A transformação cultural de cidades médias, segundo os seus agentes culturais
Um ensaio sobre a percepção social das mudanças
A investigação sobre as dinâmicas culturais urbanas que foi realizada por
sociólogos das Faculdades de Economia de Coimbra e do Porto e tomou por
referência empírica as cenas culturais das cidades de Aveiro, Braga, Coimbra,
Guimarães e Porto, ao longo da segunda metade dos anos 1990, foi colocada sob a
orientação de um corpo de hipóteses gerais acerca da influência da
espacialidade urbana no jogo de relações entre globalização e localização,
modernização e patrimonialismo, integração e ruptura. Com tais hipóteses,
chamámos a atenção para as lógicas de redesenvolvimento das cidades em que
pontuam recursos e iniciativas de natureza simbólica, alterando
significativamente o papel da cultura na determinação das identidades
colectivas, do tecido socioeconómico, dos padrões de consumo, da configuração
do espaço público e das formas de afirmação e competição entre localidades e
regiões. E propusemos dar conta da complexidade dos processos de articulação
entre as escalas global e local e entre os movimentos de centralização,
periferização e lateralização social, a partir da análise de agentes e zonas de
intermediação em acção nesses processos.[1] Pensamos que uma indagação fina de
mediações como as que se estruturam em torno das “terceiras culturas”
transnacionais (no conceito de Featherstone, 1997), da dialéctica entre
estranhamento e tolerância sociocultural (como modulações intermédias entre as
formas polares do inter-reconhecimento e do conflito), da reinvenção da
domesticidade como um lugar aberto à comunicação (e não apenas de reclusão e
isolamento) e dos novos ou renovados espaços de proximidade relacional, essa
indagação faz-nos perceber melhor a típica situação de desfecho incerto das
tensões que animam o redesenvolvimento urbano e o futuro do respectivo espaço
público (Fortuna e Silva, 2001).
Este programa de pesquisa pede a exploração de perspectivas diversas e
complementares. Procurámos, para as cidades referidas e também para outras de
média dimensão, pôr em relevo a complexidade das articulações entre dinâmicas
culturais e transformações urbanas, observando sucessivamente vários lados do
problema: a construção e disseminação de identidades simbólicas e respectivos
ícones e emblemas patrimoniais (Fortuna e Peixoto, 2002); a composição dos
públicos culturais e os padrões de procura cultural (Santos e outros, 1999;
Silva e outros, 2000; Silva e outros, 2002a); a formação dos hábitos e gostos
dos consumidores regulares de bens culturais (Silva e outros, 2002b); a
estrutura dos equipamentos e da oferta cultural (Silva e outros, 1998; Silva,
2002); as políticas autárquicas (Silva, 2000: 87-137).
Foi utilizado um dispositivo de construção de informação relativamente
complexo, que compreendeu um inquérito por questionário, administrado em 1997 a
uma amostra de 1500 residentes de Aveiro, Braga, Coimbra, Guimarães e Porto, 80
entrevistas em profundidade a consumidores regulares de cultura das mesmas
cidades, entrevistas realizadas em 1998, a observação sistemática de fontes de
imprensa, agendas culturais municipais, programas e outros materiais de
divulgação, para caracterizar a oferta cultural das cidades ao longo do ano de
1998, entrevistas com eleitos locais e entrevistas com informantes
privilegiados.
Neste quadro, 48 personalidades que ocupavam lugares e desenvolviam actividades
de certo protagonismo na cena cultural urbana foram entrevistadas em
profundidade, entre Março de 1999 e Março de 2000. No presente artigo,
utilizaremos a informação recolhida através das entrevistas a 31 delas,
trabalhando nas quatro cidades médias de Aveiro, Braga, Coimbra e Guimarães.
Não reteremos as 17 entrevistas referentes ao Porto, cuja escala metropolitana
é distinta da escala das demais urbes.
Das 31 entrevistas aqui consideradas, 6 dizem respeito a Aveiro, 11 a Braga, 7
a Coimbra e 8 a Guimarães; e 12 foram feitas a quadros dirigentes ou técnicos
de instituições e serviços públicos, tais como autarquias, universidades e
equipamentos culturais, 10 a dirigentes de associações culturais (incluindo
secções culturais de associações académicas), 6 a activistas de estruturas de
produção artísticas (companhias de teatro e de dança) e 3 a galeristas de arte.
Elas providenciaram informação relevante sobre a estrutura e a dinâmica do
campo cultural local e, a esse título, foram objecto de cruzamento com outras
fontes, para suportar a descrição sociológica desse campo (Silva, 2002). Mas o
seu interesse analítico vai muito para além deste plano: o que, em diálogo com
os entrevistadores, fez a larguíssima maioria dos protagonistas foi discorrer
reflexivamente não só sobre os seus projectos e a maneira como se inserem na
paisagem social, como também sobre como eles próprios vivem e interpretam essa
paisagem e antevêem o seu futuro. É bem possível focar os discursos dos
entrevistados como representações de agentes culturais sobre o passado recente,
a situação presente e os caminhos de evolução das cidades médias portuguesas e
das respectivas cenas culturais.
Eis o que tentaremos fazer, de seguida. Com a plena consciência de provocar uma
dupla confrontação: a confrontação daquelas representações com os factores
estruturais e conjunturais em acção nas respectivas cidades, quer os que foram
gerando mudanças quer os que forçaram permanências; e a comparação entre os
dois discursos reflexivos elaborados, um, do lugar da acção cultural local e, o
outro, a partir da sociologia da cultura. Não é, pois, questão — seria bem
primário pensá-lo — de “verificar” o realismo das representações dos
protagonistas à luz dos indicadores disponíveis sobre as “condições objectivas”
da dinâmica urbana, nem de sujeitá-los à prova do escrutínio sociológico; mas
sim de considerar os seus discursos e as disposições que exprimem como
elementos constitutivos da dita dinâmica, factores, entre outros, do seu
movimento — e também como um saber, uma percepção social com a qual se pode
cruzar e enriquecer o conhecimento sociológico.
As cidades mudam: e os protagonistas?
Lidos da perspectiva que as nossas hipóteses gerais alimentam, e que coloca em
destaque o processo de redesenvolvimento culturaldas cidades, os discursos dos
activistas culturais podem ser entendidos como abordagens reflexivas de
encruzilhadas sociais. Saltam à vista as mudanças que as nossas cidades médias
têm vivido, nas diferentes escalas de tempo convocáveis: a institucionalização
da democracia, ou seja, os últimos trinta e cinco anos; a integração europeia,
ou seja, os últimos vinte e cinco anos; e as escalas mais fluidas, mas não
menos operativas, da progressiva enunciação, por parte das câmaras municipais,
de políticas culturais (o que se tem feito sentir desde os anos 80, com
interessantes casos precursores, mas relativamente excepcionais, entre os quais
se pode contar, aliás, Braga (cf. Silva, 2000: 119-137), do crescimento da
população universitária, discente e docente, nas cidades em que a presença de
estabelecimentos de ensino superior público é recente (no nosso caso, todas
menos Coimbra), ou das transformações no ambiente de cultura e lazer associadas
à contemporaneidade.
Estas mudanças significam um enorme potencial de inovação e qualificação. Mas
confrontam-se com factores de bloqueio, ao nível da estrutura e/ou da acção,
que os agentes culturais são dos primeiros a experimentar. Nem no registo da
análise de condições objectivas, nem no das apreciações dos sujeitos sociais, é
linear a evolução da realidade urbana intermédia portuguesa. A conjuntura
parece ser de encruzilhada, caracterizada pelo jogo entre forças contrapostas,
pela tensão entre movimentos contrários, ou ao menos diferenciados, e onde os
protagonistas podem ajudar melhor o olhar sociológico é na percepção e na
expressão desta tensão.
É certo que as cidades mudaram: as cidades e os seus concelhos. Basta uma
consulta rápida aos resultados censitários para evidenciá-lo. A população
residente cresceu: no conjunto dos concelhos (ao longo da década de 90, mais
16% em Braga, mais 10% em Aveiro, mais 7% em Coimbra, mais 1% em Guimarães), e
nas suas freguesias urbanas, cujo aumento populacional foi ligeiramente
superior, em proporção ao do concelho, salvo em Guimarães, em que até perderam
gente (quadro 1).
Quadro 1 Evolução da população residente nos concelhos, segundo a natureza das
freguesias, 1991-2001 (%)
Como resultado destas dinâmicas demográficas, as freguesias urbanas valem mais
de 90% da população concelhia, havendo a registar mais uma vez a excepção de
Guimarães, onde só valem 79%. Contudo, se considerarmos apenas as freguesias
interiores aos limites administrativos da cidade principal de cada concelho
(porque há freguesias urbanas fora dessa cidade), as percentagens descem para
valores próximos dos 70% em Aveiro, Braga e Coimbra, e para os 45% em
Guimarães, concelho em que a maioria da população vive fora da cidade que lhe
dá o nome. De qualquer modo, a utilização deste critério acentua, salvo em
Aveiro, a natureza da evolução recente, no sentido do crescimento do peso
específico da cidade (quadro 2).
Quadro 2 Evolução da população residente nas cidades, relativamente à população
dos respectivos concelhos, 1991-2001 (%)
São também significativas as mudanças na composição social da população destes
concelhos. E as mais relevantes, para o que concerne às práticas culturais, são
o aumento do peso relativo das novas classes médias e dos grupos mais fortes em
capital escolar. De facto, como mostra o quadro 3, os nossos concelhos
acompanham a tendência nacional: entre 1991 e 2001, a proporção dos quadros
dirigentes e dos quadros superiores e intermédios passou de 13% para 18% no
Continente, e de 18% para 25% em Aveiro, de 16% para 22% em Braga, de 26% para
33% em Coimbra e de 8% para 11% em Guimarães. A tendência nacional também é
seguida no que diz respeito aos níveis de instrução: a percentagem dos que
concluíram ou frequentaram o ensino superior quase duplicou, no conjunto do
Continente (8% para 15%); ora, mais do que duplicou em Guimarães (4% para 9%) e
em Braga (11% para 24%), e praticamente duplicou em Aveiro (12% para 23%) e
Coimbra (18% para 32%) (quadro 4).
Quadro_3 Evolução da população activa dos concelhos e do Continente, segundo o
grupo socioeconómico, 1991-2001 (%)
Quadro_4 Evolução da população dos concelhos e do Continente, com 15 e mais
anos, segundo o nível de instrução, 1991-2001 (%)
Quando sabemos que os indicadores mais seguros da intensificação do consumo
cultural são a combinação entre idade (jovem) e escolarização, e entre
escolarização e qualificação profissional — quer dizer, é a condição social
ligada às novas classes médias que eles revelam (Conde, 1997; Silva e outros,
2002a) —, é indispensável fazer notar que, em resultado do movimento geral de
translação das estruturas sociais, um em cada três dos residentes em Coimbra
maiores de 15 anos e inseridos no mercado de emprego é quadro dirigente,
superior ou intermédio, e o mesmo sucede com um em cada quatro dos aveirenses,
um em cada quatro dos bracarenses e um em cada nove dos vimaranenses. Entre os
chamados inactivos, o aumento do número e do peso relativo dos estudantes é
também marcante, em todos os casos, e com particular expressão em Guimarães, o
que, combinado com a intensidade da transformação na estrutura das habilitações
académicas, indicia que a mudança neste concelho, sendo mais recente, não é
menos efectiva (quadro 5).
Quadro 5 Evolução dos estudantes no conjunto da população com 15 e mais anos,
residentes nos concelhos e no Continente, 1991-2001
Outro domínio em que os nossos concelhos acompanham uma tendência nacional é a
composição etária. Mas, se a população envelhece aqui como no país, continua a
ser marcante o facto de Aveiro, Braga e Guimarães conhecerem uma proporção de
habitantes com idades compreendidas entre os 15 e os 44 anos significativamente
superior à do Continente (quadro 6). A este grupo, que os inquéritos mostram
ser o mais propenso aos consumos culturais, pertencem 62% dos residentes em
Braga e Guimarães, 55% dos residentes em Aveiro e 52% dos residentes em
Coimbra, a qual está em linha com a média nacional. O grupo perdeu peso
percentual entre 1991 e 2001, mas continua a determinar o carácter
relativamente mais juvenil dos concelhos.
Quadro 6 Evolução da população dos concelhos e do Continente, com 15 e mais
anos, segundo o grupo etário, 1991-2001 (%)
A breve viagem que realizámos pela paisagem socioeconómica dos quatro concelhos
foi, entretanto, dando nota da diversidade entre eles. Se todos vivem processos
de qualificação no plano escolar e socioprofissional, o certo é que os vivem
diferenciadamente e, conjugados tais processos com as situações herdadas, a
composição social varia bastante. Tipicamente, Guimarães distingue-se dos
restantes concelhos por ser uma zona fortemente operária, em que os
assalariados industriais valem mais de metade dos activos. Braga combina a
presença forte do operariado industrial com uma boa presença dos empregados
terciários e dos quadros. Em comparação, Aveiro distingue-se por ter no grupo
dos empregados a maior representação relativa, e Coimbra por tê-la nos quadros
superiores e intermédios (cf. quadro_3).
Ora, estas modulações na sociografia estão sintomaticamente ausentes do
discurso dos agentes culturais entrevistados. A mudança, para eles, existe, sem
qualquer margem para dúvidas, mas pintada a traço grosso. Desde logo, a
democratização subsequente ao 25 de Abril, capital para a criação cultural.
Depois, a massificação de acessos que foram outrora, décadas a fio,
extremamente restritivos: a frequência da escola, a existência de tempo livre,
o consumo de bens de cultura e entretenimento, a integração nos circuitos da
comunicação de massas. Enfim, a inovação nos padrões de comportamento e
interacção, privada e pública, e nos padrões de lazer e de consumo, com o
surgimento de uma disposição de abertura ao consumo de bens imateriais e de
valorização da novidade, contrastando com os velhos hábitos de contenção que
tanto marcaram ainda o século XX português.
Esta mudança é vista a duas cores. Em si mesma positiva, parece, aos olhos dos
protagonistas culturais, carregar também ameaças, ou pelo menos ter um lado
lunar. A liberdade democrática é inigualável, há um antes e um depois da sua
conquista, mas pode significar também conformismo, pouca participação cívica,
perda da capacidade de resistência aos poderes estabelecidos: “a democracia é
boa, mas leva a que muita gente se acomode”, diz um professor coimbrão (XX).[2]
A intensificação das práticas de consumo potenciou também a influência
hegemónica das indústrias culturais e do modelo de recepção abandonada que elas
inculcam: perdem-se os interesses que fogem ao mainstream, ignorados pelos
media, o que cria, como explica um cineclubista de Guimarães, um ciclo vicioso:
“o que é minoritário nunca é divulgado porque é minoritário e o que é
maioritário eterniza-se exactamente porque continua a ser divulgado” (XXIV). A
inovação nos padrões de comportamento alimenta paradoxalmente a continuação e
até o revivalismo de rituais tradicionalistas, designadamente nas praxes e
festas académicas, que estarão no pólo oposto ao da criatividade cultural; o
que é apenas um exemplo de uma mais geral superficialidade das transformações
no que toca à prática cultural propriamente dita, o que, entre outras coisas,
poderia ser comprovado pelo desaparecimento progressivo dos velhos intelectuais
activos e de largo espectro, isto é, envolvidos em múltiplas facetas da vida
pública (XXIV).
A percepção dos efeitos gerados pela implantação de universidades novas, em
Aveiro, Braga e Guimarães, ilustra bem a dialéctica entre dimensão solar e
sombria da mudança social. Coimbra é um caso à parte, cidade que é da mais
velha universidade do país e das mais antigas na Europa. Aí, é só o crescimento
do número de alunos do ensino superior que se tem de assinalar (quadro 7). Mas,
nas restantes cidades, a presença universitária é uma novidade de primeiro
plano, indestrutivelmente associada à viragem no dinamismo e nos hábitos
urbanos. A Universidade de Aveiro e a Universidade do Minho (com instalações em
Braga e Guimarães) são criações da década de 1970, que se consolidaram e
desenvolveram nas duas décadas seguintes. Não há, entre os activistas
entrevistados, quem não as assinale como um, senão o factor de mudança. Mas,
outra vez, não é líquida a efectivação do potencial que transportam: ou porque
o tradicionalismo universitário (“há ali uns resquícios do Concílio de Trento”,
como diz um académico coimbrão a propósito da sua Universidade, XX) pode
esmagar a inovação cultural; ou porque a cidade não acompanha, e mesmo
hostiliza, a dinâmica académica (“a cidade é ingrata para os estudantes”,
denuncia um dirigente da Secção de Fados da Associação Académica de Coimbra,
XXII); ou porque a cultura esbarra com estudantes amorfos, mais dados à
sociabilidade lúdica e aos consumos induzidos pela indústria do espectáculo e
do entretenimento do que às práticas e linguagens artísticas (como refere o
animador da Rádio Universitária de Coimbra, XXI).
Quadro 7 Evolução dos alunos matriculados no ensino superior, público e
privado, nas cidades, entre 1994-95 e 2001-02
Dualismo social e cultural, pois. Como nota o director de uma companhia
profissional de teatro, a propósito da disparidade entre o facto do crescimento
urbano de Braga e a dificuldade de pensar uma estratégia cultural que o
aproveite, “nós hoje vivemos quase em dois países. Por um lado, falamos da
modernidade e da Europa e, por outro lado, temos um país que está nos anos 60,
ao nível do gosto e etc. ” (XV)
Ora, esta paisagem social “real” alimenta-se, no que à oferta cultural diz
respeito, sobretudo de dois actores: os poderes autárquicos e o movimento
associativo. A apreciação dos protagonistas locais converge, assim, com a
conclusão a que chegara a observação sistemática dos acontecimentos e
operadores culturais referenciados nas fontes de imprensa e nos materiais de
divulgação pública, ao longo de todo o ano de 1998 (Silva, 2002: 81-91).
Aliás, a atenção prestada pelas câmaras municipais e a sua concretização em
sequências mais ou menos organizadas de actividades, obedecendo a certos
propósitos, quer dizer, a emergência de (à respectiva escala) políticas
culturais municipais, é assinalada, por vários entrevistados, como uma das boas
novidades dos anos 1980. Quer ouçamos os dirigentes políticos e técnicos das
autarquias, isto é, os decisores e executantes, quer ouçamos os activistas de
estruturas artísticas profissionais ou amadoras, isto é, os parceiros e
beneficiários, o entendimento é o mesmo: a centralidade do apoio camarário,
seja através de financiamentos, seja através da disponibilização de recursos
logísticos, técnicos e humanos, seja pela organização de eventos, seja até pela
criação, como diz um animador da edilidade bracarense, de um “clima propício à
construção de um projecto na área cultural” (X). Há défices de planeamento e
cooperação, o que significa alguma incapacidade de pensar a prazo e de
contornar emulações paroquiais e quezílias de protagonismo (XXI, XXIV, XXVII).
Mas os nossos interlocutores preferiram assinalar riscos globais, que vão para
lá de eventuais favorecimentos ou perseguições políticas. E são, a crê-los,
sobretudo dois. Em primeiro lugar, essa absoluta centralidade dos incentivos
municipais — e da participação directa da Câmara como produtora de
acontecimentos culturais — tem por inevitável contraponto o risco de
“municipalização da cultura” (expressão do dirigente do Cineclube de Guimarães,
que a usa para sustentar que ainda não se verifica, mas é preciso evitar que
possa haver, XXIV), a excessiva dependência do associativismo. Em segundo
lugar, a lógica de prestação de serviço a toda a população, associada à própria
necessidade política de garantir o reconhecimento alargado da utilidade social
da acção municipal, coloca claros limites ao que, na iniciativa artística,
possa desafiar os consensos, afastando segmentos dos públicos para conquistar
outros; ora, nem todos os projectos artísticos convivem bem com esta relação
não-problemática com os públicos, esta ideia de que, como continua dizendo o
técnico bracarense, “a autarquia tem a preocupação de realizar eventos que se
dirijam a todo o tipo de públicos, para a autarquia não há públicos, há um
público” (X).
Da banda do movimento associativo, de que vários entrevistados são activistas
militantes, ou com que têm relacionamentos privilegiados, a situação de
encruzilhada pode verificar-se em várias dimensões. Vive-se a nostalgia do
velho movimento associativo popular, estruturado em torno do teatro amador, das
bandas, da formação dos mais jovens, e o reconhecimento de que a sua actual
retracção resulta de um desajustamento objectivo às novas condições e desejos
de interacção e consumo. Não se quer desprezar o potencial participativo e
inclusivo que as colectividades conquistam no lazer e na convivialidade, no
serem “recreativas”, mas ao mesmo tempo constata-se e lamenta-se o definhamento
de tantas, reduzidas ao bar e aos jogos. Celebra-se a associação enquanto
escola cívica, mas verifica-se que ela só muito lateralmente abala a enorme
pressão para a apatia social. Da sua própria estrutura cada dirigente gosta de
dizer que é um prático e concreto espaço de participação, pessoas que se reúnem
voluntariamente para fazerem coisas que simultaneamente trazem, a elas,
satisfação individual e grupal e, à comunidade envolvente, um bem público
primário — mas o núcleo duro que assegura o funcionamento da estrutura, a
rotação pelos cargos de direcção, a partilha de custos e responsabilidades, é
relativamente reduzido. Não se quer diminuir o valor fundamental do
voluntariado, ser-se amador da cultura no duplo sentido de devotado e benévolo,
mas os limites do amadorismo na organização e no projecto artístico são
evidentes. Lembra-se histórias mais ou menos recentes, activistas culturalmente
qualificados que souberam transformar colectividades de recreio em associações
culturais, sem romper com a identidade e o enraizamento tradicional nem
eliminar a função convivial; mas parece hoje mais difícil ignorar a
diferenciação socioprofissional, a diversidade dos grupos de que se faz uma
cidade, e contrariar a sua repercussão em termos também de diferenciação do
próprio movimento associativo e dos seus círculos socioculturais. Sabe-se, por
último, que a transformação das cidades passou e passa pela capacidade de
afirmação regional e nacional e que, para isso, pode ser crucial a
selectividade, escolher certos nichos de mercado e público ou concentrar
esforços em certos eventos; o que não deixa de contrariar a abrangência social
característica do associativismo local.
São inúmeras as citações possíveis, a partir do corpo de entrevistas, para
ilustrar a percepção destas tensões. Não surpreende, dado o olhar interior e
interessado da maior parte dos interlocutores, que são ou dirigentes
associativos, ou produtores e intérpretes de teatro e dança organizados em
sociedades cooperativas, ou dirigentes profissionais e políticos formados na
escola associativa, ou técnicos que trabalham de perto com ela, não surpreende
que sejam encarecidos o papel e a disponibilidade dos activistas benévolos,
esses “lutadores” (dirigente do Círculo de Arte e Recreio de Guimarães, XXV) da
causa da cultura, assim como relevada a importância da rede de associações para
a constituição de um espaço público local — essa “dinâmica de afectos” (XXV),
que também pontua o relacionamento interassociativo, e essa capacidade
colectiva de (continuar a) oferecer uma oportunidade própria à experimentação e
desenvolvimento artístico de cada um, à combinação da posição de destinatário
com a de sujeito do acto cultural, às formas artísticas que o entretenimento
deixa à margem ou na sombra, à aproximação informal, da “boa ganga” (por
contraponto ao fato e gravata, XXIV), ao mundo da cultura. Não só se consegue
assim qualificar a oferta local de eventos e práticas (e a dimensão real deste
contributo, já a nossa análise dessa oferta o mostrou, cf. Silva, 2002), como
também se mantém um tempo e um espaço de iniciação cultural e cívica, que faz
dos grupos amadores, associativos ou universitários, viveiros para a formação
de futuros profissionais destas áreas (“escola prática”, “tempo de encontro, de
aprendizagem e de definição para cada um”, como diz, a propósito do teatro
universitário, o dirigente de uma companhia profissional de Coimbra, XVIII),
contextos de socialização de futuros consumidores esclarecidos e regulares e,
não se esqueça, de futuros responsáveis das instituições cívicas e políticas.
Porém, a “transformação geracional” (técnico municipal de Guimarães, XXVII) que
atravessa todas as instâncias sociais mas é especialmente relevante, pelas
razões que os inquéritos documentam (Pais e outros, 1994; Silva e outros,
2002a), no domínio das práticas culturais não parece encontrar respostas
seguras numa liderança associativa ainda formada no espírito dos anos 1960 e
1970. E o mesmo se diga da letargia do associativismo de base popular e
recreativa, do peso das associações que “são grupos de amigos que se reúnem
para conversar e mais nada”, como diz outro técnico municipal vimaranense
(XXVI), e da inércia que ela faz pesar sobre os projectos artísticos: ou porque
a boa vontade e a dedicação não chegam para colmatar as falhas do amadorismo;
ou porque a “aventura”, como lapidarmente tipifica o dirigente de uma das mais
activas associações de Braga (VII), que é organizar nesta base um evento é
adversária da sua sustentação; ou porque, para os observadores mais
distanciados e críticos da malha associativa e do seu colectivismo ingénuo, o
enaltecimento apriorístico do associativismo amador impede a ruptura com o que
de “bacoco” e “estupidificante” ele também produz, impede que a transformação
da cidade seja interpelada, no discurso e na prática cultural, através da
necessária “discussão entre o novo e o velho” (líder de Companhia de Teatro de
Braga, XV).
Um novo desafio: que projectos para que públicos, que públicos para que
projectos?
Como os sociólogos que têm abordado a evolução recente das cidades médias
portuguesas a partir de elementos de objectivação como as estatísticas
sociográficas, os encadeamentos de factos ou as fontes documentais, os
protagonistas culturais dessas cidades convergem na caracterização da sua
conjuntura presente como encruzilhada, tensão, jogo de forças diferentes, senão
contrárias. Ora, não há provavelmente domínio onde seja mais evidente e
decisiva a tensão do que o relacionamento entre os portadores de projectos
culturais próprios e os públicos.
Eis um desafio relativamente novo, pelo menos na dimensão que hoje se vislumbra
ter. De facto, o modelo que orientou, anos a fio, o comportamento dos
activistas locais era o “animador cultural” (como a si próprio se define o
entusiasta do cineclube vimaranense, XXIV). Mais do que autor, criador e
portador de um projecto próprio, individual ou de grupo, ele concebia-se e
largamente ainda se concebe como um mediador (cf. Silva, 2002: 87-89).
Mediador, porém, no sentido que lhe confere a doutrina da democratização do
acesso à cultura, isto é, um facilitador e estruturador do acesso de cada vez
mais gente a bens culturais que são ou devem ser património de todos e eixo de
valorização de cada um, assim como do acesso de cada vez mais gente, em
especial nas jovens gerações, à actividade cultural, quer dizer, à participação
na produção de bens culturais, como sujeitos implicados em práticas que, com um
mínimo de qualificação, ficarão ao seu alcance, como o teatro académico ou
popular, a fotografia, as artes plásticas, a música não-erudita, a literatura.
As palavras-chave deste modelo são “formação” e “públicos”.
Formação de públicos. Conquistar, “cativar” para formas de que as pessoas estão
ainda arredadas — como diz o responsável da Companhia de Dança de Aveiro, “hoje
o público está cativado para o futebol, porque viu muito futebol antigamente e
as pessoas ficaram conquistadas. Há um papel muito importante a fazer com as
companhias de dança no sentido de cativar o público” (I). É preciso, pois,
“despertar as pessoas, provocar” (activista de companhia teatral, Aveiro, II),
ir onde estão os públicos potenciais, ser pedagógico, “apoiar as escolas”
(VIII, XVIII), assumir as responsabilidades próprias das universidades e das
associações académicas (como dizem vários dos seus dirigentes) e concretizar o
papel formativo das instituições culturais públicas, como os museus e outros
equipamentos (como dizem os técnicos entrevistados).
Formação dos públicos. Não basta atrair, é essencial formar as pessoas,
habituá-las ao consumo regular e apetrechá-las para o consumo crítico: saber,
“num mundo inundado de imagens, olhar de uma forma crítica para as imagens”
(responsável dos Encontros da Imagem, Braga, VII), induzir a cinefilia e a
recepção crítica do cinema (cineclubista de Guimarães, XXIV), e outros diriam o
mesmo do teatro, da música ou da literatura.
Ora, como se faz a formação de públicos e dos públicos? Em pano de fundo, a
dramática pequenez do público fidelizado. Como assinala, com uma ironia amarga,
o professor conimbricense ligado ao teatro, “há um grupo de pessoas que vai a
tudo […]. Dá-me a impressão de que conseguia identificá-los a todos”; e esse
grupo, supostamente esclarecido e crítico, não fará deste consumo uma pose,
afinal tão postiça quanto outras? Continua o professor, referindo-se à
audiência habitual de certa companhia teatral: “é um público bem pensante que
de tudo o que é moderno, vanguarda ou um certo tipo de esoterismo nunca é capaz
de dizer mal, porque tem medo; e ao mesmo tempo faz parte do ser intelectual de
esquerda gramar as maiores pasteladas sempre com um ar de grande seriedade”
(XX).
Quando, sobre este pano de fundo, se pensa a questão dos públicos, regressam as
antinomias. Para cativar e qualificar, o que se deve preferir? Ser ecléctico,
abrangente, dirigir-se a todos os tipos de públicos, para “alimentar”, como
reclama o técnico municipal de Guimarães que temos citado (XXVII), os que não
gostam “de música pimba e de futebol”, que “esses são alimentados todos os
dias”; ou focalizar, centrar esforços em certos segmentos, sejam os estudantes
das escolas ou universidades, os quadros que, como vimos (quadro_3), vão tendo
presença crescente na paisagem social das cidades, ou aqueles que, já com uma
preparação cultural básica, constituem, por exemplo, o público sensível a
iniciativas de jazz ou música clássica? E qual deve ser a atitude? Bastará
aproximar as obras e os intérpretes ou divulgadores das obras do público-tal-
qual-ele-é, será isso legítimo, do ponto de vista estético, contribuirá isso
para a inovação, não acabará por reproduzir os equívocos e impasses do
presente? Ou, inversamente, o que é preciso é romper com o pedagogismo, sacudir
o “marasmo”, “trabalhar para um público novo também, para um público jovem que
tivesse apetência por essa actividade de risco” (Escola da Noite, Coimbra,
XVIII), assumir a diferença, dizer, como faz o líder da Companhia de Teatro de
Braga (XV), “nós somos relativamente elitistas. […] partimos do princípio de
que temos de trabalhar para públicos não virgens, já iniciados e com gosto”?
Com todas as cautelas necessárias, quando se trata de generalizar a partir de
um conjunto limitado de entrevistas, cremos poder dizer-se que a atitude
predominante entre os protagonistas culturais das nossas cidades médias,
localizados nas associações, nas autarquias, nas escolas, nas instituições ou
nas estruturas artísticas profissionais ou semiprofissionais, é a que concebe a
formação dos públicos em torno de dois eixos: de um lado, a educação, a
animação, quase a pedagogia cultural (mesmo os galeristas entrevistados é assim
que representam a sua actividade, pedagogia mais do que comércio, XII, XIII,
XXIX); do outro lado, divulgação das obras e eventos por esses concelhos
periféricos face a Lisboa e ao Porto, e pelas próprias periferias interiores a
cada um, isto é, o território que vai além da respectiva sede, através de
itinerância de espectáculos ou exposições e descentralização de festivais,
serviços ou equipamentos. Esta é, sem dúvida, uma das linhas de força que
conduzem à centralidade das actividades de mediação e das artes médias onde
elas se sustentam, na oferta cultural das cidades médias (Silva, 2002: 101-
102).
Mas o que a abordagem da dinâmica sociocultural pelo ângulo dos discursos
doutrinários e artísticos dos protagonistas do campo cultural local faz ver
também, porque nos aproxima mais da ordem do desejo e destaca vectores de
transformação cujo peso relativo é ainda reduzido, são os distanciamentos e as
demarcações, perante a atitude, ainda prevalecente, dos que têm como seu
programa acentuar a dimensão de autoria e criação da sua prática, afirmar-se
mais como profissionais das artes ou da comunicação e/ou como membros de grupos
e estruturas referenciadas ao mundo cosmopolita das artes do que como
“animadores” dos jogos locais de oferta e procura.
Ora, esta tensão na relação com os públicos — a ruptura com a lógica da
abrangência programática, com a relação não-problemática e a aproximação
pedagógica aos públicos potenciais — associa-se, por sua vez, com a não menos
importante relação de tensão com a própria estrutura associativa — com o que
lhe subjaz de enfatização do colectivo, do grupal, do cooperativo. Para vários
protagonistas entrevistados, a associação mais ou menos informal e a
cooperativa dos profissionais ou semiprofissionais deixaram de constituir
referência. O seu projecto é de inovação e diferença artística, e isso implica
posicionamentos que convivem mal com a tradição associativa.
Há um status quo local, muito baseado, como vimos, na cumplicidade mais ou
menos fácil entre associações e autarquias, que não consegue acomodar, et pour
cause, o desafio estético. A presidente da Associação de Autores de Braga, uma
organização de escritores locais, diz: “nós, no fundo, somos a voz da criação
desta terra” (VIII). Ora, não é isso que pretende ser a Companhia de Teatro de
Braga, mas antes uma instância de interpelação da cidade e da sua modernidade
por alcançar (XV). Ou, em Coimbra: a perspectiva da Escola da Noite, outro
grupo profissional de teatro, era romper com o “enconchamento” a que tantas
companhias tiveram de recorrer para sobreviverem em tempos difíceis, e o
“marasmo” criativo a que assim se chegou: “os actores tinham sido expropriados
do teatro”, a “experiência [artística] ia até um certo limite e depois parava”,
e foi como gesto intencional de corte com esta situação que se formou o novo
grupo (XVIII).
Posição de divergência, de problematização, de inovação, que casa mal com o
consenso que vem estruturando a cena cultural local e o seu discurso de
representação e abrangência. O acto cultural que está na raiz dessa posição já
não pode ser descrito apenas no molde da mediação, divulgação descentralizadora
e animação formativa. O projecto da Companhia de Teatro de Braga, diz o seu
director, é artístico e pessoal (dele próprio). E, ao dizê-lo, instaura duas
diferenças para com o modelo prevalecente: a prioridade da criação estética
(sobre o valor social da actividade); e a natureza autoral da criação. Outros
protagonistas serão menos assertivos, preferirão estribar a diferença e
singularidade artística no trabalho e projecto colectivos do grupo a que
pertencem. Mas desenha-se aqui uma linha de evolução, o desenvolvimento de
projectos de profissionalização nas artes — como criadores, intérpretes,
produtores ou programadores — e a aposta em eventos de escala supralocal, que
potenciem e afirmem, em contextos territoriais e institucionais mais amplos, o
valor da estrutura cultural e da cidade em que se insere e apoia e de cuja
transformação quer ser agente, sejam esses eventos festivais de música, ciclos
de exposições e oficinas temáticas, sequências estruturadas de espectáculos ao
longo de uma temporada. Podia dizer-se, sem risco de desmentido completo, que,
no ano 2000, Aveiro ainda não conseguira construir um evento desta escala; mas
Braga encontrara-o nos Encontros da Imagem, Coimbra nos Encontros da
Fotografia, Guimarães nos Encontros da Primavera ou no Guimarães Jazz. Ora,
qualquer deles era formalmente organizado por uma associação local; mas em cada
um deles o comissariado começava a ganhar um protagonismo que representava, por
si só, uma diferença face aos padrões habituais do associativismo cultural.
Comissários que a associação escolhia fora de si própria, no campo profissional
de cidades como Porto e Lisboa, como acontecia em Guimarães; ou que descobria e
valorizava em si mesma, como nas duas restantes cidades. E o caso de Coimbra
elucida lapidarmente como, passo a passo, a associação se foi tornando numa
mera extensão quase burocrática do programador-criador, ele sim o verdadeiro
autor e centro do projecto artístico, digno de nomeação autónoma como figura
doravante incontornável quer do campo nacional das artes visuais, quer da
paisagem artística, cultural e até política da cidade. Não surpreende, pois,
que a estrutura formal, ainda de natureza associativa, se venha a confundir com
a personalidade do director e só o nome deste, o fotógrafo e programador Albano
da Silva Pereira, passe a contar.
Falar da encruzilhada, falar na encruzilhada
A importância, já de si crescente, das práticas lúdicas, culturais e
comunicacionais na configuração das sociedades contemporâneas adquire um
redobramento específico em contexto urbano. Em conjunturas mais recentes, o
desenvolvimento das cidades tem sido pontuado pela atribuição de um papel de
primeiro plano às identidades historicamente construídas e agora revividas e
recriadas, aos símbolos e obras emblemáticas, aos equipamentos e serviços de
cultura e lazer, à revalorização dos espaços públicos por via de acontecimentos
de variável, mas relevante, dimensão. Esta atribuição é feita por cidadãos,
instituições, poderes. O lugar da cultura no que chamámos “redesenvolvimento
urbano” não deve ser, pois, menorizado. Ao mesmo tempo, a sua relação com as
mudanças sociais que as cidades vão conhecendo e a constituição e dinamismo da
sua esfera pública merecem atenção e análise fina. A “espacialização das
práticas culturais” é uma via de investigação prometedora, até para enriquecer
e modular algumas regularidades empíricas que métodos extensivos, como o que
assenta em inquéritos por questionário, vão pondo em evidência (Fortuna e
outros, 1999).
Ora, as cidades médias portuguesas oferecem boa referência empírica para uma
investigação norteada por estas hipóteses. Vivem um processo de transformação
social que é, simultaneamente, recente e intenso. Recente: três décadas de
democracia, de expansão do ensino superior (com a óbvia excepção de Coimbra),
de mudança profunda na estrutura económica, social e profissional, assim como
nos hábitos e padrões de consumo. Pode naturalmente dizer-se que vivem um
processo de âmbito mais geral, tocando como toca o conjunto da sociedade
portuguesa (cf. Barreto, 2003). Mas vivem-no com particularidades próprias.
Localizando-se fora das duas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, o
desenvolvimento das cidades médias confronta o facto da bipolarização do
território continental português, cujos efeitos sofre (porque o limitam), mas
também, na medida em que se vai fazendo, contraria. Para este desenvolvimento,
tem sido fundamental a contribuição do ensino superior: desde logo, a
implantação de novas universidades e institutos politécnicos, depois o seu
crescimento, em número de alunos e docentes e em áreas de formação, pesquisa e
prestação de serviços, depois a sua gradual inserção na vida urbana. A
fundação, as atribuições e competências do poder local democrático e a
definição e aplicação de políticas autárquicas nos diversos domínios, com
especial relevo, a partir dos anos 1980, para a área da cultura, tem sido,
também, decisiva, colmatando alguns dos défices de equipamento e oferta que as
cidades experimentavam. Seja por liderança das respectivas câmaras municipais,
seja por impulso do Estado, seja por iniciativa de instituições como as escolas
e universidades, seja pela dinâmica própria dos círculos associativos e dos
agentes privados, ao longo dos anos 1990 as cidades médias foram ganhando
certas estruturas de produção, divulgação e formação cultural: as rádios locais
vieram juntar-se à tradicional imprensa, e novos jornais e publicações
surgiram, as companhias de teatro (e, num ou noutro caso, de dança),
profissionais ou em vias de profissionalização, foram-nas escolhendo como
sedes, as autarquias e as universidades foram construindo espaços para eventos
públicos, como auditórios, teatros ou complexos multiusos, a oferta de ensino
artístico foi-se qualificando, designadamente através de escolas profissionais
ou de cursos das escolas superiores, as cidades passaram a conhecer,
normalmente por responsabilidade directa ou indirecta da autarquia,
“temporadas” de acontecimentos culturais, com ciclos, festivais, festas,
exposições ou espectáculos singulares de certo impacto.
No campo associativo, que é, como temos visto, aqui determinante, as mudanças
também se fizeram sentir com tonalidades próprias, face às grandes áreas
urbanas do país. Por um lado, o associativismo de resistência, que vinha já do
tempo da ditadura, e o associativismo recreativo, de base claramente popular e
tradicional (rural ou urbana), foram-se transformando: ou decaíram, ou
actualizaram-se. Por outro, uma nova vaga associativa pontuou a conjuntura
posterior a 1974 e conformou significativamente, nas décadas seguintes, o
espaço público local, trazendo novos interesses temáticos, ou valorizando mais
alguns que eram usualmente secundarizados — e falamos, entre outros, da defesa
e divulgação do património, da valorização da história e do artesanato local,
do teatro não-popular, dos rituais académicos, das artes plásticas e visuais,
com relevo para a fotografia, do sector audiovisual, com a revalorização do
cineclubismo e a exploração de gramáticas ligadas à rádio ou às tecnologias de
vídeo, e também do jazz e da música erudita.
Mudou a dimensão das cidades (várias cresceram, em termos absolutos e
relativos, designadamente no que toca à sua centralidade no quadro dos
respectivos concelhos e regiões), mudou a composição social (mais profissões
terciárias, mais quadros, mais estudantes), mudou a rede de equipamentos e
serviços, mudaram os círculos e hábitos de sociabilidade, de ocupação do espaço
público, de expressão, lazer e consumo, mudaram as instituições, as relações de
poder e os protagonistas. Tornaram-se, à sua escala, mais urbanas, mais
modernas. Desenvolveram-se?
É difícil dizer que não, olhando para os indicadores estatísticos disponíveis e
tomando como termo de comparação os anos anteriores à revolução democrática de
1974. Mas também é difícil dizer que sim, sem mais especificação, como se se
tratasse de um processo simplesmente linear, o que sabemos ser falso, para esta
e qualquer outra circunstância. Tendências contraditórias, que arrastam a
cidade em sentidos contrários, evoluções incongruentes, quando distinguimos os
diversos planos da organização colectiva, recursos ou ganhos potenciais ainda
por efectivar, acelerações no sentido da convergência com o padrão
metropolitano nuns domínios a que correspondem, noutros, travagens ou mesmo
retrocessos. Também é possível recorrer a indicadores estatísticos para mostrar
bloqueamentos.
Daí que seja mais adequado usar palavras que conotem complexidade e incerteza:
a realidade social urbana é um poliedro cujos vários lados devem ser
observados, a dinâmica urbana é compósita, a situação presente pode bem ser
descrita como de confluência de caminhos, encruzilhada: quer dizer, tempo de
escolhas, tempo de definições.
Não compete aos sociólogos ajuizar ex cathedra se estes são ou não casos de
“desenvolvimento”, “modernidade” ou “progresso”. Sê-lo-ão em parte, deixarão de
sê-lo noutra parte, eis a resposta elementar, mais óbvia mas também mais
segura. O que interessa é procurar, analiticamente, qualificar: que
desenvolvimento, que modernidade? É esboçar uma caracterização teórica e
empiricamente fundada do como das coisas, da complexidade dos percursos e das
estações.
A nossa aposta, pelas razões que ficaram já vertidas, foi olhar do lado da
cultura, das cenas culturais que localmente se configuram (não, portanto, os
efeitos locais dos grandes meios de comunicação e de produção cultural, mas sim
os eixos principais de formação do que se poderia chamar um espaço público
cultural endógeno); e foi trazer para o nosso o olhar de protagonistas desse
espaço cultural, de agentes culturais das cidades, procurando assim, não só
enriquecer o objecto de estudo com a sua reflexividade, cruzando mudança social
e percepção social da mudança, como também fazer dialogar a perspectiva
“exterior” dos sociólogos com a perspectiva “interior” — à cena cultural que os
sociólogos consideram — de protagonistas locais.
Não é uma opção equivalente a qualquer outra. É uma opção teórico-metodológica
que nos parece indispensável se quisermos dar conta das encruzilhadas contidas
na situação presente das cidades médias portuguesas: e, se esse é, por
excelência, um tempo de escolhas, então os lugares, as visões e os projectos
dos que escolhem devem ser convocados.
Ora, a partir do corpo de entrevistas que nos serve de referência, o que se
pode dizer é que tais visões e projectos devem muito, entre os activistas
culturais locais, ao modelo da democratização cultural (cf. Lopes, 2003: 5-6).
As suas linhas de força fundamentais são: (1) tornar acessíveis ao maior número
de pessoas os bens e eventos culturais, (2) melhorar as condições de usufruto
desses bens, formando e qualificando culturalmente os receptores, (3) suscitar
contextos de aproximação recíproca entre os bens e os praticantes, e entre as
posições de consumidor e participante, criando oportunidades de expressão,
experimentação e, até, alguma criação estética. A associação é vista como o
melhor quadro para esta actividade de animação e mediação, por várias razões.
Porque constitui, idealmente, um meio de aprendizagem da cidadania através do
seu exercício concreto — e a actividade cultural é, nesta visão do mundo,
exaltada como forma superior de actividade cívica. Porque remete para uma
lógica de formação colectiva de decisões e projectos. E porque se orienta por
uma escala que propicia aquela aproximação de posições e o enraizamento numa
realidade social manipulável, isto é, na qual podem ser visíveis os efeitos
práticos de uma intervenção organizada.
A esta luz, o relacionamento da cultura com a esfera pública parece
inquestionável. Só é possível pensar a democratização do acesso e usufruto
cultural a partir da valorização dos espaços públicos, por contraposição aos
espaços institucionalizados da cultura cultivada (Pinto, 1994: 767-770), a
partir da conquista, para funções de participação e expressividade lúdica e
cultural, dos espaços urbanos, das praças, dos cafés, das escolas, das sedes de
colectividades, dos recintos desportivos; a partir do empenhamento na
reafirmação das identidades culturais colectivas, designadamente através da
educação patrimonial e da defesa da identidade e do património locais como
recursos comunitários; a partir de intervenções programadas e metódicas,
oriundas dos serviços e poderes públicos, ou seja, das instituições culturais e
educativas do Estado e, sobretudo, das autarquias locais. Há, pois, uma relação
de reciprocidade, um jogo positivo entre desenvolvimento cultural e
desenvolvimento urbano pela qualificação do seu espaço público: e a associação,
mais ou menos estruturada, ou mesmo informal, representa, nos termos das
hipóteses teóricas que nos guiaram, a “zona de intermediação” por excelência,
aquela que potencia a proximidade relacional entre os sujeitos e a sua
capacidade de esclarecimento e participação.
Ainda a esta luz, várias transformações recentes das cidades médias devem ser
positivamente avaliadas: o aumento dos poderes e recursos das câmaras
municipais, mormente quando é acompanhado pela atenção à coisa cultural e pela
atitude de apoio aos seus agentes (logo, a avaliação é crítica, este par
incontornável do espaço público local está sempre em alguma tensão); a
recomposição mais qualificante do tecido social; a maior presença e graduação
de escolas, professores e estudantes; o alargamento relativo (em comparação com
o passado) do grupo de consumidores regulares ou ocasionais de eventos
culturais ou lúdicos; a maior acessibilidade de certos bens culturais,
sobretudo daqueles que esta visão do mundo tenderia a categorizar como uma
espécie de cultura de massas benigna (o jazz, o rock, a fotografia, o cinema
“de qualidade”, etc.); a modernização geral das referências de comportamento,
privado e público; até, embora não isenta de críticas, a conquista juvenil do
centro das cidades.
Em contrapartida, o ponto de vista que julgamos ainda prevalecente, na
conjuntura do ano 2000, nas cidades médias que considerámos, não permite
aperceber, ou, se o permite, não permite destacar, ou, se o permite, não
permite valorizar outros eixos de mudança sociocultural que efectiva ou
virtualmente caracterizam as cenas urbanas e o espaço nacional e global que as
envolve. A emergência de cachos de actividades, quer do lado da oferta quer do
lado da procura, que desafiam a hierarquização dos níveis de cultura e
insinuam, assim, esses movimentos de lateralização que já defendemos
constituírem potenciais requalificadores dos processos socioculturais (Fortuna
e Silva, 2001: 420-424); a complexificação das práticas de consumo e recepção
organizadas em torno da domesticidade, abrindo mais o leque de contactos com os
diversos mundos da comunicação e da arte — outra via, como dissemos, de
intermediação positiva; a maior diferenciação dos bens e práticas culturais, e
não necessariamente estruturada por lógicas hierárquicas, com a possibilidade
de constituição de nichos e redes significativas, ainda que e porque
minoritárias; a expansão de formas de relação com a cultura que põem em relevo
as singularidades individuais e a capacidade de cada sujeito compor um conjunto
próprio de práticas através da combinação entre consumos e sociabilidades,
entre o usufruto de bens imateriais e a apresentação pública do seu corpo,
vestuários, adereços, movimentos e gestualidade, entre os actos de prevalência
lúdico-convivial e os actos de prevalência estética; o recurso a modos
informais de organização e circulação de actividades, que, à margem ou em
complemento da estrutura associativa, abrem redes eficientes em certos meios
sociais urbanos — estas transformações que se insinuam ou vão já ocorrendo na
paisagem social citadina ou são obscurecidas, porque o foco de luz está
direccionado noutra direcção, ou então são categorizadas mais como problemas ou
ameaças do que como recursos.
A transformação geracional, a rotinização da democracia, a progressiva
integração na cultura de massas e a maior acessibilidade às produções
industrialmente produzidas ou divulgadas, a individualização dos consumos, a
acentuação das dimensões corporais, expressivas, relacionais e comunicacionais
da prática cultural fazem, pois, aos olhos dos protagonistas entrevistados,
parte da encruzilhada das suas cidades. Mas fazem-no porque eles próprios,
protagonistas, são também parte, de outro modo, dessa encruzilhada. Porque
caracteristicamente vinculados, os que entrevistámos, que são os autores do
discurso político-cultural mais consistente e mais audível no espaço público
local, a uma ou várias de três posições institucionais: administração do
Estado, central ou local (câmaras, universidades, museus, bibliotecas e outros
equipamentos públicos); movimento associativo de produção, divulgação e consumo
cultural, com ou sem componente recreativa, segmento ou não de organizações
benévolas mais largas; e pequena iniciativa cultural local, que tipicamente se
organiza ou numa base semiprofissional (podendo sê-lo, então, por conta
própria), ou numa base associativa, ou em empresas de natureza jurídica
cooperativa, e só muito mais raramente em microempresas do sector privado.
Quer isto dizer que estes protagonistas e as esferas institucionais de que são,
em certa medida, porta-vozes pertencem sociologicamente ao passado, à situação
com que, num tempo ou noutro, o redesenvolvimento urbano há-de romper? Não se
justifica responder que sim. E por duas importantes razões.
A primeira é que instituições e protagonistas não constituem uma realidade
parada. Como julgamos ter mostrado com suficiente cópia de factos e argumentos,
nem a sua acção nem o seu discurso são uniformes e estáticos. As oportunidades
e os trajectos de profissionalização no sector cultural — com uma nova
valorização de funções como o comissário e programador, ou o produtor —, os
ganhos de escala e gama que a prossecução de uma actividade regular na cidade,
sobretudo resultante de parcerias entre poder local e agentes culturais, vai
permitindo conseguir, nos concelhos em que se verifica, e o crescimento do peso
relativo da componente de projecto artístico, autoral e criativo, nas
actividades desenvolvidas, quer por estruturas profissionais, quer por
associações benévolas — todos são factores dinâmicos que transformam, se bem
que a ritmos diferenciados, e por vezes contrastantes, o espaço público
cultural local.
A segunda razão para evitar juízos sumários é que o que se observa, pelos menos
nas cidades analisadas, está longe de ser apenas o desajustamento entre a
rapidez da mudança social e a lentidão da mudança cultural. O jogo é mais
complexo. Do ponto de vista das representações e dos modelos de acção, parece
ser um facto que os protagonistas locais mais influentes se referem ainda a uma
conjuntura histórica e geracional anterior à que vivemos: consoante as
referências dos classificadores, uns dizem ser o “espírito dos anos 60 ”(a
grande convulsão das mentalidades, na Europa e América do Norte), outros o
“espírito do anos 70” (a revolução portuguesa). Mas a sua acção não deixou e
não deixa de gerar efeitos, que por sua vez transformam a paisagem
sociocultural das cidades. Como o estudo dos públicos de acontecimentos
culturais tem mostrado, a intervenção do lado da oferta, seja por via da
própria excepcionalidade de um grande evento, que faz subir expectativas e abre
oportunidades, seja por via da persistente regularidade de um evento que se
repete ou de uma estrutura que se consolida, assim sedimentando o respectivo
público e os laços com ele, essa intervenção tem um potencial não desprezível
de formação e qualificação de públicos (Gomes e outros, 2000; Santos, 2002;
Gomes, 2004). Há também, em Aveiro, Braga, Guimarães ou Coimbra, um trabalho
continuado que vai formando, ano após ano, círculos de conhecedores,
interessados e frequentadores: os públicos dos cineclubes, das companhias de
teatro e dança, dos encontros de fotografia e artes visuais, do festival de
cinema, das exposições de artes plásticas, dos concertos promovidos por esta ou
aquela associação, dos ciclos organizados ou patrocinados pelas autarquias. O
limite para o alargamento é, em várias circunstâncias, de natureza objectiva:
escassez da procura, ausência de massa crítica demográfica e socioeconómica,
orçamentos municipais rudimentares, falta de tradição e experiência. Mesmo os
sinais mais promissores têm a sua face lunar: sazonalidade da vida académica,
que no Verão fica em letargia, quando muitos dos estudantes universitários
provêm de fora das cidades onde estudam.
A encruzilhada é mesmo isto: jogo de desfecho incerto, ronda de muitos
caminhos. Mas há várias maneiras de entender e preencher as múltiplas dimensões
da forte territorialidade das actividades culturais (Costa, 2004: 98-101). Ora,
o que parece predominar no discurso cultural e cívico de protagonistas das
cidades médias é a interpretação que privilegia a ligação entre cultura e
participação pública: a ligação entre a cultura e os seus públicos, os que são
e os que devem ser, por via do alargamento da sua acessibilidade social; e a
ligação entre a acção cultural e o espaço público local, tal como é configurado
pelas instituições e as competições políticas, a actividade dos media, as
representações partilhadas das identidades e a força possível de um
associativismo benévolo. Se este discurso resistirá à emergência de novas
formas de territorialização das actividades culturais é uma questão que o
futuro decidirá.