. (n.t.c.) Perante este discurso o cirurgião
responde:
Realmente não há fígados para todos. Este é um argumento porque realmente se
houvesse fígados para todos, julgo que todo o doente era metido em lista,
qualquer doente era metido em lista e ponto final. O argumento seria
eventualmente o argumento financeiro, se vale a pena estar a gastar dinheiro
para transplantar aquele doente que vai morrer ou que tem poucas
probabilidades. Agora, quem somos nós para dizer a um doente que quer, que se
calhar você mesmo transplantado". Devia haver esta conversa, você mesmo
transplantado não tem esperança de mais de um ano de vida! O doente pode
dizer, Dr., está bem, mas eu quero ir ao Bloco. Nós temos a noção é que às
vezes há doentes que entram em lista e que nós achamos que vai ser aí o diabo!
Que corre tudo mal e o doente ao fim de 15 dias está morto com um sofrimento
enorme. E temos doentes que nós transplantamos com um tumor, sabe Deus como, e
que o doente ao fim de um ano morre, mas teve um ano óptimo. E se formos
perguntar a esse doente se aquele ano valeu a pena ( ) vimos o doente e falámos
com o doente, e vimos o doente ir ao baptizado do neto, esse doente quase
sobrevivente, acha que valeu imenso a pena. (MC UT 4)
Existe igualmente alguma polémica em torno de alguns doentes cujas patologias
estão associadas a comportamentos desviantes. Trata-se do caso dos alcoólicos e
toxicodependentes que entram em falência hepática. Estas situações constituem
um ponto de divergência importante entre os vários elementos que compõem as
especialidades médicas envolvidas no transplante hepático, no que diz respeito
à elegibilidade destes doentes. Os argumentos giram em torno da questão
relacionada com o comportamento destes após o transplante, mesmo em situações
em que foram submetidos, entretanto, a programas de recuperação,
particularmente no caso dos doentes alcoólicos. Mas, se no caso das cirroses
alcoólicas a decisão é mais pacífica, no caso dos toxicodependentes em falência
hepática aguda, devido à contaminação com o vírus da hepatite B, as reservas no
que diz respeito ao transplante são muitas, já que as garantias de mudança de
comportamento no pós-operatório levantam sérias dúvidas à equipa médico-
cirúrgica. Assim, no caso particular deste tipo de os doentes, um conjunto de
incertezas em torno do transplante contribuem para a dificuldade em estabelecer
critérios quantitativos e qualitativos. Um dos exemplos mais importantes em
termos de incerteza tem a ver com a capacidade de os doentes viverem com um
órgão transplantado, na medida em que são necessárias alterações em termos de
comportamentos e estilos de vida.
Já que a questão da escassez de órgãos disponíveis para transplantar é um dos
aspectos mais importantes a considerar nos processos de tomada de decisão,
então, é preciso distinguir aqueles cujas necessidades de transplantação serão
cumpridas, daqueles cujas necessidades permanecerão por cumprir, ou que devem
permanecer por mais tempo em listas de espera. A distribuição de bens desta
natureza, que promete benefícios substanciais a quem os recebe e, em alguns
casos, a diferença abissal entre o retorno a uma vida normal e a morte
prematura, coloca, obviamente, uma escolha extremamente difícil.
A este propósito, Fox (1988: 512-513) refere as atitudes dos médicos face à
morte. Os médicos são os únicos que têm o direito e a responsabilidade de
decretar a morte, sendo nos primeiros anos da sua formação treinados
intensivamente para combatê-la e vencê-la. Neste sentido, torna-se difícil para
o médico distinguir muitas vezes entre mortes que podem ou não ser evitadas e
perceber quando é, ou não, apropriado fazer esforços heróicos para salvar um
doente. Aceitar a morte é tarefa difícil e, por aquilo que nos foi possível
observar, podemos afirmar que mesmo para médicos tão experientes como os da UT,
a morte de um doente é encarada como uma falha perante a qual os médicos se
sentem responsáveis.
Tomando em consideração o prolongamento da vida como, aparentemente, o valor
menos controverso, verifica-se a partir de uma observação mais atenta que não
se trata, afinal, de uma questão simples. Brock (1988: 89) indica dois aspectos
que ilustram esta questão. Em primeiro lugar, o objectivo da transplantação não
é simplesmente prolongar a vida, mas também a qualidade do período em que a
vida é prolongada. Não se trata apenas de saber quanto tempo é que a
transplantação poderá prolongar a vida do doente, mas também a qualidade de
vida desses anos. Se a vida do doente pode ser prolongada com o
restabelecimento do seu normal funcionamento, então o doente receberá um
benefício substancialmente bom. Assim, de acordo com Brock (1988: 89), o ponto
de controvérsia reside no facto de saber precisamente como conjugar a
expectativa de vida com a qualidade de vida, por forma a ser possível
distribuir órgãos por aqueles que viverão por mais tempo com o maior padrão de
qualidade de vida. Como podemos verificar, este objectivo é difícil de cumprir
com rigor, até porque existem sempre situações não esperadas no decorrer do
processo de transplantação e nas respectivas trajectórias da doença. Isto quer
dizer que, mesmo quando se procura pôr de lado qualquer juízo de valor que
escape aos critérios meramente médicos e científicos, por forma a evitar
injustiças na selecção dos receptores, a confusão surge.
Senão, vejamos a seguinte situação. Não são apenas factores como o tamanho,
peso, tipo de sangue e tecidos que contribuem para o sucesso de todo o processo
de transplantação. Em algumas situações podemos observar outros critérios, como
a existência de um forte apoio familiar e estabilidade psicológica do doente,
que ajudam a tomada de decisão médica, na medida em que estes factores
contribuem de forma decisiva para o cumprimento dos objectivos de sucesso do
transplante. Neste sentido, estes valores são rapidamente transformados em
critérios de avaliação médicos na decisão.
O peso da incerteza na prática médica fica aqui bem reafirmado. Em termos de
decisão, este peso reflecte-se de uma forma dramática. Trata-se de facilitar
ou, pelo contrário, impedir o acesso de doentes a um último recurso que pode ou
não prolongar-lhes a vida. No entanto, abrir esta esperança para os casos mais
polémicos implica que outros doentes não tenham acesso à tecnologia de
transplante. Esta angústia da incerteza respira-se nas reuniões semanais onde
se discutem os casos. A este propósito, é importante transmitir uma das muitas
situações observadas e que ilustram o clima que caracteriza estes momentos
precisos de tomada de decisão sobre a entrada dos doentes no Programa de
Transplantação Hepática.
Numa destas reuniões semanais onde são apresentados os doentes que chegaram na
semana anterior à primeira consulta de transplantação (os candidatos ao
programa), um dos hepatologistas apresentou um caso com um diagnóstico
confirmado de tumor maligno, que tinha sido encaminhado para a consulta de
transplante. Na consulta que antecedeu a reunião, o hepatologista parecia
determinado a abrir uma excepção, já que se tratava de um caso sem qualquer
indicação para transplante. O facto de se tratar de um doente jovem com porte
atlético contribuiu para esta atitude por parte do médico, que aproveitou a
presença de um grupo de cirurgiões no serviço para discutir o caso em plena
consulta. A este propósito, de referir a forma como o hepatologista acentua a
importância de construir uma boa argumentação que convença os cirurgiões a
alinharem na sua decisão. Tenho que o vender bem aos cirurgiões (n. t. c.),
repetiu o hepatologista várias vezes durante a consulta.
Depois de olharem para os exames já efectuados e de alguma troca de impressões,
os cirurgiões concordaram com o hepatologista em avançar para o transplante. No
entanto, o caso teria de ser apresentado aos restantes elementos da equipa,
nomeadamente aos outros hepatologistas, na reunião que se efectuou de seguida.
Nessa reunião, que contava apenas com a presença dos hepatologistas, depois de
cada um apresentar os novos doentes, o hepatologista em causa apresentou este
caso, o único polémico dessa semana. Os seus argumentos foram imediatamente
rebatidos pelos restantes elementos da equipa, que utilizavam termos médicos
rigorosos e apelavam para aspectos científicos comprovados pela literatura da
área. O hepatologista contra-argumentava fazendo de advogado do doente. O seu
discurso não era um discurso médico, científico, mas assumia antes contornos de
um discurso leigo, apelando ao coração dos outros intervenientes, utilizando
frases como é ainda muito novo, tem um porte atlético, aparenta um
excelente estado geral. (n.t.c.) No final, a decisão foi ao encontro da
maioria dos hepatologistas e o doente acabou por não entrar no programa. Já cá
fora, depois de terminada a reunião, o hepatologista confessa que se tinha
deixado levar pela emoção e que felizmente os seus colegas o fizeram voltar à
razão. É por isso que estas decisões têm de ser discutidas e assumidas em
conjunto(n.t.c.), disse. Também um dos cirurgiões a quem foi apresentado este
caso na consulta referiu, mais tarde, na entrevista, esta situação:
Eu acho que no fundo é assim: realmente se calhar esse doente era um péssimo
candidato, agora como nós não temos mais nada para oferecer, o médico é o
advogado do doente; o doente precisa de alguém que advogue em sua causa. Se
calhar, se a gente o tem transplantado tinha-lhe feito mal. Já houve doentes
que nós a posteriori vimos que fizemos uma asneira em tê-los transplantado. Se
calhar se não fosse transplantado, se calhar o doente ainda estava vivo.
Percebe?A própria operação pode fazer pior ainda. Um outro doente que estava aí
pior, para ser transplantado, tinha um tumor e foi transplantado. Está aí na
maior! Daqueles transplantados que foi vamos ver o que é que dá. Cada doente
é um doente, nós não sabemos se esse doente a quem vamos dizer que não, é um
doente a quem devíamos dizer que sim. É complicado. Portanto, eu acho que na
dúvida, acho que mais vale transplantar, mais vale tentar. (MC UT 4)
Sem dúvida alguma que a incerteza determina a discrição dos médicos, mas não a
elimina. Perante a incerteza, os médicos lutam para manter a discrição. Fazem-
no, em parte, através da conceptualização, quer da trajectória da doença, quer
dos tipos de tratamento, por forma a que permitam uma considerável amplitude de
opções. Esta estratégia torna-se evidente no modo como os médicos
conceptualizam os casos que têm ou não indicação para transplante, bem como o
timing apropriado para proceder a este tipo de tratamento. Assim, Zussman
(1992: 151-153) refere-se à tomada de decisão médica enquanto negociação, na
medida em que as fronteiras entre a técnica e a ética são, pelo menos em parte,
construções sociais. Quanto às decisões técnicas, estas são inerentemente
probabilísticas, tanto mais que são contestadas e a sua aceitação na prática (e
até mesmo a sua validade lógica ou analítica) depende em parte da competência,
dogmatismo e posição social daqueles que as defendem.
Seja como for, as reivindicações por parte dos médicos em matérias de domínio
técnico são convenientes, na medida em que permitem reconciliar dois valores
que de outra forma são inconciliáveis. Possibilitam aos médicos reconhecer o
direito dos doentes em matéria de valores e, ao mesmo tempo, preservar a sua
própria capacidade para tomar decisões. Resta perguntar se na maioria das
situações as decisões são tomadas tendo em conta também a vontade dos doentes.
Por exemplo, nunca ninguém perguntou àquele homem de trinta anos se queria
viver mais um ano com qualidade ou dois anos sem qualidade de vida. À outra
doente foi-lhe dada a opção; ela sabia os riscos que corria, que aliás se
confirmaram, e mesmo assim quis ser transplantada. A outros não lhes foi dada
qualquer escolha. (n.t.c.) Desta forma se refere um dos cirurgiões ao caso de
um doente que foi rejeitado do Programa de Transplantação Hepática.
Em busca de consensos: discurso(s) médico(s) e alianças estratégicas
Tornou-se claro que qualquer uma das especialidades presentes no processo detém
poder, embora numa base francamente ténue e contingente, necessitando
constantemente de demonstrar e provar que as suas competências e conhecimentos
possuem instrumentalidade válida e legítima. Por exemplo, quando os cirurgiões
argumentam que o doente deve ser transplantado, dando ênfase ao argumento da
remoção da doença (fígado doente), o hepatologista contra-argumenta, definindo
o doente como caso sem indicação, já que a cirurgia vai comprometer seriamente
o doente (no caso dos tumores vai acelerar-lhe a doença). Assim, nos casos dos
transplantes que foram efectuados sem indicação e que se mostraram mais tarde
ineficazes, o cirurgião perde autoridade para continuar a exercer a técnica
cirúrgica em casos semelhantes. Do mesmo modo, em situações em que o
hepatologista apresentava um prognóstico negativo no que dizia respeito ao
transplante, e que, pelo contrário, se vieram a revelar casos bem sucedidos,
embora excepcionais, a sua autoridade fica diminuída face aos cirurgiões.
Numa de entre as várias situações assistimos à apresentação de um caso
polémico, sem qualquer indicação para transplante, que foi recusado, mais ou
menos de forma consensual. Meses mais tarde encontrámos o doente em questão nos
corredores da UT. Percebemos que, afinal, tinha sido transplantado. Quando
questionámos directamente o médico hepatologista que o seguia, a resposta foi
cautelosa e evasiva: houve um cirurgião que escreveu ao director a pedir que o
caso fosse revisto. Assim o fizemos. Como os argumentos eram válidos, decidimos
então avançar. (n.t.c.) Esta situação concreta constitui um excelente exemplo
acerca do papel do discurso médico na legitimação das práticas médicas. Aqui, o
discurso do hepatologista altera-se em relação ao discurso que tinha assumido,
uns meses antes, na justificação da decisão de não incluir este mesmo doente no
Programa de Transplantação Hepática. Deste modo, queremos realçar as formas
através das quais os vários discursos médicos interferem na construção dos
casos clínicos, nos vários pontos do circuito de transplantação hepática, por
forma a legitimarem as tomadas de decisão médicas e as suas consequentes
práticas. Neste processo de construção dos discursos médicos, assistimos à sua
constante transformação em relação aos contextos sociais que os envolvem.
Estes exemplos reflectem a complexidade que envolve estes processos de tomada
de decisão, cujos critérios ultrapassam os meros critérios científicos. O
acesso de doentes com diagnóstico polémico ao programa está intimamente
relacionado com a forma como esses doentes são apresentados à equipa de
transplantação, particularmente aos cirurgiões e hepatologistas. Mais ainda, o
interlocutor, i.e., o médico que o apresenta, seja hepatologista ou cirurgião,
assume aqui um papel central e decisivo. No excerto que se segue, mais uma vez,
o médico é o advogado do doente.
Não é cunha! Foi uma pessoa que jogou a favor dela, apresentou argumentos.
Tenta-se chegar a um consenso e nessa parte tem que haver um conteúdo
científico, mas depois também tem que haver excepções para casos humanos. Por
exemplo, esta doente que agora me disseram que estava a morrer, esta jovem, de
facto, não tinha indicação para transplante. E eu falo contra mim porque fui eu
que propus o transplante, por razões humanitárias e por razões Fui eu que a
pus ali. Eu este ano sou responsável por três indicações que não são
cientificamente correctas. Assumo isso inteiramente. É a grávida, é essa
grávida, que também não tem indicação nenhuma, que está muito bem. O que ela já
viveu! Ela já tinha morrido. O que ela já viveu! O que ela já viveu, já valeu a
pena. Está a ver? Se o grupo for coeso cientificamente, pode ter lugar para as
excepções. Se um grupo não é coeso cientificamente, cada um tem as suas
excepções, é uma bandalheira total, está a ver. Eu acho que só há lugar para as
excepções quando o grupo é cientificamente coeso e cientificamente unido, para
podermos ter as nossas excepções. (MC UT 3)
Nesta entrevista, o cirurgião refere a importância dos aspectos científicos,
chamando a atenção para a necessidade de coesão científica entre as várias
especialidades médicas que compõem a equipa de transplantação hepática. Assim,
reforça-se a necessidade de construir uma postura conjunta a partir dos vários
conhecimentos médicos que encerram experiências e discursos que se complementam
mutuamente. Esta necessidade confere à equipa uma espécie de idoneidade médico-
científica que lhe permite, de forma assumida, aceitar doentes no seu programa,
cujo diagnóstico contraria qualquer critério científico. Desta forma, uma base
científica forte confere a possibilidade a estes médicos de praticarem para
além das fronteiras daquilo que a ciência considera medicamente correcto,
como se esta ultrapassagem dos limites da ciência fosse a garantia do próprio
avanço científico. Aqueles que ousam arriscar para além do que está
estabelecido são os que contribuem, desta forma, para o progresso da própria
ciência, desde que, na sua prática quotidiana, exista uma coesão científica do
grupo. (n.t.c.)
De acordo com Zussman (1992: 119), outras incertezas, provenientes da
organização social da medicina, emergem de uma forma muito mais directa. Um dos
factores mais importantes tem a ver com o facto de a incerteza ser exacerbada
por um complexo e longo sistema de tomada de decisão, que dá ênfase à
responsabilidade individual dos médicos. A certeza enquanto atitude individual
não implica unanimidade. No entanto, enquanto sistema social, a certeza requer
um consenso. Desta forma, o insistente dissidente, de entre um conjunto de
médicos que sem este elemento reuniria um consenso, é suficiente para
estabelecer a dúvida. Para estar seguro, qualquer médico individualmente pode
sustentar, mesmo contra uma voz dissidente, a sua própria convicção. Os médicos
podem apegar-se às suas próprias ideias obstinadamente. Apesar do ponto de
vista do grupo, considerando a certeza como um fenómeno social (e não
simplesmente um fenómeno individual), o dissidente enquanto médico individual
é, como tivemos oportunidade de verificar na transplantação hepática,
suficiente para introduzir a incerteza.
No entanto, a responsabilidade individual necessária noutras circunstâncias
assume um significado muito diferente na UT. Para determinar o tratamento, os
médicos da equipa de transplantação hepática precisam de certeza. No entanto,
essa certeza implica consenso e a ênfase na responsabilidade individual dos
médicos significa que o consenso é difícil de alcançar. Comparada com a maioria
das situações de prática clínica, a UT enfatiza as decisões colectivas.
Contudo, mesmo neste serviço, a medicina carece de meios para impor a vontade
colectiva perante dissidentes. A responsabilidade individual, que noutros
contextos constitui a base da tomada de decisão, no caso da UT refere-se aos
meios através dos quais as decisões são bloqueadas.
Tendo em consideração que o trabalho médico implica tomar decisões que
englobam, inclusive, a decisão de não actuar, o médico sente-se impelido a
agir, nem que seja para dar resposta aos doentes que lhe pedem acção no combate
à sua doença, como é o exemplo de inúmeros doentes desesperados que insistem em
serem transplantados junto da equipa de transplantação, depois de ter sido
recusada a sua entrada no programa. Neste sentido, Freidson (1984 [1979]: 260)
refere a probabilidade de encontrarmos situações de sobrediagnóstico e de
sobremedicação. No entanto, é necessário considerar que estas excepções às
regras de decisão médica servem para ilustrar de que forma as condições de
trabalho são muitas vezes mais fortes que as orientações de valor e de regras
científicas, presentes nos processos de tomada de decisão. Trata-se, mesmo
assim, de excepções que determinadas personalidades dominantes da profissão vão
impondo aos seus pares.
Então, a existência de divergências de opinião indica, de facto, que na
medicina as diferenças na definição da doença e do respectivo tratamento têm
focos organizados que, pela sua própria existência, põem em causa a
estabilidade e objectividade do corpus da ciência médica. O pendor do
diagnóstico da doença é comum a todos os médicos; aquilo que os separa é a
doença diagnosticada que encerra em si diferentes formas de abordagem. Assim,
deixando de lado todo um conjunto de situações em torno das quais a unanimidade
do diagnóstico e da terapêutica é uma realidade, em virtude de um consenso que
tem por base critérios científicos, resta-nos o problema inerente aos casos que
oferecem polémica, no sentido em que determinadas decisões médicas não são
unânimes entre os vários intervenientes.
A este propósito é interessante referir as várias alianças estratégicas entre
os elementos das diferentes especialidades, que se constroem em torno de casos
concretos. Deste modo, em algumas situações assistimos à construção de
argumentos conjuntos que envolvem conhecimentos complementares por forma a
reforçar a argumentação de um grupo de médicos. Em algumas ocasiões, o
coordenador dos anestesistas foi chamado a dar a opinião, tanto a pedido dos
hepatologistas, como, noutras ocasiões, dos cirurgiões. Os seus argumentos
foram decisivos para a solução conjunta.
Como já foi referido, os momentos concretos de tomada de decisão circunscrevem-
se à presença de duas especialidades médicas: os hepatologistas e os cirurgiões
que, com a presença sempre atenta do director da unidade, constroem a decisão.
De facto, é entre estes dois corpos médicos distintos, que funcionam quase
sempre em bloco, que se esgrimem argumentos e se opõem discursos, por vezes,
inflamados. Estrategicamente, cada grupo constitui-se a partir de alianças
internas, tentando conquistar terreno ao outro campo, procurando seduzir, por
vezes, elementos do outro grupo para a sua causa ou recrutando elementos de
outras especialidades para a reunião, que ajudem com os seus saberes
específicos a compor a estratégia de argumentação. Na entrevista que se segue
podem-se observar os argumentos de um dos cirurgiões:
Quando o doente é visto, o doente é visto por eles hepatologistas e depois é
discutido numa reunião. Agora para haver mais pessoas e para haver mais pessoas
a puxar a brasa à sardinha da cirurgia, percebemos que era bom que o cirurgião
que está cá de serviço estivesse sempre presente nas reuniões. Porque agora há
sempre um ou dois cirurgiões colocados na Unidade de Transplante. Portanto,
hoje estávamos em maioria em relação à hepatologia. (MC UT 4)
Centrados no caso concreto, documentados com as últimas novidades da ciência,
os vários discursos confrontam-se e muitas vezes misturam-se. Entre a ciência e
a experiência clínica, entre a razão e o sentimento, entre uma maior e uma
menor aversão ao risco, a incerteza está sempre presente e constitui um aspecto
fundamental de toda a discussão. De facto, ambos os lados utilizam a questão da
incerteza nas suas argumentações. Assim, enquanto que os cirurgiões referem a
incerteza face a um prognóstico (que, à partida, parece negativo), como uma
porta aberta para um possível caso de excepção (que pode não confirmar a
regra), os hepatologistas, habitualmente, com a sua postura menos
intervencionista, preferem não arriscar pelo incerto. Um dos argumentos para
não incluir os casos mais polémicos na lista de espera tem a ver com o facto de
os doentes presentes neste tipo de situações terem pouco tempo de vida apesar
do transplante, vindo mesmo este, por vezes, acelerar o processo de morte.
Estes contextos resultam em situações de grande conflito pela opção de em quem
utilizar um recurso escasso: o doente morrerá em breve sem ele ou durará um
pouco mais com qualidade de vida; se se optar pela segunda hipótese, um outro
doente a quem estaria destinado o órgão e com francas possibilidades de viver
mais alguns anos com qualidade de vida perderá a oportunidade pela qual espera
há tanto tempo. Aqui o argumento dos cirurgiões é: mais vale viver pouco mas
com qualidade do que mais tempo sem qualidade. Os hepatologistas contra-
argumentam dizendo que o sofrimento acrescido não paga esses bons momentos.
(n.t.c.)
Assim, a questão relacionada com o sucesso do transplante é igualmente muito
relativa, no sentido em que a duração do enxerto, a sobrevivência do doente, a
sua qualidade de vida, o tempo e as condições de reabilitação, em conjugação
com outros factores, influenciam a probabilidade de sucesso. A este propósito,
nos momentos de decisão sobre os casos mais polémicos, o tempo de sobrevivência
estipulado para garantir o sucesso varia muito, consoante as especialidades e
os médicos em causa. Vulgarmente ouvem-se argumentos, sobretudo por parte dos
cirurgiões, onde se acentua constantemente a ideia de que, mesmo que o doente
viva apenas por mais um ano com qualidade de vida, já valeu a pena.
É claro que nós poderemos, cada vez mais, ser um bocado mais atrevidos em
termos cirúrgicos se começarmos a ter melhores resultados. Nós temos bons
resultados com casos complicados ( ) Portanto, nós somos atrevidos, mas também
não somos loucos! Temos de saber, realmente, equacionar sempre e ter sempre uma
objectividade no sentido de: será que nós vamos trazer benefícios Se não
trazemos benefícios recuamos imediatamente, ou se chegamos a essa conclusão. E
até agora penso que, digamos, o atrevimento, se é que se pode falar assim, tem
sido um bocado de parte a parte. (MC UT 6)
De qualquer maneira se virmos que há uma grande oposição da hepatologia a
transplantar determinado doente, nós temos que Isto aqui é uma coisa
científica. Então, quer dizer, há argumentos que o [director] normalmente está
calado a ouvir. Muitas vezes dá a sua opinião; os hepatologistas dizem a ele
que sim, sim, sim, e a cirurgia diz que não, não, não. Mas depois tem de se
dizer porque é que sim ou porque é que não. E normalmente acaba por ser tomada
uma decisão de consenso. Agora, dizer-se: pode haver transplante mas esse
doente eu não vejo. Não há! Pois, isso não! Não pode ser! Não pode ser! (MC
UT 4)
Perante este campo de batalha, o olhar atento e sereno do director vai compondo
o consenso, procurando que todas as perspectivas sejam consideradas, forçando
uma solução conjunta, procurando não interferir demasiado em prol de qualquer
um dos grupos, mantendo-se tão imparcial quanto possível. É sempre esta a sua
postura. No entanto, algumas vezes é forçado a intervir de forma mais assumida,
tomando claramente partido por uma das soluções, sem deixar de fundamentar a
sua posição. Eis como o próprio director da unidade encara o seu papel de
coordenador nestes contextos.
Os interesses são convergentes. Há uma convergência, à partida, há uma
convergência objectiva: o programa. Essa é uma convergência. Junto com o
programa, isso é fundamental, tudo o resto são acidentes. E não são muitos.
Qualquer que seja a especialidade, há uma convergência, há uma convergência.
Cada um tem a sua visão, tem a sua visão específica. Mas convergem todos ali. E
é isso que caracteriza o programa e é essa a missão de quem tem que o governar.
É que todos eles têm o sentido do programa. (MD
9
UT 2)
E há a obrigação do director da unidade, o coordenador do programa. Não é a
última palavra. Não, não é! É inflectir, é fazer força pela inflexão para que
uma coisa que não está a ser considerada, passe a ser. Não é a última decisão.
A última decisão por sair Sai por si. Às vezes discute-se muito mas quando se
discute chega-se à convergência. (MD UT 2)
No entanto, sendo o director da unidade um cirurgião, apesar de aqui assumir o
papel de coordenador da equipa multidisciplinar de transplantação hepática, a
postura do cirurgião acaba por prevalecer. Na realidade que observámos e também
nas entrevistas efectuadas, está patente que a visão do cirurgião prevalece. A
este propósito, a opinião do hepatologista é inequívoca.
É tomada em conjunto mas em última instância (risos) é o director da unidade
que decide. Isto é, o director da unidade pode meter em lista doentes com os
quais a gente não concorda, por exemplo (MH UT 13)
O maior peso: é dos cirurgiões! Sim, sim. Até porque o director é cirurgião e
pronto isso é indiscutível. (MH UT 13)
Desta forma, o peso que a equipa dos cirurgiões assume, nos contextos concretos
de tomada de decisão médica em relação aos hepatologistas, é notório, não só
pelo facto de estarmos perante uma unidade cirúrgica, coordenada por um
cirurgião, mas também pela forma contrastante como cada um dos grupos organiza
não apenas o seu trabalho, mas também as suas estratégias. Como referimos
anteriormente, a propósito da organização das práticas médicas de cada um dos
grupos, o individualismo dos hepatologistas em face do espírito de equipa dos
cirurgiões assume uma correspondência em termos de correlação entre as duas
forças, resultando o facto de os cirurgiões primarem por uma postura mais coesa
numa vantagem significativa em relação aos hepatologistas nos momentos de
tomada de decisão. Existem mesmo situações em que os cirurgiões avançam para a
cirurgia, mesmo sem o acordo dos hepatologistas. As entrevistas que se seguem
mostram como cada um dos lados refere estas circunstâncias.
Apesar de tudo, quem transplanta são os cirurgiões. Nós não transplantamos um
doente se não concordarmos que deve ser transplantado. Não passa pela cabeça
transplantar um doente em que ninguém da cirurgia acha que o doente deve ser
transplantado, só porque alguém acha que deve ser transplantado. Mas já tem
havido casos em que o hepatologista acha que não e nós avançamos, nós
avançamos! (MC UT 4)
Já tem havido, em termos inclusivamente de transplantar doentes, em que a
equipa de cirurgia estaria contra, tinha algumas reticências em relação à
oportunidade de transplantação e vice-versa. Há outros em que nós
transplantamos por nossa maior convicção e que sabemos que os hepatologistas
não são 100% favoráveis. Mas, pronto, tem que haver cedências de parte a parte.
No fundo, na globalidade dos casos acaba por haver um consenso. E mais. E não
temos grandes protocolos. Cada caso é um caso. (MC UT 6)
Pronto. Mas de qualquer maneira, o cirurgião, no fundo, acaba por ter um peso.
E esse peso é legítimo. Portanto, penso saber que é uma unidade cirúrgica, não
queremos aqui puxar dos galões, não é nada disso. É um acto cirúrgico para
todos os efeitos, não é. Agora as indicações, isso tem que passar por
especialistas de hepatologia, isso aí tem que ser de mútuo acordo, porque senão
é de mútuo acordo estamos mal! (MC UT 6)
Então, tal como Childress (1991: 186) refere, apesar de os critérios
científicos que estão subjacentes ao processo de tomada de decisão estarem
rigorosamente definidos, este facto não elimina o peso da avaliação e decisão
médica individual. Neste sentido, é possível assistirmos a determinados casos
onde a decisão é afectada por influências subjectivas por parte de alguns
médicos, por exemplo, na admissão de doentes na lista de espera que, à partida,
de acordo com critérios científicos, não têm qualquer indicação para
transplante. A este propósito, importa sublinhar a importância, muitas vezes
referida pelos vários médicos que acompanhámos, de o médico estar disponível
para praticar a arte da medicina, tendo em consideração os aspectos
individuais de casos particulares. Ou seja, o médico toma a decisão tendo em
conta a eficácia do tratamento em doentes específicos, mesmo que esta
contradiga as linhas gerais presentes nos critérios científicos.
No entanto, colocando de lado os casos excepcionais, os critérios utilizados
nos diversos contextos de tomada de decisão são médicos, no sentido em que
envolvem técnicas médicas aplicadas por médicos e influenciadas, em termos de
argumentação, pelo sucesso ou falha do transplante. Mesmo assim, apesar de
estes critérios serem na sua essência médicos, não são neutros. O debate acerca
das questões relacionadas com o peso e a flexibilidade dos critérios utilizados
assume, apenas em parte, os aspectos técnicos e científicos, tendo outros
valores igualmente um grande peso, sobretudo em casos polémicos, como tivemos
oportunidade de verificar.
Concluindo
À luz dos resultados empíricos apresentados, podemos concluir que os processos
de tomada de decisão médica constituem a conclusão e, ao mesmo tempo, a génese
de múltiplos saberes/poderes que se expressam nas práticas médicas. No conjunto
das relações que se estabelecem entre as diferentes especialidades médicas,
revela-se a presença de estratégias dominantes nas oportunidades e
constrangimentos que são aproveitados na construção de estratégias recíprocas e
que utilizam a incerteza como dado fundamental, em sistemas de acção concretos.
As formas particulares de poder médico em diferentes momentos de tomada de
decisão demonstram a forma como os actores, através do discurso e práticas
médicas, põem em prática as suas estratégias, influenciando, muitas vezes de
forma decisiva, a trajectória dos doentes e da doença. As várias informações
para a tomada de decisão encontram-se dispersas no espaço e no tempo,
distribuídas por vários indivíduos e especialidades. Do mesmo modo, também os
processos de discussão, argumentação, negociação e decisão estão igualmente
dispersos. Assim, podemos afirmar que o processo de tomada de decisão médica
está longe de ser considerado um acto isolado.
Os resultados empíricos revelam ainda que a tomada de decisão médica, no
contexto apresentado, tal como acontece noutras situações relacionadas com
aquilo que Katz e Capron (1975: 29) designam como doenças catastróficas, onde
são necessárias equipas especialistas de profissionais de diversas disciplinas,
pode conduzir a conflitos acerca de pontos de vista, técnicas e prioridades,
bem como a disputas sobre a liderança e controlo em relação ao doente.
Partilhar a autoridade na tomada de decisão (por exemplo, entre cirurgiões e
hepatologistas) reduz a discricionariedade na tomada de decisão. Existem uma
série de restrições formais e informais na liberdade de escolha dos médicos, no
que diz respeito às decisões acerca do percurso dos doentes, entre as quais,
talvez a mais importante, a incerteza nos resultados. Inicialmente, este
aspecto foi considerado como o problema principal na actividade médica, por
autores como Fox (1988: 406-407), que refere que as incertezas resultam das
limitações do conhecimento médico e outras de insuficiências em termos de
competências do próprio médico. Assim, a incerteza reforça o trajecto do
conhecimento, e apenas o conhecimento e a experiência podem reduzir a
incerteza. No entanto, a incerteza também pode bloquear esta motivação pelo
facto de gerar ansiedade sobre o impacto dos procedimentos médicos em causa.
Mas, devido a este tipo de incertezas, a transplantação continua a ser
utilizada apenas em doentes em estados terminais de falência hepática, quando
todos os outros tratamentos já nada podem fazer. O transplante hepático é,
deste modo, o último recurso.
Igualmente, alguns dos momentos concretos de tomada de decisão parecem revelar-
se excelentes oportunidades onde a autoridade dos diversos discursos médicos é
posta em causa e desafiada através da utilização de uma linguagem técnica
própria que permite individualizar cada um dos discursos. O processo de tomada
de decisão ao longo do circuito de transplantação hepática raramente parece
ocorrer como um acto simples e discreto, pelo contrário, ele é produzido e
partilhado pelos vários intervenientes das equipas médica e cirúrgica, onde é
visível uma distribuição do conhecimento médico entre as várias especialidades.
Assim, o exercício de tomada de decisão funciona como um dos mais importantes
momentos de interacção entre os vários intervenientes no processo de
transplantação hepática, contribuindo com diferentes interesses, pontos de
vista, conhecimentos e experiências. A tomada de decisão, neste caso, não é o
resultado isolado e individual que opera num vácuo social. Também não é um
processo desinteressado, mas sim susceptível de ser moldado por influências
sociais.