Gangues de rua em Luanda: De passatempo a delinquência
Introdução
O ser humano pode desviar-se das normas impostas pela sociedade, seja por
desconhecimento dessas normas, seja por opção ou coerção. Há comportamento
desviante quando se regista o não cumprimento das normas impostas ou aceites
pela sociedade.
Quase toda a gente transgride a normas. Mesmo aqueles que estão convencidos de
terem um comportamento absolutamente de acordo com as normas sociais, há
momentos em que desrespeitam normas (mesmo legais) — quanto mais não seja, por
ser prática comum desrespeitá-las ou por se considerar socialmente que não
deveria haver lugar à sua imposição.
Para além disso, é preciso considerar o meio em que determinada norma vigora
(cf. Becker, 1973; Gerhardt, 1989; Neto, 2004). O que se passa é que as regras
sociais podem diferir de sociedade para sociedade e em função de divisões com
base na estratificação social e na estrutura de poder. Há normas
características da classe média, por exemplo, que diferem dos códigos que
vigoram em classes sociais mais baixas.
Associado ao conceito de desvio está o conceito de anomia, que é um estado
patológico, visto pressupor a ausência de conformidade com as normas vigentes
numa sociedade (Durkheim, 1984a II: 145-167), sendo um dos factores que
originam o suicídio (Durkheim, 2001). A anomia é gerada pela pressão que os
valores culturais exercem sobre a estrutura social, fazendo com que os
indivíduos deixem de actuar de acordo com as normas sociais. Robert Merton
(1938 e 1970) refere a existência de cinco tipos de adaptação individual à
forma como a estrutura cultural pressiona a estrutura social, que são:
conformismo, que é o estado de conformidade com os padrões culturais, com
utilização simultânea dos mecanismos socialmente considerados legítimos (trata-
se do tipo mais difundido e do mais comum, em sociedades estáveis);
inovação, onde apesar de haver aceitação das metas culturais, não existe
absorção das normas institucionais para alcance dessas metas, recorrendo-se a
procedimentos ilegítimos;
ritualismo, que ocorre quando existe abandono ou redução das metas culturais e
se traçam metas individuais, mantendo-se entretanto o cumprimento das normas
institucionais;
retraimento, que consiste no abandono simultâneo de metas e normas (diz
respeito aos “deserdados sociais”, sendo o tipo menos comum de adaptação);
rebelião, que pressupõe a rejeição das metas dominantes e dos padrões vigentes
e a sua substituição por metas e padrões alternativos.
O primeiro tipo de adaptação é aquele que é socialmente desejado, por estar de
acordo com os padrões sociais. Os demais são anómicos, por não estarem em
conformidade com tais padrões.
Pode-se acrescentar que os primeiros quatro tipos de adaptação têm a ver com a
acomodação no quadro da estrutura social vigente, enquanto o último (a
rebelião) pressupõe a mudança dessa estrutura social, com novos objectivos,
novos valores e novos comportamentos.
Comportamento delinquente
Fala-se em delinquência quando estamos diante de comportamentos ilícitos, que
não estão de acordo com os códigos de conduta estabelecidos pelas autoridades
de determinado espaço geográfico e com os preceitos morais socialmente
estabelecidos. Delinquente é aquele indivíduo que comete delitos ou infracções
à lei (crimes), infringindo simultaneamente códigos de conduta moral.
A delinquência juvenil tem a ver com comportamentos ilícitos praticados por
adolescentes ou jovens (Mulligan, 1960; Griffin e Griffin, 1978). A importância
da abordagem da delinquência juvenil tem fundamentalmente a ver com o facto de
boa parte dos delinquentes em idade adulta ter uma história criminal que
começou na infância ou na adolescência ou, ainda, com a necessidade social de
compreensão da dimensão deste fenómeno para prevenção do aumento do índice de
criminalidade.
Quanto a causas de delinquência, referem-se normalmente factores de natureza
psicológica, económica e social, havendo quem mencione também factores de
natureza biológica.
As teorias do desvio explicam a forma como ocorre e se difunde o comportamento
delinquente. As abordagens biológicas e psicológicas identificam
características físicas ou de personalidade que conduzem à predisposição para a
prática de crimes (cf. Sheldon, 1949; Lykken, 1995 e 1997, Born, 2005).
No que diz respeito às teorias sociológicas do desvio, mencionamos em primeiro
lugar aquela que refere a anomia como causa do crime (Merton, 1970), já
referida acima. A delinquência é um estado anómico que pode pressupor a
aceitação das metas culturais de elevado sucesso pecuniário e a adopção de
procedimentos ilegítimos para alcance desse sucesso. Neste caso, enquadra-se no
tipo de adaptação que Merton designa por “inovação”. Mas há casos pouco comuns
em que o comportamento delinquente se enquadra também no tipo de adaptação que
envolve simultaneamente a rejeição das metas culturais e a sua substituição por
metas alternativas (a “rebelião”). Opta-se pela delinquência com o fim de
garantia de sobrevivência ou para enriquecimento, ou sucede simplesmente que a
delinquência é produto da falta de oportunidades gerada por famílias ou por
comunidades desviantes, à qual se associa o insucesso escolar (Palmore e
Hammond, 1964; cf. Cloward e Ohlin, 1960).
Uma outra teoria que aqui nos interessa considerar é a do “desvio aprendido”,
que relaciona o crime com aquilo a que Sutherland (1949) designa por
“associação diferencial”. Um indivíduo torna-se delinquente por associação com
outros que praticam a delinquência. Esta teoria é importante no caso de grupos
organizados de delinquentes, como são os gangues juvenis da cidade de Luanda.
Já a “teoria da rotulagem” estabelece o vínculo entre o desvio e o rótulo que
se atribui ao desviante. Havendo clara diferença entre o normal e o patológico
(Durkheim, 1984b), o desvio é aqui entendido como um processo que resulta da
interacção entre desviantes e não desviantes. Da mesma forma como no caso do
doente é o médico quem lhe atribui o rótulo (Gerhardt, 1989), no caso do
delinquente o rótulo é atribuído por quem impõe as definições de moralidade (as
camadas superiores da hierarquia social ou as forças da ordem). Uma vez
rotulado, o delinquente é socialmente levado a assumir esse rótulo e,
consequentemente, a reincidir na prática desviante (cf. Kelly, 1978).
Contexto em que ocorre a delinquência
Nos últimos anos, tem vindo a espalhar-se por Luanda a organização de grupos de
jovens que praticam delitos de toda a sorte. Antes de fazermos referência à
organização e actuação desses grupos, vejamos o contexto em que ocorre a
proliferação desses gangues pelos diferentes bairros da cidade de Luanda
(urbanos e suburbanos).
Podem enumerar-se as seguintes causas estruturais que estão na origem da
proliferação de tais grupos associados à delinquência juvenil:
o o conflito armado, que perdurou desde a proclamação da independência de
Angola (1975) até 2002;
o a forma como são executadas as políticas públicas, que promove a
informalidade e que retira da escola um elevado contingente de adolescentes e
remete para o desemprego e o subemprego um elevado número de pessoas;
o o elevado índice de pobreza urbana em Angola;
o a forma como a estrutura social é pressionada pelas políticas económicas do
Estado, com o que se associa a quebra de valores morais (mais acentuada nos
grandes centros urbanos).
O primeiro aspecto a referir tem a ver com o conflito armado, que durou cerca
de 27 anos, desde a altura da proclamação da independência de Angola. O
conflito opôs inicialmente os movimentos de libertação e, mais tarde, o Estado
angolano e o principal partido político da oposição, havendo a registar
envolvimento estrangeiro. Tratou-se de uma guerra de destruição total, com o
objectivo de destruir e mutilar.[1]
A guerra agiu de forma destrutiva, não apenas na economia (através da
destruição de infra-estruturas, da destruição de fábricas e da minagem de
campos agrícolas), mas também na estrutura demográfica de Angola. Devido à
guerra, cerca de um terço dos habitantes de Angola foram forçados a migrar,
fixando-se em áreas urbanas. Isso ocasionou a explosão demográfica nas cidades,
que não estavam preparadas para receber tanta gente em tão pouco tempo. [2] Em
consequência disso, registou-se o crescimento desordenado dos subúrbios, as
cidades foram-se ruralizando e a informalidade foi ganhando cada vez mais
espaço e maior importância para a sobrevivência de um número cada vez maior de
famílias. [3]
Não nos podemos esquecer ainda que os 27 anos de guerra fizeram com que uma
parte considerável da população (fundamentalmente jovens, mas também crianças;
HRW, 2003; Ventura, 2003) não tenha aprendido outra coisa senão a manejar
armas, destruir e matar. Trata-se de um factor importante a considerar na
análise acerca das causas do aumento do índice de delinquência, visto que, com
o final da guerra, boa parte dos antigos soldados (sem qualquer outra
profissão) pode facilmente enveredar pela marginalidade.
Em situação de guerra, foi débil o investimento no sector social. O índice de
desenvolvimento humano acusa valores bastante baixos em Angola (0,446 em 2005,
o que colocava Angola em 162.º lugar numa lista de 177 do mundo (PNUD, 2007:
231-234), quer devido à baixa esperança de vida dos angolanos (41,7 anos), quer
devido a uma reduzida taxa bruta de escolarização (25,6%), quer ainda devido ao
baixo acesso à assistência sanitária (das mais elevadas taxas de mortalidade
infantil e de crianças em todo o mundo) (cf. Carvalho, 2004: 75).
A taxa de desemprego urbano atinge o valor de 45%, estimando-se que acima de
70% dos jovens com idade abaixo dos 20 anos estejam desempregados. A maioria
dos demais possui empregos precários. Por outro lado, mais de metade da
população sobrevive graças ao recurso a actividades informais (Sousa, 1998).
Em consequência da guerra e da forma como se executam as políticas económicas,
estimava-se há alguns anos que dois terços dos angolanos viviam em situação de
pobreza (Ceita, 2001). A situação é bastante dramática, se considerarmos cinco
factos relacionados com a pobreza urbana em Angola, nomeadamente (cf. Carvalho,
2004):
o a incidência da pobreza vinha aumentando, ano após ano;
o nos últimos dez anos, vem-se registando o empobrecimento da grande maioria
da população, incluindo a classe média;
o de 1995 a 2001, duplicou a incidência da pobreza extrema em meio urbano
angolano;
o há uma faixa considerável da população que permanece em situação de pobreza
durante um longo período de tempo;
o a pobreza associa-se normalmente a outras dimensões de exclusão social, o
que faz com que seja mais difícil a ascensão a níveis credíveis de inclusão
social.
A última causa estrutural referida tem a ver com a forma como as políticas
económicas do Estado pressionam a estrutura social, ocasionando dinâmicas de
fechamento social que dificultam a mobilidade social ascendente e provocam o
recurso a meios ilícitos de enriquecimento por parte de um número cada vez
maior de angolanos. A percepção subjectiva de corrupção generalizada e de
impunidade em relação aos crimes de colarinho branco ocasiona um cada vez maior
desrespeito pelos valores morais (cf. Carvalho, 2002: 141-151).[4]
Este tipo de comportamento enquadra-se naquilo que Chabal e Daloz (1999)
designam por “lógica da desordem”, onde cada um pretende aproveitar-se da
situação de falta de ordem, em benefício próprio. Um grupo reduzido de pessoas
beneficia de fundos do Estado, enquanto à maioria não resta senão lucrar de
forma menos camuflada. A delinquência está, pois, generalizada, não sendo por
isso de estranhar que proliferem grupos organizados de adolescentes e jovens
que se dedicam a pequenos roubos, com maior ou menor impunidade.
Como surgiram os gangues em Luanda
Sempre existiram grupos de rua compostos por adolescentes e jovens do sexo
masculino, na cidade de Luanda. Mas enquanto anteriormente esses grupos não
tinham estrutura própria nem regras de conduta rígidas, nem sequer se dedicavam
necessariamente a actividades marginais, na segunda metade da década de 1990
começam a emergir grupos com formato de gangue e fins diferentes dos
anteriores.
Anteriormente, o fim era fundamentalmente recreativo e de ocupação do tempo de
lazer, em conversas de amigos e confrades. Juntavam-se jovens com diversas
afinidades, fundamentalmente residentes em áreas circunvizinhas, para trocar
experiências e pontos de vista sobre assuntos que diziam respeito à comunidade
ou a cada um deles, ou para se distraírem (jogando à bola ou jogando cartas,
por exemplo). Os grupos serviam também para troca de experiências amorosas e
sexuais. Uma das principais características desses grupos era o facto de o mais
comum ser cada um dos jovens ter uma ocupação (estudo ou trabalho, ou ainda
ambas as coisas), juntando-se com os seus pares ao cair da tarde e aos fins-de-
semana.
Os grupos citadinos de jovens que acabámos de referir nada têm a ver com
comportamento desviante, sendo mesmo salutar a acção destes grupos. Havia já
entretanto pequenos grupos de jovens delinquentes, que nada tinham a ver com
estes, cujas características acabámos de descrever. Nessa altura, os grupos de
delinquentes encontravam-se em locais escondidos ou de difícil acesso, para
planearem as suas acções criminosas — e não à vista de toda a gente, como os
grupos de jovens que deram origem aos gangues.
A partir da segunda metade da década de 1990, a delinquência juvenil começa a
adquirir uma proporção mais acentuada. Os grupos de jovens começam a ganhar
estrutura própria, adquirem normas de conduta rígidas e começam a enveredar por
práticas não aceites socialmente, infringindo mesmo a lei. Envolvem-se em rixas
(mesmo sem qualquer motivo aparente) e promovem distúrbios, organizam
actividades que atentam contra o código de estrada (os exemplos mais comuns são
as corridas de carros e de motorizadas em plena via pública — primeiro durante
a madrugada e, depois, a qualquer hora do dia) e começam até a envolver-se em
actividades de natureza criminal, como sejam roubos na via pública, agressões
e, até, homicídios. Trata-se ainda, nesta fase, de grupos constituídos
maioritariamente por jovens que têm uma ocupação e se reúnem somente no final
do dia ou aos fins-de-semana. Mas são já “grupos compactos”, com cooperação e
interdependência entre os seus membros, começando também a emergir uma
liderança com exercício do poder pessoal. A reunião de jovens como forma de
passatempo começa então a ganhar proporção diferente, que vai mais tarde
desembocar no recurso à delinquência organizada, como ocupação e forma de
sobrevivência.
Os primeiros destes grupos com formato de gangue urbano reuniam jovens de
proveniência social diversa, sendo a sua maioria proveniente da classe média.
Rapidamente este género de organização alastrou para os subúrbios, passando a
constituir-se gangues de adolescentes e jovens com origem social diferente —
provenientes fundamentalmente das camadas sociais mais desfavorecidas, para
quem a opção pela delinquência passou a constituir uma forma de subsistência.
Neste caso, o jovem delinquente deixa de ter uma ocupação relacionada com a
formação académica ou a subsistência, para enveredar por práticas ilícitas e
amorais, para garantia de um melhor nível de vida. Os grupos compactos de
jovens evoluem assim para grupos organizados, com estrutura hierárquica e
papéis definidos e com regras que regulam a interacção entre os seus membros.
Características dos entrevistados
Para obtermos informação acerca da forma como estão organizados e como actuam
os gangues juvenis na cidade de Luanda, entrevistámos cinco jovens pertencentes
a grupos desses, que nos falaram a respeito da razão de ser da sua adesão a um
gangue, da forma como os gangues actuam e da maneira como os jovens desses
grupos encaram o seu futuro. Tratou-se de entrevistas aprofundadas, uma técnica
que se enquadra no método qualitativo de investigação sociológica.
Os entrevistados pertencem a grupos que actuam nos bairros Ingombota,
Maculusso, Maianga, Petrangol, São Paulo e Sambizanga, todos da cidade de
Luanda. Trata-se de jovens com idades compreendidas entre 20 e 24 anos. Um
deles provém da classe média, enquanto os demais são oriundos de famílias
pobres. Em termos de instrução académica, estudaram até à 6.ª, 8.ª ou 9.ª
classe. Nenhum deles estudava no momento da entrevista, dedicando-se somente à
actividade do respectivo gangue.
As entrevistas decorreram no período entre 5 e 12 de Agosto de 2005.
O recrutamento dos entrevistados esteve a cargo de um assistente do autor. Os
jovens acederam a conceder as entrevistas em espaço aberto, com a condição de
não serem filmados. As entrevistas decorreram no pátio da Faculdade de Letras e
Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto. [5]
Actuação dos gangues de Luanda
Em 2005, os gangues de Luanda eram compostos por um número que variava entre 40
e 70 membros, havendo ainda a assinalar o facto de alguns deles integrarem
também crianças que, não sendo realmente membros do grupo, actuam como
auxiliares deste. [6]
Os membros dos gangues têm idades compreendidas entre 14 e 35 anos, havendo
também crianças com idades entre 7 e 13 anos. Cada grupo possui uma área de
actuação preestabelecida, não se tolerando qualquer invasão por parte de grupos
de áreas vizinhas. [7]
Há grupos organizados que se formaram a partir dos anteriores grupos compactos
de jovens, como é o caso mencionado por um dos entrevistados:
Aquele grupo criou por causa da dança. Então, dentro da dança, víamos que pra
dançar rápido é preciso uma inspiração, pra dançar rápido é preciso uma
inspiração… e naquela, começamos a criar actividades disso — tomar Diazepan,
fumar um pouco… [21 anos, 6.ª classe, residente na Petrangol]
Cada grupo tem um líder, cuja voz de comando deve ser respeitada. O líder é a
pessoa que exerce simultaneamente o poder posicional e o poder pessoal, ou
seja, é quem se ocupa da distribuição de tarefas, de recompensas e de punições,
e quem detém a influência resultante das características pessoais (onde se
incluem a informação, a competência, a força e a capacidade para gestão de
conflitos) (cf. French e Raven, 1959). Ao líder compete decidir a forma de
actuação dia após dia, agindo simultaneamente como agente disciplinador e de
manutenção da coesão do grupo. O líder é normalmente um dos membros mais
antigos ou o mais velho, o mais perspicaz e o mais forte. Trata-se da pessoa
que dispõe de maior quantidade de informação, que lhe permite o controlo da
actividade do grupo. Mas é também aquele que mais influência deve ter junto da
comunidade, onde se incluem as forças da ordem e os grupos de pressão bem
localizados na estrutura social.
O gangue está dividido em grupos menores, que actuam em áreas mais pequenas,
dentro da grande área de actuação do grupo.
A entrada para um gangue faz-se por intermédio de um dos seus integrantes, por
amizade ou companheirismo ou a partir da constatação de que se trata de um
jovem corajoso, disposto à acção em benefício do grupo e sem se importar com as
consequências que daí advenham para si próprio. Normalmente, só o líder decide
pela entrada de alguém no grupo. Se a proposta for do líder ou de alguém muito
próximo de si, não se coloca a possibilidade de não aceitação do candidato. Mas
não havendo alguém que afiance da sua coragem, o candidato tem de demonstrar
ser klander ou vip: [8]
Os que não têm conhecimentos, não têm primo, não têm amigo lá, o chefe manda
assim fazer alguma coisa — aí na escola por exemplo, esperar alunos, no fim da
escola, chamar, receber sapatilhas, ou roupa, ou pasta, dinheiro… pra ver se
ele mesmo é pessoa que tem coragem de fazer isso. Se o chefe vê que ele é bom,
é aceite no grupo. [22 anos, 8.ª classe, residente no bairro São Paulo]
Antes de entrar nesse grupo, tamém já fui operativo. Mas o brother que me deu o
convite e que curtiu da minha tamém, viu que eu sou um klander. […] Klander é
um vivo, um gajo que quando tá mesmo numa acção não quer saber mesmo de nada —
ele, ou vai a vida, ou vai a morte. Chama-se um klander. [23 anos, 9.ª classe,
Maianga]
Ao entrar num gangue, o jovem faz uma espécie de juramento de fidelidade ao
grupo e de obediência ao líder. Se por alguma razão não venha a cumprir o
juramento, está sujeito a sevícias de toda a sorte, colocando inclusivamente em
risco a integridade dos seus familiares directos:
A mim foi o juramento que me falaram assim: “Dás népia um dos dias no grupo,
quem vai tar em jogo é a tua família. ” Porque nós temos muito dessa — é tipo
uma batucada. Os batuqueiro quando entra num grupo, tamém tem muito dessa, de
se ameaçar nas life de família… a tua life… se você fatigar o bolão [grupo],
fatigar um dos kamba, quem vai tar em jogo é o teu filho ou a tua mulher, ou a
tua mãe, ou o teu pai. É por isso que você ali tem que tar concentrado, pra
poder se equipar naquele próprio acto… tem de ter coração e estômago. [23 anos,
9.ª classe, Maianga]
O comum é o candidato ter também de demonstrar ser consumidor de drogas. As
drogas mais comuns são a liamba, o álcool, a libanga ou lira[9] e o Diazepan
(ingerido com Coca-Cola). Mas também se consomem drogas mais pesadas, como é o
caso da cocaína. Se nalguns casos é indispensável o consumo de determinadas
drogas, noutros pode dispensar-se uma droga específica, desde que se consuma
outra. Notámos haver grupos com alguma liberdade de opção pela droga a utilizar
ou pela frequência de utilização de drogas, em função do critério de cada um:
Eu, por exemplo, em todos os L… [nome do grupo] que tão lá no São Paulo, né?,
dizem assim: “Você é um dos bandido com boas característica”… dizem isso,
porque todos os meus amigo têm sinal na cara… todos os dias drogado… mas eu já
não sou dessa vida. [20 anos, 9.ª classe, Sambizanga]
Graças a Deus memo, os A… [nome do grupo] não tem gajos que fuma lira. […] É
assim: nos 100%, só 10… nos 100, 10% é que fumam. Os 90 são grandes caretas…
Não gostam. […] Eles pensam já… Eles só já gostam já de beber… Só beber muita
cerveja… São nossos puto, memo… [24 anos, 8.ª classe, São Paulo]
Pertencer a um gangue e não utilizar pelo menos uma droga causa estranheza e
pode conduzir à desconfiança em relação à solidariedade e coesão internas.
Sendo os gangues grupos de grande coesão interna, a utilização de drogas
funciona como meio de cooperação e de aproximação permanente entre os membros,
para além de ser uma força que actua no sentido de os membros permanecerem no
grupo (Festinger, 1950). Não demos conta de um só gangue onde não se utilizam
drogas, visto que estas são usadas para aumentar a coragem dos jovens
delinquentes:
De princípio, fumávamos… bebemos… por exemplo, na Coca-Cola temos tendência de
pôr comprimido, Diazepan, pra meter mais força, energia… aquela atitude, que
você tá ir num perigo, não pode ter medo. Assim, pedo uma garrafa, dá logo! [21
anos, 6.ª classe, Petrangol]
Comecei com os meus 17 anos. […] Foi um brother, que andava sempre com esses
bizness… é o brother que me induziu nesse erro… e agora ficou já um vício pra
mim… [23 anos, 9.ª classe, Maianga]
Normalmente, os entrevistados garantem que os gangues a que pertencem não
traficam drogas, apesar de os seus integrantes as consumirem. Mas essa negativa
pode ocorrer somente por desconhecimento de parte das actividades do gangue,
pois as actividades com maior rendimento ou que são acompanhadas por forças
policiais especiais (como é o caso do tráfico de drogas) são do domínio de
apenas alguns dos integrantes dos grandes grupos de delinquentes, melhor
situados na sua hierarquia. Demonstra-o a seguinte afirmação:
Por exemplo, os nossos mais velhos, os nossos kotas mesmo do bolão [do gangue],
por exemplo assim o nosso líder é que faz essas lifes… tamém faz esse movimento
[tráfico de drogas]. [23 anos, 9.ª classe, Maianga]
Hipoteticamente, qualquer adolescente ou jovem pode pertencer a um gangue,
desde que demonstre destreza física, agilidade, à-vontade com pelo menos uma
droga e espírito de cooperação. Uma vez aceite no grupo, a associação com
delinquentes provoca a rápida inserção do jovem no gangue, através do
comportamento desviante comum no grupo. Mas a entrada nos gangues está
facilitada no caso de se tratar de alguém que provém de um estrato bem
localizado na hierarquia social, por duas razões: primeiro, porque mais
facilmente dispõe de informação a respeito das elites que se pode revelar de
utilidade; segundo, porque se pode conseguir o apoio dos pais desse membro, em
caso de denúncia ou prisão. Isso pode verificar-se na seguinte declaração de um
dos integrantes de um gangue que actua num bairro suburbano de Luanda:
O nosso líder é assim, ele diz antes de você entrar, primeiro tens que saber…
ele vai te perguntar: “Como é que é, a tua família como é que é constituído?
Você tem alguém, tens alguém assim que tem dinheiro ou alguém assim superior,
da tua família?” Eh pá, se dizeres que tens, você aí é o mais querido… você ali
é o mais querido. Mas agora, caso que não tiveres, pá… ele diz: “Eh pá, aqui só
pode entrar no meu grupo, se tiver alguém que é superior da família dele. ”
Porque sabe, qualquer coisa ali, vai lhe tirar… [20 anos, 9.ª classe,
Sambizanga]
Por que razão se entra para um gangue? Os entrevistados mencionam como
principal causa a pobreza ou a ausência de empregos bem remunerados, mas num
dos casos a causa principal foi o estado de frustração, resultante de um
estágio avançado de superprotecção por parte dos pais.
Portanto, para além das causas estruturais descritas acima, outra importante
causa de delinquência tem a ver com a forma como se processa a educação de
crianças em meio urbano. Em primeiro lugar, regista-se o facto de os pais terem
cada vez menos tempo para dedicar à educação dos seus filhos, fundamentalmente
devido ao muito tempo que são forçados a dedicar à garantia de sobrevivência
(no caso das camadas sociais mais desfavorecidas) ou que preferem dedicar ao
enriquecimento ou ao lazer (no caso das camadas sociais mais favorecidas). Em
segundo lugar, vem a forma como se educam os filhos: uma forma rígida, que
promove o distanciamento entre as duas gerações (fundamentalmente no caso das
camadas sociais mais desfavorecidas) ou o excesso de atenção e de mimos, que
faz com que o adolescente se acostume a ver satisfeitos todos os seus desejos e
opte por rebelar-se contra a ordem social estabelecida (no caso das camadas
sociais mais favorecidas).
Um outro importante factor que determina a entrada num grupo de marginais é a
ânsia pela fama. Sendo reduzida a possibilidade de se obter a almejada fama de
forma moralmente aceitável (as possibilidades mais comuns ocorrem através da
música ou do desporto, mas são muito poucos a conseguir a ascensão social por
essa via), surge como alternativa o recurso aos gangues. Sendo activos nos
gangues, os jovens vêem os seus nomes utilizados na comunidade e vêem as suas
pessoas temidas ou adoradas. A ânsia pela fama foi inclusivamente a principal
causa de entrada num gangue, por parte de um dos entrevistados. Trata-se, pois,
de um importante factor a considerar na análise acerca das causas do rápido
crescimento dos grupos organizados de jovens delinquentes. A seguinte
declaração é prova disso:
As dama tão a curtir mais de uí assim, famosos… famoso, sem dinheiro… mas é só
música e essa toda coisa é que elas seguem… Elas praticamente, agora, tão a nos
sustentar. […] Elas agora é que me dão. Elas tão a seguir a fama […]. O que eu
pedir, elas tragam. Se não trazer, tem que juntar… depois, quando complementar
o dinheiro, têm que me trazer. […] Agora, as miúdas [de 12, 13 anos] não querem
saber mais, tão a vir tamém nos mais velho… da fama. [20 anos, 9.ª classe,
Sambizanga]
Entrei memo na exploração, de ver outros kambas tamém da minha banda… porque H…
[nome do grupo] tá dividido em muitos sítios… tem muita life noutras bandas. E
nas bandas onde tem H…, tem sempre aquelas pessoas, pá, que querem se inspirar
memo naquela bandidagem, naquela life… vejam que a life é uma life assim de
fama, pra ter nome. Pá, eu tamém me inspirei assim, nessa de ter nome… [23
anos, 9.ª classe, Maianga]
Uma derradeira causa é a necessidade de protecção.[10] Uma vez que as
autoridades policiais não estão em condições de garantir a protecção permanente
de cada jovem, o ingresso num gangue passou a ser o recurso para garantia de
protecção de adolescentes e jovens.
Há uma ligeira diversificação na actuação dos gangues da cidade de Luanda, mas
essa actuação resume-se genericamente ao seguinte:
§ pequenos assaltos na via pública (roubo de telemóveis, sapatilhas, vestuário
e mochilas);
§ roubo de dinheiro, na via pública e em meios de transporte colectivo;
§ desmandos e rixas entre grupos rivais. [11]
Tudo indica que a maioria dos gangues juvenis não assaltem moradias, mas há
casos em que ocorrem também pequenos roubos em residências. Os mais mencionados
são roubos de botijas de gás e respectivos redutores. Somente os maiores
grupos, que actuam em bairros urbanizados da capital luandense, incluem na sua
actividade comum o assalto a lojas, escritórios e moradias.
As armas mais utilizadas são armas brancas — facas e garrafas, para além de
pedras e paus. Apenas um dos nossos entrevistados declarou andar com arma de
fogo de quando em quando. De resto, preferem normalmente evitar as
consequências imprevisíveis de andar armado com pistola:
Temos medo tamém daquilo… temos medo daquilo, porque aquilo é mais raro. Às
vezes, com aquela frustração que tens, numa lanchonete, uma luta, és capaz de
tirar aquilo e fazer tiro. Então, por isso é que evitamos sempre aquilo.
Andamos com sacos de garrafa. [21 anos, 6.ª classe, Petrangol]
A solução mais comum, para além da utilização de armas brancas, é o ataque em
grupo. Havendo ataque em grupo, há à partida a convicção na vitória:
Nós trabalhamos 15. […]. Porque não se sabe se a pessoa está a andar sozinha…
se tá a levar algo… a levar arma… Porque se ele tirar, disparar para mim, eu
sei que ele não vai conseguir dar [atingir] os quinze — aí vai ter já três, ou
dois, ou quatro, que vai lhe conseguir agarrar. Por isso é que nós trabalhamos
assim nós todos, que é pra não acontecer assim coisas de errado. [22 anos, 8.ª
classe, São Paulo]
Mas há grupos onde se faz uso de armas de todo o tipo, tal como declarou um dos
entrevistados:
Armamento é o nosso divertimento do dia-a-dia. É a nossa life, que nós levamos.
Fazer balázio é a nossa comida, é a nossa bebida. Andamos armado com muito tipo
de material. […] Temos todo o tipo de armamento. [23 anos, 9.ª classe, Maianga]
Nenhum dos cinco entrevistados assume ter matado alguém, mas dois deles admitem
disparar no caso de a sua segurança estar ameaçada e se estiver a andar armado:
Tirar a vida, também, eu não posso tirar, né? Mas… um [tiro] da perna, do
braço… Porque se eu disparar, assim será mais fácil… Se eu não disparar, aí vai
pensar que não tem bala, ou vai pensar que eu não tenho coragem… essa coisa
toda. [22 anos, 8.ª classe, São Paulo]
Nesse caso, o arrependimento virá somente mais tarde:
A gente não se controla, porque a gente se puxar [da arma] e apertar [o
gatilho], aquilo sai rápido… O arrependimento só vem mais tarde… O
arrependimento só vem já mais tarde. [22 anos, 8.ª classe, São Paulo]
Os rendimentos dos integrantes dos gangues variam em função da sua área de
actuação e da posição no grupo. Os rendimentos dos entrevistados variam entre
15 e 27 mil kwanzas por semana. [12] Mas não nos devemos ater a estes valores,
visto que eles próprios reconheceram não saber quais os seus rendimentos reais.
O que ocorre é que boa parte daquilo que se amealha é rapidamente gasto em
bebida, diversão e com as namoradas.[13] Por essa razão, não é de estranhar
qualquer valor acima dos mil euros de rendimento por mês.
É importante constatar, ainda, que os jovens entrevistados não contribuem
normalmente para as despesas dos seus lares, independentemente de (nalguns
casos) reconhecerem a situação de pobreza em que os seus familiares vivem.
Aquilo que o jovem delinquente comum amealhava então era para ser gasto somente
por si e para satisfação das suas necessidades imediatas. Mas há casos em que
alguns familiares beneficiam do produto dos roubos.
Um aspecto relacionado com a actividade dos gangues é a sua relação com os
agentes da ordem pública. De um modo geral, os entrevistados reconhecem a acção
da polícia a bem da comunidade. Por essa razão, não é de estranhar que todos os
nossos entrevistados tenham já estado detidos em esquadras da polícia e (num
dos casos) na Cadeia Central de Luanda, mas nenhum deles foi ainda levado a
julgamento nem cumpriu qualquer pena.
Em caso de detenção, os jovens delinquentes interagem com os demais. A detenção
funciona como meio de circulação de informação, quer em relação à actividade
marginal de outros grupos, quer em relação ao aprimoramento das técnicas de
delinquência. Estando detidos em esquadras da polícia, o método de correcção
utilizado são castigos físicos, onde se inclui a pancada:
Tive lá, me deram um pequeno castigo — me meteram de joelhos durante duas horas
e me pancaram [bateram] com a cabeça na parede, só… [21 anos, 6.ª classe,
Petrangol]
Quando você entra, os polícias têm tendência de te bater. Te batem! Eu já fui
preso cinco vezes, já levei porrada cinco vezes, mas pra mim eu acho que é uma
coisa normal, a gente já tá habituado. [22 anos, 8.ª classe, São Paulo]
Quando alguém está detido, ou o grupo ou a família trata de pagar para ser
solto. [14] O dinheiro pago vai para os bolsos dos agentes responsáveis pela
detenção — e não para os cofres do Estado. Por isso e devido à elevada dose de
liberdade de actuação que os gangues têm, há quem considere que os polícias
detêm os integrantes dos gangues somente quando precisam de dinheiro.
Considera-se inclusivamente que os polícias são “bandidos legalizados”, são
parceiros que, apesar de actuarem em campos aparentemente opostos, estão em
perfeita sintonia:
Os baba [polícias] tamém são nossos kamba… Eles dizem: “Sem vocês, tamém nós
não vivemos”. Porque eles sabem sem nós eles não fizeram dinheiro. Porque nós é
que tamo a les dar dinheiro. Vamo entrar… eles só nos controlam. “Eh pá, vocês
não podem começar matar…” Eu posso dizer que os baba são bandidos legalizados…
[20 anos, 9.ª classe, Sambizanga]
Exigem mesmo, por exemplo, um maço de cigarro… e o próprio dinheiro que tu
tiver com ele no bolso. A gente é que tem que dizer: “Não, kota, não vou te dar
essa parte. Vou te dar uma metade e tamém fico com uma metade. [21 anos, 6.ª
classe, Petrangol]
É como se fosse alguém que tá a querer cumprir um papel dele. Eu, por exemplo,
se sou polícia, tenho que cumprir o meu dever como polícia. Na rua, se ele tá a
ver gatuno, ele não pode deixar tamém; tem que fazer só qualquer coisa. Mas
dentro dele, ele tá convicto: “Eu tou a fazer aquilo, mas depois quando eu
chegar na esquadra, as coisa serão outra. [20 anos, 9.ª classe, Sambizanga]
Há, inclusivamente, quem vá mais longe e reconheça existir uma parceria mais
estreita entre agentes da polícia e delinquentes, que se consubstancia na
passagem de informação que vai facilitar um “bom golpe”:
Tem vezes até mesmo, eles é que nos dão as pistas das pessoas que nós devemos
quê… ir lá fazer as coisas. Mas eles não dão assim a pista a nós, eles dão a
pista no chefe, no chefe da bola [grupo]. Às vezes assim, se tem um conhecido,
ele dá a pista: “Olha, aquele Fulano é assim, assim, assim, assim; vocês têm
que ir lá, pegar os mambo [coisas] dele, não sei quê. ” E o chefe tamém vem nos
transmitir o recado e a gente vai fazer as coisas. […] Temos pago, sim. Temos
pago a ele mesmo, na própria pessoa que nos mostra. Porque o chefe faz assim as
coisas com ele, faz as contas com ele. [22 anos, 8.ª classe, São Paulo]
Apesar de as atitudes consideradas mais comuns serem a complacência e a
parceria por parte de agentes da polícia, um dos entrevistados reconhece haver
nessa corporação agentes realmente cumpridores do seu papel. Esse jovem foi
mesmo recrutado pela polícia como informador, apesar de ainda não ter exercido
tal papel:
Quando eu saí de lá da esquadra, a polícia me disse assim: “Vamos colaborar
contigo. Qualquer coisa que você vê no bairro, tá qui o meu número. Podem vir,
mas não têm que falar com os senhores que ficam na porta. Digam só que quero
falar com o chefe Fulano e nós vamos ter com ele. [21 anos, 6.ª classe,
Petrangol]
Depois desta descrição a respeito da actuação de alguns dos gangues de
delinquentes juvenis da cidade de Luanda, interessa saber se os nossos
entrevistados se predisporiam a abandonar essa actividade, enveredando por
qualquer outra socialmente útil. Três deles declararam-se predispostos a
abandonar os gangues a que pertencem, enquanto os outros dois consideram que se
vão manter nos seus grupos. Tudo indica que a opção pela manutenção nos grupos
de delinquentes aumente com a melhoria da proveniência social do jovem — ou
seja, são os jovens mais pobres que consideram em maior grau a possibilidade de
abandonarem os gangues.
Pensamos que o mais importante factor a considerar na análise a respeito das
características de quem está predisposto a abandonar a actividade marginal
sejam os traços de personalidade do adolescente ou jovem delinquente. Tudo
indica que a proveniência social seja um factor que está correlacionado com os
traços de personalidade adquiridos pelos jovens.
Um dos jovens que se sente bem no seu gangue e considera que aí vai permanecer
por muito tempo chega inclusivamente a agredir quem lhe sugere o contrário:
Às vezes, nos momentos assim que eu vejo, há pessoas que têm que me aconselhar:
“Essa vida não dá.” Olha, às vezes, durmo e tenho que tiver um sonho e naquela,
eu também começo a meter a mão na consciência… Pá, às vezes mando bater nos
gajos, que é pra que não venham mais me dar conselho. [21 anos, 6.ª classe,
Petrangol]
Quanto aos predispostos a abandonar, um pretende prosseguir os estudos,
enquanto os outros abandonam no caso de conseguirem emprego que lhes garanta
rendimentos que permitam um nível de vida aceitável:
Aquilo, praticamente, é juramento de bandeira… é juramento de bandeira. Pra
você sair, não avisa ninguém. Mas eu, por mim, eu digo que vou deixar essa
vida. […] Tem alguém que apareceu em minha casa, hoje, disse: “Você tem que
concluir teus estudos…” Ele disse que vai aparecer mais tarde, vai conversar
com a minha tia. Basta ele conversar com a minha tia, eu memo deixo com tudo.
Eu memo tenho o desejo de deixar… e tenho fé que vou deixar isso. [20 anos, 9.ª
classe, Sambizanga]
Quando eu arranjar um serviço, aí sim, eu vou ficar com a minha consciência
limpa, porque eu já não sou de nenhum grupo — eu vou pensar a minha vida daqui
prá frente, porque estou num trabalho… num trabalho onde eu não posso sujar
mais o meu nome, tenho que limpar já… [22 anos, 8.ª classe, São Paulo]
Conclusão
A terminar, podemos dizer que os integrantes dos gangues têm plena consciência
da actividade que desenvolvem e da forma como essa actividade é socialmente
condenada. Os entrevistados reconhecem-se, eles próprios, como delinquentes.
Utilizando a acima aludida teoria da rotulagem, pode dizer-se que uma vez
rotulado como delinquente, o jovem é socialmente estigmatizado, mesmo no seu
meio de residência: [15]
Por exemplo, os meus vizinho já não me ligam… “Fulano, não entra aqui. É
gatuno. Não entra aqui!” — eles dizem isso. Eu tamém me sinto um pouco
ofendido. Eu fico… penso duas vezes… mas eu digo: “Mas como é que eu vou deixar
então, não sei quê?” Isso é como se fosse alguém que bebe cerveja, lhe falar:
“Deixa”. Ele, perante a nós, vai querer falar: “Não, eu não vou deixar, não sei
quê”, mas ele vai tar magoado… vai tar magoado… ele vai pra casa dele, mas ele
vai tar a raciocinar onde ele tiver, ele vai dizer: “Deixar, posso. Mas quando
eu ir pela rua, posso ver sempre aquele ambiente, tão a beber, não sei quê, eu
vou querer ter sempre aquela ansiedade de querer beber” É como se fosse nós.
[20 anos, 9.ª classe, Sambizanga]
O que sucede é que, depois da primeira transgressão, a atribuição do rótulo de
delinquente origina o estigma, resultando daí a prática delinquente como
“desvio secundário” (Lemert, 1972). O desvio secundário ocorre quando o
delinquente aceita esse rótulo, passando assim a reincidir na prática
desviante. A aceitação do rótulo por parte do delinquente não apenas interfere
favoravelmente na hipótese de reincidência, como também contribui para a
diminuição da capacidade de luta contra as práticas desviantes.
No caso de ser detido (mesmo numa esquadra da polícia), o adolescente ou jovem
tem contacto com outros delinquentes e, até, toma conhecimento de novas
práticas e técnicas criminosas. A interacção entre delinquentes, em cadeias e
esquadras da polícia de Luanda, não é vantajosa do ponto de vista moral — é,
antes, prejudicial, quer do ponto de vista do criminoso (sobretudo se
primário), quer do ponto de vista da sociedade.
A solução para diminuição da delinquência juvenil não está na repressão física
(em esquadras e cadeias), mas na acção social do Estado e da sociedade, em prol
do aumento do acesso à instrução e ao emprego, no combate à corrupção
generalizada e à pobreza [16] — em suma, está na adopção de medidas em prol de
uma cada vez mais ampla inclusão social. Desta forma se irão absorvendo cada
vez mais os adolescentes e jovens que enveredam actualmente pela delinquência
como modo de vida.