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EuPTHUHu0873-65292010000200004

EuPTHUHu0873-65292010000200004

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0873-6529
Year2010
Issue0002
Article number00004

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As configurações político-administrativas e a selecção de dirigentes: O caso da administração pública portuguesa

Introdução Apesar de nem sempre a literatura das ciências administrativas tratar a questão com a profundidade merecida, a temática das relações entre política e administração assume-se como uma problemática crítica na estruturação das configurações político-administrativas e, consequentemente, na aplicação das políticas públicas e na prossecução do interesse público (Behn, 1995). Crítica porque, em primeiro lugar, as relações entre política e administração, ao contrário do que se defende no plano teórico, na prática não são claras nem facilmente objectiváveis (Aberbach e outros, 1981; Diamant, 1989, segundo Herzfeld, 1992; Bearfield, 2009). Em segundo lugar, porque no contexto das sociedades e democracias contemporâneas o equilíbrio entre a legitimidade técnica da administração e a legitimidade democrática conferida, pelo cidadão, aos políticos eleitos, assume-se como um requisito fundamental (Peters, 1987; Bearfield, 2009; Crenson, 2009).

Por esta razão, no contexto das reformas da administração que promovem a aplicação do new public management (NPM), vários países têm procurado configurar sistemas político-administrativos que se aproximam do modelo híbrido de tipo ideal sugerido por Aberbach e Rockman (1988). Neste modelo os dirigentes devem ter a capacidade de servir o governo com os seus conhecimentos técnicos e, simultaneamente, serem politicamente capazes. Assim, os dirigentes passam a combinar os conhecimentos técnicos com as opções politicamente definidas, existindo como que um casamento entre as competências técnicas e a proximidade política.

Em Portugal como no resto da Europa Ocidental, independentemente das críticas que foram sendo direccionadas, tanto pela comunidade científica (Allison, 1980; Hood, 1991; Lowndner, 1997; Kickert, 1999; Madureira, 2004), como pela experiência empírica, relativamente às falhas do NPM no desenvolvimento de uma administração pública responsável, equitativa e funcional (Jun, 2009), com a instituição gradual dos paradigmas da mercantilização e da globalização económica, o NPM adquiriu um estatuto notável ao longo do fim do século XX e do início do século XXI.

Deste modo seria expectável que, de acordo com a evolução de estruturas administrativas tradicionais para estruturas administrativas mais flexíveis, se verificasse uma aproximação aos modelos de gestão profissional nos organismos da administração pública (Aberbach e Rockman, 1988). Contudo, esta tendência não se verificou, pelo menos com a profundidade que os defensores da profissionalização almejavam.

Talvez a herança muito forte do conceito que os autores anglo-saxónicos designam por trust (Page e Wright, 1999), e que poderíamos traduzir por confiança (política), possa explicar a demora no que concerne à profissionalização do pessoal dirigente em Portugal.

Configurações político-administrativas e selecção do pessoal dirigente A administração pública, face à administração privada, apresenta diferenças não contextuais mas, também, estruturais que decorrem, essencialmente, da necessidade de subordinar a administração pública não ao direito mas, também, à política e àqueles que foram democraticamente eleitos (Bearfield, 2009; Levy, 2009). Assim, não é difícil de compreender que as regras para o recrutamento e selecção de dirigentes públicos tenham que ser diferenciadas das do sector privado, o que implica a existência de configurações político- administrativas que, por um lado, têm que estar sujeitas ao poder de tutela e de superintendência do governo e, por outro, à prossecução do interesse público, em respeito pelo quadro legal e normativo.

Desta forma as configurações político-administrativas são influenciadas, desde logo, pelas diferenças entre a administração pública e a administração privada (quadro 1).

Estas diferenças entre administração pública e privada condicionam o contexto de actuação de cada uma delas. Assim, considerando que a administração pública tem por objectivo satisfazer necessidades colectivas, promovendo o bem-estar da sociedade através de recursos públicos, a selecção de dirigentes públicos deve acautelar questões que não se revestem da mesma importância para a administração privada.

Por outro lado, as configurações político-administrativas, em cada país, traduzem a evolução do seu modelo de Estado e de administração, assim como das especificidades socioculturais vigentes (Mozzicafreddo e Gomes, 2001; Bearfield, 2009). Não é pois de estranhar que seja difícil, ou mesmo impossível, identificar, com precisão, todas as configurações existentes. Não obstante, pode afirmar-se que a caracterização de cada configuração está intimamente ligada com os métodos de selecção utilizados para se escolherem os dirigentes da administração pública (idem, 2009).

Teoricamente, existem dois grandes modelos de selecção de dirigentes: o primeiro baseado em critérios de confiança política e fidelidade para com as políticas do governo, e o segundo, no extremo oposto, baseado no mérito do desempenho, na imparcialidade e na neutralidade da gestão. Factor comum a estes dois modelos é a necessidade de subordinação da alta direcção pública ao interesse público e ao poder político, legitimamente eleito, o que, em certa medida, e numa primeira análise, nos pode levar a concluir pela inexistência de uma dicotomia entre política e administração (Levy, 2009; Rosenbloom, 2000).

Contudo, na prática, a configuração das relações entre os actores políticos e os actores administrativos torna difícil a definição de uma fronteira clara entre a política e a administração, bem como a categorização estrita de um país como pertencente exclusivamente a um dos modelos referidos.

Quadro 1 Diferenças entre administração pública e administração privada

Ainda assim, é genericamente aceite que a maioria dos países ocidentais apresenta características comuns que permitem a sua integração num macromodelo, mais abrangente, que a literatura denomina western model. Neste modelo os sistemas de recrutamento tendem a basear-se em regras pré-fixadas por lei (Bossaert e outros, segundo Madureira e Rodrigues, 2006). Como exemplo temos países como Portugal, França, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Espanha, Bélgica e também o Reino Unido e os EUA, entre outros. Apesar de este ser um denominador comum a este conjunto de países, na verdade as suas realidades políticas e administrativas são tão distintas quanto os países que o compõem (Herzfeld, 1992).

Se o western model pode, numa análise mais macro, evidenciar características comuns dos países que o integram, para evidenciar as diferenças existentes o modelo demonstra-se insuficiente. Para o efeito, Shepherd (2007) sugere a seguinte categorização dos países que compõem o western model,considerando as suas macroconfigurações político-administrativas (quadro 2).

Apesar das diferenças de cada modelo, Peters (2001) e Page e Wright (1999) referem que tanto os países representativos do modelo tradicional europeu como os países representativos do modelo britânico e americano seleccionam os seus dirigentes públicos com base em critérios de carácter predominantemente político. Não obstante, Shepherd (2007) refere que, apesar de os critérios políticos terem um peso considerável, os modelos britânico e americano aproximam-se mais de modelos híbridos que procuram conjugar, também, os valores de neutralidade e mérito que caracterizam os sistemas mais profissionais, em linha com o modelo híbrido que Aberbach e Rockman (1988) defendem como de tipo ideal. Nos países que integram este modelo o mérito dos dirigentes a seleccionar é aferido, pelo menos em termos formais, através de comissões independentes, pautadas por códigos de ética e de conduta que avaliam o perfil dos candidatos em função de critérios bem definidos e transparentes. o modelo tradicional europeu privilegia a selecção de dirigentes públicos provenientes de carreiras administrativas do funcionalismo público, sendo estes nomeados, em comissão de serviço, por tempo determinado e preestabelecido.

Finda essa comissão de serviço, os dirigentes podem, regra geral, voltar à sua carreira de origem (Bellier, 1993; Rouban, 2004). Neste caso, a escolha assume um cariz mais político, baseado em critérios que visam salvaguardar a confiança do poder político no dirigente seleccionado, o que contrasta com algumas características do modelo britânico e americano que procuraram, por via da institucionalização das funções de direcção, profissionalizar a direcção pública, através da introdução de mecanismos de gestão próximos dos propostos pelo NPM (Peters, 2001; Dowding, 1995; McSweeney, 2006).

Quadro 2 Representatividade das macroconfigurações político-administrativas

Outros autores, como Page e Wright (1999), têm defendido que, independentemente de os sistemas administrativos serem mais partidarizados ou mais baseados no princípio da necessidade de uma neutralidade do serviço público, deverá sempre existir o cumprimento de um princípio de lealdade institucional para com o Estado por parte de qualquer agente que se constitua como um seu servidor.

Mesmo nos sistemas administrativos mais despolitizados existe pois, de acordo com os autores, uma procura de funcionários de confiança para os lugares de gestão de topo. Contudo, ao utilizar-se este termo, deve perceber-se que existe uma referência ao conceito de confiança no seu sentido mais lato e não apenas político-partidário. Esta tendência é muito vincada em países como a Dinamarca.

Jensen e Knudsen (1999) ilustram bem o exemplo deste país, descrevendo a modernização administrativa como um fenómeno que levou à transformação dos burocratas em profissionais da gestão pública e em que o recrutamento passou a ser feito com base numa confiança alicerçada em competências profissionais e não em escolhas políticas.

Hoje, depois de sucessivas tentativas de reforma administrativa nos países ocidentais, através da emergência da teoria da escolha pública (Mueller, 1979), do managerialismo e do NPM (Peters e Waterman, 1982; Pollitt, 1990; Osborne e Gaebler, 1992; Lane, 1995; Frederickson, 1996; Carvalho e outros, 2006), ou de uma maior aplicação do conceito de governance (Hood e Lodge, 2004; Pagaza, 2000), e independentemente das tendências políticas dos governos que conduzem estas reformas, existe um aspecto que se manteve nuclear na ligação entre o poder político e as elites administrativas: o da confiança. Continua porém a tratar-se de um conceito dúbio, uma vez que ao referirmos a confiança podemos estar a referir-nos a uma confiança política, mais permeável aos clientelismos e aos jogos de influências que, de acordo com Mozzicafreddo e Gomes (2001), limitam a eficácia do controlo, da fiscalização e da observância das normas, ou ao contrário, a uma confiança com base nas competências e desempenhos (Jensen e Knudsen, 1999).

O progressivo enfraquecimento dos partidos políticos de massas, com uma forte componente de ideologia, e a promoção de partidos de implantação mais transversal e menos direccionada na sociedade civil foi também um forte coadjuvante para uma recessão da lógica político-partidária na escolha dos dirigentes da administração pública. Apesar disto, continua-se a eleger a confiança como elemento chave na escolha dos dirigentes pelo poder político.

Resta pois esclarecer se a aferição das competências e capacidades para a ocupação de lugares de topo na gestão pública é efectuada de forma objectiva e se os critérios de confiança estabelecidos pelo poder político são, ou não, reforçados ou modificados consoante os resultados alcançados (ou falhados) pelos gestores em quem depositaram a sua confiança.

O new public management e o pessoal dirigente A influência gradual da escola managerial na administração pública materializou-se, durante os anos 80, sobretudo num conjunto de ideias contidas na sua essência em três princípios fundamentais para a administração pública: a descentralização foi apontada como elemento de particular relevo enquanto motor da capacidade criativa e de inovação organizacional, e indiciou como imperativa a redução dos níveis hierárquicos (achatamento obrigatório dos tradicionais designs piramidais); como explica Rocha (2001: 68), na administração pública a descentralização é tanto mais preciosa uma vez que os dirigentes têm estado até aqui impedidos de gerir projectos e pessoas, limitando-se a administrarem processos e sistemas; a desregularão que vem contribuir para que os dirigentes possam intervir directamente na gestão dos recursos financeiros, humanos e materiais, na tentativa de alcançarem os objectivos organizacionais; a delegação das competências como forma de, definidos os objectivos estratégicos, o poder político se poder afastar das preocupações da gestão corrente e da implementação das políticas.

O managerialismo mais não fez do que reiterar a ideia segundo a qual as organizações do sector público e do sector privado deveriam ser geridas por princípios similares na sua essência, apesar de terem especificidades que as distinguem, em particular no que respeita aos seus objectivos últimos: ao contrário das organizações privadas, as organizações públicas procuram satisfazer interesses socialmente globais e são (em maior ou menor grau, mas incontornavelmente) controladas pelo poder político.

Existem algumas explicações plausíveis para o facto de as décadas de 80 e de 90 se terem revelado como os anos de ouro para as reformas administrativas nos países ocidentais. Antes de mais, foi determinante para o início deste processo a recessão económica provocada pela crise do petróleo nos anos 70 e que resultou em défices consideráveis para os orçamentos públicos. Segundo Kickert (1999) foram três as formas escolhidas pelos governos para lidarem com esta realidade. Em primeiro lugar as despesas públicas deveriam ser limitadas e as tarefas públicas reduzidas. Esta foi a política adoptada amplamente pelos Estados Unidos (de Ronald Reagan) e pela Grã-bretanha (de Thatcher). Outra forma de fazer face ao défice passava por um aumento substancial dos impostos.

No entanto, esta hipótese corria certos riscos de não vingar, designadamente devido ao elevado peso destes em muitos países ocidentais. A terceira via para lidar com o défice passava pela tentativa de se melhorar a performance das tarefas executadas pela administração pública com menos dinheiro. Esta via punha toda a sua ênfase na produtividade e na eficiência pública.

Numa análise sobre as reformas da gestão pública a meio da década de 90 do século passado, a OCDE (1995) concluía que, independentemente do tamanho, da natureza ou da abordagem de reforma utilizada pelos diferentes Estados, todos eles teriam seguido um novo paradigma de gestão pública orientado para uma cultura baseada no desempenho e num sector público menos centralizado. Segundo a OCDE, este novo paradigma poderia ser caracterizado por um redimensionamento da importância atribuída ao desempenho, ao controlo e à responsabilização, um desenvolvimento da competição, uma optimização do aproveitamento das tecnologias de informação, assim como uma aposta na qualidade e uma desagregação das tradicionais unidades de trabalho (Carvalho e outros, 2006). O mesmo seria falar do NPM.

Apesar de poder ser teoricamente incluído na escola managerial, o NPM demarcou- se do managerialismo público típico, uma vez que este se assemelhava a uma especialidade do general management approach, ou seja, de uma abordagem generalista da gestão. Ao contrário, o NPM apresentou uma maior nitidez nas suas características. Algumas das mais importantes consubstanciaram-se na profissionalização da gestão, na criação de medidas de desempenho (Carvalho e outros, 2006; Schedler, 2004), no privilegiar da importância dos resultados e da redução dos custos, na competição interagências e na segmentação das unidades administrativas consideradas exageradamente grandes (Hood, 1991). Para que o cumprimento destas premissas pudesse ser factual havia necessidade de gestores públicos com maior liberdade de acção mas, igualmente, mais susceptíveis de serem avaliados pelo poder político, não com base na confiança política mas antes nas competências detidas ou adquiridas e, sobretudo, nos resultados profissionais alcançados.

A selecção do pessoal dirigente em Portugal No capítulo do estudo dos modelos de recrutamento e avaliação dos dirigentes na administração pública, importa não descurar os aspectos históricos e culturais enquanto parte do aparelho simbólico de enquadramento da mudança nas máquinas administrativas e consequentemente nos seus protagonistas. A questão da mudança nas organizações públicas nas últimas décadas prendeu-se essencialmente com o decréscimo de confiança nos tradicionais modelos de organização burocrática (Rocha, 2001; Madureira e Rodrigues, 2006). Este foi o cerne das principais modificações operadas (independentemente do formato e do sentido das mesmas).

Em países como a Grécia ou a Itália, a desconfiança na tradição pública burocrática levou a um afastamento entre as elites políticas e as elites administrativas. No Reino Unido e na Dinamarca, assistiu-se antes à criação de novas estruturas de gestão (agências) e ao incremento da gestão política das estruturas burocráticas/públicas (McSweeney, 2006). Em Espanha, assistiu-se à politização das elites administrativas e, finalmente, em países como a Alemanha e a Suécia, a desconfiança nos modelos administrativos burocráticos serviu para, de forma subtil, diminuir a progressão dos burocratas de carreira e a sua ascensão a cargos de gestão de topo (Page e Wright, 1999). Em Portugal, em 1979, e de acordo com o disposto no Decreto-Lei n.º 191-F/79 de 26 de Junho, é que o pessoal dirigente da administração pública portuguesa deixou de ser provido vitaliciamente, para passar a ser nomeado em regime de comissão de serviço (Teixeira da Cruz, 1992). Do definitivo passou-se para um estado transitório na ocupação de cargos dirigentes, ainda que renovável por períodos de três anos. Para tal, iam contribuindo a dinâmica evolutiva do tecido político e socioeconómico. Contudo, e apesar das influências sofridas do exterior, no essencial o quadro jurídico da burocracia permaneceu quase idêntico àquele que vigorou durante os quase 50 anos de ditadura (Rocha, 2001).

Entre 1974 e 1987 o poder político continuava a mostrar-se débil e confuso em Portugal. Os governos minoritários sucediam-se. com a conquista da maioria absoluta em 1987, pelo Partido Social Democrata (PSD), renasceu a possibilidade de se promover um controlo mais acentuado do aparelho administrativo pelo poder político. Apesar de, como o demonstrou Amorim (1997), o número de efectivos nunca ter deixado de crescer (de 384.448 em 1986 para 478.181 em 1996, no que toca à administração central), a partir de 1987 a reforma da administração pública contribuiu fortemente para uma perda de protagonismo por parte dos funcionários públicos portugueses, com protagonismo crescente dos políticos (Madureira, 2004). Nesse ano, na sequência da maioria absoluta obtida por um partido político nas eleições legislativas, o poder político passou a centralizar o poder administrativo na mão de políticos com o fim de evitar eventuais confrontos de opiniões ou discordâncias entre a alta esfera da função pública e o governo. Esta concentração de poderes desceu mesmo aos níveis intermédios, passando o recrutamento e selecção de directores de serviços e de chefes de divisão a depender do poder político (Rocha, 1998).[1] Como lembra Rocha (1998), o Decreto-Lei n.º 323/89 de 26 de Setembro cria um estatuto especial para o pessoal dirigente, permitindo aos responsáveis políticos recrutar directores e subdirectores-gerais fora dos quadros da administração pública. A institucionalização deste novo tipo de recrutamento de dirigentes na administração pública portuguesa pressupunha, formalmente, a existência de dirigentes competentes, dinâmicos, leais e capazes de decidir. Todavia, na prática não foi criado qualquer instrumento que aferisse, de forma independente, estes requisitos e estas capacidades, nem mesmo com as alterações introduzidas em 2004 com a revisão do estatuto do pessoal dirigente (Lei n.º 2/ 2004 de 15 de Janeiro).

A partir de 1995, com o Partido Socialista a sair vencedor das eleições legislativas, a reforma administrativa baseada nos princípios da produtividade e da qualidade manteve-se, tendo-se contudo diluído o confronto entre o poder político e a administração pública, nomeadamente através de uma despolitização dos quadros dirigentes da administração. Com efeito, a Lei n.º 13/97 de 23 de Maio restringe a liberdade de escolha aos directores e subdirectores-gerais, sendo os outros dirigentes recrutados por concurso público.

Ainda assim, de acordo com Rocha (1998) pode-se dizer que na viragem do século, de um Estado administrativo Portugal evoluiu para um sistema político onde a administração perdeu muito poder. De facto, como refere Lobo (2000), apesar de ser extremamente difícil calcular o número de nomeações partidárias dentro do aparelho burocrático, estas traduzem-se numa das mais importantes formas de os partidos portugueses aumentarem o seu domínio sobre o sistema político.

Não obstante, durante os últimos 15 anos subsistiu a discussão sobre o recrutamento dos dirigentes de topo e intermédios da administração pública.

Sucessivas leis foram modificando as formas de recrutamento dos dirigentes. A Lei n.º 2/2004 de 15 de Janeiro, que aprovou o Estatuto do Pessoal Dirigente dos Serviços e Organismos da Administração Central, Regional e Local do Estado, na secção II do capítulo II, veio prever as regras para o recrutamento e selecção dos cargos de direcção intermédia. Neste enquadramento, o artigo 20.º estabelecia como requisitos para o exercício de funções dirigentes a licenciatura (prevendo algumas excepções) e um período mínimo de experiência profissional, bem como o aproveitamento num curso de formação para Alta Direcção em Administração Pública. De acordo com o artigo 21.º, a selecção dos dirigentes intermédios passou a não obedecer a um procedimento concursal.

Tavares (2004) defende que este novo estatuto dirigente serviu essencialmente para responder a défices da administração portuguesa que se prendem com uma fraca cultura de liderança, uma reduzida autonomia, uma ausência de formação específica e uma manutenção de métodos de selecção burocráticos e lentos.

Promulgada e publicada durante o ano civil de 2005, a Lei n.º 51/2005 de 30 de Agosto, que surge para estabelecer regras para as nomeações dos altos cargos dirigentes da administração pública, vem reintroduzir a situação existente antes de 2004 (revogando a Lei n.º 2/2004 de 15 de Janeiro) no que concerne ao recrutamento dos dirigentes intermédios. Com efeito, no n.º 1 do seu artigo 20.º vem prever que os titulares dos cargos de direcção intermédia sejam recrutados por procedimento concursal. No mesmo texto legal, o artigo 21.º prevê o estabelecimento de um júri que deverá ser constituído pelo dirigente máximo do organismo, outro dirigente de nível e grau superior ou igual ao do cargo a prover e um indivíduo de reconhecida competência na área funcional respectiva, designado por estabelecimento de ensino de nível superior ou por associação pública representativa de profissão correspondente. A decisão da escolha do candidato deve apenas ser sustentada na proposta de nomeação, onde o júri deve indicar as razões da escolha. Desta forma, apenas os dirigentes de topo passam a ser nomeados directamente pelo governo.

Em suma, as alterações foram constantes e cíclicas quando falamos da politização dos níveis de direcção, em particular dos níveis de direcção intermédia. Tal realidade é evidenciada, no plano legislativo, se analisarmos a evolução do quadro legal que define o estatuto do pessoal dirigente e que abaixo se procura sintetizar, enquanto demonstração empírica dessa evolução (quadro 3).

Na prática, tem-se verificado que as novas estruturas continuam a ser lideradas por dirigentes seleccionados pelo poder político, com base em critérios predominantemente de confiança, assentes no modelo político que caracteriza a configuração político-administrativa representativa do modelo tradicional europeu.

Contrariamente às medidas introduzidas em 2005, que tendiam à profissionalização de alguns cargos de direcção superior e que se pretendiam indiferentes aos ciclos eleitorais, os dirigentes públicos de topo continuaram a ser seleccionados a partir de elites fechadas e próximas do poder político.

Apesar de um contexto e de uma lei que institui a diminuição do peso das nomeações políticas na selecção dos dirigentes públicos, por via da profissionalização dalguns cargos de direcção,[2] desconhecem-se, até à data, resultados quantificados que permitam aferir essa diminuição.

Não existe um controlo do mérito e da adequação do perfil do dirigente seleccionado para um determinado cargo, a não ser aquele que é realizado, discricionariamente, pelo responsável da tutela que é cumulativamente recrutador. Os requisitos de selecção, ao serem definidos pela tutela do organismo, estão envoltos numa elevada discricionariedade, o que leva a escolhas, também elas, discricionárias. Neste contexto, em que o critério político se impõe na administração, não admira que um estudo recente (Carneiro, 2007) revele que a primeira medida mais apontada como relevante para mudar a administração pública, por dirigentes e cidadãos, seja a sua despolitização (45% dos dirigentes públicos entrevistados referem em primeiro lugar esta medida, assim como 54% dos cidadãos inquiridos).[3] Perante este cenário, e perante a reconhecida importância dos dirigentes públicos (nomeadamente os de topo), importa que as suas carreiras sejam geridas de forma estratégica, minimizando os efeitos negativos da arbitrariedade e discricionariedade da selecção ao mínimo. É neste quadro que se pode discutir a profissionalização e institucionalização das funções de direcção e questionar a passagem de uma burocracia mecanicista, subordinada a um excessivo poder de direcção do governo, que por vezes alastra a várias camadas intermédias da administração, a uma burocracia profissional, assente mais em critérios de competência e mérito técnico, salvaguardadas, necessariamente, as questões de legitimidade democrática referidas por Crenson (2009), por via da instituição de mecanismos de controlo como os contratos de gestão e a inerente responsabilização e concessão de prémios ou sanções. ainda que clarificar se a confiança pessoal, reclamada pelos políticos para a selecção dos dirigentes de topo das administrações públicas, não é mais que um modo de legitimação de uma subjectividade funcional quase total na escolha dos gestores públicos.

Quadro 3 A evolução do estatuto do pessoal dirigente: evidências empíricas no plano legislativo

Revisitando Mintzberg. Que configuração estrutural para a administração pública em Portugal: burocracia mecanicista ou burocracia profissional? Se retomarmos como base de referência os ensinamentos de Mintzberg (1982) e a classificação de configurações estruturais por ele proposta, poderemos facilmente perceber que a administração pública portuguesa continua a ter, no início do século XXI e considerando a análise realizada nos pontos anteriores, características de uma burocracia mecanicista e evidências análogas à metáfora mecanicista de Bilhim (2006). Com efeito, a percentagem de postos de trabalho em que se desempenham predominantemente tarefas rotineiras e repetitivas é ainda extremamente elevada, a hiperespecialização e a falta de um know-how generalista são evidentes na maior parte dos serviços, os procedimentos de trabalho altamente formalizados, as regras e regulamentos fazem sentir um peso considerável no quotidiano laboral dos funcionários, a comunicação institucional é altamente formalizada e os funcionários pertencentes aos níveis operacionais da base da pirâmide hierárquica não têm qualquer participação nas estratégias ou decisões dos dirigentes intermédios (e muito menos do topo estratégico). A tomada de decisão mais não faz do que seguir, com maior ou menor influência de interferências provenientes do exterior informal, um caminho de cumprimento estrito da formalização, conforme características das estruturas mecanicistas (Bilhim, 2006). Como explica Rocha (2001: 119), em Portugal, a força da cultura organizacional burocrática (mecanicista) tende a absorver todas as mudanças, ou seja, a bloqueá-las, congelando particularmente aquelas que se revistam de um carácter estrutural.

Num contexto internacional em que a velocidade da mudança é exponencial, a administração pública tem, também ela, que saber munir-se de instrumentos de resposta aos novos desafios trazidos pelas permanentes expectativas e exigências de cidadãos mais instruídos, informados e exigentes (Crenson, 2009; Speier, 2009). Para tal, como era indicado por um relatório da OCDE (1995), quase quinze anos atrás, a administração tem que apostar claramente nas competências, tanto técnicas como comportamentais, de dirigentes e funcionários, na quebra das cadeias de comando excessivamente centralizadas, na simplificação de regras e procedimentos, assim como na flexibilização atitudinal e comportamental de todos os agentes administrativos. Deste ponto de vista, e seguindo a classificação de Mintzberg (1982), então esta administração terá que se transformar obrigatoriamente numa burocracia profissional, deixando para trás as características de uma era marcada essencialmente pela mentalidade e pelo formato do mecanicismo. A burocracia profissional representa efectivamente uma outra configuração estrutural subordinada à diversidade de um leque extenso de novas características.

Na realidade, uma burocracia profissional supõe a existência de um forte investimento no que concerne à socialização, à formação e ao desenvolvimento de competências (tanto técnicas como comportamentais): cada funcionário terá que (até um certo nível) saber avaliar e controlar o seu próprio trabalho. Assim, cada funcionário poderá ser mais autónomo, libertando chefias e dirigentes para um trabalho mais livre, onde possam ser levadas a cabo as tarefas de direcção e de gestão de uma forma mais aprofundada.

A burocracia profissional não deverá procurar abandonar a sua configuração burocrática (a coordenação feita a partir do topo hierárquico, político, e os principais regulamentos mantêm-se), mas, ao contrário da burocracia mecanicista, nesta configuração estrutural a autoridade passa a ter por base as competências profissionais (saber, saber fazer e saber ser) que devem estar espalhadas pela organização e não ser apenas apanágio dos postos de trabalho chave, como os chefes, os dirigentes intermédios e os dirigentes de topo.

Num contexto deste tipo, todos deverão ser avaliados com base, por um lado, em competências (técnicas e comportamentais) e, por outro, em desempenhos, tanto quanto seja possível, quantificados (Carvalho e outros, 2006). Os dirigentes não deverão isentar-se a este crivo de avaliação e, tanto quanto for possível, o regime previsto no novo sistema de avaliação deverá ter consequências práticas em termos de gestão das carreiras de direcção.

Assim, e mesmo tomando em consideração que reputados autores como Page e Wright (1999) referem que, qualquer que seja a configuração relacional entre os governos e as suas administrações, a questão da confiança (ou, se quisermos ser mais rigorosos, da confiança política), a que chamam trust, é absolutamente fundamental para que possa existir uma comunhão de ideias e de convicções e para que, consequentemente, possa existir uma execução harmoniosa de políticas públicas (Levy, 2009), tal não deverá significar que não devam existir critérios rigorosos para a selecção e para a avaliação profissional (e não apenas política) dos dirigentes de topo da administração, assim como das suas competências e performances.

A alteração do paradigma de selecção de dirigentes deverá estar em linha com a alteração dos paradigmas de administração. Tal não deverá, em caso algum, significar perda de legitimidade democrática, pois a tendencial profissionalização da alta direcção deverá ser controlada e condicionada por mecanismos como prémios e penalizações, atribuídos pelo poder político e com impacto na carreira futura do dirigente, assemelhando-se assim a um modelo híbrido de tipo ideal, tal como o sugerido por Aberbach e Rockman (1988).

Conclusão A introdução da Lei n.º 51/2005 de 30 de Agosto, que visa estabelecer regras para as nomeações dos altos cargos dirigentes da administração pública, e mais recentemente a criação da Lei n.º 66-B/2007 de 28 de Dezembro, criaram as condições legais necessárias para que os dirigentes sejam avaliados como altos profissionais da gestão pública, com objectivos quantificados a cumprir e contas a prestar, mais do que ao poder político, à sociedade. Ainda assim, uma ainda inexistente responsabilização dos dirigentes públicos pelos desempenhos e resultados obtidos, bem como a fragilidade desse julgamento, impede que se afirme que a administração pública portuguesa esteja a mudar de uma configuração burocrática mecanicista para uma configuração híbrida em que a profissionalização da gestão se aproxime do modelo de híbrido de tipo ideal conceptualizado por Aberbach e Rockman (1988).

De acordo com Almeida (2006), ao longo dos últimos anos ficou demonstrado pelas escolhas políticas para vários organismos que os sinais de pressão externa não se afiguraram suficientemente ancorados para se poder ler uma mudança estrutural no tocante à despolitização do sistema. Ao contrário, continuamos a assistir, no que à realidade portuguesa toca, ao spoil system como regra de preenchimento dos lugares dirigentes de topo na administração pública portuguesa. Importa ainda acentuar a ideia de que, no que concerne às chefias intermédias, estas vão sendo ciclicamente esvaziadas de poder e de conteúdo funcional, uma vez que com os diferentes ciclos eleitorais mudam dirigentes de topo e com eles as orientações de gestão, não a nível estratégico mas, também, operacional.

Apesar de algumas modificações trazidas pela mais recente legislação, no que diz respeito aos dirigentes de topo, a nomeação pela confiança (política ou pessoal) continua a afastar a configuração político-administrativa portuguesa do modelo híbrido sugerido por Aberbach e Rockman (1988).

Mesmo que, de acordo com Page e Wright (1999), o factor confiança esteja na origem da escolha dos dirigentes em todos os países que compõe o western model em geral e, em particular e com maior profundidade, no modelo tradicional europeu, tal não deve significar que o conceito de confiança, não possa vir a ser interpretado num sentido mais lato. Assim, no contexto da institucionalização das funções de direcção e, consequentemente, com a adopção de características do modelo profissional, o conceito deve deixar de ser encarado como determinantemente político e passar antes a ser encarado como um dever de lealdade (do dirigente seleccionado) para com o Estado, mais até que para com o poder (ou partido) político eleito. No fundo, o dirigente seleccionado deve cumprir um dever de lealdade na formulação e implementação das políticas públicas (Schuetz, 2009), em respeito pelos princípios de uma boa governação, devidamente controlado por mecanismos de avaliação que considerem a gestão por objectivos e promovam uma efectiva gestão das carreiras.


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