Inovação e justiça social: Políticas activas para a inclusão educativa
Introdução
Como acontece com todas as políticas sociais modernas, a educação inclusiva
implica uma filosofia de activação quer dos cidadãos, visando a autonomia e a
participação onde prevalecia a protecção e a compensação, quer das
instituições, visando a abertura onde existiam entraves à participação. O duplo
movimento de inclusão, construído a partir da capacitação das pessoas e da
criação de oportunidades nos sistemas e instituições sociais, tem implícito o
valor da justiça social (incluindo a diferenciação positiva, a igualdade de
oportunidades e a igualdade de condições), requer imaginação e apela à inovação
nos modos de trabalhar e de organizar a distribuição dos recursos.
Começaremos, de forma clássica é sempre mais seguro, quando o objectivo é
inovar , por situar o problema, precisar conceitos que se movem num campo
polissémico em que nem sempre prevalece o rigor, e discutir modelos de
intervenção que orientam decisões de política educativa com consequências
diversas.
De que falamos quando falamos de inclusão?
Como todos reconhecerão (ver, por exemplo, Tilstone e outros, 2003; Capucha,
2005a; Ainscow, 2007), ao falarmos de educação inclusiva colocamo-nos perante
uma noção controversa e com contornos nem sempre bem definidos.[1] Começar por
ver quais possam ser os seus antónimos pode ajudar a estabelecer o sentido da
noção e, daí, as problemáticas que envolve. O que é, então, o contrário da
educação inclusiva? As respostas mais óbvias são: educação segregada ou
exclusão educativa.
O contrário da educação inclusiva é, então, uma educação que se opõe à educação
que segrega ou exclui uma parte daqueles que é suposto incluir. Propomos que
para esclarecer melhor o conceito o que é sempre determinante para termos
depois uma visão mais clarividente das práticas analisemos as problemáticas
para as quais ele nos remete, primeiro numa lógica compreensiva e procurando
depois especificá-las no domínio da educação.
Tendo uma história longa nas ciências sociais, a noção de exclusão encontra
no conceito de estratégias de fechamento de Max Weber (1989 [1905]) uma das
principais referências clássicas. O fechamento por exclusão consiste nas
estratégias das classes sociais dotadas de maiores recursos económicos e
profissionais postos em marcha, com vista a conservar o monopólio do acesso a
esses recursos, excluindo os que, sem os atributos legalmente requeridos, se
vêem assim remetidos para estratégias de usurpação.
A história viria porém a inverter o sentido da noção, que descobrimos mais
tarde, com a designação de estigma, para definir a situação dos mais
severamente segregados (Goffman, 1982 [1963]). Sensivelmente os mesmos que nos
anos 80 Lenoir (1974) titulou um francês em cada dez.
Durante anos a noção permaneceu sob a sombra dos conceitos de pobreza que, em
conjunto com os emergentes estudos feministas e da etnicidade, vieram
enriquecer a abordagem das desigualdades, até então monopolizada pela
problemática das classes sociais e da estratificação. Até que nos finais da
década de 1980 e início da de 1990, por razões acima de tudo pragmáticas
(alguns Estados-membros da União Europeia não aceitavam continuar a financiar
programas contra a pobreza, tema a evitar em sociedades que tinham de si
próprias, com alguma razão, a imagem de abundância), a noção reemerge com os
estudos de Room e outros (1993) e da sua equipa no âmbito do II Programa
Europeu de Luta contra a Pobreza e com os trabalhos de autores como Paugan
(1991) e Castel (1995).
Estes últimos, propondo noções como as de desqualificação e de desafiliação
na linha dos conceitos de anomia de Durkheim (1977 [1893]) e de estigma
de Goffman , colocaram o enfoque nos laços sociais, nas representações e nas
identidades, enfatizando a imagem negativa e o preconceito com que os grupos
excluídos são socialmente segregados, a formação de identidades negativas e a
degradação dos laços sociais de proximidade. Já Room salientou a natureza
política da exclusão, remetendo-a para a ruptura do contrato social que liga os
cidadãos às instituições de referência. Assim, excluídos são os que se vêem
impossibilitados de aceder ao direito (i) ao rendimento digno, (ii) ao trabalho
e à actividade económica, (iii) à educação e à formação; (iv) à saúde e à
habitação e (v) à igualdade de oportunidades. Impossibilidade que se estende ao
cumprimento dos deveres correspondentes à condição de plena cidadania.
A exclusão pode ser vista, cruzando as duas perspectivas, como uma realidade
dinâmica, que varia com a trajectória das pessoas mas também com os processos
de construção social dos direitos e deveres e com a reconstrução das
identidades e representações sociais; multidimensional, envolvendo quer
dimensões materiais da existência, quer dimensões subjectivas; e relacional, em
dois sentidos: chama a atenção para a importância das pertenças sociais e, ao
mesmo tempo, para a relação entre as pessoas e as instituições, nas quais se
inscrevem os recursos e as regras que conferem o acesso aos direitos.
Podemos assim representar as dimensões em que se joga a exclusão social em dois
eixos cruzados (Capucha, 1998). O primeiro situa de um lado as estruturas e os
processos de nível macro, os quais determinam as oportunidades inscritas nos
sistemas sociais, e do outro lado as práticas e os quadros de interacção, a que
se associam as capacidades das pessoas para jogar com aquelas oportunidades.
O segundo eixo situa os factores objectivamente exteriores aos agentes no pólo
simétrico dos que se encontram incorporados nas representações e disposições
das pessoas e das comunidades.
As mutações tecnológicas e na organização do trabalho estão a modificar os
factores de competitividade das empresas e o modo como elas se relacionam entre
si e com os seus trabalhadores. Os segmentos mais competitivos, funcionando em
redes de organizações cada vez mais exigentes em conhecimento e
adaptabiliadade, fazem com que os sectores económicos mais atávicos e
conservadores se vejam expostos a situações de risco que os fragilizam ou até
inviabilizam.
Figura 1 Dimensões da exclusão social
Estas dinâmicas têm consequências nos rendimentos gerados nestes sectores e no
funcionamento dos mercados de emprego. O desemprego ou o emprego de má
qualidade são consequência, em grande medida, da falta de competitividade
desses segmentos da economia.
A estrutura das habilitações escolares e das qualificações profissionais mantém
com o mercado de emprego uma relação estreita. Um mercado cada vez mais
exigente no domínio das qualificações tende a deixar de fora os sectores menos
escolarizados e qualificados da população. Quando os sistemas de ensino se
orientam para a selecção dos poucos de quem se espera o prosseguimento de
estudos de nível superior e quando o sistema de qualificação reproduz os
segmentos de qualidade (ou de falta dela) do tecido económico, também eles
contribuem para a exclusão social.
O mesmo se pode dizer dos sistemas de protecção social e da sua capacidade para
redistribuir de forma equitativa os rendimentos, prevenir riscos e activar os
beneficiários. Ou dos sistemas de saúde e do seu funcionamento segundo
princípios que se revelem incapazes de proteger diferenciadamente aqueles que
mais carecem de cuidados, os que menos conhecimento possuem sobre estilos de
vida saudáveis e os que não possuem capital social mobilizável nas relações com
o sistema e os seus profissionais.
Um domínio fortemente articulado com os restantes é o da habitação e das infra-
estruturas. O mercado habitacional e a localização dos equipamentos e serviços
no território geram desigualdades marcadas entre diferentes segmentos da
população, deixando uma boa parte dela distante de condições de vida dignas.
Por sua vez, os territórios mais desfavorecidos reforçam e ajudam à reprodução
de todos os restantes factores de exclusão social.
Estas dimensões de nível societário têm a sua outra face na vida concreta das
pessoas. São elas que, na prática, auferem baixos rendimentos do trabalho,
muitas vezes de forma incerta. São elas que sofrem o desemprego e a exclusão do
mercado de trabalho (ao ponto de muitas vezes ser desencorajada a procura de
emprego) ou, pelo menos, dos seus segmentos de qualidade aceitável. São elas
que vêem os seus saberes, quando os possuem em nível relevante, tornar-se
obsoletos. São também elas que se viram e vêem excluídas da escola e da
formação qualificante e assim se apresentam no mercado sem as qualificações
mínimas de empregabilidade. São elas que às vezes têm que se contentar com
níveis mínimos de prestações sociais. Sofrem mais frequentemente o risco de
doença e deficiência e mais dificuldade têm de acesso aos serviços e
equipamentos. São pessoas concretas quem habita em casas com piores condições,
sem acessibilidades e sem equipamentos nas proximidades, em contextos
territoriais degradados e às vezes perigosos.
No plano simbólico e das identidades, as pessoas e as famílias em situação de
exclusão social desenvolvem muitas vezes uma auto-imagem desvalorizada, têm
mais dificuldade em aceder e processar informação, não possuem o capital
simbólico e as disposições organizativas indispensáveis para reivindicar
autonomamente os seus direitos, orientando-se muitas vezes para a necessidade
de sobrevivência quotidiana sem condições para conduzir uma acção estratégica.
Assim, é frequente que se acomodem à sua condição, se desmotivem e percam, se
alguma vez as tiverem possuído, competências pessoais básicas para a
participação social.
Estas identidades negativas são o reflexo de preconceitos que existem na
sociedade, ao mesmo tempo que ajudam a alimentá-los, como se as vítimas, ao
pensar e comportar-se conforme a imagem que delas se faz, acabassem por
confirmar essa imagem. Construída sobre falsas crenças, como a de que as
pessoas excluídas são incapazes e inúteis, umas vezes por suposta fatalidade,
outras por preguiça, atribuindo-se, em qualquer dos casos, aos indivíduos,
defeitos causados, pelo menos em boa parte, pelas condições em que
sobrevivem. O equilíbrio instável entre, por um lado, valores individualistas e
interesses particulares e, por outro lado, os valores da solidariedade e da
justiça social é outro factor a considerar. Tal como a frequente ausência de
responsabilidade social por parte das empresas e organizações ou a excessiva
insensibilidade dos interesses instalados em relação aos mais desfavorecidos ou
a secundarização da coesão social enquanto prioridade política e económica. Eis
alguns dos traços das representações e valores sociais negativos que
marginalizam aqueles que interiorizam essa imagem marginal de si próprios.
Claro está que a inclusão social é, para voltar ao ponto de partida, o
contrário de tudo isto. Do ponto de vista das pessoas, estar incluído, ser
membro de pleno direito de uma sociedade globalmente desenvolvida, significa:
possuir o rendimento suficiente para manter padrões de vida considerados
dignos;
viver em segurança contra riscos sociais e pessoais;
possuir ou estar em vias de adquirir as habilitações escolares e profissionais
necessárias à participação na sociedade do conhecimento e ao envolvimento em
actividades de aprendizagem ao longo da vida;
possuir uma carreira profissional satisfatória, com qualidade de emprego;
ter acesso normal aos serviços e a cuidados de saúde adequados;
ter apoio e disponibilidade de equipamentos e serviços para a conciliação do
trabalho com a vida familiar, num quadro de organização da família capaz de
proporcionar o enquadramento afectivo indispensável e o apoio na trajectória de
vida autonomamente escolhida;
pertencer a uma comunidade residencial sem má fama, habitar em condições de
conforto mínimas, num território dotado de transportes acessíveis;
possuir confiança em si próprio e capacidade para desenvolver laços de pertença
com redes de relacionamento significativo;
ser respeitado e reconhecido socialmente e beneficiar quotidianamente de
relações afectivas e estabilidade emocional;
possuir o mínimo de aptidões para correr riscos controlados, inovar e tomar
iniciativas, sabendo calcular os meios necessários para atingir fins legítimos;
ter capacidade para assumir os direitos e cumprir os deveres e envolver-se, por
vontade própria, em actividades cívicas, políticas, associativas, culturais e
recreativas ou de lazer;
saber como procurar e processar a informação relevante do ponto de vista dos
interesses e necessidades próprias.
O nível da disponibilidade existente em determinada sociedade para proporcionar
aos seus cidadãos estas condições é a medida da qualidade dessa mesma
sociedade. Encontramo-nos, assim, em pleno centro de debates recentes a
respeito do conceito de qualidade social (Beck e outros, 2001) que tem vindo
a ser trabalhado em torno de quatro campos que retomam, de algum modo, as
dimensões da exclusão e da inclusão social.
Segundo este esquema conceptual, a qualidade social enquanto modelo de que
cada sociedade concreta se afasta ou aproxima em maior ou menor grau, não
enquanto descritor de nenhuma realidade ontologicamente observável tem
subjacente o princípio fundamental da abertura à participação, o que implica
processos societais geradores de igualdade de oportunidades e equidade social.
Isto é, sociedades em que existam recursos estruturais que permitam a segurança
socioeconómica e regras (explícitas ou implícitas) que permitam a inclusão dos
cidadãos nas instituições em que tais recursos são acedidos.
Figura 2 Quadrantes da qualidade social
Essas são condições necessárias à justiça social, mas não suficientes. É também
indispensável que os indivíduos adquiram e desenvolvam capacidades para tirar
partido das oportunidades. Para isso terão de estar disponíveis em escala
alargada mecanismos de solidariedade promotores da coesão social e económica e
terão de se desenvolver práticas de autodeterminação dos sujeitos nas diversas
dimensões da vida cultural, social, económica e política.
De forma resumida, pode-se dizer que a qualidade social não decorre da natureza
das próprias coisas, antes só pode ser o resultado da mobilização de poder e,
em particular, das políticas públicas. Mais concretamente, de políticas
públicas activas.[2] Não no sentido restrito como elas são concebidas em
determinados países, enquanto instrumento de incentivo ao trabalho, seja ele de
que qualidade for. Falamos de políticas activas no sentido de se mostrarem
capazes de dotar as pessoas das competências e dos poderes que facilitem a
sua inclusão no emprego e no mercado de trabalho, nos serviços e cuidados de
saúde, no sistema de educação e formação, no mercado de habitação regular, nos
sistemas de protecção e segurança, em quadros familiares enriquecedores, em
comunidades de pertença diversas (trabalho, residência ou outras), nos
programas de combate à discriminação, nas instituições de representação de
interesses gerais (políticos) ou particulares (profissionais, culturais, etc.).
Políticas activas ainda no sentido de estimularem a coesão social e a
solidariedade e de promoverem elevados padrões de desempenho dos sistemas de
saúde, de emprego, de educação-formação, de distribuição dos rendimentos
(incluindo os rendimentos primários do trabalho e de pensões e os rendimentos
secundários proporcionados pela protecção social), de segurança, de qualidade
ambiental, da actividade económica, de ocupação do território, de promoção dos
valores da igualdade e do respeito pela diferença. Sistemas que devem fornecer
respostas à medida das necessidades de cada cidadão, o que implica a combinação
de políticas universais com políticas de diferenciação positiva, dirigidas aos
grupos mais desfavorecidos, segundo critérios de justiça social.
Deficiência e risco de exclusão
Todos os estudos sobre a exclusão social indicam as pessoas com deficiências e
incapacidades como uma das categorias sociais mais vulneráveis. Os estudos
específicos sobre estas pessoas tendem a produzir um diagnóstico semelhante: a
história das pessoas com deficiências e incapacidades é um capítulo importante
da história das desigualdades sociais (Sousa, 2007: 17). Para além de reforçar
outros factores de desigualdade, como o género, a classe social ou a
etnicidade, a deficiência tende a ser, em si mesma, um factor de
vulnerabilidade.
Quadro 1 Grau de escolaridade (25-70 anos) (%)
Um estudo recentemente realizado pelo Centro de Reabilitação Profissional de
Gaia e pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (Sousa,
2007) mostra como é grave a situação das pessoas com deficiências e
incapacidades em Portugal. De entre o conjunto de indicadores de caracterização
que integram o diagnóstico sobressai o dos níveis de escolaridade, variável de
que depende um vasto conjunto de saberes, finalistas e instrumentais,
utilizáveis em diversos contextos, desde o profissional até à participação
cívica, passando pelos relacionamentos sociais e pelo desempenho das mais
diversas tarefas do quotidiano. De facto, nas idades compreendidas entre os 25
e os 70 anos de idade, a proporção dos que não sabem ler nem escrever é quase
sete vezes maior do que entre a população portuguesa, encontrando-se nesse
patamar de falta de ensino uma em cada cinco pessoas com deficiências ou
incapacidades. Mais de 78% não ultrapassa quatro anos de escolaridade (39, 9%
para a população portuguesa). No pólo oposto, são apenas um terço os que
possuem o ensino secundário e cinco vezes menos os que têm um curso superior.
Apesar de algumas melhorias verificadas entre os mais jovens no domínio da
transição da escola para a vida activa, em grande medida provocadas pelas
políticas apoiadas pelo Fundo Social Europeu, os principais indicadores de
emprego revelam de forma igualmente clara a situação de vulnerabilidade das
pessoas com deficiências e incapacidades. Neste campo a exclusão é também
particularmente grave, dadas as diversas implicações do trabalho na vida das
pessoas: ele afecta o estatuto social, a imagem e a identidade pessoal,
assegura rendimentos e a formação de direitos noutros sistemas como os de saúde
e protecção social, permite o estabelecimento de redes sociais e a integração
em comunidades de referência. Ora, são cerca de metade as taxas de actividade e
ainda menos as de emprego das pessoas com deficiência em relação às verificadas
para a população do Continente e são mais do que duas vezes e meia maiores as
taxas de desemprego, às quais provavelmente teríamos de acrescentar o
desemprego desencorajado que se esconde nas taxas de actividade e de emprego. A
estes problemas poderíamos ainda acrescentar os da subutilização das
capacidades, do subemprego, das dificuldades de promoção nas carreiras
profissionais, entre outros.
Quadro 2 Relação com o trabalho (população do Continente = 100)
Revela-se, com respeito à situação na profissão, uma frequência anormalmente
elevada de pessoas com trajectórias sociais descendentes, apesar do contrário
se estar a passar na população em geral.[3] Predominam entre os inquiridos no
estudo citado as classes socioprofissionais de menores recursos (2,4% são
empresários, dirigentes e profissionais liberais, 2,0% profissionais técnicos e
de enquadramento, 13,0% são trabalhadores independentes, 36,2% empregados
executantes e 46,3% são operários e assalariados agrícolas). Ora, olhando para
a posição dos agregados de origem, verificamos que as classes dos empregados
executantes (15,1%) e dos operários e assalariados agrícolas (51,4%) somam um
total de 66,5%, o que nos permite concluir duas coisas: por um lado, a
incidência da deficiência entre estas categorias é maior e, por outro lado,
apesar da tendência para a reprodução da condição de classe, há uma certa
despromoção social. Elas representam 66,5% na origem e sobem para 82,5% entre
os inquiridos nestas duas classes, tendência que se confirma pela descida de
29,1% de trabalhadores independentes entre os agregados de origem para 13,0%
entre os inquiridos e de 2,3% para 2,0% no caso dos profissionais técnicos e de
enquadramento. Apenas no caso dos empresários, dirigentes e profissionais
liberais terá havido um ligeiro crescimento de 2,0% para 2,4%.
O estudo que temos vindo a seguir revela, ainda, a grande limitação dos
rendimentos dos agregados familiares das pessoas com deficiências e
incapacidades, cuja dimensão média é de 2,4 pessoas. Ora, em Portugal, o limiar
de pobreza oficial situava-se, no ano em que se realizou o estudo, em 360,00
euros por adulto equivalente, o que daria, para um agregado daquelas dimensões
composto por dois adultos e um menor, um valor próximo de 900,00 euros mensais.
Mesmo tomando em linha de conta que parte dos agregados de menor rendimento
total são de menores dimensões (incluindo isolados), e sem que este valor possa
ser lido como mais do que uma aproximação grosseira ao fenómeno, podemos
estimar que perto de dois terços das pessoas com incapacidades e deficiências
viverão perto ou abaixo do limiar de pobreza.
Mas não são apenas as condições materiais, como as que aqui se resumiram, que
importa considerar. Um outro estudo realizado em Portugal sobre os impactos do
Fundo Social Europeu na área da reabilitação revelou indicadores preocupantes
ao nível da participação política e dos consumos culturais. Quanto ao primeiro
domínio, os inquiridos que dizem que não se interessam pela política nem votam
são 30,7%, 28,1% e 22,9%, respectivamente nos escalões etários 26-35 anos, 36-
45 anos e 46 anos ou mais. Os que dizem que apenas votam são, para os mesmos
escalões, 53,5%, 53,9% e 56,3%. A apatia política não é exclusiva das pessoas
com deficiências e incapacidades, mas esperar-se-ia que a frequência dos
sistemas de ensino e formação (trata-se de pessoas que foram abrangidas por
medidas apoiadas pelo FSE) influenciasse o comportamento político de forma mais
positiva, pelo que aqui se regista claramente um problema estrutural de
ausência de participação política.
Quadro 3 Rendimento líquido mensal do agregado (%)
Quadro 4 Interesse por questões políticas por grupos etários
Já quanto aos consumos culturais, para além de eventuais razões especificamente
ligadas ao capital cultural de origem, não podemos deixar de considerar que a
escassez de produtos adaptados e as carências nas acessibilidades justificam
que, numa escala de 7 pontos, a média da leitura de livros seja só 3,1, a ida a
museus 1,9, a ida ao teatro 1,8, a ida ao cinema 2,7 e a ida a concertos 1,9.
Assim, o lazer é ocupado principalmente com a televisão (6,7), a rádio (6,2),
ler jornais (3,5) ou ler revistas (4,0).
É certo que o estudo indica que existe uma apreciação globalmente positiva por
parte das próprias pessoas com deficiências e incapacidades acerca das
oportunidades que se lhes oferecem, dos mecanismos de discriminação de que não
se sentem vítimas, da avaliação favorável da trajectória e das expectativas
esperançosas quanto ao futuro. Mas, comparando essas apreciações com as
situações de facto, o que sobressai é que a atitude positiva não extravasa para
dois domínios onde maior poderia ser o impacto da mobilização de poder por
parte dos sujeitos: os da actividade política e cultural.
Modelos de intervenção
Mesmo nas sociedades mais modernas permanece muito presente uma imagem da
deficiência como uma fatalidade que marca um destino a que não se pode escapar.
Há, de facto, agentes com responsabilidades políticas, económicas ou culturais
que continuam a julgar que as taxas de escolarização ou de desemprego que vimos
acima são normais para pessoas consideradas incapazes de uma participação
activa e regular na vida colectiva e nas principais instituições que a
organizam.
Não é porém essa a doutrina oficial do Estado, da sociedade civil organizada e
das organizações interestatais, principalmente a partir dos anos 60. Dois
factores determinaram a definição da deficiência como um problema social e
político: a crescente afirmação dos direitos sociais como compromisso dos
Estados de bem-estar e o aparecimento na cena política e social de organizações
de pessoas com deficiência ou de representantes dos seus interesses.
O modo como o problema tem sido definido e a orientação global das políticas
têm evoluído. Existem várias tipologias de classificação dos modelos de
intervenção na área da reabilitação. Propomos uma que comporta três modelos.
O primeiro concebe a deficiência como um problema exclusivamente pessoal,
causado por doenças, malformações ou acidentes cujos efeitos se podem minorar
através de intervenções especiais centradas nos indivíduos, promovidas por
instituições ou serviços especializados. As pessoas são classificadas em função
dos seus défices e a rotulagem associada às suas (in)capacidades tende a não
ser combatida. Conferindo aos especialistas todo o poder no processo de
intervenção, ao qual compete protegê-la e cuidá-la, este modelo tende a
medicalizar a relação entre a pessoa com deficiência e o seu contexto de
vida.
Conhecido como modelo médico o que constitui uma certa injustiça simbólica
de culpabilização de uma profissão, quando o que está em causa é a
individualização do enfoque este paradigma teve um papel determinante na
criação de um campo político e institucional inovador.
Progressivamente o modelo foi evoluindo da protecção para a compensação das
dificuldades decorrentes da deficiência, de modo a capacitar as pessoas para
uma vida tão autónoma quanto possível na sociedade tida por normal.
Quadro 5 Reabilitação na óptica das capacidades das pessoas
De facto, em 1989 foi traduzido para português um documento da Organização
Mundial de Saúde, datado de 1976, Classificação Internacional das Deficiências,
Incapacidades e Handicaps (SNR, 1989), no qual se fornece uma definição
conceptual que tem dominado o campo até aos nossos dias. A deficiência é
definida como qualquer perda ou anormalidade da estrutura ou função
psicológica, fisiológica ou anatómica (idem: 56) que se torna problemática na
medida em que se associa a uma desvantagem, entendida como [...] uma condição
social de prejuízo sofrido por um dado indivíduo, resultante de uma deficiência
ou de uma incapacidade, que lhe limita ou lhe impede o desempenho de uma
actividade considerada normal para esse indivíduo, tendo em atenção a idade, o
sexo e os factores sócio-culturais (idem: 182). O enfoque do problema é pois
colocado já na relação entre o indivíduo e o meio, mas as medidas incidem
principalmente no primeiro, cabendo à reabilitação compensar as incapacidades
com vista a reduzir ou anular as desvantagens no desempenho.
As primeiras manifestações práticas deste modelo encontramo-las nos movimentos
cívicos que deram origem às escolas especiais promovidas, entre outras, pelas
APPACDM, pelas CERCI e por organizações de pessoas com deficiências específicas
e, mais tarde, em parte sob a pressão da necessidade de resposta às primeiras
gerações de crianças escolarizadas, no âmbito dos programas financiados pelo
FSE na área da formação profissional especial e do emprego, com predomínio para
o emprego protegido. O ambiente de inovação política que se seguiu à Revolução
de Abril e à modernização política e social decorrente da entrada na CEE foram
a este propósito factores propulsionadores importantes.
A Carta Social Europeia de 1991, a primeira Lei de Bases da Reabilitação e
Integração das Pessoas com Deficiência em 1989, o Decreto-Lei n.º 247/89,
relativo à formação profissional e emprego, publicado no mesmo ano, e o
documento de 1992 do Conselho da Europa intitulado Uma política coerente para
a reabilitação das pessoas com deficiência (publicado pelo Secretariado
Nacional de Reabilitação em 1994) foram documentos de referência neste processo
evolutivo.
Nos anos 60 nasceu no Reino Unido um modelo conhecido como social. Dada a
inversão de enfoques que propõe em relação ao modelo individualista e à
severidade da crítica que lhe faz, poderemos chamar-lhe também radical.
Segundo o modelo radical são as atitudes, os sistemas e os serviços (ou a sua
ausência) que são colocados em causa. A deficiência tende a ser vista não como
um problema dos indivíduos, mas sim como resultado dos obstáculos que a
sociedade lhes coloca. A questão é a da incapacidade da sociedade para prever e
ajustar-se, em todos os domínios, às necessidades específicas de cada um
(Oliver, 1990). A deficiência consiste na exclusão das principais actividades
correntes provocada pela organização social em relação a pessoas que tenham
alguma lesão, isto é, ausência parcial ou total de um membro ou defeito no
funcionamento de um mecanismo ou função do corpo.
Quadro 6 O modelo radical
Com razão, os investigadores, os profissionais e os activistas que defenderam e
defendem este modelo consideram que a sociedade deve organizar-se para
proporcionar a todas as pessoas a oportunidade de participação.
Uma sociedade acessível não o é só para quem tem uma lesão ou disfunção
corporal. É para todos os que possuem algum atributo que conduza à segregação e
à exclusão. Porém, as razões que levam à discriminação sexual ou racial, por
exemplo, não são as mesmas que afectam as pessoas com limitações permanentes ou
prolongadas das estruturas e funções corporais. As políticas de empowerment
pessoal e grupal, por um lado, e de abertura e inclusão institucional, por
outro, não podem, assim, ser as mesmas.
Um exemplo típico deste tipo de perspectiva e das suas limitações encontramo-lo
no campo da educação em Portugal. Defende-se que, se as crianças com
dificuldades de aprendizagem forem educadas no ambiente segregado de um sistema
paralelo de ensino, o seu desenvolvimento será diferente (deficitário) e a
integração na sociedade, que não será treinada no processo educativo, será mais
problemática. As instituições criadas para dar resposta à exclusão são, assim,
responsabilizadas pela produção de resultados opostos aos desejados.
Os recursos e as políticas têm, pois, de ser dirigidos à adaptação das escolas
regulares (por exemplo, através da preparação dos profissionais de educação e
da integração de alunos com diferentes tipos de risco de insucesso) e não tanto
aos indivíduos com deficiências e incapacidades.
A indiferenciação de políticas pode, porém, facilmente tornar-se vulnerável a
radicalismos utópicos. Este perigo teve expressão no funcionamento da educação
especial até recentemente. Assente na filosofia de que a educação inclusiva tem
como objectivo [...] eliminar a exclusão social que, por sua vez, é
consequência de certos tipos de atitudes e respostas à diversidade, raça,
classe social, etnia, religião, género e capacidades (Lima-Rodrigues e outros,
2007), à escola especial, segregada, opõe-se uma espécie de escola
miscelânea, onde são colocados todos os alunos com especiais factores de
risco de exclusão.
São de cinco tipos as consequências negativas desta abordagem:
(i) cresce a visibilidade das diferenças, alimentando o estigma associado;
(ii) paradoxalmente, são fornecidas respostas homogéneas a todos os
excluídos, necessariamente desadequadas a alunos com diferentes dificuldades
de aprendizagem, sejam elas necessidades educativas especiais (termo que
continua a ser conotado, em todo o mundo, com a educação de pessoas com
deficiências ou incapacidades), ou de origem social e de escassez de capital
cultural;
(iii) por outro lado, estas miscelâneas deixam de fora com frequência os
alunos com dificuldades mais acentuadas, dada a tendência para atender em
primeiro lugar os casos mais comuns de dificuldades menos acentuadas; muitos
desses alunos mais problemáticos acabam por ser atirados para a escola
segregada que se quer combater, ao passo que os casos menos difíceis, apesar da
intervenção especial, se acumulam em turmas de repetentes, para onde são
muitas vezes deslocadas as crianças com diversos tipos de dificuldades de
aprendizagem, sem qualquer vantagem para elas (e portanto, também para os
resultados da escola), pois geralmente acabam por ser vítimas de retenções
sucessivas ou de progressões sem aquisições relevantes, terminando sem sucesso
o seu percurso escolar;
(iv) o número de alunos sinalizados para os apoios educativos especiais não
pára de crescer, porque nas organizações de ensino tende a gerar-se a tendência
para encaminhar para a miscelânea formada em turmas de repetentes todos os
alunos difíceis, limpando as outras turmas e provocando assim o crescimento
de enclaves segregados, o que constitui uma vantagem apenas aparente, porque
essas turmas, para além de prejudiciais para as crianças, acabam por afectar o
funcionamento de conjunto das escolas;
(v) assim, com o aumento dos alunos sinalizados, cresce também o número de
profissionais de apoio àqueles enclaves, cujo trabalho tende a tornar-se,
independentemente do esforço e das competências desses profissionais, pouco
eficiente. [4]
O terceiro modelo podemos chamá-lo relacional, embora na gíria seja conhecido
pelo deselegante descritor bio-psico-social (Engel, 1977). A pessoa com
deficiência é vista numa perspectiva sistémica, multidimensional, de forma
globalizante e total, incluindo não apenas os traços da sua personalidade e das
suas limitações e capacidades, mas também o modo como interage no contexto
social.
Se na óptica do chamado modelo médico, o enfoque é colocado no trabalho a
desenvolver junto das pessoas com vista a dotá-las dos apoios e das
competências que lhes permitam alargar as possibilidades de superar a
desvantagem resultante de um atributo específico inerente à sua condição, e se
no modelo radical o enfoque é colocado exclusivamente nas instituições e
estruturas sociais, na óptica do modelo relacional a deficiência é concebida
como uma diferença específica característica de cidadãos que são iguais a
quaisquer outros em direitos e deveres, diferença essa que gera discriminação
produtora de desigualdades nas diferentes esferas da vida social. A
reabilitação não passa apenas pela intervenção junto das pessoas vítimas da
discriminação de modo a aumentar-lhes as capacidades, nem tão-só pela
eliminação de barreiras e pela modificação das estruturas, ambientes e serviços
sociais, mas pela afirmação do princípio da universalidade dos direitos, o que
implica o empowerment das pessoas, por um lado, e que as instituições se
transformem no sentido de se tornarem acessíveis a todos os cidadãos,
promovendo a igualdade de oportunidades, por outro lado. O problema não é nem
apenas das pessoas, nem só da sociedade e das políticas, mas de ambos e da sua
relação (Oliver, 1986; Barton, 1993; Finkelstein, 2001; Capucha, 2005a; Sousa,
2007). Em resumo, o modelo relacional tem por trás a ideia de que é preciso
activar as pessoas e também, em simultâneo, activar as instituições, as
estruturas e as redes sociais, de modo a assegurar a participação autónoma de
todos na vida colectiva e o bem-estar de cada um.
Quadro 7 O modelo relacional
Ainda há apenas algumas décadas, a deficiência era uma fatalidade a que as
famílias e as pessoas se acomodavam como podiam. Depois, passou a ser passível
de tratamento terapêutico e pericial, ligado à correcção das desvantagens
físicas, fisiológicas, psíquicas e sensoriais. Mais tarde, este conceito foi
alargado às dimensões cognitivas e culturais resultantes da deficiência, razão
pela qual a educação e o treino de competências passaram a ser um complemento
necessário da reabilitação médica.
Hoje em dia, não apenas a reabilitação constitui um conceito amplo e
abrangente, abarcando a dimensão médica, cultural, pessoal e familiar, em
diversos domínios da vida, como o das condições de habitação, protecção social,
lazer, consumos culturais, exercício de uma profissão ou ocupação, entre
outros, mas também passa a envolver a organização da sociedade e dos diversos
contextos em que se joga a interacção e a participação social de sujeitos
diferentes nas suas especificidades mas iguais em direitos e deveres.
Datam dos anos 60 as primeiras experiências portuguesas orientadas pelo modelo
relacional no domínio da educação, nomeadamente a inclusão de cegos em escolas
preparadas para os receber e educar como a qualquer outro aluno, isto é, de
acordo com as suas necessidades específicas mas tendo em vista as aquisições
básicas comuns. Foi preciso porém esperar cerca de trinta anos para se passar
dessa experiência precursora para uma actuação mais ampla. Caminha-se para um
sistema aberto e integrado, no qual as crianças com deficiência são antes do
mais uma parte dos alunos que necessitam de respostas diferentes de todos os
outros grupos de risco e diferentes também internamente em função das
características de cada um.
A OMS deu um novo impulso a estas ideias ao publicar a nova Classificação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), que representa uma
tentativa consequente de combinar o modelo médico e o modelo social,
adiantando uma definição operacional que compreende as pessoas com [...]
limitações significativas ao nível da actividade e da participação num ou em
vários domínios de vida, decorrentes da interacção entre as alterações
funcionais e estruturais de carácter permanente e os contextos envolventes,
resultando em dificuldades continuadas ao nível da comunicação, aprendizagem,
mobilidade, autonomia, relacionamento interpessoal e participação social, dando
lugar à mobilização de serviços e recursos para promover o potencial de
funcionamento bio-psico-social(Sousa, 2007: 53).
Obstando ao problema da rotulagem, a CIF constitui uma classificação universal
do funcionamento humano. Considera depois que esse funcionamento depende de
estruturas e funções do corpo que determinam capacidades e não apenas
incapacidades. Em vez de uma tipologia das deficiências fornece um quadro de
referência para abordar e compreender o potencial e as limitações de cada
pessoa, considerada na sua complexidade. Não classifica os indivíduos de modo
essencialista, mas sim em função dos contextos em que operam as capacidades e
incapacidades, permitindo ou não a participação.
Por isso, é útil em diferentes sectores de intervenção, incluindo a educação,
para desenhar medidas e planos de intervenção moldáveis a cada situação
concreta, insistimos, num sentido de empowerment e capacitação das pessoas e de
modificação dos contextos em que estas têm o direito a participar.
Os serviços deixam de se centrar apenas nos indivíduos, para se centrarem no
contexto triplo das instituições gerais, das comunidades e das pessoas
singularmente consideradas.
O conceito de qualidade de vida aparece, neste quadro, muito relacionado com os
níveis de satisfação dos utentes com os cuidados prestados (Boswell e outros,
1998; Chubon, 1985; Capucha, 2005a). [5] A qualidade de vida, que não existe
enquanto dado, mas se conquista enquanto direito, implica três áreas
estruturantes (Sousa, 2007), alinhadas com os quatro quadrantes da qualidade
social de que falámos atrás:
- o bem-estar físico e material: acesso a rendimentos oriundos do trabalho ou
da segurança social; a cuidados de saúde; ao trabalho e ao emprego; a habitação
com condições pelo menos básicas de conforto; ao turismo, ao lazer e aos bens
de cultura; à mobilidade e ao acesso a edifícios e espaços colectivos;
- a autodeterminação e desenvolvimento pessoal: autonomia e resiliência;
comunicação; equilíbrio emocional e fruição de afectos; capacidade de
relacionamento e integração em redes sociais; educação e formação ao longo da
vida; criatividade e expressão artística; pertença a uma família que suporte
projectos de vida e seja local privilegiado de expressividade afectiva;
- direitos cívicos: associativismo e representação de interesses; participação
política; acesso à justiça; respeitabilidade pública.
A educação não é um item mais desta lista de domínios da qualidade de vida. Ela
tem uma função estruturante. Promove a aquisição de competências para o acesso
ao trabalho e ao emprego, é o local de aquisição de conhecimentos e hábitos de
saúde, promove a familiaridade com os bens de cultura, permite a capacitação
para uma vida autónoma, ajuda a desenvolver não apenas saberes formais, quer
abstractos quer operacionais, mas também competências resultantes dos contactos
com colegas e profissionais na escola. Estimula a criatividade e a
sensibilidade artística e é um lugar central para a expressão criativa. Permite
a aquisição de consciência cívica e política. Por tudo isso, podemos dizer, a
escola inclusiva é um paradigma do modelo relacional na abordagem dos problemas
das deficiências, das incapacidades e do direito à participação social.
Escola inclusiva
Pode a escola inclusiva cumprir a missão de preparar as pessoas com
deficiências e incapacidades para uma vida com qualidade? Posta a questão de
outra forma, pode promover o sucesso educativo? E quais são as vantagens que
apresenta em relação à escola especializada? O combate ao insucesso escolar é a
bitola que permite responder a estas questões.
Podemos agrupar o conjunto dos factores do insucesso escolar em quatro grandes
grupos:
§ o desajustamento entre o capital cultural de origem das famílias e a
linguagem tradicional da escola gera dificuldades especiais aos alunos de meios
populares. Trata-se do problema clássico da reprodução das desigualdades
sociais no quadro da dominação cultural. As pessoas com deficiências e
incapacidades, na maioria oriundas de famílias de meios populares, como vimos,
são particularmente afectadas por este factor, que se soma às desvantagens
resultantes de problemas nas funções e estruturas do corpo;
§ a desarticulação entre a escola, as famílias e o mercado de trabalho tende em
muitos casos a incentivar o abandono precoce para iniciar uma carreira
profissional. Muitas famílias de menores recursos caem na falácia de julgar
mais conveniente a entrada precoce no mercado de trabalho, que por sua vez
absorve com relativa facilidade jovens sem qualificações que, por seu turno,
possuem baixas probabilidades de prosseguir estudos com sucesso. Estando em
dissipação com a diversificação das vias de ensino e o reforço dos apoios
sociais e financeiros às famílias de menores recursos, este problema não tende
a ser o mais problemático para os jovens com deficiências e incapacidades. O
problema maior é o apoio na transição para a vida activa e o da obtenção de um
emprego uma vez concluído o percurso escolar inicial;
§ funcionamento interno do sistema de ensino. A deficiente qualidade do
processo pedagógico, muitas vezes ainda centrado na transmissão unilateral de
saberes manualescos; a falta de equilíbrio no currículo entre as diferentes
competências (básicas, cognitivas específicas, operativas, cívicas,
expressivas, etc.); a disciplinarização do currículo e o excesso do número de
disciplinas, com pouco espaço para o enriquecimento curricular e a integração
de saberes; a má ou escassa utilização das tecnologias e a desvalorização das
aprendizagens experimentais; a raridade de medidas destinadas à aprendizagem de
métodos de estudo e trabalho; a ausência de mecanismos de detecção precoce do
risco de insucesso; a raridade de elementos de identificação dos alunos com a
sua escola; a fraca autonomia da escola e uma organização escolar pouco
estruturada, sem liderança forte e pouco virada para o apoio a alunos com
maiores dificuldades; a ineficiência e debilidade dos serviços de orientação
escolar, nos casos em que existem; a fraca qualidade do parque edificado e dos
equipamentos escolares; a dificuldade no acesso à escola; o escasso
envolvimento dos pais e da comunidade com a escola são estes alguns dos
factores que tornam os alunos cujas famílias não os podem compensar nas maiores
vítimas do insucesso e do abandono escolar. Também neste conjunto de factores a
existência de deficiências acresce às dificuldades sentidas por muitos outros
alunos;
§ relação entre os agentes educativos e alunos com problemáticas específicas.
Crianças que vivem em ambientes familiares instáveis, jovens que adoptam
comportamentos sexuais de risco, comportamentos aditivos ou que constituem
grupos organizados em torno de símbolos e práticas marginais, indivíduos
pertencentes a minorias culturais e étnicas fortemente contrastantes com a
cultura escolar e objecto de preconceito, crianças e jovens com deficiências e
incapacidades, todos eles apresentam factores de risco, porém muito
diferenciados uns dos outros. Ou as escolas têm disponíveis e devidamente
activados mecanismos e estruturas para uma relação de qualidade com estes
alunos, ou o insucesso emerge. Essas medidas vão das tutorias aos
aconselhamentos, dos planos de recuperação ao reforço do trabalho individual e
em grupo com estes alunos, do combate ao preconceito à diversificação das vias
de ensino ao trabalho com as comunidades e ao envolvimento de pais e
encarregados de educação, das adaptações curriculares às ajudas técnicas e
outras medidas incluídas no ensino especial. Repete-se que, sendo
diferenciadas as problemáticas e a origem dos obstáculos ao sucesso, estas
medidas devem ser geridas de forma específica, construindo respostas à medida
de cada problema.
Podemos, portanto, concluir que as crianças e jovens com deficiências e
incapacidades sofrem duplamente de disfunções gerais do sistema de ensino e das
dificuldades de aprendizagem relacionadas com as suas limitações próprias. A
resposta a estes problemas é, naturalmente, o prosseguimento determinado do
esforço para construir uma escola de qualidade. Uma escola de qualidade é,
incontornavelmente, uma escola inclusiva. É precisa porém inovação conceptual
para distinguir escola inclusiva de escola miscelânea, de modo a qualificar
a instituição escolar mas também a implementar políticas específicas de
educação especial. Critério particularmente sensível quando é certo que a
escola inclusiva assenta num princípio de abertura que se aplica a toda a
população escolar, valorizando a sua diversidade e acreditando que todos podem
aprender e dar um contributo activo à sociedade, não estando alguns condenados
a permanecer na condição de assistidos, desde que a cada um sejam
proporcionadas oportunidades equitativas.
O sistema deve ser plural, não apenas porque acolhe alunos diferentes, mas
também porque, em vez de os misturar indistintamente, possui ferramentas
políticas especializadas.
Sintetizando as distinções a fazer, diríamos que a escola deve ter qualidade
para acolher todos os seus alunos e proporcionar-lhes oportunidades de sucesso,
a que todos têm direito. Isso implica lidar com as dificuldades de aprendizagem
que todos têm, uns muito mais do que outros. Nos casos dos alunos com
deficiências e incapacidades, conforme é tradição, enfrentam-se as dificuldades
de aprendizagem através da educação especial. No caso da escola inclusiva, isto
faz-se nas escolas regulares, públicas ou privadas.
A opção pela participação de alunos com deficiências e incapacidades na escola
regular está consagrada na Declaração de Salamanca da UNESCO, de 1994. O tema
não era novo. Recordemos uma vez mais a experiência precursora com os cegos em
Portugal e, a partir de 1978, os debates sobre o assunto provocados pelo
Relatório Warnock (DES, 1978) no Reino Unido, para citar apenas dois casos.[6]
Tem vindo desde então a afirmar-se o direito de todas as crianças a aceder às
escolas regulares, a crescer, brincar e aprender juntas, a não serem
desvalorizadas nem discriminadas em função de uma característica específica que
as diferencie.
A frequência de escolas regulares não é, porém, condição suficiente para a
educação inclusiva (Florian, 2003). É preciso que essa participação se traduza
no desenvolvimento efectivo de competências. A CIF desempenha aqui um papel
decisivo, ao permitir aferir com mais rigor, maior abrangência e menos
preconceito as características de cada aluno e a partir delas construir planos
educativos que prevejam não apenas o trabalho a desenvolver com os discentes,
mas também as alterações a introduzir na escola.
Essas alterações, olhadas pela óptica do desenvolvimento das capacidades, podem
incluir:
§ adaptações curriculares e adaptações nos meios e métodos de aprendizagem com
vista à aquisição das competências previstas nos currículos dos diferentes
ciclos e vias de estudos;
§ dotação das escolas de quadros docentes especializados professores dos
departamentos do ensino especial de forma a assegurar apoio a todas as
crianças e jovens que dele necessitem;
§ criação de ambientes que façam os alunos sentirem-se bem e desejados nas
escolas e na sala de aula;
§ construção de planos educativos individuais que perspectivem a trajectória
escolar e a transição da escola para a universidade ou para o mundo do
trabalho, depois de atingidos os resultados exigidos a todos os alunos ou, pelo
menos, nos casos de incapacidades mais marcadas, a elevação do potencial ao
máximo possível, que é geralmente superior àquilo que à partida se supõe; estes
planos produzem um melhor conhecimento dos alunos, das suas dificuldades e do
seu potencial;
§ acesso a equipamentos, terapias e apoios reforçados por parte de instituições
com experiência na educação especial e na reabilitação, de modo a fornecer aos
alunos que deles careçam serviços específicos que não necessitem de ficar
sediados em permanência nas escolas;
§ trabalho reforçado em domínios menos típicos dos currículos, que permitam o
desenvolvimento de competências para o desempenho autónomo de tarefas do dia-a-
dia, para o autocontrolo e compreensão das manifestações da sexualidade e para
o treino de habilidades relacionais, comunicacionais e de trabalho em grupo,
bem como o enfoque nas questões da participação política e cívica.
Já quando perspectivamos as transformações a introduzir na escola e no sistema
institucional, pensamos em medidas como:
§ disponibilidade de todos os professores para receber e trabalhar com os
alunos com deficiências ou incapacidades, com maior ou menor apoio
especializado por parte dos colegas da educação especial;
§ afinação da cobertura da rede de escolas de referência para o atendimento de
alunos com problemas de aprendizagem de alta intensidade e baixa frequência
(problemas de audição, de visão, de autismo e multideficiência), cuja inclusão
exige meios técnicos, logísticos e humanos altamente especializados e mais
concentrados do que os disponíveis no âmbito dos departamentos de educação
especial existentes em todas as escolas;
§ adaptações dos espaços e dotação de ajudas técnicas e ambientes espaços
físicos, equipamentos, material pedagógico, etc. concebidos na lógica do
desenho para todos;
§ reforço do trabalho em equipa por parte de todos os profissionais nas escolas
e destas com as famílias e com os próprios alunos, que devem ser chamados a
participar nos processos de tomada de decisão e planeamento que lhes dizem
respeito;
§ divisão de trabalho e responsabilização de cada um, formalizada em documentos
que devem ser conhecidos e reconhecidos pelo colectivo escolar;
§ formação inicial de docentes que dê maior relevo às questões da inclusão e do
respeito pela diferença;
§ desenvolvimento de programas de formação contínua, quer para professores dos
diversos departamentos curriculares quer para professores dos departamentos de
ensino especial;
§ desenvolvimento de mecanismos de planeamento e de avaliação que permitam a
aprendizagem colectiva, a correcção de trajectos e a constante melhoria do
trabalho realizado na escola.
Estas orientações têm implicações para as crianças com deficiências e
incapacidades, mas melhoram a organização, os recursos e as competências
residentes nas escolas, de que acabam por beneficiar todos. Uma escola capaz de
promover o potencial de alunos com maiores dificuldades de aprendizagem é uma
escola capaz de educar melhor todos os seus alunos.
Terá ficado claro que o problema da educação das crianças e jovens com
deficiências e incapacidades não é apenas o do local onde são colocados. Mais
importante é a qualidade dos serviços que recebem. A educação envolve dinâmicas
relacionais e afectivas próprias que ultrapassam a mera colocação dos alunos
num ou noutro local. A defesa da escola inclusiva não é apenas ideológica e
política. É também pedagógica. Deve resultar na promoção do sucesso escolar, de
forma imediata através da obtenção dos diplomas escolares de referência (pelo
menos o secundário, segundo as necessidades actuais) e de forma diferida
através da adopção de práticas de aprendizagem ao longo da via e da obtenção de
um emprego e de saberes que permitam uma vida autónoma.
A escola inclusiva apresenta várias vantagens. Treina a autonomia das crianças,
que não vão passar a sua vida em instituições em que apenas encontrem pessoas
com os mesmos problemas que elas. A escola regular prepara, assim, as crianças
e os jovens para ambientes mais parecidos com os que vão encontrar no futuro
(os asilos e outras instituições totais ou a mera ocultação das pessoas com
deficiência em casa não é, de todo, aceitável e já não é, de resto,
praticável). Permite enriquecer as experiências dos alunos e motivá-los, por
via da interacção contínua com crianças da mesma idade com as quais podem
adquirir saberes informais de grande importância para a vida futura. Ajuda a
combater o preconceito e a alimentar o sentido de solidariedade e de
tolerância. Além do mais, como vimos, o ensino inclusivo qualifica a escola no
seu conjunto, beneficiando todos os alunos. Quem responde às necessidades dos
que têm menores capacidades à partida responde seguramente melhor a todos os
outros.
As escolas especiais, que a escola inclusiva tem vindo a superar em nome do
direito de todos a participar nos sistemas institucionais gerais, deveriam
assim ser eliminadas? Julgamos que não. Elas foram construídas em nome de
quatro problemas sérios:
§ a dificuldade das escolas regulares para lidarem com a diferença foi isso
que deu origem ao ensino especial, que estimulou o desenvolvimento de
instrumentos adaptados e permitiu a qualificação de recursos humanos;
§ a complexidade das dificuldades de aprendizagem das crianças com deficiências
e incapacidades e a especialização/qualificação do pessoal (docentes,
terapeutas, auxiliares) e dos recursos logísticos;
§ o preconceito que atribui às imperfeições intrínsecas das crianças o efeito
de jamais permitirem uma aprendizagem em contexto aberto e uma vida (escolar e
depois profissional) normal;
§ o sentimento de segurança por parte dos pais, que muitas vezes só confiam nas
instituições especializadas com as quais entabularam relações sólidas, para
além do receio do contacto dos seus filhos desprotegidos com colegas sem
deficiência.
Assim, sempre que não estejam reunidas nas escolas regulares condições de
trabalho com o nível de qualidade adequado, ou enquanto não for possível
convencer os pais das vantagens da escola inclusiva, desde que a qualidade
pedagógica e social esteja assegurada e o superior interesse das crianças
salvaguardado no que é fundamental, a manutenção de escolas especiais pode ser
de grande utilidade, pelo que o seu desaparecimento deve ser progressivo e
acompanhado pela qualificação das escolas regulares, do respectivo pessoal e
das suas condições de trabalho.
Às escolas especiais cabe ainda um outro papel, determinante na qualificação
global do sistema escolar. Depois de terem aberto caminho, mostrando que é
possível que todas as crianças aprendam, quando elas próprias tendem a pugnar
pela inclusão como um direito e como a melhor solução educativa (repetimos,
desde que as condições de qualidade estejam reunidas na escola regular), quando
se vêem confrontadas com o dilema de combinar o princípio da inclusão com a
pragmática da utilização dos recursos altamente qualificados e especializados
que foram acumulando, elas podem e têm vindo a celebrar acordos com as escolas
regulares para dar um apoio quer dentro da escola quer fora dela,
proporcionando terapias e momentos de trabalho mais específico. No fundo, as
antigas (e actuais) escolas especiais podem e estão a constituir-se em centros
de recursos de cujo apoio o sistema não pode prescindir.
Este apoio é tanto mais relevante quanto maior for a intensidade das
dificuldades de aprendizagem. Construir a escola inclusiva não implica, por
todas estas razões, malbaratar os recursos existentes. Implica antes maior
cooperação entre todos os agentes, ao serviço da melhor resposta possível para
cada criança ou jovem.
Conclusão
Se, conforme é hoje consensualmente aceite, o acesso à educação e ao sucesso
educativo (isto é, à preparação para uma vida com qualidade) é um direito de
todos, para as crianças com deficiências e incapacidades a participação em
contextos escolares regulares é a opção mais desejável. Essa participação
implica porém mudanças profundas tanto nas condições físicas como,
principalmente, nos modelos pedagógicos e na organização das escolas.
Tais mudanças passam pela preparação dos ambientes e dos profissionais para
lidarem com as capacidades e incapacidades específicas de cada aluno, sendo que
no caso dos alunos com necessidades educativas especiais se requer, além disso,
um conjunto de medidas específicas. Entre essas medidas conta-se a presença de
docentes de educação especial para apoio ao trabalho dos seus colegas, a
colaboração de centros de recursos especializados com os quais as escolas podem
contratar intervenções complementares desenhadas à medida de cada criança, a
criação de escolas de referência para as problemáticas de baixa frequência e
alta intensidade, o envolvimento permanente dos encarregados de educação e das
próprias crianças na elaboração e gestão de planos educativos individuais que
permitam o acesso ao currículo comum. Esta preferência não deve porém conduzir
ao súbito desaparecimento das escolas especiais, cuja transição para o sistema
deve ser feita com base na confiança das famílias e na construção de efectivas
condições educativas nas escolas regulares.
A qualidade de vida presente e futura é o objectivo. A qualidade de vida
implica autonomia por parte de sujeitos activamente construtores dos seus
próprios destinos, jogados nos contextos em que todos os outros indivíduos
jogam também os seus. A obrigação de todos os agentes educativos é assegurar
que esse jogo é justo e que nele todos têm oportunidades iguais. Na prática e
sem demoras.